dissertacao - vale do amanhecer

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Artigo acadêmico sobre o Vale do Amanhecer.

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1 DANIELA DE OLIVEIRA VISUALIDADES EM FOCO: CONEXES ENTRE A CULTURA VISUAL E O VALE DO AMANHECER DissertaoapresentadaaoCursode MestradoemCulturaVisualdaFaculdadede ArtesVisuaisdaUniversidadeFederalde Gois,paraobtenodottulodeMestreem Cultura Visual. readeConcentrao:Educaoe Visualidade. Orientador: Profa. Dra. Alice Ftima Martins. FAV/UFG 2007 3DANIELA DE OLIVEIRA VISUALIDADES EM FOCO: CONEXES ENTRE A CULTURA VISUAL E O VALE DO AMANHECER DissertaodefendidanoCursodeMestradoemCulturaVisualda Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Gois, para obteno dograudeMestre,aprovadaem30deagostode2007,pelaBanca Examinadora constituda pelos seguintes professores: ________________________________________________ Prof. Dr. Alice Ftima Martins FAV/UFG Presidente da Banca ________________________________________________ Prof. Dr. J oo Gabriel Lima Cruz Teixeira - UnB Membro Externo _________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Martins FAV/UFG Membro Interno 4BANCA DE DEFESA Universidade Federal de Gois Faculdade de Artes Visuais Mestrado em Cultura Visual VISUALIDADES EM FOCO: CONEXES ENTRE A CULTURA VISUAL E O VALE DO AMANHECER DANIELA DE OLIVEIRA Dissertao defendida e aprovada em 30 de agosto de 2007. BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________ Prof. Dr. Alice Ftima Martins FAV/UFG Orientadora e Presidente da Banca ________________________________________________ Prof. Dr. J oo Gabriel Lima Cruz Teixeira - UnB Membro Externo _________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Martins FAV/UFG Membro Interno ________________________________________________ Prof. Dr. Nei Clara Lima Museu Antropolgico/UFG Suplente do Membro Externo ________________________________________________ Prof. Dr. Maria Elzia Borges FAV/UFG Suplente do Membro Interno 5 AGRADECIMENTOS: Aos meus pais, Maria Luiza e J os Emir, pelo amor incondicional. A V Tina, in memorian, pela lio de vida. s minhas irms, Mariane, Liliane, Silvana e Karina, pela fora dada mesmo distncia. ACAPES,pelabolsaconcedidadurantejunho/2005e fevereiro/2007. minha orientadora, Prof. Dr. Alice Ftima Martins, pela acolhida e pela maestria. AoProf.Dr.J ooGabrielLimaCruzTeixeira,pelanova oportunidade. AoProfDrRaimundoMartins,pelasrefernciasbibliogrficas buscadas em seu plano de aula da disciplina Teoria da Cultura Visual. Prof.Dr.ReginaFernandes,pelaamizadeepelostoquesde mestre. LiseeLeboutte,meusqueridosamigos,quesempreme acolheram, em Braslia, com muito carinho e pujana. Aos meus amigos, Carla de Abreu e Ice, pelo afeto e pela parceria. Ao Rogrio, pelo amor e companheirismo. Ao Adair Marques, pelo grande apoio. AlziraMartins,obraodireito(eesquerdo)doMestradoem Cultura Visual, pelo profissionalismo e bom humor. Ao J oaquim Vilela, pela entrevista e pelos ensinamentos. Carmem Lcia Zelaya, pela entrevista, pelas lies de vida e pelo arroz com pequi. Aomeucicerone,RubensFaleirodeSiqueira,pelapacinciae simpatia. todas e a todos os jaguares do Vale do Amanhecer, que esto a performar, cotidianamente, crenas e valores em busca de um mundo melhor. 6Ao universo e natureza, por propiciarem os cenrios e a ambincia para o assentamento das culturas e das visualidades. E, claro, Tia Neiva, pela sua histria de vida e pela sua Obra. 7Resumo Oobjetivodestetrabalhodiscutirasvisualidadesdasprticascotidiano-ritualsticas da comunidade religiosa Vale do Amanhecer (DF) e seu contexto scio-cultural, tendo como principal referencial terico a Cultura Visual. O Vale doAmanhecerfoicriadoeconsolidadoapartirdasclarividnciasdesua fundadora, Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva, e destaca-se por seu sincretismo decrenasesmbolos,eporsuapeculiarvisualidade,potencializada, principalmente,nosdiversosespaosritualsticosenasindumentrias utilizadas por seus adeptos. O estudo aqui proposto enfatiza os processos de constituiodoscomponentesexpressivoseestetizantesdaaoscio-religiosa,consideradoscomofontesdosreferenciaisidentitriosdogrupo.A comunidade, cuja organizao scio-cultural pautada pelo sagrado, data mais dequatrodcadasdeexistnciaeumdosplosdeturismomsticodo Planalto Central. A partir de sua viso de mundo, configura uma territorialidade marcada por uma exacerbao visual, dotada de uma forte plasticidade e de uma esttica peculiar. As prticas ritualsticas, dramatizadas por seus adeptos, diariamente,nacomunidade,re-atualizamahistrialocal,interpenetrandona vida cotidiana e reafirmando a identidade e a memria coletivas do grupo. Palavras-chave: Visualidades, Cultura Visual, Vale do Amanhecer, Identidade, Novas Religiosidades. 8Abstract The main goal of this research is to discuss the aesthetic of a daily-ritualistic of the religious community called Vale doAmanhecer (DF) and its socio-cultural context,basedontheVisualCulturetheoreticalreference.NeivaCharles Zelaya,affectionatelyknownbyAuntNeiva,amedium,hascreatedam consolidated the community Vale do Amanhecer inspired on premonitions. That community is distinguished by its mixed beliefs and symbols, and for its single visuality,maximizedmainlyonthedifferentritualisticspaces,andonthe costumesusedbyitsadepts.Thisstudyemphasizestheexpressiveand aesthetic components of the religious action, the main identities references of thegroup.Thecommunity,whosesocio-culturalorganizationisbasedbythe sacred order, exists for more than forty years and it is a famous mystic point of PlanaltoCentral.Theirworld'svisionconfiguresaterritorialitymarkedbya visualmaximizationendowedbyastrongplasticityandaestheticcommotion. Theritualspracticedbytheadeptscontinuouslytaketothepresenttimethe local history, mixed on the daily life, and reaffirm the collective identity and the memory of the group. Keywords:Visualities,VisualCulture,ValedoAmanhecer,Identity,New Religiousness. 9NDICE DE IMAGENS Imagem Pgina Imagem 01 - Ritual de Anodizao 12 Imagem 02 Portal de entrada do Vale do Amanhecer 25 Imagem 03 Elipse localizada no Templo Estrela de Neru 26 Imagem 04 Hexagrama e Imagem de J esus Cristo 27 Imagens 05 Interior do Templo do Amanhecer 28 Imagens 06 Interior do Templo do Amanhecer 28 Imagem 07 Casa Grande/Museu 29 Imagem 08 Esttua de Tia Neiva, entrada da Casa Grande 31 Imagem 09 Imagem de Tia Neiva, interior do Templo do Amanhecer 32 Imagem 10 Fotografia de Tia Neiva 33 Imagem 11 Smbolo Yoni objeto ritual 35 Imagem 12 Fotografia de Pai Seta Branca 37 Imagem 13 Mrio Sassi e Tia Neiva 39 Imagem 14 Smbolos do Doutrinador e do Apar 45 Imagem 15 A Tocha 46 Imagem 16 Figura do J aguar 47 Imagem 17 Uniforme masculino do J aguar 48 Imagem 18 Placa localizada na entrada do Solar dos Mdiuns 49 Imagem 19 - Ritual da Estrela Candente 50 Imagem 20 Morro Salve Deus 51 Imagem 21 Pirmide localizada no Solar dos Mdiuns 52 Imagem 22 Setor comercial da comunidade 56 Imagem 23 Mestres e Ninfas caminhando no Solar dos Mdiuns59 Imagem 24 - Ritual de Priso Espiritual63 Imagem 25 - Ritual da Estrela Candente 64 Imagem 26 Lanchonete localizada na zona central da comunidade 67 Imagem 27 Parte central da comunidade, Templo Estrela de Neru 69 Imagem 28 Atelier de Vilela e Ritual Consagrao de Estrela Aspirante73 Imagem 29 Propaganda publicitria da candidatura de Vilela 74 Imagem 30 Santinho de Vilela 75 Imagem 31 Interior do atelier de Vilela 77 10Imagem 32 Atelier, loja e escritrio de Vilela79 Imagem 33 O ofcio de costureira no Vale do Amanhecer 84 Imagem 34 Interior do salo de costura de Carmem Lcia 84 Imagem 35 Carmem Lcia em sua casa 86 Imagem 36 Indumentria das Samaritanas 88 Imagem 37 Panormica da comunidade Vale do Amanhecer 94 Imagem 38 Panormica do Ritual da Estrela Candente 95 Imagem 39 A caminho do Ritual da Estrela Candente 97 Imagem 40 Trabalho de Abat98 Imagem 41 Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida eComplexo Cultural da Repblica, Esplanada dos Ministrios, Braslia/DF 101 Imagem 42 Souvenir comprado de um vendedor ambulante 104

11SUMRIO Introduo..........................................................................................................12 Captulo 1: O percurso metodolgico................................................................17 Captulo 2: Vale do Amanhecer: uma breve descrio e apresentao da Doutrina e da comunidade................................................................................ 25 Captulo 3: O visual na cultura e a cultura no visual..........................................58 3.1. Cultura, performance e identidade..............................................................60 3.2. A Cultura Visual e o Vale do Amanhecer....................................................65 Captulo 4: As visualidades em foco no Vale do Amanhecer............................69 4.1. Os smbolos fixos: da clarividncia materializao das imagens ...........72 4.1.2. Os smbolos mveis: da clarividncia materializao das indumentrias....................................................................................................82 4.2. As performances identitrias dos entrevistados: possveis conexes com a Cultura Visual.....................................................................................................90 4.3. Vale do Amanhecer: uma esttica peculiar e de resistncia......................95 Concluso........................................................................................................106 Referncias Bibliogrficas.............................................................................. 111 12Introduo Nestadissertao,feitaaanlisedasvisualidadesnocontexto scio-culturalereligiosodaDoutrinaValedoAmanhecer,maisprecisamente nacomunidadehomnima,situadaemPlanaltina-DF,comvistasa compreenderopapelqueatramavisualdoValedoAmanhecerassumena concepoenasvisesdemundodeseusadeptos,emsuapeculiarordem tica, esttica e plstica, que vai alm do desenho e da arquitetura do espao, alcanando,sobretudo,ossujeitosqueexperenciam,noseucotidiano,as crenas, os princpios e os valores da Doutrina. ACulturaVisualconstituioeixotericonorteadordestetrabalho. Essacategoriadeanlisedestaca-seporserumcampoemergentee interdisciplinardeconhecimento,quebuscacompreenderereconheceras diferentesemultifacetadasmanifestaesvisuaiseestticasquefiguramna sociedade contempornea, com nfase no multiculturalismo e nas referncias identitrias. Essecampotericodecorredanecessidadedeorganizaode sistemasexplicativos,comseusfocosvoltadosparaaexacerbaode imagensquecaracterizamomundoatual,cujasvisualidadesvodesdeas hibridaesdasmanifestaesartsticas,smanifestaespopulares,atas imagens produzidas por equipamentos dos mais diversos meios. Nocontextocontemporneo, asvisualidadesarticuladorasdesignos noValedoAmanhecerconstituem objetodeestudonombitodaCultura Visual,vezqueodesenhoea ocupao do espao arquitetnico e as indumentriasutilizadasporseus adeptos(imagem01)configurame caracterizam a histria, a esttica e a Imagem 01 - Ritual de Anodizao. Fonte: Daniela de Oliveira. 13identidade do grupo, a partir de suas prticas ritualsticas que forjam narrativas visuais, mediadoras e agregadoras da comunidade. OValedoAmanhecerumacomunidadereligiosamilenarista1, construdaem1969,quesedestacaporseusincretismodecrenase smbolos2eporsuapeculiarestticavisual,representada,principalmente, pelosdiversosespaosritualsticosepelasindumentrias.Acomunidade constitui um ponto muito visitado por turistas, estudiosos, religiosos e msticos, fazendo parte, oficialmente, do circuito de Turismo Mstico do Distrito Federal. Poressarazo,valeressaltarqueainstalaodoValedo Amanheceresttambmatrelada,historicamente,construodeBraslia, fazendoparte,portanto,daconstituiodeumacertaauramsticaque envolveoprocessodeformaodacapitaldoBrasil(SIQUEIRA,1999), referida por poetas, artistas e cientistas sociais.Trazendo para o campo da Cultura Visual, pode-se pensar no poder exercidopelasimagensnacomplexidadedaculturacontempornea, reconhecendoqueavisoculturalmenteconstruda,easprticasvisuais contribuem na concepo de conceitos e na construo de iderios, capazes dedeflagrarprocessossubjetivoseidentitriosdeumdeterminadocontexto (ELKINS, 2003). As visualidades do Vale do Amanhecer contribuem, fortemente, para a concepo e retroalimentao das crenas e valores, da viso de mundo dos seusadeptos,daocupaodoterritrio,enatransformaodeumespao geogrfico em um espao, que foi construdo a partir do sagrado, engendrado de smbolos, de muitas cores e exacerbaes, caracterizando e estetizando a 1 Entende-se, aqui, o Vale do Amanhecer como comunidade milenarista pelo fato de ter surgido concomitantementeaoprocessodeconstruodeBraslia,envolvido,portantopelautopia modernista e pela profecia de Dom Bosco de que naquela terra jorraria leite e mel. O Planalto Central configurou-se, ento, como um territrio de proliferao de prticas religiosas voltadas para o novo tempo, ou seja, o Terceiro Milnio, a Nova Era. Essas prticas misturam elementos religiosostradicionaiseelementosdeordemcsmica,energiauniversal,etc.(SIQUEIRA, 1999).EmboraoValedoAmanhecerseconfigurecomoumadoutrinaqueseaportade prticasreligiosaspopularesetradicionais,seusurgimento,seusprincpiosesuasprticas esto inseridos no contexto histrico da Nova Era, vista por seus adeptos como a Doutrina do Futuro. 2 Importante salientar, previamente, que um dos principais aspectos a chamar muito a ateno sobre o Vale do Amanhecer justamente essa reunio e combinao de elementos das mais diversas religies e doutrinas, como o espiritismo de Allan Kardec, o catolicismo, o candombl, a umbanda, o judasmo, e algumas religies orientais. 14vidasocialereligiosadossujeitospertencentesDoutrinaemoradoresda comunidade. Amais,adiversidadedosaspectosvisuaisquesemanifestam atravs das prticas religiosas do Vale do Amanhecer compartilha o seu mundo simblico e espacial com os demais aspectos ordinrios da vida social local. Tais constataes contriburam na formulao da questo-problema destapesquisa,quetemcomoobjetivoanalisaroprocessodeformaoe constituio do conjunto de imagens visuais produzido no Vale do Amanhecer, cujaatuaotambmprotagonizaainterlocuodaprticareligiosaeseus rituais com a vida cotidiana de seus moradores, a tecendo e retecendo novas relaes e interaes dinmica e continuamente.NosepodedeixardemencionarqueahistriadoValedo Amanhecer est intimamente ligada histria de vida de sua grande fundadora evisionria,NeivaChavesZelava,conhecidacarinhosamenteporseus adeptoscomoTiaNeiva,mdiumclarividente,integrantedalevade nordestinosquecontribuiunoprocessodeconstruodeBraslia.O surgimentodoValedoAmanhecere,porconseguinte,aconstituiodos signosvisuaisdacomunidade,sedeuatravsdesuasclarividncias, culminando na criao e fundao da Doutrina, que remetem e datam a dcada anterior da construo da comunidade. 3 Portanto,TiaNeiva,atravsdasmensagensquerecebiadoPlano Espiritual,agrandementoradaconstruodoconjuntoimagticoque trespassa o Vale do Amanhecer, destacando, mais uma vez, a importncia do sagrado na formulao das imagens que conformam e intermediam as prticas ritualsticas e cotidianas da comunidade. Aclarividentefaleceuaos60anos,em1985,e,athoje,muita amadaerespeitadaporseusprosseguidores,quefazemquestodemanter suamemriavivaepresente,tantonaordemespiritualquantomaterial,em todos os espaos sagrados e profanos do Vale do Amanhecer.Pela linha de investigao a que esse trabalho se prope, a anlise das visualidades deu-se em duas frentes. A primeira, atravs da apreenso do aparatovisualeimagticodosespaosritualsticos;asegunda,atravsda 3 A histria de Tia Neiva ser apresentada e analisada no segundo captulo desta dissertao. 15anlisedaimportnciaqueasindumentriasrepresentamnoprocesso identitrio do grupo. Assim, os entrevistados escolhidos foram o artista plstico J oaquim Vilela,produtordegrandepartedoconjuntodeimagens,entrepinturase esculturas do Vale do Amanhecer, que conformam os espaos ritualsticos, e Carmem Lcia Zelaya, filha de Tia Neiva, uma das primeiras mulheres a pensar e a confeccionar as indumentrias utilizadas pelos adeptos. Foram incorporadas, tambm, as falas de um adepto da Doutrina e morador do Vale do Amanhecer que, gentilmente, ciceroneou algumas idas a campo,eprincipalmente,auxiliounocontatocomosentrevistados:Rubens Faleiro de Siqueira, adepto da Doutrina desde 1986 e morador da comunidade desde 19934, cuja narrativa acabou entrando na cena, tendo sido fundamental para a compreenso dos aspectos identitrios do grupo, relevantes para esta pesquisa Estetrabalho,ento,sedivideemquatrocaptulos.Oprimeiro, denominado O percurso metodolgico, explicita a metodologia utilizada nesta investigao, pautada na observao-participante, trazendo, tambm, o termo etngrafa-turista,comoinstrumentalizaoparaoprocessodeincursoa campo. Osegundocaptulo,ValedoAmanhecer:umabrevedescrioe apresentao da Doutrina e da comunidade, trata das principais visualidades que cartografam a comunidade, bem como um pouco da histria da Doutrina, seuspersonagensprincipais,seusprincpioseseuMitodeOrigem,sobo prismadooutro,cujanovareligiosidadeoriginounovasvisualidadesem pleno cerrado brasileiro. Oterceirocaptulo,Ovisualnaculturaeaculturanovisual, apresenta os referenciais tericos utilizados nesta investigao, protagonizados pelaCulturaVisual,quebuscaapreendersobreorelevantepapeldas visualidades na comunidade, vistas como prticas culturais, e as performances identitrias dos adeptos da Doutrina. 4Rubens,durantesuainfncia,entre1974e1975,foipajezinhonoValedoAmanhecer, denominaodadascrianasquepertencemefreqentamDoutrina,eretornaprtica doutrinria em 1986, mudando-se para a comunidade em 1993. 16Porfim,oquartocaptulo,AsvisualidadesemfoconoValedo Amanhecer,evocaoprocessodeconcepoeformulaodasvisualidades do Vale do Amanhecer, a partir das entrevistas de J oaquim Vilela e Carmem LciaZelaya,comointuitodeanalisar,soboprismadaCulturaVisual,as principais questes suscitadas a partir das entrevistas realizadas, objetivando denotarrelaesdepoderesuscitarnovasapreenseseanlisessobrea constituio das visualidades na comunidade. Nessetrajeto,aanliseterico-metodolgicatemcomosuportee aportevisualorecursodaFotografia,comoelementonarrativodesta dissertao. 17CAPTULO 1 O percurso metodolgico Otrajetometodolgicopercorridonesteprocessodeinvestigao deu-se em duas vias. A primeira, a partir do processo de pesquisa das fontes e documentos na direo e na tentativa de ampliar a compreenso para anlise e descrio da comunidade Vale do Amanhecer. E a segunda, a partir da escolha dotipodeobservaoecategoriadeinserodentrodoprocessodeidaa campo e da seleo dos entrevistados. CabedestacarqueestetrabalhotemcomoeixotericoaCultura Visual, e que esta, por sua vez, faz parte de um campo interdisciplinar e, s vezes,antidisciplinar,quesoosEstudosCulturais(SILVA,2004).Portanto, nointenodessapesquisaapresentarumprocessometodolgicorgido, nem tampouco, fechado. Os desgnios metodolgicos foram sendo estudados, analisadosearticuladosnodecursodapesquisa,noir-e-virdoprocesso investigativo. nessa incurso a um novo paradigma que se pauta nas relaes entre cultura e sociedade que se ampliam as possibilidades de constituio de umpensamentocientfico,defendidaporSantos(2001),apartirdeuma racionalidademaispluraletransdisciplinar.Oautordefendeaarticulaode um pensamento cientfico natural e social, lembrando que a Cincia vive, hoje, um momento de transio. A cincia no descobre, cria, o acto criativo protagonizado por cadacientistaepelacomunidadecientficanoseuconjunto tem de se conhecer intimamente antes que conhea o que com eleseconhecedoreal.Ospressupostosmetafsicos,os sistemas de crenas, os juzos de valor no esto antes nem depoisdaexplicaocientficadanaturezaoudasociedade. Soparteintegrantedessamesmaexplicao.(SANTOS, 2001, p. 52)

Nessesentido,configura-seumadiversidademetodolgica,num sistemaaberto.Poroutrolado,arelatividadedoconhecimentopermitea comunicaoeodilogododiscursocientficocomosensocomum, explicitando suas limitaes. nesse contexto que se justifica a metfora da etngrafa-turista, termo este que ser utilizado e explicitado mais adiante. 18No que concerne ao processo de apresentao e descrio do Vale do Amanhecer5 o objetivo foi enfatizar os aspectos espaciais, visuais, histricos edoutrinriosdacomunidade,deacordocomofocodestetrabalho.Tal esforofoiacompanhadopormuitaprudnciaparanoenveredarpor caminhos que pudessem deturpar ou levantar inverdades sobre a Doutrina. Neste sentido, a tarefa de descrever e analisar o Vale do Amanhecer configurou-secomoumadasmaisardilosasduranteesteprocesso investigativo.Muitaspesquisastmsidorealizadas,comdiferentesfocos temticos sobre aquela comunidade, cuja histria envolvente e instigante, sem dvida, possibilita uma srie de perspectivas analticas. Duranteoprocessodebuscadasrefernciasbibliogrficase documentais que serviriam de suporte para este trabalho, foi possvel constatar a configurao de duas fontes de investigao mais relevantes. O primeiro, organizado a partir dos registros documentais do prprio ValedoAmanhecer,disponveisnoMuseu,naBibliotecadoJ aguarenas livrariasdacomunidade,quecontemplamoprocessodeformulaodos princpios da Doutrina, com seus pressupostos tericos, filosficos e espirituais, bemcomoosregistrosescritosevisuaisdoprocessodeformaoe constituio do que se configura, hoje, a comunidade Vale do Amanhecer. Dentreosregistrosdocumentais,umimportanteveculode comunicao e de informao que serviu de ferramental para a compreenso da Doutrina e seu funcionamento foi o J ornal do J aguar, um boletim informativo da Biblioteca do J aguar, publicado bimestralmente desde setembro de 2005. O J ornalabordatemasrelevantesdentrodaDoutrina,comoaimportnciaea representao das entidades que atuam no Vale do Amanhecer, bem como a explicao dos smbolos utilizados e presentes na comunidade. Traz, tambm, reportagenssobreCincia,Religio,F,comartigosdehistoriadores, antroplogos, fsicos, etc. Osegundocampodeanliseseorganizaemtornodaspesquisas acadmicasrealizadassobreessacomunidade.Aqui,merecedestaque salientar que a primeira investigao cientfica sobre o Vale do Amanhecer foi 5 Apresentados no prximo captulo. 19uma dissertao de mestrado sobre o processo de cura da Doutrina, de Ana Lcia Galinkin, defendida em 1977.6 De l pra c, de acordo com as informaes disponveis, tudo indica queoValedoAmanhecertenhavoltadoaserobjetodepesquisacientfica somente no final da dcada de 80 e incio dos anos 90. Desse perodo, foram encontradostrabalhosnocampodaAntropologiaVisual7,daSemiticae Cultura.8 Comessasreferncias,buscadasprimeiramentenoambiente virtual,estainvestigaodebruou-se,posteriormente,naspesquisas desenvolvidas sobre o Vale do Amanhecer na Universidade de Braslia (UnB), emcujaBibliotecaCentralforamencontradosasfontesbibliogrficase documentaisquevieramainstrumentalizarestetrabalho,somando-seaos documentos disponveis na comunidade do Vale do Amanhecer. Arazoprimeiradaescolhaporessepercursonapesquisafoia possibilidadedeteremmosessaspesquisas.Asegunda,vemem decorrnciadetratarem-sedepesquisasmaisrecentes,contemplandoo contexto histrico atual do Vale do Amanhecer, com abordagens que tambm atuam, de forma direta ou indireta, sobre o imprescindvel papel dos aspectos visuaisnaformao,constituioepermannciadaDoutrina.9Umdado importante,observadonasinvestigaes,ofatodeteremsido,emgrande parte, elaboradas por adeptos da Doutrina que ingressaram na Universidade, resultando,assim,deumesforonabuscaderigorcientficoesustentao conceitualnadireodaformulaodereferenciaisquecontribuam, efetivamente, para a compreenso da Doutrina. Almdapesquisabibliogrficaedocumental,estapesquisa envolveu,tambm,apesquisadecampo,pautadapelaobservao-participante, bem como pela entrevista com os membros da comunidade. 6 GALINKIN. A cura no Vale do Amanhecer. Dissertao de Mestrado, Braslia, Departamento de Antropologia, UnB, 1977. 7DissertaodeMestrado(1991)eTesedeDoutorado(2000)deMarildaBatista,pela Universit de Paris X-Nanterre, U.P.X., Frana. 8DissertaodeMestrado(1998)eTesedeDoutorado(2005)deCarmenLuisaChaves Cavalcante, pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP, Brasil.Ver tambm: MARTINS,MariaCristinadeC.OAmanhecerdeumaNovaEra:umaanlisedoespao sagradoesimblicodoValedoAmanhecer.Disponvelem: http://www.ifcs.ufrj.br/jornadas/papers/09st0805.rtf. Acesso em 12/05/2006. 9 So eles: REIS (2004), OLIVEIRA (2002), SILVA (1999) e GONALVES (1999). 20Otrajetoinvestigativodestetrabalhofoiadentrando,ento,num universomarcadopeloestranhamentoepoucafamiliaridade.Assumindoque esseumfatorcontingentedequalquerprocessodepesquisapautadana observao do outro, j na primeira incurso a campo e, atravs do estudo e anlise dessas referncias acima citadas, o desconhecido e o estranhamento se apresentaram. A percepo, de incio, foi formulando idias desordenadas. Mas, com o tempo, essas idias foram se organizando e articulando sentidos. Apreocupaolatentesemprefoisobreaformacomoseriamabordadosos princpios e o funcionamento da Doutrina, vez que ela abarca uma variedade dereligies,buscadasemdiferentescontextoshistricos,traduzidase praticadasnosdiversosrituais,configurando,numprimeiromomento,um arcabouo muito complexo.Oanode2006foioanoderefernciadacoletadedadosda pesquisa,ouseja,oanoemqueainvestigao,defato,ocorreu,tantono processo de estudo e anlise, quanto no processo de ida a campo, num total de seis visitas ao Vale do Amanhecer. Pelofatodacomunidadeservisualmenteexuberante,pelas constantes visitas de pessoas de vrios lugares do pas e pela relao de no-pertencimentodapesquisadoraemrelaoDoutrina,esuasprticas cotidiano-ritualsticas, o papel de etngrafa-turista apresentou-se como o mais oportuno para esse processo investigativo. Santos(2005)desenvolveusuametodologiadepesquisatomando emprestadoadesignaodeetngrafo-turistadeBruner(1997),cuja perspectiva de anlise vai ao encontro do que Geertz (1989) chama de estar l e escreveraqui. Essa perspectiva ocorre quando o processo de ida a campo evidencia alguns indicadores tursticos presentes durante as visitas in loco, que deflagramoprocessodeincursodopesquisadoresuainseronolugar, pressupondoumesquemadeconduo,hospedagem,roteiro,registros, etc...Como observa Santos (2005): So,enfim,muitasaspossibilidadesdeterestadol. Possibilidades essas que variam em intensidade, em risco, em capacidadedesemiscigenar,desemisturarcomhbitos, valores, crenas, modos de ver, enfim, de tornar-se mais um(a) daquelelugar(desermenosestrangeiro(a)).Efetivamente, 21estaumadastentativasdo(a)etngrafo(a).tambmpor esta experincia que ele(a) autorizado(a) a falar. (SANTOS, 2005, p. 11) claroqueexistemmuitasdiferenasentreumetngrafo10eum turista. So objetivos, modos de ver e de experimentar muito distintos, mas que se aproximam porque ambos pressupem uma viagem, um deslocamento e um anseio de conhecer estilos, modos de vida e paisagens diferentes. No caso especfico desta pesquisa, algo semelhante aconteceu. Foi necessrio estarl, hospedar-se em pousadas, participar dos rituais, interagir comaspessoas,terumadeptocomocicerone,pegarcarona,fazeras refeies em restaurantes ou na casa de moradores, tirar fotografias, comprar santinhos,enfim,almdeobservar,participartambm,umpouco,doque configura o dia-a-dia da comunidade Vale do Amanhecer; para depois, retornar e escrever aqui: A escrita e a descrio buscam, ento, recuperar, (re)constituir o l vivido, tal como os(as) habitantes daquele lugar o viviam. Osobjetostrazidos,asfotos,asanotaesdodiriode campo/deviagemfuncionam,nesta(re)constituio,como matria para compor/ilustrar a histria que se conta eles do autenticidade narrativa do(a) contador(a). Tenta-se com eles, e com o artifcio da palavra, (re)compor uma realidade vivida e assim traz-la queles(as) que aqui ficaram. (Ibidem, 2005, p. 12-13) Contudo, importante chamar a ateno para o fato de que, mesmo sendoestaumapesquisaquesepautanaobservao-participante,sem dvida, muitas fontes de anlise e interpretao possam ter ficado de fora ou passado desapercebido. As fragilidades e as limitaes desta pesquisa foram seacentuandoaolongodoanode2006,principalmentenoqueserefere escolha dos referenciais tericos e dos poucos espaos de interlocuo entre as pesquisas relativas ao tema e o processo investigativo deste trabalho, que aguaram,decertaforma,emalgunsmomentos,osaspectostursticosdas visitas in loco. 10 Lembrando que talvez seja presuno demais usar o termo etngrafo(a) aqui neste trabalho, noseusentidoantropolgicoedesuaimersocampo.Oobjetivoapenasutilizaressa nomenclatura para fins de auxiliar no processo de elucidao metodolgica. 22Bruner (1997) argumenta que o modo de experienciar de um turista primordialmente visual: ver, presenciar, tirar fotografias e/ou filmar. Por outro lado,omododeexperienciardeumetngrafomuitomaisprofcuo:ver, presenciar,participar,entrevistar,anotar,escrever,reescrever,analisare, tambm, tirar fotografias e/ou filmar. O objetivo desta investigao , sobretudo, tentar narrar um pouco doqueseconfigura,hoje,acomunidadeValedoAmanheceresuapeculiar visualidade,natentativadetranspor,deformaobjetiva,asexperinciasl vividas.Vale ressaltar tambm que, no Vale do Amanhecer, no fazer uso da indumentriajumacondioqueidentificacomooutro,11ouseja,de antemo,aquelequenoestivervestidocomasroupasecomasarmas12 utilizadas nos rituais, j levanta indcios de se tratar de um forasteiro. Nestesentido,confirma-setambm,queoimpactoqueexercea complexidadeeapelovisualdoValedoAmanhecer,pormeiodetodasas formas,cores,movimentosesons,conformadoresdaqueleambienteteatral, dramticoequeseduzavisodequalquerpesquisador,turistaoupaciente, fornecepartedaslentescomasquaisinterpretadoesseobjetode investigao, aos olhos de uma etngrafa-turista, que pretende no esconder suas limitaes, compartilhando com Santos (2005) a argumentao de que, trata-se,sobretudo,deumare-montagem(deumre-contara viagem) que no se coloca como modelo de pesquisa, mas que pretendeproblematizarasuaprpriaconstituioenquanto metodologia de trabalho, expondo suas colagens, fraturas, bem comoeporqueno?assuaspossibilidades,deforma posicionada, crtica e reflexiva (Ibidem, 2005, p. 20) OqueprimeiramentechamaaatenonoValedoAmanhecer, como j dito, toda a atmosfera visual, a arquitetura e a ambincia do lugar, destacadas,principalmente,pelousodasindumentrias,sobretudo,as femininas;easimagensepinturasqueocupamtantoosespaossagrados, quanto os espaos profanos da comunidade. 11 Fato esse analisado no quarto captulo. 12 No Vale do Amanhecer, os smbolos sagrados utilizados nos rituais tambm so conhecidos comonossasarmas,h,inclusive,umacolunanoJ ornaldoJ aguarquelevaessemesmo nome,emquesoapresentadoseanalisadosasrepresentaesdossmbolossagrados utilizados na Doutrina 23Assim,aseleodosentrevistadosfoiorientadapeloprocessode constituioeproduodoconjuntoimagticodacomunidade,buscando, portanto,reconhecerossujeitosquesefizerampresentesnoprocessode construodessegrupoimagtico,todoconcebidoapartirdasclarividncias de Tia Neiva. Dessaforma,osentrevistadosforamJ oaquimVilela,oartista plsticoautorizadopelaTiaNeivaparaconcretizarasimagenseas mensagens que ela recebia do Plano Espiritual e; Carmem Lcia Zelaya, sua filha mais velha, a quem Tia Neiva deu a incumbncia de iniciar o processo de confecodasprimeirasindumentriasutilizadaspelosadeptos,quepoucas alteraessofreramatosdiasdehoje,salientandoqueosentrevistados foram consultados e autorizaram a explicitar seus nomes nesta pesquisa. Assim,nestetrabalho,aentrevistaqualitativaferramentalparao trabalho de coleta e anlise de informaes sobre as visualidades do Vale do Amanhecer,contribuindo,tambm,paraoentendimentosobreo funcionamento da dinmica social local. Aentrevistaqualitativa,pois,forneceosdadosbsicosparao desenvolvimentoeacompreensodasrelaesentreosatores sociais e sua situao. O objetivo uma compreenso detalhada das crenas,atitudes,valoresemotivaes,emrelaoaos comportamentosdaspessoasemcontextossociaisespecficos. (GASKELL, 2002, p. 65) Almdisso,foimuitoimportante,paraestetrabalho,osrelatosdo adepto Rubens, cuja narrativa, que no teve a mesma formalidade que as duas entrevistas, pois se tratava de um cicerone, contribuiu para clarear pontos de vistaemrelaoaoValedoAmanhecer,principalmentenoqueconcernes concepes, muitas vezes equivocadas e, segundo Rubens, preconceituosas, que as pessoas tm sobre a comunidade e suas prticas religiosas. Por esta razo, suas falas sero aqui incorporadas, mesmo com o reconhecimento de suas fragilidades, pois, como coloca Gaskell: 24Cadainformanteconstruirhiptesessobreoqueoentrevistador gostaria de ouvir. O entrevistador deve, pois, ser sensvel ao fato de queahistriaqueeleobter,atcertoponto,umacomunicao estratgica, isto , uma narrativa com o propsito tanto de agradar ao entrevistador,quantodeafirmardeterminadoponto,dentrodeum contexto poltico complexo que pode estar sendo discutido. (Ibidem, 2002, p. 101) Todavia,asfalasdesseguia-tursticoforamganhandotal importnciadentrodocontextosocialepolticodoValedoAmanhecer,que ampliaram,inclusive,acompreensoacercadaimportnciadacartografia visual desenhada, cotidianamente, na comunidade. Feita a apresentao do percurso metodolgico que formatou essa investigao,cabeagoraapresentaredescreverumpoucosobreoValedo Amanhecer, tema do prximo captulo. 25CAPTULO 2 ValedoAmanhecer:umabrevedescrioeapresentaodaDoutrinae da comunidade Neste captulo, a proposta situar o leitor dentro do contexto scio-cultural que caracteriza o fenmeno religioso Vale do Amanhecer. Portanto,caberessaltarque,nestetrabalho,serfeitauma apresentaosimples,sucintae,espera-se,didtica,sobreoscontedos doutrinrios,algumasdesuassimbologias,bemcomoofuncionamentoda Doutrina e da comunidade, expondo as referncias de maior pertinncia acerca da apreenso das visualidades que se colocam em cena, diariamente, no Vale do Amanhecer. OValedoAmanhecerlocaliza-senaregioAdministrativade Planaltina,aproximadamentea40kmdeBraslia,ocupandoumareade22 alqueires(OLIVEIRA,2002).muitovisitadoporpessoasquelbuscam algum tipo de ajuda espiritual, bem como por turistas e curiosos, configurando um dos locais de turismo mstico do Planalto Central. J naentradadacomunidade estoosindicadoresvisuaisde que se trata de um local simblico evisualmentesacralizado.Nessa entrada(imagem02),hum portalimponentedepedrase, acima dele, uma lua e um sol que, noValedoAmanhecer, simbolizamasduasprincipais fontesdeforasdobem, aportandoaentradaemum espao sagrado. Imagem 02 Portal de entrada do Vale do Amanhecer. Fonte: Daniela de Oliveira 26Maisalgunsmetros adiante,ejseavistaum Templo (Estrela de Neru) a cu aberto com uma grande elipse, querepresentaoportalde desintegrao de foras do mal (imagem 03).Aelipsetemuma representaosimblica importante para a Doutrina. Ela constitui um campo magntico, e est presente em muitos dos espaosdesignadoss prticasritualsticas,como frentedoTemploPrincipal,no SolardosMdiuns,etambm no alto do morro. Essessolocais,segundoosadeptos,estratgicos,noque concerne manipulao de energias. Mrio Sassi (1979), um dos fundadores da Doutrina, quem argumenta: Alm da funo captadora de energias, a elipse nos traz uma importante mensagem: a evoluo do Cristianismo, de sua fase domartrioparasuafasecientfica.Omartrioserelaciona diretamentecomocarma,eanecessidadedesuaredeno pela dor. Entretanto, j estamos no limiar do prximo milnio13, no qual a razo e a atitude cientfica predominaro sobre a dor eosofrimento.Essefatoverificado,experimentalmente, pelos mestres do Vale do Amanhecer. (Ibidem, http://mago_luz.ubbihp.com.br) 13 Vale lembrar, que a doutrina teve incio no final da dcada de 50, com o intuito de preparar os espritos e a humanidade para o terceiro milnio, aparentemente longnquo, poca, mas j em curso por ocasio desta pesquisa. Imagem 03 Elipse localizada no Templo Estrela de Neru. Fonte: Daniela de Oliveira 27Maisaofundo,encontra-seumtemplo,oTurigano,e,direita,o TemploPrincipal,conhecidocomoTemplodoAmanhecer,cujaconstruo tambmconfiguraoformatodeumaelipse.Aoseulado,estfixadauma grande pintura, em chapa de ferro, de J esus Cristo, simbolizando a presena crstica, e um hexagrama (imagem 04). Esse primeiro conjunto j acena a forte cargavisualrepresentacionalexistentenossmbolossagradosdaDoutrina, presentes e atuantes na comunidade. OTemploeseuentornoformamumespaosagrado constitudo por elementos que tambm representam a dinmica domundocomoinvisvel.Emfrenteportaprincipaldo Templo encontra-se uma estrela de seis pontas (hexagrama) que simboliza a enterna luta entre o bem e o mal.(OLIVEIRA, 2002, p.85) Imagem 04 Hexagrama e Imagem de J esus Cristo.Fonte: Daniela de Oliveira No Templo do Amanhecer, ocorrem os rituais mais freqentados por pacientesquechegamdevriaspartesdopas.Algunsrituaisdecura estendem-se at as madrugadas, principalmente nos finais de semana. Dentro desse Templo, encontra-se um grande nmero de imagens, multplicesepolimorfas,dasmaisvariadascoreserepresentaes.Ali, 28imagensdepretosvelhosecabocloscompartilhamomesmoespaocom imagens de ndios, princesas indianas, esfinges, candelabros, etc. (imagens 05 e 06), numa atmosfera um tanto esfumaada e de baixa luminosidade. importantesalientarque,durantearealizaodosrituais,no permitidofazerregistrosvisuaisdointeriordoTemplo.14Porm,aforao 14 Exceo concedida Rede Globo de Televiso, numa reportagem do Programa Fantstico, apresentandoumasriedeepisdiossobreasdiversasprticasreligiosasbrasileiras, denominado xtase Ritos Sagrados. O Vale do Amanhecer abriu a srie de reportagens, exibidono16deoutubrode2005.Disponvelem Imagens 05 e 06 Interior do Templo do Amanhecer. Fonte: Daniela de Oliveira. 29momento das prticas ritualsticas, o espao aberto aos adeptos e ao pblico em geral. AntesdechegarnesseTemplo,tem-se,esquerda,oMuseuda comunidade,umdoslugaresmaisrepresentativosdoValedoAmanhecer, conhecido tambm como Casa Grande (imagem 07), onde Tia Neiva morava e tinha grande parte dos contatos com o Plano Espiritual. Imagem 07 Casa Grande/Museu. Fonte: Daniela de Oliveira http://fantastico.globo.com/J ornalismo/Fantastico/0,,AA1054614-4005-367750-0-16102005,00.html. Acesso em 17/10/2006. 30NareadafrentedaCasaGrandeencontra-seaesttuadeTia Neiva, com aproximadamente dois metros de altura.ACasaGrandesofreupoucasmodificaesapsamorteda clarividente.Algunsambientesinternos,comseuscmodos,mantm-se praticamenteintactos,mostrandoumpoucodecomoseconfiguravaa residncia e o cotidiano da famlia.A Casa Grande/Museu transformou-se num dos maiores acervos da histriadoValedoAmanhecer.Centenasdefotos,amaioriaempretoe branco,etambmalgumaspinturasdeVilela,registramatrajetriadeTia Neiva e a construo da comunidade, numa clara demonstrao do empenho dos adeptos em manter, atravs das imagens, a histria e a memria presentes e atuantes no dia-a-dia da comunidade. Ali, tambm, realiza-se boa parte das reunies da Diretoria e proibido o uso de mquinas fotogrficas e vdeos.15 Cabe,nesteponto,apresentarumpoucodahistriadoValedo Amanhecer, para melhor situar o leitor do processo de formao e constituio daDoutrina,paradepois,darcontinuidadedescriodosespaosedas visualidades presentes e atuantes no Vale do Amanhecer.OValedoAmanhecerdenominado,juridicamente,comoObras Sociais Espiritualista Crist, a OSOEC e, desde sua origem, tem como principio norteadoraprticadoEspiritismoedacaridadeque,comotempo,foi incorporando os princpios de outras religies. inevitveltratardoValedoAmanhecersemaludiroimportante papeldeTiaNeiva-agrandeprotagonistadoValedoAmanhecer, personagemreferencial,queseconsagrounumaespciedeprogenitorada Doutrina,materializando,ritualizandoedandovisibilidadeaocontedodas mensagens que recebia do Plano Espiritual. Mais que isso, compartilhando sua experincia coletivamente. Como explica Reis (2004): O Vale do Amanhecer depositrio de um imaginrio coletivo instigante,carregadoderepresentaese,adespeitoda concretudedeseusistemareligiosoimpresso,hoje,na dimenso daquilo que poderamos nomear de real, o sonho deumamulher,personagemannimadosprimrdiosda 15Comexceo,comojmencionado,RedeGlobodeTeleviso,quepderegistrare realizar entrevistas dentro do Museu para a exibio da reportagem xtase Ritos Sagrados. 31construo de Braslia, que serviu de el para a materializao de seu universo religioso. (REIS, 2004, p. vi) Portanto, a histria do Vale do Amanhecer est fortemente ligada histriadevidadesuafundadoraevisionria,NeivaChavesZelaya, carinhosamentereferidaporseusadeptoscomoTiaNeiva.Estamulher, mdiumclarividente,falecidaem1985,aos60anos,contribuiu,como caminhoneira,carregandopedras,tijolosecandangos,noprocessode construo de Braslia, sendo a grande responsvel pelo surgimento do Vale do Amanhecer. Mesmo aps sua morte, a referncia sua pessoa permanece sendooprincipaleixoagregadordaDoutrina,demaneiraquepossvel afirmar que sua presena ainda muito forte dentro da comunidade. Em vrios espaos, sagrados e profanos, encontram- seimagensdeTiaNeiva,emdiversosformatosetamanhos(imagens08e 09),constituindo,principalmente,apsseufalecimento,foraeatribuiode entidade espiritual e protetora da Doutrina.

Imagem 08 Esttua de Tia Neiva, entrada da Casa Grande. Fonte: Daniela de Oliveira 32 Tia Neiva nasceu em 30 de outubro de 1925, em Prpria, Sergipe, e desbravou primeiro as terras goianas antes de chegar s cercanias da Capital Federal. Na cidade de Ceres/GO, aos dezessete anos, casou-se e teve quatro filhos Gilberto, Carmem Lcia, Raul e Vera Lcia, todos integrantes, at hoje, daDoutrina,desempenhandopapisimportantesnaestruturahierrquicada comunidade religiosa (REIS, 2004). Ficou viva ainda muito jovem, aos vinte e quatroanos.Profissionalmente,tornou-seaprimeiramulhercaminhoneirado Brasilcomcarteiraregistrada.Todasasfontesconsultadas,inclusiveas narrativasorais,referemumahistriadevidacommuitasdificuldadese desafios, o que a personifica como uma mulher forte e de muita garra, que teve que sustentar e educar, sozinha, seus quatro filhos, nas terras do Centro-Oeste brasileiro. Contudo,umdosaspectosquechamaaatenoque,mesmo levandoumavidadifcil,TiaNeivanuncatenhadeixadodeservaidosa (CAVALCANTE, 2000). Sempre foi muito atenciosa com sua aparncia: unhas pintadas,cabeloarrumado,rostomaquiado,saiaslongassodetalhesque ganhamdestaquenasfotosenaspinturasquearetratam,dispostasem Imagem 09 Imagem de Tia Neiva, interior do Templo do Amanhecer. Fonte: Daniela de Oliveira 33diversoseestratgicospontosdacomunidade(imagem10).Oque reafirmado na fala de sua filha Carmem Lcia: ...minhamesemprefoiumapessoavaidosa,masnono pejorativo, ela era vaidosa com ela, ela sempre foi uma mulher muito feminina, isso era uma caracterstica dela, claro que ela terminoupassandoprosfilhos...agora,aminhairmpuxou maiselaassim,aminhairm,atdeconseguirandarmais arrumada,eujsoumaisbagunada,elabrincavamuito comigo,maselaensinouagenteasermuitofeminina,elafoi motoristadecaminhomaiselanuncadeixou...elasevestia muitobem,andavasemprebonita...(CarmemLcia. Entrevista, 2006) Assim,destaca-setambmafortecargavisualpresente,inclusive, na prpria imagem com que Tia Neiva se apresentava diante das pessoas e, principalmente, diante de seus adeptos. Nesse sentido, possvel adentrar na Imagem 10 Fotografia de Tia Neiva. Fonte: Acervo da Famlia Zelaya. 34relevantequestodainflunciaqueaauto-imagemdeTiaNeivatemna constituio das visualidades do Vale do Amanhecer, seus conjuntos de trajes eacessriosornamentaiscomoreveladoresdesuaformadesecolocarno mundo e, conseqentemente, dado o seu forte papel de lder do movimento, de seus prosseguidores. Como argumenta Castilho (2004): Aoserutilizadoporumcorpo,ovesturiotambmfazparte dosrecursosdemanipulaoempregadospelosujeitoqueo veste,pois,almdemarcarapresenadetalsujeito,j direciona um certo tipo de comportamento dos outros e do prprio sujeito.(Ibidem, p. 37) Essa reflexo ser melhor detalhada no quarto captulo, a partir da anlisesobreopapelfundamentaldasindumentriasutilizadasnoValedo Amanhecer,vistascomorefernciasidentitriasdogrupoecomomarcasde uma peculiar visualidade. importantesalientarqueaconstituioeaconstruoda comunidade Vale do Amanhecer tem outros dois protagonistas importantes, de representaesmasculinas,umnaordemdoPlanoEspiritual,oPaiSeta Branca,eooutronaordemdoPlanoFsico,osocilogoMrioSassi.No entanto,TiaNeivaassumelugarcentral,pelofatodelhecaberopapelde, comoclarividente,intermediaramaterializaodasmensagensedasvises recebidas do Astral Superior. Assim, toda a composio visual, e porque no dizer plstica, do Vale do Amanhecer, decorre dessas comunicaes, e eram materializadas a partir das informaes narradas por ela. Essa personagem-destaque do Vale do Amanhecer possibilita uma sriedeanlisesacercadesuarepresentaonacomunidade,apartirde conceitoscomoxamanismo(CAVALCANTE,2000),carismaeliderana (OLIVEIRA,2002;REIS,2004),gnero(REIS,2004),dentreoutros.Aqui,a figuradaGrandeMe,tambmmencionadaporReis(2004),forneceros referenciais para a abordagem do papel social, cultural e performtico de Tia Neiva. A idia de Grande Me constante na anlise simblica da realidade visual Vale do Amanhecer, como argumenta Carvalho (1999): 35Enosasvestimentaseosobjetosrituaissooriginaise exclusivos;ocomplexoreligiosocomoumtodoexibeuma grandeinvenoarquitetnica,incluindoumlagoartificial, circundadoporesttuasdefigurasfemininas,tiposereias, iaras,iemanjsqueprovavelmentealudem,numplanoextra-lunar, prpria imagem da Tia Neiva. O smbolo fundamental desse complexo de templos uma elipse, que no pode deixar de ser pensado como um smbolo feminino. Na verdade, pode-sedizerqueoValedoAmanheceroprimeirocultoayoni criado no Brasil. (p. 73) Apalavrayonideorigemsnscrita,usadapeloshinduspara referir-se aos rgos genitais femininos. Com muita freqncia, na arte indiana, ayonirepresentadacomseucomplemento,olinga,palavrausadapara referir-se aos rgos genitais masculinos. No culto de Shiva, os dois princpios, linga-yoni,sorepresentadosporumanelquecircundaotroncodeuma coluna, que, segundo a tradio shivasta, a expresso do sistema dualstico dos dois princpios originrios. Apenas atravs do efeito conjunto de ambos os elementos possvel chegar ao desdobramento da criao do mundo. Outras vezes, encontra-se a yoni expressa por um tringulo com o vrtice para baixo e o linga por um tringulo com o vrtice para cima (BIEDERMANN, 1993). No inteno, nesta investigao, analisar e discutir os aspectos relativos sexualidade, que podem ser evocados a partir da elipse, enquanto smbolo sagrado, no Vale do Amanhecer.Dessa maneira, a imagem que segue, que representa yoni (imagem 11),estsimplificada.Delafoiexcludaolinga,paraquefossepossvel visualizaroselementosquevinculamessaimagemaoMitodaGrandeMe, bem como a sua semelhana com a elipse. EmvriasculturasancestraiseracomumaocorrnciadocultosGrandes Imagem 11 Smbolo Yoni: objeto ritual. Fonte: BIEDERMANN, 1993, p. 398. 36DeusasMes,que,namaioriadasvezes,eramrepresentadascomodeusas da fertilidade. Dentre elas, podemos citar: Gaia, Ria, Hera, Demter, entre os Gregos;sis,entreosegpciosenasreligiesHelensticas;Istar,entreos assrios-babilnicos;Astart,entreosfencios;KalientreosHindus;Diana, muitopopularnaregiodasiaMenor,nosprimrdiosdaEraCrist. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991) Assim,comoadventodasreligiesmonotestas,queadmitemum sdeus,masculino,asantigasdeusasforamendemonizadasebanidasdo imaginriopopular.Comodesenvolvimentodocristianismo,domesmo imaginrio popular renasce o culto Grande Deusa Me, que no Ocidente Virgem Maria, Me de J esus. Sabe-se que, na tradio crist, a Me de Deus concebe J esus por obra do Esprito Santo, porm, ela exprime uma realidade histrica,nosendo,somente,umsmbolonosdogmasdaIgrejaCatlica. SegundoBierdermann(1993),ameosmbolouniversaldofundamento originrio e da segurana , em todos os mbitos, a imagem da transmisso da vidapersonalidadeindividual,independentedaordemsocial-portanto tambm em estruturas patriarcais (p. 235). ApresenaearepresentaodeTiaNeivacomoacriadora (canalizadora)daDoutrinadoValedoAmanhecer,podeserpensadacomo referncia Me Divina, que simboliza a sublimao do instinto e a harmonia doamor.SeusadeptosavemcomoaGrandeMe,genitoradoValedo Amanhecer,lderdessadoutrinadecartermatriarcal,queintegraearticula, em seu iderio, como uma me amorosa, as trs maiores tendncias religiosas popularesdoBrasil,quaissejam,ocristianismo,oespiritismoeaumbanda. SeupoderesuaforadentrodaDoutrinasotograndesque,apssua morte, at o momento, no houve substituto, nem substituta, para ocupar seu lugar.Tia Neiva mantinha contatos medinicos com Pai Seta Branca e com as demais entidades sobrenaturais no plano espiritual, e depois repassava as mensagens aos adeptos da doutrina no plano fsico, na funo de fecundadora do conhecimento doutrinrio. Haja vista essa fora e esse papel de me que ela,tambmdeformaconsciente,sabiaquedesempenhava,quetodosos seus adeptos, eram por ela chamados de meus filhos (REIS, 2004) A despeito de todo o magnetismo exercido pela figura da Tia Neiva, 37 preciso, tambm, apresentar os outros dois protagonistas que desempenham papis fundamentais na constituio da Doutrina Vale do Amanhecer, e que se configuramcomoosgrandesconsortesdeTiaNeivanaedificaodos princpios e da comunidade. O primeiro deles Pai Seta Branca, o Mentor Espiritual do Vale do Amanhecer, considerado pela Doutrina como um esprito de Luz, de quem Tia NeivarecebiagrandepartedasmensagensdoPlanoEspiritualequetem como princpio a caridade crist (REIS, 2004). Pai Seta Branca (imagem 12), segundoacrenadaDoutrina,teriasido,emoutrasencarnaes,So Francisco de Assis, e tambm um cacique da nao Tupinamb. Imagem 12 Fotografia de Pai Seta Branca. Fonte: J oaquim Vilela ExistemmuitasimagensdePaiSetaBrancanasmediaes 38espaciais e arquitetnicas no Vale do Amanhecer, principalmente nos espaos sagrados.OsadeptosdaDoutrinalhetmumagrandedevoo.Asua comunicao com Tia Neiva data desde os primrdios de suas manifestaes medinicas. Ou seja, sua atuao foi marcante no cotidiano da clarividente. E continuasendomarcante,tambm,nasprticasritualsticasdacomunidade. Assim,confirma-seseuimportantepapelnaconcepoecontinuidadeda Doutrina, como principal personagem espiritual, sobrehumano, parte integrante da identidade do Vale do Amanhecer. O outro protagonista de relevncia na consolidao da Doutrina Vale doAmanhecer,principalmentenoqueconcerneselaboraesracionaise cientficas acerca dos seus princpios, foi Mrio Sassi, grande companheiro de Tia Neiva nessa jornada. Apontam,asfontesconsultadas16,opapelfundamentaldeMrio Sassi em traduzir e trazer ao campo da Cincia as clarividncias de Tia Neiva. Paulistano do Brs, foi morar em Braslia em 1962. Interessava-se por estudar diversas reas do conhecimento, muitas vezes, de forma no-institucional, com interesseespecialpelaPsicologiaepeloJ ornalismo.Acabouestudando FilosofiaeCinciasSociaisnaUSP.Atuou,tambm,naJ uventudeOperria Catlica. Ao que tudo indica, conheceu Tia Neiva em meados dos anos 60, em plena instalao do Regime Militar. SuacontribuioDoutrinaconsideradadegranderelevncia dentrodacomunidade,sejanaorganizaodeseusregistros,sejana articulaodosargumentosracionaisparaessefenmenoreligioso,que impressionavaintelectuais,religiosos,artistasecandangosempleno nascimento da Capital Federal. notvelsuapresenaaoladodeTiaNeiva,companheiro inseparvel visto como Mentor Intelectual da Doutrina. Reis (2004), argumenta: O Vale, at sejam traduzidos novos elementos ao debate, o 16 Todas as pesquisas acadmicas abordam o importante papel de Mrio Sassi na formulao daDoutrina,mas,sobretudo,percebe-sesuaforteemarcantepresenanosacervosda Comunidade. 39que,sepercebidotambmdaentregaedaperformance dessesdoisatoresmaioresemseucenriodesonhose prticas religiosas. (Ibidem, p. 30) A imagem 13, um exemplo claro da idia de Sassi, o cientista da Doutrina, ao lado de Tia Neiva, a profetisa: um completando o outro.

Imagem 13 Mrio Sassi e Tia Neiva. Fonte: SASSI, 2000, p.108. Consultandoaobradessehomem,evidencia-seseuesforoem apresentarenarraroValedoAmanhecer,embasado,sempre,em consideraesdeordemlgica.Talesforofazdessesocilogouma representaofundantenoValedoAmanhecer,aoladodeTiaNeivaePai Seta Branca. 40Em sntese, no quadro de referncia dos religiosos do Vale do Amanhecer,PaiSetaBrancapersonificaamanifestaodo sagrado, Tia Neiva, por seu turno, representa o canal humano porondeessahierofaniapropagasuamensagem,enquanto isso,Mrio,nacondiodeporta-vozeintrpreteautorizado, codificaafalasagrada,racionalizando-a,repassando-aao grupoque,convencidodainfalibilidadedessastrs personagens,constriereproduzumimaginrioreligioso capaz de substanciar sua identidade e, acima de tudo, delinear seusmodusfaciendi,suaprticasocial,suaconduta.(REIS, 2004, p 30) Por outro lado, mister acrescentar que, em vista de Tia Neiva e Pai Seta Branca, a incidncia de registros visuais de Mrio Sassi mais discreta no conjunto de imagens da comunidade. Embora presente em alguns espaos templrios,nomuseuenaBiblioteca,suasimagensacabamnotendoo mesmo reverenciamento, nem a pompa visual que seus dois outros parceiros. Essacaractersticapodeserexplicadapelofatodesuaatuaosercomo cientista da Doutrina, que lhe empresta a voz da razo, desempenhando uma performance mais conceitual do que visual. Ao que tudo indica, aps a morte de Tia Neiva, teve incio uma srie dedesentendimentosentreMrioSassieosdemaismembrosdaalta hierarquiadaDoutrina,inclusive,comafamliadaclarividente.Assim,o cientistadaDoutrinadoValedoAmanhecer,afastou-sedacomunidadeem 1992,17 vindo a falecer em dezembro de 1994. Segue-se um trecho mais longo de seu texto, em que narra a origem remota da Doutrina do Vale do Amanhecer, com vistas a apresent-la ao leitor que,porventura,aindanoaconhea.Nodecursodestapesquisa,essa leitura foi muito importante para a compreenso da complexidade da doutrina, oquecorroboraopoderdeargumentaodaspalavrasdeseuautor,na conformao do arcabouo terico do sistema doutrinrio. H 32.000 anos trezentos e vinte sculos atrs , uma frota denavesextraplanetriaspousounaTerra,edela desembarcaramhomensemulheres,duasoutrsvezes maiores do que o tamanho mdio do Homem atual. Sua misso era a de preparar o planeta para futuras civilizaes. Para isso, mudaramatopografiaeafauna,trouxeramtcnicasde 17 Ver MARTINS, Maria Cristina de C. O Amanhecer de uma Nova Era: uma anlise do espao sagradoesimblicodoValedoAmanhecer.In http://www.ifcs.ufrj.br/jornadas/papers/09st0805.rtf, Acesso em 12/05/2006. 41aproveitamentodosmetais,almdeoutrascoisasessenciais para aquele perodo e os que se seguiram.Chamavam-seEquitumans,eseudomniodoplanetadurou 2.000 anos. Depois disso, o ncleo central desses missionrios foidestrudoporumaestranhacatstrofe,earegioemque viviam se transformou no que hoje se chama Lago Titicaca.Emnossolivro2.000ConjunodeDoisPlanos,os Equitumans so descritos com mais detalhes.Depoisdissode30a25milanosexistiramoutros missionrios,quesechamaramTumuchys.Esseseram predominantementecientistas,queestabeleceramavanada tecnologia,cujoprincipalobjetivoeraacaptaodeenergias planetriaseextraplanetrias.Foramessescientistasque construram as pirmides, ainda existentes em vrias partes da Terra,incluindoasdoEgito.Esseseoutrosmonumentos megalticos foram construdos de acordo com um planejamento para todo o planeta.Posteriormente,essesgigantescosedifciosforamutilizados pelospovosquevieramdepois,comoutrasfinalidades.Eos mtodoscientficossetransformaramemtabusereligies. Mas,aenergiaarmazenadaathojeseconserva, preenchendo os propsitos a que foi destinada.Depois dos Tumuchys entre 25 e 15 mil anos atrs vieram os J aguares. Estes foram os manipuladores das foras sociais queestabeleceramasbasesdospovosenaes.Mais numerosos que os Equitumans e os Tumuchys, eles deixaram suasmarcasemtodosospovos,eporissoqueafigura desse felino aparece em tantos monumentos antigos.Aospoucos,essesespritosforamdeixandoparatrsessas identificaes, e foram nascendo em meio aos povos e naes que eles haviam ajudado a criar. A partir da, podemos entrar na Histria e identificar, razoavelmente, as civilizaes que se seguiramatnossapoca.Nomescomochineses,caldeus, assrios, persas, hititas, fencios, drios, incas, astecas, gregos, etc. j nos so familiares pela Histria.Nessasraasepovos,atravsdemilharesdeanos,esses experimentadosespritosacabavam,sempre,ocupando posiesdemandoesedestacavamcomoreis,nobres, ditadores, cientistas, artistas e polticos.Nessamovimentaogigantesca,notempoenoespao, podemostraarasorigensmaisprximasdosespritosque, hoje,fazempartedamisso chamadaValedoAmanhecer,a partirdoshititas,depoisosjnioseosdrios.Maistarde, vamosencontr-losemEsparta,Atenas,EgitoeRoma. PrincipalmenteemEspartaenaMacednia,teveincioo percursoquesepoderiachamaraEraModernados J aguares.Apartirdessaorigem,osdestinosdosJ aguaresforam convergindoparaaEradePeixes,paraonascimentode J esus. Aqueles que eram da falange do J aguar, que no sculo XVItomouonomedeSetaBranca,fizeramseujuramentoe iniciaram sua nova fase, agora sob a bandeira de J esus e sua Lei do Perdo. 42J esusinaugurouafasederedenocrmicadoSistema Crstico,chamadaEscoladoCaminho,e,desdeento,esse grupo de J aguares passou a agir de acordo com ela.Assim,nodecorrerdessesquasevintesculos,osciclos civilizatriostmsidoorientadosnosentidodaredeno,do ressarcimentoedoretornodosespritosparasuaorigem,a caminho de Deus.Apartirdessaidia,asguerras,ascatstrofeseos desenganospassaramaterumsentido,umarazodeser, servindo como escola e lia de treinamento para os espritos, individualmente.ComJ esusnasceuaaberturaparaa individualidade,onde,antes,shaviacaminhoparaa personalidade.NaEscoladoCaminho,oartistamaisimportantequeo personagem que ele representa. Isso explica porque a viso do mundosvlidaemtermosdoindivduo,enodeacordo com padres condicionadores.Asencarnaessocomopapis,empeaspreviamente escritaseensaiadas.Cadaartistatemseupapeleseu desempenho: pode melhorar ou piorar a cena. A pea torna-se boaoum,deacordocomoconjuntododesempenho.E, como no teatro, tambm o pblico tem o seu papel, pois no se concebe representao sem pblico.Cada pea tem sua mensagem, e o artista considerado bom ou no, de acordo com sua capacidade de contribuir para que ela seja perfeita.Assim, dentre as muitas peas apresentadas no palco da vida, nesses2.000anos,surgiuaestriadaescravidoeo nascimento da didtica dos Pretos Velhos.OsJ aguaresdafalangequehojecompemomovimentodo Vale do Amanhecer, so espritos evoludos, que j ocuparam personalidades importantes entre os Equitumans, Tumuchys e J aguares.Nasuamaioria,foramlderesnascincias,nas artes,nasguerrasenadireodospovosenaes.Issoos tornaraorgulhososesoberbos,e,comoconseqncia,eles haviamseendividadomuito.SurgidaaEradeJ esus,teriam que passar pelo crivo da Humildade, da Tolerncia e do Amor, como, alis, todos os espritos que iriam compor a humanidade desses dois milnios. Mas, para eles, habituados s lideranas, seu papel teria que ser de destaque.E assim aconteceu... (SASSI, 1979,http://mago_luz.ubbihp.com.br) Apartirdessasreferncias,quenarramoMitodeOrigemda Doutrina,oValedoAmanhecerfoi,ento,incorporandodiversoselementos simblicosdasmaisdiversasacepesreligiosas,dediferentescontextos histricos, que se assentam nos cenrios e ambientes da comunidade. ConformeotextodeSassi,oselementossgnicosreferenciais incorporados em sua conformao remontam a 320 sculos atrs, comeando com a civilizao dos Equitumans passando pelos Tumuchys e os J aguares at 43aEradeJ esusCristo,incluindo,tambm,ospretosvelhosdoperododa escravido, configurando uma ordem fundamentada num ciclo de evoluo. A mais, o Vale do Amanhecer, pautado no sistema crstico, trabalha comosprincpiosdacaridade,quetmbasenoAmor,naTolernciaena Humildade, os trs princpios da Doutrina, manipulando energias com o intuito de salvar os espritos sofredores que vagam no plano terrestre. Como explica Silva (1999): Neste mbito, Tia Neiva e Mrio Sassi elaboraram um universo mtico que vai de encontro a vestgios, estudos e especulaes atualmentevigentessobreantigascivilizaescomoMaia, Inca,Greco-romana,Egpcia,etc.,quevemajustificara situao atual da humanidade e a existncia e funcionalidade dadoutrinaValedoAmanhecer.Sobesteaspectoinsere-se oportunamenteoconceitodekarmaque,segundoacrena budista e a adoo deste pelo espiritismo, os sofrimentos e a atual existncia so reflexos de situaes passadas e somente podemseramainadosmedianteexpiao.Adoutrina forneceria,ento,subsdiosparaqueessaexpiaopudesse ocorrer de modo amenizado, atravs dos rituais (Ibidem, p.12). A mola propulsora da Doutrina a mediunidade, dom que, para seus adeptos, todos os seres humanos possuem, possibilitando a comunicao dos sereshumanoscomosseresinvisveis,apartirdacrenadapresenados espritos, intermediando a relao entre os vivos e os mortos, que, de acordo comoValedoAmanhecer,podemoschamardeespritosencarnadose desencarnados. Os mdiuns so denominados de Doutrinadores ou Apars. NocontextoritualsticodoValedoAmanhecer,afigurado Doutrinadorcumpreoimportantepapeldezelarpelobomandamentodos trabalhosmedinicos,interagindocomasentidadesdeluz,possibilitandoa comunicao com os espritos sofredores, para, atravs da manipulao de energias, tranqiliz-los. Cabedestacar,aqui,aimportnciaqueTiaNeivaatribuaao Doutrinador.Numareportagemtelevisiva,jdemonstrandosuadebilidade fsica e o agravamento de seus problemas pulmonares, no momento em que o reprter pergunta sobre sua possvel sucesso, Tia Neiva diz:18 18 DVD: O Vale do Amanhecer. Pimentel Produes, s.d. 44Noexistesucessor,UmaTiaNeiva,outra,sabeporqu? Porque todos os Doutrinadores so, podem ser uma Tia Neiva. Desde que ele tenha amor no corao, muito amor mesmo...Eu vimparaosDoutrinadores,passaramensagem,noexistia, hojeexisteoDoutrinador,aminhamensagemele.Eusou Me e Cristo do Doutrinador Portanto, o Doutrinador pode ser considerado um elemento prprio da Doutrina do Vale do Amanhecer, seu diferencial. Papel criado por Tia Neiva, o importante filho da clarividente est presente em todos os rituais. .O Doutrinador Meu Filho! Salve Deus! Essa que a minha vida! E alm de trazer a Luz do Doutrinador, que eu dei a Luz ao Doutrinador, considero o Meu Filho, entenderam?....Salve Deus! Tia Neiva19

Outra representao de suma importncia na Doutrina o Apar, o mdiumdeincorporaodosespritosque,emgrandepartedasprticas ritualsticas, auxiliado pelo Doutrinador.DoutrinadoreseAparssodistinguidos,tambm,pela indumentria. Nas costas do colete utilizado pelos Mestres Doutrinadores tem-se uma cruz preta envolta com um manto branco (imagem 14), que simboliza o cristianismo; j nos Apars tem-se um tringulo vermelho com o vrtice, com um livro aberto (imagem 14); o tringulo contendo as trs premissas bsicas da Doutrina: humildade, tolerncia e amor, e o livro, simbolizando o Evangelho em sua vicissitude (SILVA, 1999, p.38), 19Aula com a clarividente nossa Me Tia Neiva. Disponvel em: http://www.valedoamanhecer.com.br/index.php?pagina=2777. Acesso em 10 de dezembro de 2006. 45 Imagem 14 Smbolos do Doutrinador e do Apar. Fonte: Daniela de Oliveira No incio, quando se localizava ainda no Ncleo Bandeirante, o Vale doAmanhecerintegravaprticasritualsticasvoltadassomenteacultosafro-brasileiros. Mas, foi em Taguatinga, e depois com a mudana para a fazenda MestreDArmas,Planaltina-DF,queacomunidadedoutrinria,coma importante contribuio de Mrio Sassi, comeou a consolidar seus conceitos e categoriascomaincorporaodetodososdemaiselementosqueexistem hoje. Vrios desses elementos podem ser encontrados em diferentes religies, cultos,doutrinas,mitos,dentreoutroselementos,dediferenciadospovos ancestrais e contemporneos. AcomunidadedoValedoAmanhecer,assim,noapenasfazuso destes elementos como tambm os reinventa e atribui-lhes novos significados. Neste processo de reinveno, faz uso de todo um aparato simblico e de uma nomenclatura prpria, num contexto multiculturalmente religioso, que vai desde ocontato-incorporaodeentidadesespirituaisatsimbologiadas edificaes e indumentrias dos adeptos. Oliveira (2002), faz uma sntese do que caracteriza o contexto religioso do Vale do Amanhecer: Essareligioresultadodainter-relaocrescente,dafuso de crenas, de figuras msticas, de ritos, oriundos de tradies 46deorigensmuitodiferentes:espiritismocardecista,diversas fontesafricanas(especialmenteUmbanda),budismo,vrias tradies esotricas, tudo isso sobre uma base do catolicismo popular brasileiro. (2002, p.2). Assim,dentreossmbolosquemaissedestacamnapaisagem visual do Vale do Amanhecer, aos olhos de uma etngrafa-turista, esto o Sol, aLuaeoJ aguar,querepresentamopovomaia,aCruz,smbolodo Cristianismo,oTringulo,aTaa,aElipse(comojdito,oTemploPrincipal tem forma elptica), a Estrela de Davi, a Pirmide, que remete ao povo egpcio, a Tocha (imagem 15), a Seta-flecha (de Pai Seta Branca). Alm das imagens de princesas e pretos-velhos, relacionados etnia negra, e de ciganas. Imagem 15 A Tocha, conhecida, tambm, como Chama da Vida ou Chama Inicitica.Fonte: Daniela de Oliveira 47OutrosmboloimportantenoValedoAmanhecerafigurado J aguar(imagem16),presente,tambm,tantonosespaosfixos,inclusive dentro da elipse, que o smbolo fundamental dos templos; quanto nos corpos dos adeptos, nas indumentrias e crachs. Imagem 16 Figura do J aguar. Fonte: Daniela de Oliveira Todas as pessoas que ingressam na doutrina e passam por todos os estgiosdeformao,sobretudo,oRitualdeElevaodeEspadas,so tratados como jaguares, tanto os homens como as mulheres, ou seja, tanto os MestresquantoasNinfas.Adiferenadaindumentriadosjaguaresdeum sexoparaoutroapenasnavariaodecalasmarrons,usadaspelos homens, e saias marrons longas, usadas pelas mulheres. 48Tia Neiva, em vrias de suas cartas abertas, referia-se aos jaguares como meus filhos e referia-se a si mesma como Me em Cristo dos J aguares. A indumentria, segundo Tia Neiva, atravs da cor marrom presente nas calas (imagem 17) e nas saias dos jaguares, uma homenagem a So Francisco de Assis, que foi Pai Seta Branca em outra encarnao passada, unindo, assim, naimagticacoletiva,umSantoCatlico,aomentorespiritualdoValedo Amanhecer.Dessamaneira,essesmboloestabeleceumaponteentrea religio mais tradicional do Brasil e a Doutrina Vale do Amanhecer. Imagem 17 Uniforme masculino do J aguar. Fonte: Daniela de Oliveira 49 Aqui, cabe retomar o processo de descrio da comunidade, com o intuitodeapresentarumimportantelcusdeprticasritualsticasedeforte impacto visual, qual seja, o Solar dos Mdiuns (imagem 18). Apartecentraldacomunidadelocaliza-selogoapsdoportalde entrada, na regio que foi anteriormente descrita, onde o Templo Principal est fixado.esquerdadoTemploqueacomunidadeseguesuacartografia. direitatem-seapenasumalojamentoondeficamosbanheirospblicose outros estabelecimentos. Portanto,doladoesquerdoqueoespaogeogrficotoma contornos de comunidade. Restaurantes, bares, bancos, pousadas, atelieres de costura, juntamente com as residncias, constituem a tessitura espacial do local. E nessa direo que fica o Solar dos Mdiuns, onde se realiza outro ritualbastantefreqentado,emboraemnmerobemmaisreduzido,pelos pacientes:oritualdaEstrelaCandente(imagem19).ComoexplicaMrio Sassi: Imagem 18 Placa localizada na entrada do Solar dos Mdiuns. Fonte: Daniela de Oliveira 50O conjunto, chamado Solar dos Mdiuns, que inclui uma estrela deseispontasdoistringulosequilteroscruzados, invertidos,abasefsicaadequadaparaamanipulaode energias diversas.Cadadetalheoudivisorepresentaumalinhadefora espiritual,todassereunindonacerimniafinaldaEstrela Candente. A base dessa manipulao de foras o mdium em grau de Mestrado, o qual desenvolvido e iniciado para esse fim. Toda acerimniaexecutadapelosMestresSol(Doutrinadorese Doutrinadoras)eosMestresLua(Aparspositivose negativos). (SASSI, 1979, http://mago_luz.ubbihp.com.br) O Ritual da Estrela Candente, ou Ritual da Consagrao, acontece trs vezes ao dia,noshorriosde12:30hs,14:30hse18:30hs.umdosrituaismais conhecidos da Doutrina e, por sua prtica ocorrer num espao sagrado ao ar livreepelagsticadoscorpos,constituiumdosrituaismaisexpressivosdo ponto de vista de sua plasticidade. Ele praticado cotidianamente com o intuito de salvar os espritos sofredores e perigosos que no tem mais condies de semanifestaremnumApara(GONALVES,1999,p.43),cujaenergia negativaentreguesguasdaCachoeiradoJ aguarparasualimpezae renovao.Oritualocorrecomaparticipaomnimadetrintaadeptose apenasentrecincoedezpacientes(no-iniciados),tendoduraode Imagem 19 - Ritual da Estrela Candente. Fonte: Daniela de Oliveira 51aproximadamenteumahora(BATISTA,2003).Constitudodecincofases Coroamento, Passagem pela Cachoeira, Cabine da Estrela, Estrela Candente e Entrega de Foras o ritual todo entoado por cnticos e hinos e recitao de preces. NoSolardosMdiuns,humgrandelagoartificial,comcrregos, cuja regio em torno cercada por grandes pinturas, tambm em chapas de ferro, de deusas, representando Yemanj, a rainha das guas, e suas sereias, alm de outros smbolos, como, por exemplo, o Sol e a Lua. Ao fundo, localiza-se um morro denominado Morro Salve Deus e, logo acima, a elipse. Salve Deus uma forma de saudao utilizada pelos adeptos da Doutrina, que reverbera nas grandes letras incrustadas no gramado do morro (imagem 20), aos olhos de todos. nesselocal,noSolardosMdiuns,queseencontraumoutro grande acervo de imagens da Doutrina: a Pirmide (imagem 21). Imagem 20 Morro Salve Deus: Fonte: Daniela de Oliveira 52 Imagem 21 Pirmide localizada no Solar dos Mdiuns. Fonte: Daniela de Oliveira Quemolhadefora,noimaginaquenointeriordestapirmide encontrem-se mais de centenas de imagens das entidades atuantes no Vale do Amanhecer. So inmeras pinturas, e grande parte leva a assinatura do artista Vilela,quedoadimensodavariedadeediversidadedepersonagens espirituaisquesefazempresentenocotidianodacomunidade,deflagrando, visualmente, o forte hibridismo que caracteriza a Doutrina.20 Vale salientar que, no interior da Pirmide, considerado um espao de manifestao do sagrado, tambm no permitido fazer registros visuais. TodosossmbolosdaDoutrinasoancestraiseencontradosem diferentesculturaselocaisdoplaneta.Oliveira(2002,p.78)diz:asformas espaciais no VA21 fazem parte de um discurso de formas imaginrias que se especializaram e quem tem a funo de recontar o Mito de Capela. OMitodeCapelarefere-seexistnciadeumplanetamitolgico, chamadoCapelaouPlanetaMonstro,deondeviriamestaetantasoutras civilizaes,sendoocentroadministrativoacoordenarodestinocrmicona Terra(SILVA,1999,p.13).Talmitodotaeembasaadoutrinadeautoridade suficienteparasincretizar,emseuseio,todaessagamadesmbolos 20 A pirmide foi incendiada em fevereiro de 2007, quando praticamente todas as imagens que estavam no seu interior foram destrudas. Muitos adeptos acusam seguidores de outra Religio comoosculpadosdetalatocriminoso.Ver http://www.valedoamanhecer.com.br/index.php?pagina=323. Atualmente, a pirmide encontra-se em processo de reforma. 21 VA a abreviao que o referido autor utiliza para designar o Vale do Amanhecer. 53ancestrais, ao relatar que todas estes povos primordiais (Incas, Maias, Astecas, etc.) teriam vindo dos colonizadores de Capela. Reis (2004, p. 126), argumenta que o Vale do Amanhecer tem suas temporalidadesdivididasentreotempohistrico,otempomticoeotempo ritualstico, e que esses tempos conformam a viso de mundo da Doutrina. O tempohistricovemaseratrajetriacronolgicadaDoutrina(apartirdas primeiras clarividncias de Tia Neiva), o tempo mtico vem ser as narrativas de origemedeheranastranscendentais,caracterizando,assim,otempo ritualstico como aquele em que so sedimentados os tempos que alimentam a memria e conformam a identidade dos religiosos (ibidem).Essastemporalidadesconstituemereforamtodooarcabouo simblico,defortecargavisual,concebidoedesenvolvidonoValedo Amanhecer. No que diz respeito ao tempo histrico, como j dito anteriormente, a histria do Vale Amanhecer est umbilicalmente ligada histria de vida de Tia Neiva, pois suas clarividncias foram o ponto de partida para a formulao da Doutrinaeinstalaosocialdacomunidade.Tambm,comojfoidito anteriormente, este trabalho no prope debruar-se, passo a passo, sobre a trajetria histrica da Doutrina, seus mitos, ritos e smbolos, embora eles sejam parcialmentemencionadoseanalisadosnestapesquisa,comocondioda empreitada de compreender as visualidades da comunidade. Para fins deste estudo, segue-se um quadro cronolgico de eventos marcantes da histria do Vale do Amanhecer, que tm como base a pesquisa de Oliveira (2002). O quadro proposto visa facilitar a compreenso, de forma muitosucinta,datrajetriadessefenmenoscio-religioso,queculminouna constituiodeumacomunidadepautadapelosagrado,carregadadeuma forte visualidade representacional e plstica. ANOTRAJETRIAHISTRICADADOUTRINAVALEDO AMANHECER 541956Tia Neiva fixa-se em Goinia 195822Primeiras revelaes de mediunidade de Tia Neiva 1959FundaodaUSB- UnioEspiritualistaSetaBranca,Ncleo Bandeirante(cidadesatlite),posteriormente,nessemesmoano, mudam-se para zona rural Serra do Ouro (km 73 Rodovia Braslia-Anpolis) 1964Mudana para Taguatinga, Fundao da OEC Ordem Espiritualista Crist 1965Tia Neiva conhece Mrio Sassi. Inaugurao do Templo Sagrado de Taguatinga 1969MudanapararearuraldaRegioAdministrativadePlanaltina. Construo da comunidade Vale do Amanhecer 1985Falecimento de Tia Neiva 1994Falecimento de Mrio Sassi Do ponto de vista histrico, vale destacar que a dcada de 70 foi de maiorfecundidadeemrelaoconstruoeconcretizaodoValedo Amanhecer,noperododemarcadoentre1969,quandodamudanadeTia Neiva e seus prosseguidores para a rea rural de Planaltina, e 1985, ano de seu falecimento.FoinesseperodoqueMrioSassieTiaNeivacomearama consolidar a Doutrina e a comunidade. Mrio Sassi passou a desenvolver todo umaparatoconceitualedoutrinriocomsuaperspectivaevolucionista, buscando articular argumentos que se pretendiam cientficos, e preocupando-se em registrar e documentar os ensinamentos e as prticas religiosas do Vale doAmanhecer.TiaNeiva,porseuturno,estavaemfasedematerializar, constituirasvisualidades,dandovisibilidadeaospreceitosdaDoutrina, designandoeformulandoosrituais,econsolidandoasestruturasfsicase simblicas na e da comunidade. Foi na dcada de 70 que, 22SegundoVicenteCsar(apudREIS,2004,p.18)TiaNeivatevesuasprimeiras manifestaes medinicas no Natal de 1957, ou seja, praticamente no incio do ano de 1958. Nasfontesconsultadas predominaoanode 1958, ano em que Tia Neiva completa seus 33 anos, coincidncia ou no, a idade de Cristo. Em uma de suas falas de entrevistas, Tia Neivadiz ter comeado a ver espritos a partir de seus 34 anos. 55MrioSassieTiaNeiva,semelhantementeaomovimento, acham-seemfasedegrandefertilidade.Oaparecimentoea definio dos rituais e das construes do espao sagrado...se do a passos vigorosos. Mrio Sassi, aos 55 anos, encontra-se talvez no auge de sua atividade intelectual. (REIS, 2004, p. 18) Foinesseperodo,tambm,queTiaNeivaconheceuoartista plsticoVilelae,desdeento,esseartistapassouaserdesignadocomoo responsvelporconcretizartaisimagens.Paralelamente,CarmemLcia comeou, a partir das mensagens que Tia Neiva recebia do Plano Espiritual, a confeccionarasprimeirasindumentrias.Tantoasindumentrias,quantoo conjuntoimagticoconcretizadoeasprticasritualsticassofrerampoucas alteraes desde a dcada de 70 e o falecimento de Tia Neiva, em 1985. Parafinsdecontextualizao,valeressaltarqueaformaoea construodoValedoAmanhecerocorreuemfunoeapartirdaprtica religiosa. A rea era s mato e vegetao antes da chegada da Tia Neiva23 e seus prosseguidores. Ou seja, a instituio religiosa foi a pedra fundamental a partirdaqualfoiedificadaacomunidade,foramtraadasruaseruelas (imagem22),erguidostemplos,casas,comrcios,bancos,museu,escola. Enfim, constituda a comunidade. 23 Fala do recepcionista que apresentou o Vale do Amanhecer e acompanhou a primeira visita na comunidade, em 19/02/2006. 56 Essaconstataovaiaoencontrodealgunsreferenciaisdo pensamento sociolgico ocidental, que teve em Durkheim (1989) as primeiras anlises acerca da natureza religiosa, reveladora e desveladora dos aspectos essenciaisdaorganizaocoletivadavidahumana.Paraoautor, acompanhandoopensamentoscio-cientficodesuapoca,asociedade geradora dos sistemas de classificao, que norteiam e regulam o indivduo e a coletividade.Dasuanfasenopapeldasinstituies.Durkheimdefendea idia de que essas categorizaes, ordenadoras da vida individual e coletiva, tm na religio a sua origem primeira.Nesse sentido, identificando o pensamento religioso como a origem das categorias do corpus social, que organiza a malha scio-cultural, a partir da Religio,osestudossobreoValedoAmanhecertornam-seaindamais pertinentespelofatode,ali,seradoutrinamilenaristaarazooriginriada construo,instalaoeorganizaodacomunidade.Omesmopodeser considerado,nostermospropostosporDurkheim,notocantesrelaesde valordosobjetos-forasimblicaeexpressiva-capazesdeexprimiruma Imagem 22 Setor comercial da comunidade. Fonte: Daniela de Oliveira 57conscincia social de um determinado grupo e caracterizar, dessa maneira, sua formao e identidade. Portanto, as representaes religiosas podem ser entendidas como representaes da realidade coletiva da comunidade Vale do Amanhecer: Umasensao,umaimagemreferem-sesempreaobjeto determinado ou a coleo de objetos desse gnero e exprimem oestadomomentneodeumaconscinciaparticular: essencialmente individual e coletiva. (DURKHEIM, 1989, p. 43). Assim,nocontextodoValedoAmanhecer,asprticasreligiosas que pontuam o cotidiano e as aes ritualsticas ordenam, diariamente, a vida socialdosadeptosdaDoutrina,direcionandoasaeseatuaesdestes sujeitos/atores.E,nestesentido,aprofusodevisualidadesqueocupam temploseespaosrituais,bemcomoosespaoscotidianoseosvesturios performticos, que do visibilidade essas estruturas sociais, ambientando tais prticas. 58CAPTULO 3 O visual na cultura e a cultura no visual O conceito de cultura, embora muito em voga no dias de hoje, um conceitomuitocomplexoeabrangevriasfacetas.Parafinsdesteestudo,a idiadeculturaestassociadasaeseinteraesscio-simblicas, compartilhadascoletivamentepelosindivduos,apartirdeumcertocontexto histrico, que corrobora na configurao da identidade do grupo social. Dentro do contexto da comunidade religiosa Vale do Amanhecer, o conceitodeculturaelaboradoporGeertz(1978)queservirdeprimeiro suporte, neste trabalho, para o processo de compreenso das visualidades que conformamodesenhoeasrelaesscio-simblicasdacomunidadee,por conseguinte, sua identidade. Segundo o autor, o conceito de cultura, Denotaumpadrodesignificadostransmitidohistoricamente, incorporado em smbolos, um sistema de concepes herdadas expressasemformassimblicaspormeiodasquaisos homenscomunicam,perpetuamedesenvolvemseu conhecimento e suas atividades em relao vida. (Ibidem, p. 103) Geertzfazusodesteconceitoparaapreenderareligiocomoum sistema cultural. A religio, por sua vez, tambm um tema complexo, muito presente e atuante no s nos estudos cientficos, mas, sobretudo, na vida das pessoasquevivenciameexperienciamosagrado,atravsdascrenas,da incorporao de smbolos e da participao em rituais. NocasoespecficodoValedoAmanhecer,aincorporaodos smbolossagrados,apartirdesuasprticascotidiano-ritualsticas,que singularizam, estetizam e conformam a identidade do grupo social, dentro de umsistemacultural,quemodelaeconfiguraoethos24dacomunidade. Segundo o mesmo autor, Os smbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo o tom, o carter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposiesmoraiseestticosesuavisodemundoo 24Ethosaquiloquecaractersticoepredominantenasatitudesesentimentosdos indivduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizaes ou manifestaes culturais (Aurlio Buarque de Holanda Fereira, 1995). 59quadroquefazemdoquesoascoisasnasuasimples atualidade,suasidiasmaisabrangentessobreordem. (Ibidem, p. 103-104) Dessa forma, como j relacionado neste trabalho, a religio o mote emqueseassentaadimensoscio-culturaldoValedoAmanhecer,cujos smbolossagrados,dispostosereproduzidosnosespaossagradose profanos, bem como nos corpos dos adeptos, so baluartes na disposio das visualidades da comunidade. Sabe-sequeosincretismo caractersticadareligiosidadebrasileira desdeostemposdacolonizao.Oque tornaosincretismoreligiosodoValedo Amanheceraindamaispeculiarqueele estinscritoecircunscritonocotidianodos adeptosquemoramnacomunidade, sobretudo, pelos espaos ritualsticos e pelas vestesquecobremoscorposdos pertencentesdaDoutrina,denotandouma cenografia mvel (imagem 23) que esculpe o tempoeaidentidadedogrupo,envolvidos num universo mstico que d sentido e forma aummododevidaeaumaesttica prprios, no meio do cerrado brasileiro. Neste sentido, no se pode negar que o Vale do Amanhecer constitui um referencial religioso e mstico dentro do contexto histrico do processo de construodeBraslia.FoiduranteaconstruodaCapitalFederal,quando ela prpria carregou candangos em seu caminho, que Tia Neiva comeou a manifestar suas clarividncias. Muitos dos antigos adeptos da Doutrina, inclusive Mrio Sassi, so imigrantes, principalmente do Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil, que foram paraoPlanaltoCentralmovidospelapromessadeumavidamelhor,e Imagem23MestreseNinfas caminhando no Solar dos Mdiuns, aps arealizaodoRitualdaEstrela Candente. Fonte: Daniela de Oliveira 60entusiasmadospelosdoismitosdecriaodaCapitalFederal.Essefato corroboraparaaauramsticaquecercaacidadeeseusarredores,como destaca Siqueira (1999): Braslianasceuapartirdedoisgrandesmitosdecriao:a Cidade Utpica e a Terra Prometida. O primeiro est inscrito no planejamento urbano e na arquitetura futurista do Plano Piloto: anohaveriamdivisesdeclassesocial.Osfundadoresda cidade estavam embudos do sonho e da misso de inaugurar um novo tempo e uma nova civitas para o Brasil, fundada no belo, na igualdade e na universalidade. Estemitoconvergecomumoutro,mstico,referenciadonas profecias de Dom Bosco, que se tornou, inclusive, o padroeiro dacidade.Segundosuasprofecias,naregiojorrarialeitee mel.Coincidnciaouno,estesdoismitosestonabasedo fenmenomstico-esotricoquedesignaBrasliacomoa Capital do terceiro Milnio ou da Nova Era. (Ibidem, p.93) O Vale do Amanhecer, cuja Doutrina tem como desgnio preparar os espritos para a Nova Era, configurou tambm um lugar de re-territorializao dosimigrantes,afanando,atravsdosagrado,asdoreseasangstias (OLIVEIRA, 2002) de quem deixou para trs suas famlias, suas razes e suas culturas, religando valores e forjando outra identidade, a poucos quilmetros de Braslia, sntese da modernidade brasileira. neste contexto histrico-cultural que se assenta a comunidade do Vale do Amanhecer, cujos adeptos, atravs da construo de outros templos25, j expandiram sua Doutrina em muitas outras cidades do Brasil, inclusive em outros pases, espraiando, dessa forma, suas performances identitrias. 3.1. Cultura, performance e identidade AatuaodosadeptosdaDoutrina,nassituaessagradase profanas, realizadas cotidianamente na comunidade, deflagra uma teatralidade e uma dramaticidade de forte carga identitria. Assim, embora no seja projeto desta dissertao o aprofundamento das discusses sobre performance, a idia de performancesidentitrias como trao caracterstico do complexo religioso Vale do Amanhecer, propiciar uma 25 Segundo o site http://www.valedoamanhecer.com, existem 611 templos fundados nos diversos estados brasileiros e 11 no exterior, principalmente, na Europa e Amrica Latina. 61das abordagens desse contexto, suas visualidades e dinmicas. Para tanto, o conceitodedramasocialdeVictorTurner(1987),edecomportamento restauradopropostospelosEstudosdaPerformance(SCHECHNER,2002), instrumentalizaroaanliseecompreensodaperformancecomo desempenho. Destarte, o conceito de drama social de Victor Turner vem auxiliar no processodeapreensodasprticascotidiano-ritualsticasdoValedo Amanhecer,queutilizaotermoperformanceritualparaoentendimentode aes e atuaes ritualsticas. Dramasocial,nestetrabalho,entendidocomoestrutura organizacional de uma ao social e dramtica e seus dispositivos culturais e estticos,emqueaperformancevistacomoumlugarlimite,umlugarde negociao (CARLSON, 1996).Assim,odramasocialrefere-sesucessodeaesdeum determinado processo social, podendo ser dividido, de acordo com Turner, em quatrofases.Aprimeirafasevemaseromomentoderupturadeuma determinadaordemsocial;asegundaacrisequeseestabeleceapartir dessa ruptura; a terceira fase, que o ponto crucial dos estudos do autor, o processoliminal,vemaseroprocessodereparao,decompensao,de como ser resolvida a crise; e a ltima a resoluo final do acontecimento, podendo se dar a partir da reintegrao ou da diviso do grupo (SCHECHNER, 2002).naterceirafasequeodramasocialocorre,emqueTurnerfaza anlise comparativa entre o processo ritual e o teatro, a fase em que o ato performtico acontece, o lugar da negociao. Neste sentido, Turner (1990) procura fazer conexes entre o teatro e asatividadesritualsticas,principalmenteosritosdepassagem.Oautor argumenta que o teatro se utiliza das aes da vida social para desenvolver um dramaestticoequeavidaseutilizadastcnicasteatraisparacomporum drama social.Nosprimeirostrabalhos,Turnerdesenvolvesuasreflexesapartir das sociedades tribais e concentra-se nas relaes entre rito, teatro e drama social. Mais para o final de sua produo, o autor passa a desenvolver a noo deperformancecultural,emqueosgnerosperformticosnoseatentam somenteaoseventosespetacularescomooteatro,osconcertos,ouseja,a 62erudio, mas tambm, aos eventos como os rituais, as festas populares, as rezas (LANGDON, 1996), visto que estes tambm: Soexpressesartsticaseculturaismarcadasporumlimite temporal,seqnciadeatividades,programadeatividades organizados,conjuntodeatores,platia,umlugareocasio para a performance. (Ibidem, p. 25). Portanto, estabelece-se um processo dialtico entre o drama social e a performance cultural em que a ao performtica essa ao liminal, lugar denegociaocolocaempautaosdispositivosscio-culturaisque engendram os comportamentos dos sujeitos de um determinado grupo social. Ou seja, pe em cena as formas, as prticas, as manifestaes estticas e as crenas dos sujeitos inseridos nessa ao, que , ao mesmo tempo, individual e coletiva. nessa perspectiva que a ao liminal vem a configurar um lugar de negociao,sendotambm,atravsdaaodossujeitos,umlugarde restauraooudemudana,capazdedemarcarterritrioefortalecer identidades. Assim,asperformancesrituais,atravsdaexperinciavividados adeptos do Vale do Amanhecer, podem ser apreendidas como momentos de reflexividade,ousejacriaumaexperinciaaomesmotempoemquereflete sobre ela (HARTMANN, 2005), e, por conseguinte, re-atualiza e re-assenta a identidade do grupo. Essa caracterstica performtica, em que o ritual pode ser visto como amlgama, aproxima-se ao campo da Cultura Visual, pois so destacados os aspectos reflexivos, criativos, visuais e poticos, ou seja, o modo de expressar amensagem(LANGDON,1996,p.26),asmaneiras,osgestos,as indumentrias que tambm so elementos constitutivos de funo e expresso para a performance (imagem 24). 63 Imagem 24 - Ritual de Priso Espiritual, em frente ao Turigano. Fonte: Daniela de Oliveira Nessestermos,possvelanalisaraDoutrinadoValedo Amanheceresuacomunidade,quesecaracterizamjustamentepela sobreposio de crenas, pela valorao dos rituais, pelas dramatizaes, pela gstica e pela visualidade. A intensa carga de smbolos, cores e plasticidade que ordena a vida social da comunidade, tambm re-atualiza a histria local e a experincia vivida de seus adeptos. Avanandonessaabordagem,osEstudosdaPerformance,que tambmseaportamdasreflexesdeTurner,trazemoconceitode comportamentorestaurado.Schechner(2002)denominadecomportamento restaurado-restoredbehavior-asprticasqueacabamserepetindoeque, comisso,aprimoramaprpriaprtica,queocorremtantonavidacotidiana, como nos rituais e nas artes. Assim, as prticas scio-rituais dos adeptos da Doutrina do Vale do Amanhecer so caractersticas fundantes e identitrias do grupo,cujasvisualidadesservemdeelementoagregadorecomunicacional dessa identidade.Nestecaminho,tem-secomoconstruodesentidoparauma performancesocialaidiadarepetio,doensaio,daquiloquesegueuma sucessodeaesequeestintrinsecamenteligadoaocomportamentodo homem desde o seu surgimento. Marcaes, ritos, cerimnias que permeiam 64asformasdecomunicaoerepresentaoentreohomemeomundo natural e sobrenatural. Dessamaneira,comojdito,Schchener(2002)atribui,aesse processo,adenominaodecomportamentorestaurado,quevemasera principalcaractersticadeumarepresentao.Qualquersituaode representao que segue seqncias organizadas de acontecimentos, roteiro de aes, textos conhecidos, movimentos codificados (SCHECHENER, apud BARBA,1995,p.205),ouseja,quesecaracterizaporumcomportamento repetido, tem o poder de fixar, manter vivo algo que aconteceu no passado e que se re-atualiza, atravs da transmisso,doensaio,em umaaopresenteefutura, portanto,carregadadeuma pluralidadedesignificados que atua no plano do reflexivo e do simblico. Dentrodocontexto doValedoAmanhecer,por exemplo, os rituais praticados diariamente(imagem25), repetidos e ordenados, seguindo um roteiro de aes que pouco fogem de sua ao original, constituem um elemento fundante desta comunidade, causando uma forte comoo esttica, e porque no dizer sagrada, tanto nos sujeitos que a praticam,quantonopblicoqueassiste,cujasperformancesassumem, tambm,opapeldecaracterizaravisodemundo,omodusoperandido grupo. Para os Estudos da Performance, a cultura vista como uma ao, sendo, portanto, processo e no produto, o que faz dos seres humanos seres aomesmotempoindividuaisecoletivos.Sotodosagentesdesteprocesso, em que as aes que se do atravs da repetio, do ensaio, mesmo que um poucomodificadadesuaaooriginal,acabamrestabelecendoessaprpria Imagem 25 - Ritual da Estrela Candente. Fonte: Daniela de Oliveira 65aooriginal.Assim,aaooriginalsere-atualizaapartirdasprticas performticas. Portanto,encontra-se,a,umapropostametodolgicaquereclama por comprometimento, que pode ser traduzida em formas de resistncia sobre asmltiplasperformatividadesdesdobradasnomundocontemporneo, globalizadoeintercultural.Nestecontexto,taisaes,emsuarepetio, corroboram para que elas prprias se mantenham vivas e experienciadas.Dessamaneira,asperformancesidentitriasdosadeptosda DoutrinadoValedoAmanhecerpodemseranalisadasluzdoreferencial tericodaCulturaVisual,auxiliandonoprocessodecompreensodas visualidadesesuadimensocultural,nocontexto-cenriodoValedo