dissertação antropologia sebastiÃo costa 2011

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  • 7/24/2019 Dissertao Antropologia SEBASTIO COSTA 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU UFPICENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS CCHL

    PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA PPGAARQ

    PERTENCIMENTO, MEMRIA COLETIVA E TERRITORIALIDADE EM UMACOMUNIDADE RURAL DO PIAU

    SEBASTIO PATRCIO MENDES DA COSTA

    TERESINA-PI2011

  • 7/24/2019 Dissertao Antropologia SEBASTIO COSTA 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU UFPICENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS CCHL

    PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA PPGAARQ

    PERTENCIMENTO, MEMRIA COLETIVA E TERRITORIALIDADE EM UMACOMUNIDADE RURAL DO PIAU

    SEBASTIO PATRCIO MENDES DA COSTA

    TERESINA-PI2011

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    SEBASTIO PATRCIO MENDES DA COSTA

    PERTENCIMENTO, MEMRIA COLETIVA E TERRITORIALIDADE EM UMACOMUNIDADE RURAL DO PIAU

    Dissertao apresentada como requisito parcial para aobteno do grau de Mestre. Programa de Ps-graduaoem Antropologia e Arqueologia. Universidade Federaldo Piau

    Orientadora: Prof. Dra. May Waddington Telles Ribeiro

    TERESINA-PI2011

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    FICHA CATALOGRFICAUniversidade Federal do PiauBiblioteca Comunitria Jornalista Carlos Castello Branco

    Servio de Processamento Tcnico

    C837p Costa, Sebastio Patrcio Mendes da

    Pertencimento, memria coletiva e territorialidade em umacomunidade rural do Piau / Sebastio Patrcio Mendes da Costa _Teresina: 2011

    117 fls.

    Dissertao (Mestrado em Antropologia e Arqueologia)UFPI, 2011

    Orientao: Prof. Dr. May Waddington Telles Ribeiro

    1. Territorialidade Humana. 2 Grupos EtnicamenteDiferenciados. I. Ttulo

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    SEBASTIO PATRCIO MENDES DA COSTA

    PERTENCIMENTO, MEMRIA COLETIVA E TERRITORIALIDADE EM UMACOMUNIDADE RURAL DO PIAU

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre, no

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Arqueologia, da Universidade Federal do

    Piau, pela Comisso formada pelos professores:

    _________________________________________________Orientadora: Prof. Dra. May Waddington

    Universidade Federal do Piau - UFPI

    _________________________________________________Prof. Dr. Maria Sueli de Sousa

    Universidade Federal do Piau UFPI

    _________________________________________________Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida

    Universidade do Estado do Amazonas UFAM

    Teresina, 7 de junho de 2011.

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    Para Jos Incio da Costa, Catarina de Sena Costa e Vilma Chiara,

    Para Isabella e Vitor

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    AGRADECIMENTOS

    A contribuio de muitas pessoas foi importante para a realizao dessa dissertao. difcil

    citar todos sem esquecer ningum.

    A Deus, por tudo.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do

    Piau PPGAARQ/UFPI.

    orientadora Dra. May Waddington pela confiana, pela orientao precisa. Muito obrigado.

    Aos professores do PPGAARQ, em especial ao Dr. Fabiano de Souza Gontijo, Dra. Francisca

    Vernica Cavalcante,Dra. Maria Ldia M. de Noronha Pessoa, Dra.Jacionira Coelho Silva e

    Dra. Maria Conceio Soares Meneses Lage, pelas interlocues e sugestes.

    Aos alunos da primeira turma de Mestrado do PPGAARQ/UFPI, pelo companheirismo.

    Aos funcionrios e bolsistas do PPGAARQ, pelo apoio.

    prof. Msc. Stella Rangel, pelo apoio e compreenso.

    Aos amigos Maik Hertzer, Haroldo Castro e Ana Cristina Guedes, pelo apoio.

    Aos professores Dr. Alexandre Bernardino Costa, Dr. Cristiano Paixo, Dr. Menelick de

    Carvalho Netto, Dra. Alejandra Leonor Pascual e Dr. Jos Geraldo de Sousa Jr. por

    mostrarem-me a preocupao do Direito com os movimentos sociais e com a defesa das

    minorias.

    Prof. Dra. Ellen F. Woortmann, pelas contribuies nos estudos sobre memria social.

    Ao Prof. Dr. Lus Roberto Cardoso de Oliveira e prof. Msc. Gloreni Aparecida Machado,

    por mostrarem-me as relaes entre Direito e Antropologia Social.

    Ao prof. Dr. Peter Hberle, pelas interlocues e sugestes precisas, via email, sobre a

    proteo jurdica nas sociedades plurais.

    Ao povo de Jungam.

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    Essa cidade t inriba do ar (Morador de Jungam)

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    RESUMO

    No meio rural piauiense, uma comunidade se constituiu historicamente nos interstcios degrandes fazendas de gado, preservando traos de lngua J e fala diferenciada, com arranjosfamiliares que definem formas especficas de ordenamento territorial interno com terras deuso comum. Sofrendo sculos de preconceito e utilizando-se de estratgias de invisibilidade, ogrupo resistiu s tentativas de regularizao fundiria estatal, negociando com a sociedadeenvolvente atravs de conflitos e jogos sutis pelo qual negociam a manuteno de seus usos ecostumes, considerando a ordem institucional como "o municpio" que flutua sobre suarealidade: "o municpio no tem terra, quem tem so as famlias. Ele est em riba do ar".Nesse trabalho, analisou-se tal processo de constituio interna de identidade especfica faceao ordenamento plural presente no Estado Democrtico de Direito e o processo de

    territorializao na comunidade a partir dos estudos de Alfredo Wagner Berno de Almeida(2008), Paul Little (2002) e Joo Pacheco de Oliveira (1999), entre outros. Verificou-se que oprocesso de territorializao deve ser entendido como a construo de uma identidade tnicaindividualizada face a um conjunto genrico, e no como um movimento homogeneizador. atravs do territrio que se media a relao entre a pessoa e o grupo tnico, por meio derepresentaes que remetem recuperao da memria ou a sua construo.

    Palavras-chave: Processo de territorializao, comunidades etnicamente diferenciados,memria.

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    ABSTRACT

    A community was established in the countryside of Piau, in the interstices between largecattle ranches, preserving its indigenous language and differentiated speech, making familyarrangements to suit their internal territorial regulations over common land usage. Sufferingcenturies of prejudice and using strategies of invisibility, the group resisted attempts to landtenure legislation by negotiating with the surrounding society through subtle conflicts andunveiled schemes by which they managed to preserve their own costumes, while interpretingthe institutional order as "the city" that floats above its reality: This municipality has no land,

    only the families own it. It is floating in the air. In this study, we analyzed the internalprocess of constitution of a specific identity in the face of the plural democratic state and theterritorial process in the community, considering the studies of Alfredo Wagner Berno deAlmeida (2008), Paul Little (2002) and Joo Pacheco de Oliveira (1999), among others. It wasfound that the territorial process must be understood as the construction of an individualethnic identity against a generic set, and not as a homogenizing movement. It is the territorythat mediates the relationship between the individual person and ethnic community, by meansof representations that refer to memory retrieval or construction.

    Keywords: Procedure of territorialization, ethnically differentiated groups, memory.

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    SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................... 10

    1.1 METODOLOGIA .......................................................................................................... 17

    2 TERRITORIALIDADE E PROCESSO DE TERRITORIALIZAO ................... 21

    2.1 TERRITRIO: USO COMUM E CONFLITO ............ ............. ................ ............. ....... 29

    2.2 GRUPOS ETNICAMENTE DIFERENCIADOS: O EXEMPLO DO

    FUNDO DE PASTO .................................................................................................. 31

    2.3 ORIGEM E FORMAO DE JUNGAM .................................................................

    2.3.1.A Formao de Jungam.............................................................................................

    2.4. A INSTITUIO DO MUNICPIO.............................................................................

    33

    36

    45

    3. PERTENCIMENTO, ORGANIZAO SOCIAL E CONFLITOS INTERNOS... 48

    3.1 PARENTESCO ............................................................................................................. 52

    3.2. MEMRIA .................................................................................................................. 53

    3.2.1 A histria recriada .................................................................................................... 55

    3.2.1.1 A histria construda e adotada por um dos grupos de parentesco................. .......... 55

    3.2.2O carter dominante do parentesco......................................................................... 59

    3.2.3A ocupao original segundo a memria ................................................................ 61

    3.2.4A disperso interna da populao segundo a memria ......................................... 62

    3.2.5A fixao da populao aps a disperso segundo a memria ............................. 62

    3.3 ORGANIZAO SOCIAL ATUAL DO CANTO......... ............. ............... .............. . 63

    3.3.3As crenas................................................................................................................... 70

    3.4 A FALA............... ............. ............... ............... ............. ................ ............ ................ ...... 76

    3.5 NORMAS JURDICAS................ .............. .............. ................ ................ .............. ...... 81

    3.5.1. Usucapio ................................................................................................................ 834. PROTEO JURDICA DOS GRUPOS ETNICAMENTE DIFERENCIADOS .. 86

    4.1 HERMENUTICA ....................................................................................................... 90

    4.4 IDENTIDADE DO SUJEITO PROTEGIDO CONSTITUCIONALMENTE .............. 91

    5. CONCLUSO ................................................................................................................ 97

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS . 107

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    1 INTRODUO

    Ao se tratar com questes que envolvem a identidade cultural, a auto-atribuio e

    a atribuio pelos outros de uma identidade significam os componentes principais do processo

    de identificao tnica. Uma identidade se afirma, portanto, diante de todas que com ela se

    colocam como opostas. Um indivduo ter seu pertencimento a um grupo sociocultural

    marcado quando se atribui uma identidade e os indivduos de outras etnias atribuem a ele

    tambm uma identidade. O processo de identificao tnica teria essa estrutura bsica,

    havendo mudana apenas nos chamados diacrticos de identidade, traos culturais utilizados

    para definir o pertencimento. (BARTH, 1969; OLIVEIRA, 1976; CUNHA, 1986) Tais

    diacrticos so escolhidos de acordo com o poder de reconhecimento que o trao cultural

    poder ter de diferenciao dos outros, e no a partir de uma deciso interna do grupo que

    pretende firmar sua identidade. Normalmente, ocorre a escolha de um trao cultural

    tradicional, entendida como forma de pensamento e conscincia compartilhada, e no como

    construo material. Nesse aspecto, a lngua e elementos visveis como vestimentas e rituais

    talvez sejam os traos mais arraigados na cultura e na tradio. Esses traos culturais

    diacrticos muitas vezes so escolhidos para marcar a diferena na afirmao da cultura.

    Dessa forma, um grupo ao construir internamente sua lngua ou fala, por exemplo, permite a

    produo de mensagens ao mesmo tempo em que fornece informaes sobre si, sobre seus

    falantes. H a comunicao da condio social e cultural de seus falantes, principalmente

    quando a comunicao entre os diversos grupos se torna importante.

    Segundo Cunha (1986), quando h um forte contato entre dois grupos, a cultura

    original de cada grupo ir adquirir uma nova funo, acrescendo-se s demais. A cultura

    tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visvel, e a se simplificar e se

    enrijecer, reduzindo-se a um nmero menor de traos, que se tornam diacrticos (CUNHA,

    1986, p. 99)

    Para Roberto Cardoso de Oliveira (1976), a escolha dos diacrticos funo da

    relao entre os grupos e numa relao do tipo dominao-subordinao, h a possibilidade

    do grupo dominante influenciar a escolha dos diacrticos pelo grupo dominado. Os traos

    (diacrticos de identidade) no so a soma de diferenas objetivas, seno somente aqueles que

    os atores mesmos consideram significativos (BARTH, 1969, p. 18)

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    Nas ltimas dcadas, alguns autores brasileiros tm reconhecido, na especificidade

    do processo fundirio nacional e nos diferentes processos de expanso da institucionalidade

    Estatal sobre grupos histrica e especificamente situados no territrio alcanado por tais

    processos, a importante relao entre a cosmografia e a base material na qual a cultura se

    constri. As anlises sobre o sentimento de pertencimento e a materializao da cultura e

    identidade a partir da relao com o territrio ganham grande importncia na medida em que

    o Estado Nacional, atravs da Constituio de 1988, estabelece um marco jurdico que

    reconhece sua prpria pluralidade interna, se afastando de noes generalizantes. (COSTA,

    2006)

    Se partirmos da constatao de que o territrio fsico ocupado por grupos que esto

    sendo pressionados a diversas formas de deslocamento , comumente, o objeto de disputa que

    gera os conflitos e tenses intertnicas que definem os padres de seleo de diacrticos,

    podemos, mesmo sem nos afastar do conceito de cultura enquanto campo simblico

    compartilhado pela coletividade, nos aprofundar na relao entre a gnese tnico-identitria e

    a base material onde essa se opera. Em uma espcie de retorno base emprica e

    historicamente especificada, os conceitos de territorialidade, processos de territorializao e

    territorialidade especfica nos possibilitam apreender no apenas o processo pelo qual a

    identidade se estabelece (seja da forma etnicamente diferenciada que os preceitos jurdicos

    conceituam ou no), como tambm as formas como determinado grupo interpreta o outro ao

    qual se contrape.

    So com essas consideraes que sero analisados os aspectos da formao da

    identidade, senso de pertencimento e principalmente os conflitos internos do grupo ora

    estudado, uma comunidade rural do Estado do Piau, que em 1995 foi emancipada

    transformando-se em municpio. Para preservar a privacidade do grupo estudado e respeitar

    suas ntimas relaes, a comunidade ser tratada pelo nome fictcio Jungam, palavra

    indgena de origem akro. Ainda como meio de impedir a identificao do grupo, nomes depessoas, lugares e de cidades foram modificados.

    Jungam possui uma populao de aproximadamente 1800 habitantes que residem

    em seis pequenas povoaes espalhadas num territrio de cerca de 6000 hectares. As

    localidades Riacho, Jabuti, Chapada dos Damio, Chapada dos Antunes, Chapada do Gensio

    e Jungam so as povoaes que, no conjunto, constituem o municpio de Jungam. O seu

    territrio propriedade coletiva da totalidade da populao, descendente atual de 96 posseiros

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    que requereram na Justia, em 1933, uma ao de usucapio das terras que ento ocupavam

    (ver anexo A). Apesar da ao de usucapio ser considerada procedente pelo juiz, a diviso

    das terras no foi seguida entre os posseiros, de modo que a apropriao individual de pores

    do territrio se deu por critrios estabelecidos e seguidos pelo prprio grupo. O grupo de

    Jungam subsiste atravs da prtica da agricultura, onde utilizam uma tecnologia rudimentar.

    Subsidiariamente, trabalham em fazendas de pequenos e mdios produtores da regio.

    Meu interesse por essa comunidade e o acesso que tive aos seus moradores possui

    um carter especial que precisa, desde j, ser explicitado. Como filho de dois pesquisadores

    que tomaram Jungam por objeto de dissertao antropolgica (COSTA, 1985) e tese de

    doutoramento em lingstica (COSTA, 1989), cresci em um ambiente que discutia e convivia

    com Jungam. Isso me induziu a voltar minha pesquisa sobre pluralismo jurdico Jungam,

    para a dissertao de Mestrado em Direito, na Universidade de Braslia (COSTA, 2006).

    Alm do contato direto e antigo com os informantes de Jungam, como a famlia de meu pai

    vive na cidade vizinha de Matagal, pude presenciar, desde cedo, as opinies discriminatrias

    dos moradores de Matagal em relao aos moradores de Jungam.

    A pesquisa de meu pai, Jos Incio da Costa, tratou do processo de formao

    histrica do Piau, do aniquilamento dos indgenas na regio e das comunidades que surgirama partir dos ndios sobreviventes. uma dissertao de cunho antropolgico que estudou a

    identidade dos moradores de Jungam, incluindo o seu sistema de nominao, focando

    questes de parentesco e acesso terra.

    Minha me, Catarina de Sena Costa, analisou a situao sociolingstica de fala da

    comunidade baseada em aspectos fonticos e fonolgicos da fala dos moradores de Jungam.

    Segundo sua pesquisa, esses aspectos remetem a um substrato lingstico possivelmente

    indgena. Nesse estudo, ela constatou que a variedade de fala da comunidade possui muitos

    aspectos especficos, inclusive, entoacionais, e fonolgicos, em relao ao Portugus faladono Brasil, especialmente em relao ao Portugus regional. Atravs de descries e anlises

    dos modos de fala, segundo a perspectiva da etnografia da fala, de acordo com Gumperz e

    Hymes (1972) e Hymes (1974) o estudo concluiu que a situao lingstica de o Jungam de

    multidialetalismo, em que convivem diversos falares ou variedades de fala, peculiares a cada

    grupo de parentesco (ou famlia, no sentido extenso), usados internamente no dia-a-dia da

    comunidade, e ainda uma variedade de fala geral, muito prxima da fala da regio, onde se

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    situa Jungam, usada nas relaes dos seus moradores em geral, com pessoas que no

    pertencem comunidade.

    Aprofundei-me, em minha dissertao de Mestrado em Direito, na formao do

    sujeito constitucional e na identidade constitucional de acordo com Rosenfeld (2003), para

    quem em um cenrio de pluralismo jurdico o Estado cumpre o papel de assegurar a existncia

    da diversidade de identidades que se contrape sem se excluir completamente, ao invs de

    cumprir o simples papel de permitir e autorizar manifestaes culturais diferenciadas, como

    ser visto com mais nfase na concluso deste trabalho. O grupo de Jungam foi considerado

    como portador de identidade sociocultural prpria enquanto um indicador da diversidade

    cultural da qual participa na relao com grupos externos. No entanto, nessa dissertao

    busquei perceber a construo do sujeito constitucional, no sentido de Rosenfeld (2003), na

    pluralidade interna representada pelos distintos grupos de parentesco que compe a sociedade

    em Jungam atravs de seus conflitos e da integridade que constroem. Semelhante s noes

    de pluralismo jurdico da forma como so empregadas sociedade nacional enquanto

    composta de coletividades culturalmente diferenciadas que constituem um todo maior e

    coeso, em Jungam, a identidade de cada grupo de parentesco deve permanecer distinta e

    oposta s demais identidades mas, ao mesmo tempo, com as outras compartilhando alguns

    elementos que diferencia o conjunto de grupos externos. Como concluso principal desse

    trabalho, acredito ter conseguido demonstrar que a proteo do pluralismo no deve ser

    entendida com uma simples permisso do Estado, no sentido de autorizar que seja mantida e

    garantida a identidade de grupos sociais culturalmente diferenciados tratados de forma

    particular, mas no sentido de assegurar as condies de existncia desse pluralismo. Essa

    concluso ganha importncia na medida em que se constata que o pluralismo no constitui

    uma benevolncia ou concesso de Estado, mas uma conquista da sociedade ou dos grupos

    minoritrios especficos. Alguns aspectos de minha dissertao de Mestrado em Direito sero

    revisitados nesse trabalho.

    Assim, retomo o estudo da comunidade de Jungam agora, para examinar como a

    prpria diferenciao protegida pela Constituio elaborada de forma particular, especfica e

    internamente aos grupos e atravs de relaes que envolvem, alm de patrimnios comuns,

    conflitos que tambm as constituem internamente. Se Jungam constitui um cenrio de

    pluralismo jurdico isso se deve justamente s peculiaridades e especificidades na origem e na

    formao da comunidade que, para garantir o acesso e a posse da terra, criou normas prprias,

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    proporcionando a defesa do territrio e a ocupao e manuteno da posse por todos os seus

    habitantes. Esse pluralismo protegido pela Constituio Federal principalmente a partir dos

    artigos 215 e 216, inciso II, conforme demonstrei na j citada dissertao de mestrado em

    Direito (COSTA, 2006). A garantia da manuteno das caractersticas da comunidade,

    inclusive de sua identidade cultural, resultado de uma luta intensa do grupo, inclusive contra

    o Estado em determinadas situaes (CLASTRES, 1998; RADCLIFFE-BROWN, 1973) para

    proteger-se como grupo especfico. fruto da diversidade cultural e da vontade da

    comunidade querer garantir sua histria, seus valores, seus ideais, enfim, sua identidade

    cultural. Enquanto a proteo constitucional ao pluralismo demonstra uma forma de

    desenvolvimento do prprio Direito que mereceu a ateno de um estudo jurdico, percebi a

    importncia de articular conhecimentos jurdicos e antropolgicos atravs da teorizao sobre

    a questo da territorialidade e memria, como forma de compreender a materializao da

    cultura a partir da relao entre identidade e territrio. Teramos, assim, condies de

    aprofundar essa discusso para que se entenda a gnese da territorialidade e os processos de

    formao identitria que conferem direitos baseados na diversidade cultural a uma sociedade

    plural.

    O problema central para investigao, ento, ser: Qual o processo de construo

    da memria coletiva e sua importncia para a legitimao da posse da terra e para a

    constituio da territorialidade na comunidade Jungam? Como os fatos sociais e eventos que

    passaram a constituir um carter histrico como pontos de marcao contriburam para a

    consolidao dessa memria e para o sentimento de pertencimento da comunidade Jungam?

    O tema se reveste de importncia tanto terica quanto social. A importncia

    terica est no fato de contribuir para o entendimento e para a explicao de fenmenos

    cientificamente relevantes para a teoria social e que a prpria academia julgou anacrnicos e

    tendentes a desaparecer diante da teoria da modernizao (aculturao?). Na contramo da

    globalizao, comunidades locais, com especificidades tnicas ou socioculturais com ntidosdiacrticos identitrios, insistem em lealdades sociais inimaginveis pelos profetas e apstolos

    da aldeia global. Tal fato constitui no apenas um desafio poltico da atualidade, mas exige

    estudo e explicaes cientficas convincentes. A importncia social de uma investigao dessa

    natureza est no fato de fortalecer os pleitos jurdicos e de poder (como um dos resultados

    possveis, mas no como um dos objetivos) orientar polticas pblicas voltadas para minorias

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    discriminadas ou econmica e tecnologicamente inferiorizadas justamente em razo de suas

    especificidades socioculturais.

    A Comunidade Jungam ser, nesse trabalho, caracterizada como terra

    tradicionalmente ocupada a partir do conceito estabelecido pelo art. 3 do Decreto 6040/2007,

    que institui a Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades

    Tradicionais (PNPCT) que estabelece:

    Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que sereconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao social, queocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduocultural, social, religiosa, ancestral econmica, utilizando conhecimentos, inovaese prticas gerados e transmitidos pela tradio.

    Nesse mago, a descrio da comunidade ser feita a partir das caractersticas

    estabelecidas pela legislao sobre as comunidades tradicionais. Dessa forma, a organizao

    social, a forma de utilizar os recursos naturais, as crenas religiosas, a fala, enfim, a forma de

    vida diferenciada sero consideradas para caracterizar a comunidade estudada.

    Nessa investigao ser utilizado o conceito de territorialidade e de cosmografia

    de Little (2002), a noo de territorialidade de Almeida (2008) e o de processo de

    territorializao de Oliveira (1999). A organizao social da comunidade ser estudada

    segundo a teoria da linguagem de Leach (1968) e as estratgias matrimonias na perspectiva de

    Bourdieu (1980). A memria coletiva ser abordada segundo os estudos realizados por

    Halbwachs (1984) e Coser (1984) sobre memria coletiva; as noes de memria social e

    compartilhamento do passado sero consideradas no sentido de Pollak (1989); atravs de

    Connerton (1999) analisar-se- a perspectiva de permitir o sentimento de pertencimento

    atravs da memria; alm disso, sero analisadas uma srie de histrias para se tentar

    demonstrar que a memria social capaz de estabelecer um controle do passado, segundo os

    estudos de Abercrombie (1998). Sero ainda utilizadas a noo de inveno de tradio, no

    sentido estudado por Hobsbawn e Ranger (1993), de pertencimento de Norbert Elias e Jonh L.

    Scotson (2000), alm da abordagem processualstica sobre a etnicidade proposta por Victor

    Turner (1972).

    Conforme a dissertao anterior j mencionada, a proteo jurdica dos grupos

    etnicamente diferenciados ser abordada a partir da noo do sujeito constitucional de Michel

    Rosenfeld (2003) e de interpretao jurdica numa sociedade aberta segundo Peter Hberle

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    (2007). A legislao especfica na proteo dos grupos etnicamente diferenciados ser

    apresentada segundo estudo realizado por Almeida (2008).

    Nesse trabalho de anlise da constituio da territorialidade e da memria coletiva

    como forma de legitimao da terra da comunidade Jungam, ser reconstituda a histria da

    comunidade a partir dessa memria. Ser comparada a histria construda a partir da memria

    coletiva com os dados da histria oficial, documental. Os fatos sociais e eventos considerados

    histricos pela memria coletiva sero identificados e avaliados, buscando-se identificar os

    pontos de marcao de memria, bem como os critrios utilizados para sua eleio.

    Por fim, sero comparadas as verses da memria coletiva da comunidade

    segundo dados apresentados em 1985 com a memria coletiva em 2010 e 2011, para

    analisarem-se as mudanas ocorridas na memria durante esse perodo. A oportunidade que

    essa abordagem diacrnica apresenta a de percebermos como a dinmica dos processos

    culturais se elaboram e se ressignificam ao longo do tempo e diante de novas contingncias

    como as aqui flagradas, na institucionalizao do municpio sobre o territrio estudado.

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    1.1 METODOLOGIA

    Esse trabalho resultado de uma investigao que utilizou dados de observaes

    diretas realizadas numa abordagem etnogrfica, alm de dados obtidos atravs de pesquisa

    bibliogrfica e documental.

    O trabalho bibliogrfico buscou aprofundar aspectos tericos e metodolgicos da

    pesquisa, alm de buscar aparato terico que permitisse realizar uma melhor coleta de dados e

    analisar as informaes relativas ao campo social estudado, considerando o preceito de

    Cicourel pelo qual a pesquisa de campo [...] um mtodo no qual as atividades do

    pesquisador exercem um papel crucial na obteno dos dados (CICOUREL, 1990, p. 87).

    Busca-se, portanto, compreender a utilizao de mtodos e tcnicas de coleta de dados e

    possibilitar um aparato terico para a interpretao dos resultados obtidos na pesquisa de

    campo.

    Assim, o procedimento etnogrfico foi utilizado na pesquisa de campo, entendido

    como uma descrio etnogrfica e de uma anlise do sistema do grupo social estudado, que

    descreve tanto o carter global quanto particular do grupo. Em Jungam, ao considerarmos

    toda a organizao social, desde o casamento, base das relaes polticas, at a hierarquizao

    social mais ampla que distribui os indivduos em grupos, em classes ou categorias

    hierarquizadas e o conjunto das relaes sociais, tambm utilizamos a perspectiva

    metodolgica de Geertz quanto considerao da etnografia como descrio densa e assim

    descrevermos a comunidade, sua memria e seu processo de territorializao de forma mais

    completa. (GEERTZ, 1989). A etnografia aqui implementada possui um carter descritivo e

    tambm comparativo. Nesse mpeto, o aspecto comparativo ocorreu por meio de leituras de

    casos etnogrficos, alm de teoria sociolgica e antropolgica como fundamentao terica.

    A coleta de dados realizou-se por meio de entrevistas com moradores de Jungam

    e com pessoas dos municpios vizinhos que interagiam com aquela comunidade, evidenciando

    uma observao direta. Em Jungam, tentou-se entrevistar pessoas com liderana, segundo

    seus prprios moradores, nas diversas famlias da comunidade, em vrias reas de atuao,

    como poltica, educacional, comercial e religiosa. No que diz respeito s questes especficas

    dessa pesquisa, a coleta de dados e as entrevistas ocorreram entre o ms de agosto de 2010 e

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    fevereiro de 2011. Alis, o significado da entrevista varia de pessoa para pessoa, mas varia

    tambm comparativamente (cross-culturally). (LANGNESS, 1973, p. 65)

    Na realidade, essa pesquisa se mostra para mim como um grande desafio.

    Praticamente nasci em Jungam, durante as pesquisas que meus pais realizavam na

    comunidade. Muitos me consideram um nativo, porm, como realizar uma pesquisa

    antropolgica, que necessita de um distanciamento da comunidade para evitar naturalizaes

    (EVANS-PRITCHARD, 1956; MALINOWISKI, 1978, LEVI-STRAUSS, 1982) e conseguir

    descrever a analisar adequadamente os fatos ocorridos em Jungam para cumprir os requisitos

    para o Mestrado em Antropologia e Arqueologia da UFPI? Esse dilema se apresentou para

    mim como um desafio terico, mas tambm como um desafio metodolgico. Um desafio

    terico diante da necessidade de explicar cientificamente os fatos ocorridos na comunidade

    para compreender a gnese tnico-identitria pela construo da memria e o processo de

    territorializao. Mas h tambm um desafio metodolgico, pois como realizar uma etnografia

    descrevendo a comunidade em que eu praticamente tinha nascido e para isso conseguir o

    distanciamento necessrio para descrever e analisar adequadamente Jungam?

    Conheci Jungam ainda na minha infncia. Praticamente nasci na comunidade.

    Meus pais realizavam pesquisas em Jungam e quatro dias antes de meu nascimento, elesretornaram para Teresina para resolver alguns compromissos na capital do Piau. Nesse

    pequeno intervalo de suas pesquisas de campo eu nasci, mas muitos moradores da

    comunidade me consideram como nascido l, pois toda a gestao foi passada na comunidade,

    e como eles prprios dizem: o Sebastio s no nasceu aqui, ento burro ele no no...

    A relao de meus pais com Jungam sempre foi muito forte. Jungam vizinha

    cidade de Matagal, cidade da famlia de meu pai, e durante toda a sua infncia, meu pai ouvia

    as histrias que os moradores de cidades vizinhas diziam de Jungam. Que eram pessoas

    valentes, que tinham uma fisionomia diferente, mas a caracterstica que mais chamava aateno nos moradores de Matagal naquela poca era a forma de falar dos moradores do

    Canto. Uma forma de falar diferente, meio que cantada e ainda engolindo as palavras.

    Durante a pesquisa de mestrado e doutorado que realizaram, meu pai que antroplogo e

    minha me que lingista, as relaes com Jungam se intensificam. O casamento religioso

    de meus pais, por exemplo, aconteceu na Igreja de Jungam, durante a pesquisa. Moradores

    de Jungam foram padrinhos do casamento de meus pais e hoje meus pais so padrinhos de

    mais de uma dezena de afilhados na comunidade. Nossa casa em Teresina se transformou

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    numa espcie de embaixada da comunidade. Quando algum dos moradores precisava vir a

    Teresina para algum compromisso, principalmente para cuidar de problemas de sade, pois

    Teresina um plo regional no tratamento da sade, ficavam hospedados em nossa casa. A

    Mariana, o Mariano, a Josefa, o Renato (morador de Jungam que nasceu em Teresina), todos

    ficavam hospedados com a gente e, ainda hoje, sempre que possvel, tentamos ajudar as

    pessoas na comunidade.

    Durante a pesquisa de meus pais, eles conseguiram mobilizar mdicos e

    enfermeiros da Universidade Federal do Piau, para que fossem comunidade fazer mutires

    de tratamento de sade. Problemas de viso, ortopdicos, de sade em geral foram tratados na

    prpria comunidade com profissionais da UFPI. Houve distribuio de leite e remdios para

    as pessoas doentes. Ainda hoje esses momentos so relatados pela memria dos mais velhos.

    Como dizia dona Lvia, uma das guardis da memria da comunidade, primeira professora da

    comunidade e madrinha de casamento de meus pais: O Z Incio e a Catarina cuidavam dos

    velhos, davam leite e remdio. Infelizmente dona Lvia faleceu durante o perodo de

    realizao desta dissertao.

    Durante minha graduao de Direito na UnB e a discusso sobre pluralismo

    jurdico presente naquela Universidade, a imagem de Jungam voltou com toda a fora minha memria. Muitas situaes que ocorriam l no aspecto jurdico eram explicadas pelo

    pluralismo jurdico. Essas idias foram abordadas na dissertao de Mestrado em Direito na

    UnB (COSTA, 2006). Aps isso, surgiu a curiosidade de compreender a construo da

    memria social em Jungam. Comecei a trabalhar com memria social ainda na UnB, durante

    a disciplina Organizao Social e Parentesco e a disciplina Memria Social, ministradas pela

    prof. Dra. Ellen Woortmann, que cursei na Ps-Graduao em Antropologia Social na UnB,

    tendo inclusive estendido a discusso realizada nessa disciplina sobre Memria Social para o

    curso de graduao, quando trabalhei como auxiliar da Prof. Ellen F. Woortmann. No

    mestrado em Antropologia e Arqueologia da UFPI, fui apresentado pela prof. Dra. MayWaddington bibliografia sobre processo de territorializao e percebi a ntima relao entre

    os assuntos, comeando a verificar concretamente em Jungam como se d todo esse

    processo.

    Havia ainda a dificuldade de desnaturalizar os fatos ocorridos em Jungam e assim

    desenvolver adequadamente a pesquisa etnogrfica. Nesse ponto, creio que a formao

    jurdica me auxiliou na medida em que apliquei ao estudo da comunidade o distanciamento

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    que os advogados procuram ter nos casos que atuam para realizar uma defesa mais tcnica e

    menos apaixonada, procurando no se envolver tanto na causa e poder trat-la de forma mais

    racional. Embora sempre haja envolvimento nessas situaes, foi essa a estratgia que utilizei

    para tentar me distanciar da comunidade, descrev-la e cumprir os requisitos necessrios para

    a concluso da dissertao de Mestrado em Antropologia.

    Os informantes, os sujeitos nessa pesquisa foram fundamentais e os tratamos com

    o devido cuidado, evitando-se o erro indicado por Van Velsen:

    Os antroplogos frequentemente caem no erro de no distinguir entre vrios tipos deinformaes. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que deixam de tratar asdeclaraes dos informantes com o necessrio cuidado, considerando-as meramenteum tipo de comportamento observado. (VAN VELSEN, 1987, p. 353)

    Para a composio de uma viso sociocultural de Jungam como uma comunidade

    etnicamente diferenciada, foram utilizados os dois trabalhos sobre a comunidade j

    mencionados: ndio, Cabco-brabo, Cabra-de-Jungam: nomes, manipulaes e

    identidades numa comunidade rural do Piau, Dissertao de Mestrado de Jos Incio da

    Costa (COSTA, 1985), dissertao de cunho antropolgico que estudou a identidade dos

    moradores de Jungam, e Pelas falas de Jungam:uma etnografia,Tese de Doutorado de

    Catarina de Sena Costa (COSTA, 1989), uma etnografia que analisa, de um ponto de vistasociolingstico, a situao de fala de Jungam, atravs dos seus aspectos fonticos e

    fonolgicos.

    Nessa perspectiva metodolgica que conciliou todos esses conceitos com a

    etnografia, permitiu-se entender com mais clareza como se constitui um grupo etnicamente

    diferenciado que passa agora a ter a proteo jurdica do Estado, primordialmente atravs da

    Constituio Federal de 1988.

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    2. TERRITORIALIDADE E PROCESSO DE TERRITORIALIZAO

    Nos ltimos 20 anos, houve uma mudana significativa na questo fundiria no

    Brasil. Ela deixa de ser vista como uma simples redistribuio de terras e passa a ser

    percebida segundo processos de ocupao e afirmao territorial, envolvidos com polticas de

    ordenamento e reconhecimento territorial. Nesse perodo, a diversidade fundiria no Brasildeixou de ser pouco conhecida e reconhecida pelo Estado e passa a ganhar fora e a se

    consolidar. A demarcao e homologao das terras indgenas, o reconhecimento dos

    remanescentes de comunidades quilombolas e o estabelecimento de reservas extrativistas

    foram reflexos dessas mudanas, mostrando-se a diversidade fundiria brasileira junto da

    diversidade sociocultural presente em todo o pas.

    Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008) trabalha os grupos etnicamente

    diferenciados buscando uma redefinio dos instrumentos de ao fundiria no Brasil,

    inclusive para uma adequada proteo jurdica desses grupos e de suas prticas,

    principalmente quelas relativas aos direitos dos trabalhadores rurais e o acesso terra, como

    chamada terra de uso comum que de difcil caracterizao e proteo pelos rgos oficiais.

    No mapeamento desses grupos, o autor aborda aspectos tnicos, de parentesco, de vizinhana

    e de identidades coletivas que diferem do padro da estrutura do mercado de terras no Brasil

    diante do modelo capitalista. Nessas anlises, aborda grupos no seu aspecto coletivo,

    organizados em movimentos sociais, alm do surgimento e as conseqncias desses

    movimentos. Uma das preocupaes a apropriao dos recursos naturais e a utilizao de

    seus territrios para sua reproduo cultural, social e econmica e a transmisso dessa

    tradio.

    Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008) estuda ainda as modalidades de uso

    comum da terra que so considerados aspectos esquecidos na estrutura agrria brasileira.

    Analisando especificamente as chamadas terras de preto, as terras de santo, as terras de

    ndio, as terras de herana e as terras soltas ou abertas, o autor mostra as caractersticas

    da chamada terra de uso comum, a mobilizao feita pelos camponeses e as tentativas de

    identificao dessas terras numa nova conjuntura poltica favorvel ao reconhecimento de

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    direitos de trabalhadores rurais e de direitos ao acesso as terras. Alfredo Wagner Berno de

    Almeida (2008) mostra que o grau de coeso e solidariedade dos camponeses nas chamadas

    terras de uso comum um forte motivo para a manuteno de seus domnios. A estabilidade

    territorial atrelada aos vnculos que esses camponeses constroem reflexo de uma rede de

    relaes estabelecida em situaes de conflito.

    Terras de uso comum seriam, portanto, reas em que o controle do acesso aos

    recursos bsicos no feito por um nico grupo ou por um membro da comunidade

    individualmente. O acesso feito por vrios grupos que compem uma unidade social a partir

    de normas construdas de forma consensual e que levam em considerao todo o histrico das

    relaes sociais presentes na comunidade. Tais normas podem sofrer atualizaes em

    territrios que so socialmente reconhecidos e delimitados. Para Almeida, a territorialidade

    funciona como fator de identificao, defesa e fora (ALMEIDA, 2008, p. 133). o que

    ocorre em Jungam:

    Pesquisador: Alis, o terreno no de uma pessoa, mas de uma famlia...Mariana:Cada famlia conhece os seus limites.Mariano: da famlia. como esse caso que eu estou dizendo. Como se um pai

    morreu...Mariana:foi no tempo que veio o INCRA e tudim cadastraram esses terreno.Pesquisador:Os que j estavam ocupado.Mariana: Sim, os que j estavam ocupado. Cada qual j tem o seu pedao, pro

    INCRA botar tudo em documento. A no ano passado passaram uns homi apassaram medindo umas terra pra fazer umas escritura.

    Mariano:Agora s que essa cidade t inriba do ar. Porque ela ta feita ali. T no arporque ela no tem terra. T no ar. Porque a terra no tem escritura.

    Pesquisador:Mas Jungam tem terra, n? O pessoal de Jungam tem terra?Mariano:Os 96 donos tem.

    .Essas normas estabelecidas pela comunidade refletem laos solidrios e foram

    feitas sobre uma base fsica comum, que um territrio inalienvel e chamado de terra

    comum. Esse sistema de uso comum da terra foram fundamentais para fortalecer uma coeso

    social na comunidade a ponto de garantir o acesso terra frente a grupos mais poderosos. E a

    estabilidade territorial alcanada por esses grupos perpassa por um conjunto de regras ao

    redor do uso comum dos recursos naturais. Segundo o autor, h um passado de solidariedade

    na comunidade que narrado de forma herica. Mas isso no determina que a gesto

    econmica na comunidade acontea de forma igualitria, mas sim com diferenciaes internas

    inclusive com hierarquias. H, portanto, desigualdade no acesso aos recursos bsicos nessas

    comunidades e, s vezes, grau de assimetria e de diferenciao interna muito forte.

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    Nas chamadas terras de uso comum, h reas de domnio comum entre as reas de

    cultivo individual de membros das famlias. Essas reas no pertencem a famlia alguma e so

    consideradas fundamentais para a unidade do grupo. Em Jungam, percebe-se essa situao

    claramente na fala de um de seus moradores, Mariano Falco de Sousa:

    Mariano: i, esse aqui. Vamo dizer que aqui Jungam. Este Jungam umapropriedade como se fosse a propriedade de um cidado que morreu,deixou 96 filhos. Bom. Essa terra foi aforado por esse lado aqui com tessa roda. Agora s que esses 96 filhos no dividiram no meio deles. Eracomum pra eles1.

    Pesquisador:E no tem mais nenhum vivo.Mariano:O derradeiro morreu ano atrasado.Pesquisador:Jos Maria!Mariano:Jos Maria morreu.

    Paul Little (2002) trabalha a territorialidade nos diversos grupos humanos

    formadores da diversidade fundiria no Brasil. Seu foco a questo da territorialidade e no

    propriamente os enfoques de campesinato, etnicidade e raa, que so presentes nesse tipo de

    estudo. A anlise de Paul Little busca mostrar semelhanas entre esses diversos grupos,

    ligando as diferenas a reivindicaes e lutas fundirias, na tentativa de descobrir possveis

    articulaes sociais e polticas no contexto jurdico brasileiro. Little (2002) define

    territorialidade como o esforo coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e seidentificar como uma parcela especfica de seu ambiente biofsico, convertendo-a assim como

    seu territrio ou homeland. (LITTLE, 2002, p. 3)

    O territrio deve ser entendido como conseqncia histrica de processos sociais

    e polticos de um grupo social ao mesmo tempo em que a territorialidade parte constituinte

    dos grupos humanos. Sua anlise exige uma abordagem histrica do contexto especfico a ser

    estudado, acrescentando-se a tudo isso uma abordagem etnogrfica. A relao entre a

    territorialidade e o grupo ultrapassa o fsico-material e para dar conta dela, Little (2002)

    sugere que utilizemos o conceito de cosmografia:

    Os saberes ambientais, ideologias e identidades coletivamente criados ehistoricamente situados em que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seuterritrio. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vnculosafetivos que mantm com seu territrio especfico, a histria da sua ocupaoguardada na memria coletiva, o uso social que d ao territrio e as formas de defesadele. (LITTLE, 2002, p. 4)

    1Nesse momento, o morador Mariano faz um crculo com a ponta de uma faca, numa rea de areia em frente sua residncia. Esse crculo representaria a terra de Jungam.

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    No Brasil, os processos de expanso de fronteiras esto muito relacionados s

    transformaes territoriais. A expanso de um grupo social, por exemplo, entra em conflito

    com os diversos grupos no territrio brasileiro. As formas de defesa do territrio acabam por

    tornar-se um aspecto unificador ajudando, portanto, a caracterizar o processo de

    territorializao. Essa defesa do territrio, essa proteo diante de presso externa provocada

    por outros grupos ou mesmo pela sociedade englobante ajudou a moldar as formas territoriais.

    Essa moldura foi feita ou pela resistncia, resposta mais comum a tais presses, ou por

    processos de acomodao, apropriao ou consentimento.

    Para Little,Esses mltiplos, longos e complexos processos resultaram na criao de territriodos distintos grupos sociais e mostram como a constituio e a resistncia culturalde um grupo social so dois lados de um mesmo processo. Alm do mais, oterritrio de um grupo social determinado, incluindo as condutas territoriais que assustentam, pode mudar ao longo do tempo dependendo das foras histricas queexercem presso sobre ele. (LITTLE, 2002, p. 5)

    A sobrevivncia territorial de vrios desses grupos dependeu de estratgias de

    invisibilidade social e da distncia dos grandes centros econmicos. Essa estratgia da

    invisibilidade foi utilizada em meio formao da territorialidade brasileira que acabou por

    firmar a hegemonia estatal. Embora essa hegemonia no seja homognea, as demaisterritorialidades no Brasil, em regra, tiveram que confrontar esse modelo de territorialidade

    estabelecido pelo Estado. A opo por uma postura de invisibilidade pela comunidade de

    Jungam compartilhou da especificidade caracterstica de outros grupos etnicamente

    diferenciados no Piau que, apesar de possurem diversos marcadores caractersticos de

    grupos culturalmente diferenciados, preferem no reivindicar uma identidade especfica e sim

    uma marcao estabelecida atravs de uma clivagem entre os que tem e os que no tem acesso

    formal terra e eu se agrupam sob o termo geral de a pobreza. (WADDINGTON, 2008)

    Os povos tradicionais do Brasil possuem uma forma de propriedade que agrega

    elementos presentes nas chamadas terras coletivas e elementos de terras privadas,

    incorporando bens particulares pertencentes a grupos especficos, ao mesmo tempo bens

    coletivos. Ocorre, porm, que esses territrios caracterizam-se a partir de regras estabelecidas

    de forma consuetudinria e que na maioria das vezes no so respeitadas ou mesmo

    reconhecidas pelo Estado brasileiro.

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    Para se entender o funcionamento de um territrio e para se compreender como os

    membros de um grupo utilizam suas regras para explorar e se apropriar de recursos da

    natureza fundamental observar-se a noo de propriedade presente em cada grupo.

    Nas sociedades indgenas, por exemplo, a influncia do meio geogrfico no vai

    determinar detalhadamente seus costumes (MELATTI, 1993, p. 59). A terra no

    propriedade individual, o acesso a ela coletivo e a terra e seus recursos pertencem

    comunidade. (RAMOS, 1986)

    Nas comunidades de seringueiros, enquadradas como grupos de populaesextrativistas, reconhecidas pelos produtos que extraem e vendem, os recursos naturais so

    explorados por famlias e o territrio dos seringais vai alm dos limites das propriedades.

    Nas populaes caiaras do litoral brasileiro, dos pantaneiros do Pantanal e de

    outras populaes tradicionais, as formas de apropriao de recursos naturais e de espaos

    seguem regras estabelecidas de forma consuetudinria e por relaes de reciprocidades sociais

    postas a partir das relaes de parentesco e do compadrio. (LITTLE, 2002)

    Os vnculos sociais e simblicos dos grupos diferenciados com o ambiente so

    aspectos importantes nos territrios sociais. A presena de lugares considerados sagrados, por

    exemplo, mostra como um espao pode denotar significado.

    Como afirma Little,

    Os territrios dos povos tradicionais se fundamentam em dcadas, em alguns casos,sculos de ocupao efetiva. A longa durao dessas ocupaes fornece um pesohistrico s suas reivindicaes territoriais. O fato de que seus territrios ficaram defora do regime formal de propriedade da Colnia, do Imprio e, at recentemente, daRepblica, no deslegitima suas reivindicaes, simplesmente as situa dentro deuma razo histrica e no instrumental, ao mesmo tempo em que mostra sua forahistrica e sua persistncia cultural. A expresso dessa territorialidade, ento, noreside na figura de leis ou ttulos, mas se mantm viva nos bastidores da memriacoletiva que incorpora dimenses simblicas e identitrias na relao do grupo comsua rea, o que d profundidade e consistncia temporal ao territrio. (LITTLE,2002, p. 11)

    Para se conhecer a territorialidade, a memria coletiva importante, uma vez que

    tenta descrever as migraes que ocorreram no passado. A memria coletiva tambm foi

    fundamental para a caracterizao de grupos sociais diferenciados que conseguiram direito ao

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    acesso terra a partir da memria da ancestralidade. Na caracterizao do territrio, o que se

    percebe que a memria to importante quanto documentos escritos.

    Joo Pacheco de Oliveira estuda a territorializao para entender fenmenos de

    tradies culturais diferenciadas e de ressurgimentos de identidades indgenas no nordeste

    brasileiro2. Para Joo Pacheco de Oliveira, a territorializao deve ser entendida como um

    processo:

    ...de reorganizao social que implica: i) a criao de uma nova unidadesociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade tnica diferenciadora;

    ii) a constituio de mecanismos polticos especializados; iii) a redefinio docontrole social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaborao da cultura e darelao com o passado. (OLIVEIRA, 1999, p. 20)

    Nesses estudos, o autor mostra as dificuldades polticas e tericas na abordagem

    dessa temtica. A dificuldade poltica est relacionada ao conjunto de instrumentos polticos e

    jurdicos que caracterizaram a incorporao dos grupos etnicamente diferenciados

    construo da nao brasileira, o que permitiu uma autonomia relativa e que criticada pelos

    movimentos sociais como prticas tutelares, principalmente em relao s sociedades

    indgenas. A dificuldade terica diz respeito a uma nova anlise das etnografias sobre o

    assunto, a uma nova postura se comparada com as etnografias amaznicas, adotando-se agorauma perspectiva processualista, que tem entre seus expoentes autores como Victor Turner

    (1972).

    Joo Pacheco de Oliveira afirma que o fenmeno tnico foi relativizado chegando

    a caracterizar-se como uma inveno de tradio, no sentido estabelecido por Hobsbawn e

    Ranger (1993). Joo Pacheco de Oliveira rene trabalhos que buscam considerar polticas

    governamentais e processos sociais amplos. Utiliza-se do procedimento etnogrfico,

    estudando o passado e a criao das unidades sociais atravs de descries densas,

    considerando ainda os aspectos religioso e ritual.

    Na investigao dos chamados ndios do Nordeste, Joo Pacheco de Oliveira

    (1999) mostra as diferenas de anlises em comparao com os ndios amaznicos. Para o

    autor, a etnologia indgena no nordeste mostrava-se menos atrativas se comparada com os

    estudos sobre as religies afro-descendentes, a arqueologia, o folclore. A partir de questes

    2A noo de territrio no algo novo na Antropologia. J em Morgan (1973) foi utilizada como critrio paradistinguir as formas de governo.

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    polticas que envolviam as terras e a assistncia aos indgenas que os ndios do Nordeste

    comearam a ser tratados com mais ateno pelas universidades. Interessante notar que os

    chamados ndios do Nordeste so assim tratados no por sua histria, instituies ou por

    suas relaes com o meio ambiente, mas pelo aspecto geogrfico e histrico.

    Como os ndios no Nordeste eram pobres e sem acesso terra, as questes

    fundirias e de assistncia social esto muito presentes. Se na Amaznia busca-se evitar a

    invaso das terras indgenas e proteger os recursos naturais, no Nordeste busca-se restabelecer

    os territrios indgenas, caracterizar as diferenas entre os ndios e os no-ndios.

    Oliveira (1999) modifica o foco na busca da relao entre a sociedade e o

    territrio, e ao invs de estudar culturas isoladamente, analisa processos identitrios em

    contextos especficos, buscando o conceito de processo de territorializao:

    [...] o movimento pelo qual um objeto poltico-administrativo nas colniasfrancesas seria a etnia, na Amrica espanhola as reducciones e resguardos, noBrasil as comunidades indgenas vem a se transformar em uma coletividadeorganizada, formulando uma identidade prpria, instituindo mecanismos de tomadade deciso e de representao, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive asque o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso) [...] Asafinidades culturais ou lingsticas , bem como os vnculos afetivos e histricosporventura existentes entre os membros dessa unidade poltico-administrativa

    (arbitrria ou circunstancial), sero retrabalhados pelos prprios sujeitos em umcontexto histrico determinado e contrastado com caractersticas atribudas aosmembros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganizaosociocultural de amplas propores. (OLIVEIRA, 1999, p. 21-22)

    Ainda para o mesmo autor, fundamental perceber-se o contexto intersocietrio

    em que os grupos tnicos se constituem de forma que se deve entender a incorporao das

    populaes etnicamente diferenciadas a um Estado se dando de forma territorial. Para ele,

    administrar uma nao significa conseguir gerir o territrio, definir limites e fronteiras.

    Oliveira (1999), portanto, insere no conceito de territorializao as noes de grupo tnico e

    suas fronteiras. Retomando o conceito de Fredrik Barth de grupo tnico, como um tipo

    organizacional em que uma sociedade se utilizava de diferenas culturais para fabricar e

    refabricar sua individualidade diante de outras com que estava em um processo de interao

    social permanente (OLIVEIRA, 1999, p. 20).

    Assim, o processo de territorializao deve ser entendido como a construo de

    uma identidade tnica individualizada em face de um conjunto genrico, e no como um

    movimento homogeneizador. atravs do territrio que se media a relao entre a pessoa e o

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    grupo tnico, de forma mediada por representaes que remetem recuperao da memria

    ou a sua construo.

    Para o autor, a presena da colnia inaugura uma nova relao entre a sociedade e

    o territrio. Joo Pacheco de Oliveira (1999) identifica alguns movimentos importantes no

    processo de territorializao dos grupos indgenas do Nordeste brasileiro. Houve um primeiro

    movimento com a atrao para os aldeamentos missionrios de famlias nativas de diferentes

    lnguas e culturas. Esse movimento ocorreu na segunda metade do sculo XVII e nas

    primeiras dcadas do sculo XVIII, estando ligado s misses religiosas. Outro importante

    movimento ocorreu no sculo XX, no incio dos anos de 1920 e est muito ligado a rgos

    indigenistas oficiais. Esse movimento cria condies de afirmao de uma cultura

    diferenciadora, de maneira que a populao tutelada vista de forma cultural e

    territorialmente demarcada.

    H ainda outro movimento na dcada de 1970 com o conhecimento pblico de

    reivindicaes dos povos indgenas que no eram reconhecidas pelo rgo indigenista e nem

    mesmo eram descritas na literatura etnolgica.

    Enquanto Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008) aplica esse processo, Joo

    Pacheco de Oliveira trabalha o processo de territorializao de grupos indgenas alm do

    discurso eminentemente geogrfico, desenvolvendo o conceito de territorialidade especfica

    atravs de processos de delimitaes fsicas das unidades sociais que definem os grupos

    etnicamente diferenciados. Essa territorialidade trabalhada por Almeida abrange outras

    formas extra-raciais e no indgenas de delimitao de terras de pertencimento coletivo que

    convergem para um territrio e que podem resultar de processos sociais de territorializao

    (ALMEIDA, 2008, p. 29). Funcionando como um fator de identificao, defesa e fora,

    mesmo em se tratando de apropriaes temporrias dos recursos naturais, por grupos sociais

    classificados muitas vezes como nmades e itinerantes (ALMEIDA, 2008, p. 29). Arelao grupo/territrio se apresenta como o fator de gnese tnico-identitrio que buscamos

    nesse trabalho.

    Oliveira (1999) refora como o processo de territorializao implica na

    reorganizao social. Na relao entre a sociedade e o territrio, analisa processos identitrios

    em contextos especficos, ao invs de estudar culturas isoladamente. Assim, para esse autor,

    essencial perceber o contexto intersocietrio em que os grupos tnicos se constituem.

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    J Paul Little (2002) retoma o estudo iniciado pelos dois autores citados acima e

    analisa a questo fundiria no Brasil nos ltimos 20 anos. A anlise de Paul Little busca

    mostrar semelhanas entre diversos grupos, ligando as diferenas a reivindicaes e lutas

    fundirias, na tentativa de descobrir articulaes sociais e polticas no contexto jurdico do

    pas. Estamos observando essa gnese tnico-identitria enquanto cerne do processo que

    engendra o sujeito constitucional de direitos no arcabouo da pluralidade como forma de

    esclarecer ambigidades atravs da concretude do caso etnogrfico.

    2.1 TERRITRIO: USO COMUM E CONFLITO

    Almeida (2008) faz um estudo aprofundado sobre as modalidades de uso comum

    da terra que so considerados aspectos esquecidos na estrutura agrria brasileira. Analisando

    especificamente as chamadas terras de preto, as terras de santo, as terras de ndio, as

    terras de herana e as terras soltas ou abertas, o autor mostra as caractersticas da chamada

    terra de uso comum, a mobilizao feita pelos camponeses e as tentativas de identificao

    dessas terras numa nova conjuntura poltica favorvel ao reconhecimento de direitos de

    trabalhadores rurais e de direitos ao acesso a terras. Almeida (2008) mostra que o grau de

    coeso e solidariedade dos camponeses nas chamadas terras de uso comum um forte motivo

    para a manuteno de seus domnios. A estabilidade territorial atrelada aos vnculos que esses

    camponeses constroem reflexa de uma rede de relaes estabelecida em situaes de

    conflito.

    A citao inicial pela qual o municpio se apresenta enquanto flutuando sobre a

    concretude de um territrio construdo atravs das relaes e organizao social flagrado no

    exemplo de Jungam, registrado por Costa (1985), que retrata bem essa idia de conflito, que

    o momento em que os moradores de Jungam se revoltam contra os agrimensores que

    vieram fazer a diviso do territrio segundo o usucapio a pedido de moradores. O morador

    Mariano Falco de Sousa relata esse perodo:

    Pesquisador: Tu lembra da confuso aqui, com os agrimensores?Mariano:Foi l no Retiro. Queriam dividir Jungam. A favor dessa diviso tinha 3

    pessoas aqui. Trs.... Ento a terra era justamente desses 96, e 3 levaram adiviso, pra dividir sem combinar com o restante. 96, tinha 3 a favor e 93no sabia. S vieram saber foi no dia de cortar o mato. Eles se armaram ae viajaram l pro Retiro. Uns duzentos homens tudo armado deespingarda. Eram 200 ou eram a mais. De noventa e pouco, uns levavam 3filhos, outros levavam 4. E a gente demais. Os nibus viajavam para oRetiro. Quando toparam com a estrada cheia, como daqui l no Jurandir.

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    A parou pro povo passar, tudo armado. A chegou em Teresina tudoassombrado. Nesse dia no morreu ningum, mas eles foram pra matar os3.

    Terras de uso comum seriam, portanto, reas em que o controle do acesso aos

    recursos bsicos no feito por um nico grupo ou por um membro da comunidade

    individualmente. O acesso feito por vrios grupos que compem uma unidade social a partir

    de normas construdas de forma consensual e que leva em considerao todo o histrico das

    relaes sociais presentes na comunidade. Na medida em que podemos revisitar a etnografia

    de Costa (1985) que registra como esse acesso se estabelece atravs do parentesco, tendo-se

    aqui uma oportunidade de demonstrar a forma como tais normas podem sofrer atualizaes

    em territrios reconhecidos e delimitados socialmente. Essas normas estabelecidas pela

    comunidade refletem laos solidrios e foram feitas sobre uma base fsica comum, que um

    territrio inalienvel e chamado de terra comum. Para Almeida (2008), h um passado de

    solidariedade na comunidade que narrado de forma herica. Mas isso no garante que a

    gesto econmica na comunidade acontea de forma igualitria, mas sim com diferenciaes

    internas inclusive com hierarquias. H, portanto, desigualdade no acesso aos recursos bsicos

    nessas comunidades, e, s vezes, grau de diferenciao interna muito forte. Em Jungam

    temos todo um sistema de normas de carter jurdico que coordena o acesso a terra com base

    nas caractersticas da comunidade. Essas normas foram criadas de forma consuetudinria,

    muitas num aparente conflito com as normas do Direito Estatal Brasileiro (como ser

    abordado posteriormente) e refletem lutas intensas estabelecidas entre os moradores de

    Jungam e fazendeiros vizinhos. Alis, em Jungam h, de forma bem definida, duas

    categorias de moradores: os verdadeiros donos do lugar e os que chegaram depois.

    Diferenciaes internas que refletem hierarquias no acesso a terra, caractersticas que esto

    presentes nos grupos estudados por Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008).

    Pesquisador:E aqui hoje, qual a famlia que tem mais terra?Mariano:-A famlia que tem mais terra ainda os Cordeiro aqui da Mariana. Os

    que tem mais. Porque ainda de eles ter muito por aqui, ainda tem aquelapropriedade do Jenipapo que ainda hoje deles.

    Pesquisador:E os Sousa?Mariano:Os Sousa tem um bocado, mas no tem mais muito no.Pesquisador:Os Cordeiro que so os mesmo De Deus, n.Mariano:.

    Nas chamadas terras de uso comum h reas de domnio comum entre as reas de

    cultivo individual de membros das famlias. Essas reas no pertencem a famlia alguma e so

    consideradas fundamentais para a unidade do grupo.

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    2.2 GRUPOS ETNICAMENTE DIFERENCIADOS: O EXEMPLO DO FUNDO DEPASTO

    Alm dos j citados ndios, caiaras, seringueiros, entre os grupos de populaes

    tradicionais que se destacam no Brasil, temos os Fundos de Pasto da Bahia. Alm do fato de

    se tratar de comunidades sertanejas, nos interessa destacar esse estudo pela sua recente

    identificao apesar do longo tempo de configurao dessas comunidades pastoris. Segundo

    os autores Luiz Antonio Ferraro Junior e Marcel Bursztyn (2008), os fundos de pasto

    reuniriam cerca de 20 mil famlias, num total de aproximadamente 100 mil pessoas. Os

    Fundos de Pasto tiveram a sua identidade construda a partir das dcadas de 1970 e 1980 nas

    comunidades que fazem o uso comunal das pastagens da caatinga.

    Ao estudar os Fundo de Pasto como inveno de tradio no sentido de

    Hobsbawn e Ranger (1993), os autores ressaltam a configurao de capital poltico enquanto

    estratgias importantes para a territorializao. Para Luiz Ferraro e Bursztyn (2008), para

    quem o territrio um lugar antropolgico de pertencimento, oposto ao no-lugar de M.

    Auge (1994), este no visto apenas como ambiente fsico, mas tambm como espao

    simblico. O processo de territorializao efetuado atravs de atividades cotidianas e a

    territorializao o resultado prtico e materializado de uma concepo de vida a concreo

    da espacialidade em lugares especficos, resultado da prtica de uma determinada concepo

    de vida, produo e interveno sobre o espao (FERRARO JUNIOR e BURSZTYN, 2008,

    p. 03)

    Aproximando-se da idia de territorialidade especfica de Almeida (2008), o

    territrio mostra as marcas das territorialidades prprias de cada grupo social, revelando

    relaes de poder e subordinao. Por isso, importante compreender a territorialidade

    tambm a partir da noo de capital poltico. Para os autores, Capital poltico a conjuno

    de fatores referidos a um determinado grupo, que lhe confere fora poltica, comoreconhecimento, respeitabilidade e apoio externos, de governos, instituies e partidos

    (FERRARO JUNIOR e BURSZTYN, 2008, p. 05)

    Na determinao da territorialidade fundamental a diferenciao entre os de

    dentro e os de fora, alm da definio dos limites de cada grupo, que muitas vezes

    determinado pela defesa do acesso e uso da terra, seja por fatores de identificao ou por

    questes histricas.

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    As populaes tradicionais em vrias situaes buscam uma identidade que

    facilite a conquista de seu territrio. Essa identidade muitas vezes formada atravs de adeso

    a prticas tradicionais e ao controle do territrio. No entanto, ao invs de se reportar

    unicamente ao passado histrico, tais identidades acionam diacrticos de acordo com as

    conjunturas que os tencionam de forma que tais tradies podem, inclusive, ser inventadas

    segundo o sentido de inveno de tradio estudado por Hobsbawn e Ranger (1993).

    O dilogo cada vez maior entre o Estado Brasileiro e as populaes tradicionais,

    principalmente a partir da Constituio Federal Brasileira de 1988, torna a identidade

    tradicional, cada vez mais relevante para a construo do capital poltico favorvel para a

    garantia de direitos territoriais e culturais. Sob esse prisma, Ferraro e Bursztyn (2008),

    identificam as seguintes caractersticas que as populaes tradicionais devem possuir3:

    a) ligao com territrios ancestrais;

    b) auto/hetero identificao;

    c) linguagem prpria;

    d) instituies sociais e polticas prprias e tradicionais;

    e) produo voltada, na maior parte, para a subsistncia.

    Para nossa pesquisa interessa ver como dentre essas caractersticas, o povo de

    Jungam possui todas, apesar de no apelar para a auto-hetero identificao como forma de

    acessar direitos estabelecidos na constituio a povos culturalmente diferenciados4. Apesar de

    haver, como descreveremos adiante, uma clara discriminao por parte da sociedade

    envolvente que caracteriza os moradores de Jungam como cabra de Jungam e

    reconheam sua fala diferente e lhes atribuam caractersticas de brabeza e taciturnidade,

    provavelmente diante da histria de opresso, as reivindicaes de diferenas tnicas ofendem

    aos mesmos.

    3 Segundo Ferraro Jnior e Bursztyn: Hoje, quando se fala dos FP [Fundos de Pasto] refere-se a um todorelacionado a um territrio (serto, caatinga), uma histria (dos currais), uma cultura (sertaneja), uma identidade,um padro de produo, um padro de relaes com o ambiente e de relaes sociais. Fundo de pasto tambma razo da mobilizao ou do movimento, pelo qual tivemos que lutar e nos organizar como movimento dosfundos de pasto. Fundo de pasto como identidade associada base fsica, ns somos de fundo de pasto e comoidentidade cultural, fundo de pasto: nosso jeito de viver no serto (lema da articulao estadual dos fundos depasto). Em 2008 fundo de pasto designa um modo de vida e um movimento social com crescente capitalpoltico. (FERRARO JUNIOR e BURSZTYN, 2008, p. 10)

    4 o que remete ao j mencionado questionamento de Waddington (2008) a respeito de uma possvelespecificidade da sociedade local, que no favoreceria estratgia de acionamento de tais identidades emdetrimento de outras estratgias de insero em polticas pblicas.

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    Outro aspecto importante que ressaltamos no trabalho de Ferraro e Burstyn a

    lembrana de como a defesa do territrio um momento importante para o acionamento da

    identidade dos Fundos de Pasto, pois o incio do processo de formao da identidade da

    comunidade a partir de um objetivo maior que exigiu a unio de aes e esforos frente a

    grileiros de terra e a leis municipais que exigiam o cercamento do territrio. Esse conflito

    exigiu uma articulao e unio das comunidades para enfrentar as aes que colocavam em

    risco o seu territrio.

    A partir desse momento, os Fundos de Pasto intensificaram a sua diversidade

    social, ambiental, cultural e econmica. Se no incio, eram formados principalmente por

    vaqueiros e agregados, atualmente houve uma expanso dos Fundos de Pasto, formada por

    terra de herdeiro, terras patrimoniais, outros assentamentos e terras de ndio. Se no incio dos

    Fundos de Pasto eram formados por criadores de animais soltos na caatinga, hoje outras

    categorias os constituem, como as Atingidos pela Barragem, os Quilombolas, os Ribeirinhos e

    os Geraizeiros.

    2.3 ORIGEM E FORMAO DE JUNGAM

    A atividade econmica pastoril, a criao de gado o marco inicial da formao

    do Piau. Essa atividade, sempre exigente de grandes reas de pastoreio, ensejou uma

    constante luta entre colonizadores e ndios pela posse da terra. Segundo Jos Incio da Costa

    (1985), a necessidade sempre crescente dos criadores por reas de pastagens to necessrias

    criao extensiva de gado alimentou um constante conflito de grande violncia entre brancos

    e ndios. As populaes indgenas quase sempre foram a parte inferiorizada nesses embates.

    Alguns grupos indgenas que fugiram desses embates formaram comunidades de resistentes

    refugiadas em reas isoladas e sobreviveram por muito tempo aos ataques de colonizadores,

    bandeirantes e vaqueiros. Algumas dessas comunidades transformaram em povoados que

    ainda hoje existem no interior do Piau. Muitas dessas comunidades no guardam maisqualquer vestgio de sua antiga condio. Acreditamos que Jungam seja o resultado do

    desenvolvimento de alguma dessas comunidades.

    As pesquisas sobre a histria do Piau no que diz respeito sua formao,

    especialmente sobre as relaes entre colonizadores e nativos enfrentam insuperveis

    limitaes relativamente a fontes de informao. Essas fontes so geralmente constitudas por

    narrativas de cronistas e viajantes, ou escritos oficiais que so, em geral, inconsistentes na

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    descrio, na interpretao e na crtica dos fatos histricos. No h, por exemplo, preciso nas

    referncias s relaes entre brancos e ndios no perodo inicial da colonizao. Os

    documentos analisados por consagrados pesquisadores da histria do Piau como Odilon

    Nunes (1975), por exemplo, indicam a existncia de muitos conflitos entre brancos e ndios.

    Esses conflitos so desde pequenas escaramuas em assaltos de ndios aos currais de gado e a

    imediata reao de fazendeiros e vaqueiros, at embates de grandes propores como que se

    denominou de guerra total entre o Estado do Brasil e as naes dos Gentios, como consta

    em alguns documentos (NUNES, 1975; COSTA, 1985). As referncias documentais aos

    ndios so quase sempre secundrias, em segundo plano, pois o motivo principal consagrar e

    valorizar a conquista das terras do Piau pelos exploradores, por bandeirantes e vaqueiros.

    Obras de Histria, de carter mais cientfico do que as obras de cronistas e viajantes, que

    tratam da formao do Piau, tm como foco da abordagem a histria do Nordeste, ou do

    Brasil, de tal forma que, tambm nessas obras, a informaes sobre os indgenas so escassas

    e pouco exploradas. Alm de muito genricas, tais informaes no tratam diretamente de

    questes indgenas.

    As terras que constituem atualmente o territrio do Piau foram ocupadas mediante

    a instalao de fazendas para a criao de gado bovino. Essa ocupao provocou uma

    prolongada luta entre brancos e ndios na regio. O resultado desses conflitos foi quase o

    extermnio dos grupos indgenas que dependiam dessas terras para sua sobrevivncia. No

    confronto com os brancos os indgenas ou eram derrotados ou fugiam para o Maranho e

    Gois (mais especificamente para regies do atual estado do Tocantins). Ao serem derrotados,

    eram escravizados; fugindo, apenas adiavam a escravizao ou o extermnio puro e simples,

    pois a simples existncia dos ndios era uma barreira aos interesses dos exploradores brancos

    relativamente criao de gado. Mas, a despeito da sangrenta e implacvel perseguio,

    alguns grupos sobreviveram em reas de refgio, constitudas por terras de pouco ou nenhum

    interesse para os exploradores. Esta era uma terceira alternativa para os ndios. De fato, alm

    das alternativas de resistirem e serem dizimados completamente, de fugirem para outras terras

    e apenas adiarem o total aniquilamento, acrescentava-se a possibilidade de refgio de

    pequenos grupos em reas em meio s fazendas de gado sem incomodar os criadores e sem

    serem com eles incomodados. Como j foi dito, h indcios de que Jungam tenha se

    originado a partir de um desses grupos. Estudos de Costa (1989) apontam traos lingsticos

    amerndios na fala de membros da comunidade de Jungam, fato que refora a suspeita de que

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    Jungam o resultado do desenvolvimento de alguma dessas comunidades formadas por

    indgenas.

    A criao do arraial significou outra forma no s de ocupao, mas j,

    tambm, de povoamento do Piau. O arraial era uma espcie de posto avanado da conquista e

    da colonizao. Era tambm um posto militar de apoio ao domnio do territrio, de

    consolidao desse domnio e pondo de partida para a conquista de novas terras e de combate

    aos ndios. Nos arraiais eram mantidos os ndios aprisionados nas entradas, de onde eram

    remetidos a centros populacionais ou de atividade econmica maiores para serem vendidos

    como escravos. Tambm ali eram mantidos ndios aliados dos brancos e que eram utilizados

    em campanha militares contra outros ndios. Depois de consolidada a conquista numa dada

    regio, os arraiais transformavam-se em ncleo de povoao, predominantemente, de ndios

    ou descendentes. Posteriormente transformavam-se em vilas e cidades. No Piau, so

    exemplos dessa evoluo do arraial [...] a cidade de Regenerao (Arraial de So Gonalo do

    Amarante, aldeamento de ndios Guegu, Acoro, e eventualmente de Jaic e Gamela), Jaics

    (Misso e Arraial do Cajueiro, aldeamento de ndios Jaic), Aroazes (Misso de Nossa

    Senhora da Conceio dos Aros, aldeamento de ndios Aro). (COSTA, 1985, p. 38).

    Embora menos intensa, outra forma de povoamento era feita atravs de agregados.Principalmente nos sculos XVII e XVIII, indivduos e inclusive comunidades inteiras

    agregavam-se s fazendas de gado fixavam-se nas terras pertencentes a um determinado

    fazendeiro e eram tolerados. Em troca serviam como fora auxiliar na conquista de novas

    reas e na consolidao de reas j ocupadas. Eram pessoas de todo tipo, fugitivos da justia,

    escravos fugidos, ndios fugidos dos arraiais, homens livres em busca de refgio e proteo.

    Embora em uma escala menor, houve tambm a formao do que poderamos chamar de

    quilombos indgenas. Eram pequenos aglomerados constitudos por indgenas de variadas

    etnias que foram tolerados pelos fazendeiros devido resistncia que ofereceram. A maioria

    desses quilombos, porm, extinguiu-se que por pura e simples dissoluo ou atravs daintegrao de seus membros a povoaes sertanejas vizinhas. Outros, ainda, formaram

    ncleos isolados, mantendo relaes espordicas com o mundo exterior e desses alguns

    sobrevivem at os dias de hoje, mas com muito poucas caractersticas originais.

    No caso de Jungam que, como j dissemos, h fortes indcios de que se trata de

    um desses tipos de formao original da ocupao e povoamento do Piau, destacam-se,

    segundo Costa, trs caractersticas culturais: [...] um substrato indgena, elementos da cultura

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    ocidental tradicional, e elementos da cultura ocidental moderna. (COSTA, 1985, p. 38)

    Dentre os elementos que se supe possuir substrato cultural indgena est a fala. Segundo

    Costa (1979) a fala dos membros da comunidade de Jungam possui inmeros aspectos

    sociolingsticos especficos evidenciados atravs de caractersticas fonticas e fonolgicas

    especficas em relao variedade do portugus falado no Brasil e na regio. Muitas dessas

    caractersticas especficas so consideradas por Costa constitutivas de um substrato de uma

    lngua original, pr-colombiana (COSTA, 1979)

    Ser indgena ou ser descendente de ndios confere a um indivduo uma condio

    social e histrica que o torna vtima de preconceito e discriminao. Tal condio

    justificadora de diversas formas de opresso e incentivadora da manuteno de relaes de

    subordinao ante indivduos tidos como no ndios ou no descendentes de indgenas.

    Afirmar que um indivduo membro de algum desses tipos de grupos surgidos a partir daquelas

    povoaes iniciais da formao do Piau ndio ou descendente de indgenas considerada

    uma ofensa grave. Constitui uma acusao da qual, pelo menos em Jungam, todos se

    esforam para escapar. A acusao de serem ndios ou terem sido ndios os seus antepassados

    repudiada de forma veemente por membros desses grupos. Tal atitude indica ainda hoje o

    medo de ser ou ter sido ndio, evidenciando que o conflito histrico entre ndios e os brancos

    no Piau deixou seqelas profundas e duradouras na memria e na conscincia dessas

    populaes.

    2.3.1A Formao de Jungam

    Duas formas que se completam, em certa medida, podem reconstruir a formao

    de Jungam: atravs da memria coletiva (tradio oral) e atravs de fontes documentais e

    bibliogrficas (que complementam e s vezes comprovam a tradio oral).

    Segundo a tradio oral constituda de narrativas de moradores de Jungam edas regies vizinhas que do conta de fatos sem interpretaes acuradas e sem uma

    comprovao rigorosa de sua ocorrncia por outras fontes. As fontes documentais e

    bibliogrficas, apesar de no fazerem referncias diretas e especficas histria de Jungam,

    comprovam a existncia de personagens e a ocorrncia de eventos importantes na formao

    histrica da comunidade, bastante citados e narrados pela tradio oral. A tradio oral

    constituda de narrativas tanto de moradores de Jungam quanto de moradores da regio

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    circunvizinha; habitantes que tm uma histria de relaes sociais com Jungam ora

    amistosas, ora conflituosa. Os moradores da cidade vizinha de Matagal do Piau so os que

    possuem a maior quantidade de relatos acerca da histria e da formao de Jungam. E so

    desses vizinhos a maior quantidade de relatos que atribuem a Jungam uma origem indgena.

    Chegam inclusive a citar possveis denominaes tnicas como ndios Canelas ou ndios

    Cochos

    Segundo alguns depoimentos de moradores mais velhos de Jungam, eles seriam

    descendentes de ndios Gamela que habitavam a regio da atual cidade de Regenerao,

    antigo Arraial de So Gonalo do Amarante, que teriam se mudado para o territrio. Tais

    depoimentos do conta ainda de que por muito tempo ningum os incomodou, mas que depois

    de algum tempo foram ameaados de invaso por estrangeiros. Diante das ameaas de invaso

    tiveram que lutar para manter suas terras. Segundo afirmam, os antigos j habitavam h

    muito tempo aquela rea e que tiveram que defend-la contra aqueles que queriam tom-la.

    Essa defesa teria gerado muitas lutas e algumas delas sangrentas. Por fim, em 1933, um

    requerimento de usucapio garantiu a posse da terra para 96 moradores, cabendo a cada um

    uma rea de 53 hectares. S que no acharam necessrio dividir a terra, pois a terra era de

    todos, era de todos e de nenhum, como dizem.

    Muitos depoimentos dos prprios moradores de Jungam referem-se a uma

    possvel origem indgena do grupo. usual, ao se referirem a essa suposta origem indgena,

    tratar os seus ancestrais como aqueles que vieram do serto (COSTA, 1985). Os que vieram

    do serto teriam ocupado uma sobra de terra encravada entre duas grandes fazendas: a

    Fazenda Matagal e a Fazenda Gado Bravo. Sobra de terra uma referncia a uma rea

    irregular no includa na demarcao de uma grande rea. No entanto, alguns depoimentos

    tanto de moradores de Jungam quanto de moradores das regies vizinhas do conta de que a

    demarcao no ocorreu porque os moradores de Jungam no permitiram, pois haviam se

    apossado dessa rea como sua. Depoimentos de moradores de Jungam, por seu turno,asseguram que a referida rea foi trocada por outra situada na localidade Santo Antero (hoje

    pertencente ao municpio de gua Branca|). Essas terras do atual territrio de Jungam

    pertenceriam a uma mulher para quem o dono das terras da localidade Santo Antonio

    trabalhava como vaqueiro.

    Esse relato est includo nos relatos da tradio oral de Jungam, como cita Jos

    Incio da Costa:

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    A narrativa lendria afirma que o atual territrio de Jungam era uma sobra de terrainsuficiente para construir uma fazenda. Luiz Falco, um vaqueiro da proprietriadessa rea, possuidor de uma pequena fazenda no lugar Santo Antero, props econseguiu a troca entre as duas reas. Feito isto mudou-se para Jungam com suafamlia. Pouco tempo depois, chegaram outras pessoas que ali se instalaram porbenevolncia sua e terminaram ficando como proprietrios. (COSTA, 1985, p. 87).

    No existem muitas fontes muitas fontes bibliogrficas que tratem diretamente do

    Canto. Excetuando-se um livro de Alencastre (1987) em que Jungam citada algumas vezes,

    no pudemos encontrar nenhuma outra obra de Histria que fizesse referncia. O documento

    oficial mais antigo a que tivemos acesso um documento de compra e venda, de 1905,

    referente rea onde estava situada a capela de Jungam. Em outro documento, de 1935, essamesma rea de terra doada Mitra Diocesana do Piau. Mas o documento que se considera

    mais importante para a histria de Jungam o requerimento de usucapio. Esse documento

    foi apresentado e assinado na Comarca de Arraial com 97 requerente em 11 de outubro de

    1933. Este documento contm os nomes de 97 pessoas, presumivelmente adultas, ocupantes e

    residentes naquelas terras e que pretendiam provar que possuam [...] h mais de 30 anos,

    sem interrupo nem oposio de ningum, mansa e pacificamente como suas as terras

    denominadas Jungam, conforme est consignado. Nesse documento tambm feita uma

    localizao fsica das terras, indicando suas caractersticas e limites. Conforme o

    requerimento, as terras reclamadas por seus ocupantes constituam uma rea medindoaproximadamente duas lguas de comprimento por meia lgua de largura, o que corresponde

    a uma rea de aproximada de seis mil hectares. O objetivo do documento declarar o domnio

    das terras aos requerentes, para que a sentena declaratria desse domnio seja utilizada como

    ttulo para a transcrio do registro de imveis. O requerimento de usucapio foi considerado

    procedente pelo juiz da comarca de Arraial que ordenou a expedio do respectivo ttulo de

    propriedade. Entretanto, mesmo com a existncia desse documento que garantia a posse

    daquela terra aos 97 requerentes, ela nunca foi registrada no Cartrio do Registro de Imveis.

    Os moradores de Jungam continuaram ocupando e usando aquela terra do mesmo modo

    como sempre o fizeram, qual seja, com uma posse coletiva e um uso individual, sem

    reparties ou divises internas para esse efeito de posse.

    As terras que constituem hoje o territrio de Jungam no foram ocupadas da

    mesma forma ou conforme um padro das ocupaes de terras ocorridas no Piau. A ocupao

    no foi obra de um indivduo, de um desbravador, ou de uma famlia de pioneiros. Nesses

    moldes, geralmente havia a expulso de antigos ocupantes, ou eram tolerados como

    agregados. Aps esse tipo de ocupao, uma fazenda era formada, uma vila era criada e se

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    transformava em cidade. De acordo com um dos relatos orais de Jungam, essa terra de

    Jungam teria sido ocupada inicialmente por uma famlia. No se sabe ao certo se uma famlia

    nuclear ou uma famlia extensa. Outras famlias se juntaram a essa primeira e formaram uma

    comunidade. Alguns relatos afirmam que eram famlias de indgenas e que aos poucos se

    formou uma comunidade de ndios com a participao de famlias indgenas. Outras famlias

    que tambm passaram a ocupar a terra aps o grupo inicial ter se formado como uma

    comunidade no eram s de indgenas mas tambm de outras origens tnicas. Essas novas

    famlias eram de origem branca e negra. Os relatos destacam, entretanto, uma semelhana

    cultural muito estreita entre os ocupantes iniciais que era inclusive o fator determinante de sua

    aceitao.

    No perodo da ocupao inicial, a quantidade de terra era considerada grande para

    o tamanh