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Vida e Simulacro: kafkianismo e Disgrace de J.M. Coetzee1
Lawrence Flores Pereira
UFSM
John Maxwell Coetzee possui um incomum percurso que, em muitos sentidos, faz
caminho contrário ao de muitos autores que até os anos setenta se ausentaram do
realismo ou o naturalismo em favor de um minimalismo alegórico ou simbólico. É
curioso ver, porém, como as condições de partida de Coetzee prometiam, no início de
sua carreira, bem mais que uma obra de teor simbólico, enraizada na tradição do
estranho geográfico ocidental. Waiting for the Barbarians, com sua ambientação nas
fraldas de um Império decadente, nas vizinhanças de povos bárbaros, é uma alusão a
uma linhagem de obras de pensadores-escritores do passado: A Revolta dos Tártaros,
de Thomas De Quincey, O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzatti, mas ainda outros
autores que fundiram indelevelmente os sinistros fantasmas de declínio ocidental com
“relativos objetivos” bem concretos em estepes abertas e outros cenários. Nas
entrelinhas da obra, em seu ritmo, em suas vastas estepes, ouve-se também a
influência marcante da célebre tradução do Lamento do Guardião de Fronteira de Ezra
Pound, com sua cadência, seu terror diante das vastidões ameaçadoras. Como não
poderia deixar de ser percebe-se, ao fundo, sugestões eliotianas, terras devastadas.
O fundo sinistro-geográfico é ainda profundamente influenciado por Kafka, sentindo-se
em sua atmosfera a opressiva dúvida e pasmo onipresente em obras como O Castelo
e O Processo. É uma história ambientada num não-lugar ou ainda num entre-lugar
entre civilização e barbárie, lugar fronteiriço onde as identidades dissolvem-se pela
constante locomoção ou pelo simples contato problemático com a barbárie – civilizada
e “primitiva”. Percebe-se com freqüência, por trás das alusões e sujeitos, contudo, o
esqueleto da intenção de Coetzee de apresentar uma espécie de alegoria complexa
destes entrepostos distantes do mundo ocidental, tal como a África do Sul. Apesar de
1 Texto originalmente publicado em VIEIRA, André Soares; VIANNA, Vera Lucia;
MONTEMEZZO, Luciana (orgs.) Mediações do fazer literário: texto, cultura e sociedade. Santa Maria: PPGL Editores, 2009.
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toda a artesania infalível deste livro profundo, seu efeito se deve em grande parte à
desambientação a que é submetido o meio – um recurso tipicamente kafkiano –, o
qual, em lugar de captar um lugar específico, vitalizado pela experiência direta, sugere
simbolicamente os universos imaginários, correndo o risco a todo o instante de os
transformar em alegorias chatas, planas. Mesmo seus personagens são submetidos a
um esfriamento que os torna estranhos – bárbaros –, entes de outro mundo,
personagens cuja reflexão não incorpora o conjunto de discursos e percepções vivas,
no instante de sua produção. Em outras palavras, Waiting for the Barbarians apresenta
personagens “suspensos” num mundo que, mesmo com objetos, paisagens, cidades,
é a um tempo alegórico e uma abstração: falta-lhes a substância que Coetzee adotaria
mais tarde.
Coetzee desenvolve assim um dos temas mais curiosos de sua obra: a desintegração
de um sujeito que pertence ao establishment deste mundo fora-do-lugar: uma África
do Sul imaginada em termos simbólicos ou a própria condição contemporânea?
Coetzee e Kafka
Coetzee vai se distanciar gradativamente da forma algo metafórica deste romance de
aparência algo kafkiana, embora não da produção de uma situação de profunda
angústia associada ao temor diante de uma acusação infundada ou ainda absurda.
Em Kafka o poder do estado vinha associado à lei e à ação paterna esmagadora e
enigmaticamente impenetrável, o que, de um ponto de vista simbólico, carregava de
roldão todo o circuito imaginário da burocracia (das instituições) e das (pseudo)leis
cujas motivações ou fogem a qualquer lógica ou ainda são estranhamente
inescrutáveis em suas razões, deixando o sujeito em eterno débito. Na obra de Kafka
a sutil intrusão de uma nebulosa alegórica que desnaturaliza o espaço, o tempo e os
personagens, colocando-os num além-mundo-efetivo que nunca deixa, é verdade, de
aludir ao nosso, permitiu vislumbrar, com clareza, o enlace na sociedade moderna
entre fantasma (psíquico) e aparelhamento sutil do Estado e da Sociedade, revelando
o que era menos fácil de revelar por meio somente de procedimentos “naturalistas”.
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A grotesca e assustadora descrição do oficial de sua máquina de lembrar e matar, em
Colônia Penal, apresenta sensoriamente – e não através de uma observação de fora,
analítica, e portanto deficiente– a fetichização do objeto: no caso um objeto de tortura
e de morte. As tecnologias aparecem intermediando a relação entre o algoz e o
supliciado, ao passo que o próprio supliciado é um pobre parvo que entra na máquina
com a mesma indiferença que cometeu a sua singela e nada grave infração. Kafka
explora assim as zonas limítrofes, os interstícios entre as infrações (modestas) e as
punições que já não existem na sua forma antiga: mas já são o molde fundido da
necessidade de conservar a punição e de desvincular o agente punitivo do ato
violento, acrescentando a isto o fetiche tecnológico, o encanto-fetiche com o objeto
que ali está apenas para ser testado em sua eficácia.
A precessão da atmosfera de absurda violência e de nonsense alegórico proporcionou
o delineamento mais claro de um fantasma que já se encontrava em certa medida
instaurado nas sociedades burocratizadas da primeira metade do século XX, e o gênio
de Kafka foi ter sublinhado simbolicamente o fenômeno por meio de uma constante
apresentação de ambientes indefinidos histórica e espacialmente, mergulhados em
estranha atmosfera de angústia.
Entretanto, a imagem kafkiana grosso modo possui a astúcia de ser capaz de
apresentar uma figuração que torna distinto aquilo que na realidade raramente é
discernível pela imediata percepção, aquilo que na “nossa realidade” se tornou tão
onipresente e sistêmico que não se deixa vislumbrar em seu caráter anômalo. Este
inferno kafkiano, em sua invisibilidade sistêmica, constitui, em parte, uma visionária
visão da emergência daquilo que Baudrillard definiu como simulacro. Baudrillard
ofereceu um retrato de um mundo que perdeu o contato com a efetividade do real e
passou a viver sob o domínio do simulacro e do assim chamado hiper-espaço – o
espaço que é o espaço aberto, virtualmente construído, inconsciente do mundo
contemporâneo. Neste acontecimento, que Baudrillard considera irreversível,
semelhante a uma engrenagem que se autoprocria, tudo o que resta é um modelo
matricial de pura combinatória: “Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o
outro, que constituía o encanto da abstração” (BAUDRILLARD, 1991, p. 8), a própria
repetição compulsiva da reaparição da imagem-simulacro provém do mesmo substrato
que levou Kafka a apresentar situações absurdas e estranhamente familiares.
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Baudrillard evocou, no mesmo ensaio, a fábula borgeana dos “cartógrafos do império”
que “desenham um mapa tão detalhado que acaba por cobrir exatamente o território”
(BAUDRILLARD, 1991, p.7). Ou seja, a abstração cartográfica perde em parte o seu
sentido de “súmula” e passa ser uma perfeita imitação do território que ela refere. No
entanto, o “hiper-real” é algo ainda mais grave do que isso, ele é a invenção de uma
realidade que está acima do real e que, mais do que isso, destitui o real de sua
efetividade majoritária e até mesmo, em última instância, promulga Baudrillard, o
abole. O mapa já não existe, assim como a país de que ele era a cópia extensiva
igual. Um dos sinais do hiper-real – se podemos aqui falar de real – é justamente a
impossibilidade de apontar uma realidade concreta anterior: ele possui existência
autônoma. Mais do que isso “o real nunca mais terá oportunidade de se produzir”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 8).
Resta a pergunta, contudo, que os que crêem na literatura crítica se colocam sempre
que retomam a leitura de Baudrillard: se a hiper-realidade possui a adição de se auto-
referir circularmente, onde ficaria a literatura exploratória neste contexto? Estaria
inclusa nesta visão pessimista de Baudrillard que abraçou não apenas o mundo da
mídia e da vida atuais, mas também o universo da “arte"? Serviria a um discurso
apocalíptico como mais um exemplo cabal da vitória e da irremediável ascensão de
uma nova ordem sígnica circular e tautológica cuja existência é impossível de
ponderar? Sem dúvida o fenômeno da “media fria (cool)” – da televisão, mas também
de boa parte do cinema – que seria, segundo Baudrillard, efeito e causa de si mesmos
e das próprias produções, criando um delírio do mesmo, permeou profundamente a
literatura cuja vitalidade dependia da evocação da imagem pela palavra. Porém, o que
dizer da literatura que renunciou à imagem e se concentrou aferradamente sobre uma
consciência que não apenas está ciente do simulacro, como busca sobreviver no
interior de sua lógica maligna?
O “sinistro social” com suas atmosferas de controle social – e total–, apresentadas de
modo metafórico ou alegórico, assimilou nos anos noventa a lição kafkiana– e
baudrillardiana. Filmes como Matrix, Vanila Sky (diluições óbvias) e tantos outros
revelam essa assimilação do arcabouço – da carcaça – desse tipo de representação
que, num certo momento, pôde ser feita e refeita na forma de módulos
intercambiáveis. Em grande parte este gênero provém de uma diluição, de uma
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simplificação do problema colocado tanto por Kafka como por Baudrillard. A
organicidade do problema escapa a boa parte destes filmes, pois eles próprios criam,
com suas atmosferas, um universo “cool”, que mesmo temível, é de algum modo
admirado. Aqui, gostaria de lembrar que essa organicidade viva estava presente na
obra de Kafka. Num pequeno trecho de seus diários, Musil, em cuja obra raramente o
estranho tem lugar, sublinhou a atenção aguda de Kafka para o pensamento ingênuo,
não-afetado, que vaga segundo a singeleza da infância, lançando sobre o mundo
exterior as suas centenas de pequenas perguntas sem respostas numa tessitura
complexa e encantadora. A prontidão e a perseverança em resgatar o olhar infantil
nada tinham de uma atitude melancólica nostálgico-regressiva, mas eram um antídoto
contra a intrusão dos recortes sistemáticos do pensamento abstrato e da própria
realidade que já em sua época incorporava esta sistêmica do olhar (excessivamente)
abstrato sobre a realidade2.
É importante pousar o olhar sobre a apreensão de Musil, pois a tendência a estabilizar
um sentido para a obra de Kafka e inseri-la no contexto do inquietante moderno tornou
sua substância sensível invisível para nós – fixamo-nos na estrutura simbólica,
denunciadora do autoritarismo, enquanto o que produz a riqueza dessa denúncia é o
seu vasculhar fundo em nossas emoções e percepções – éticas e poéticas – da
realidade. No Kafka de Musil – e no nosso – ainda vive, mesmo espremido, buscando
abrigo, a substancialidade orgânica do humano, da delicadeza moral, a propensão
para bondade (tomo os termos do próprio Musil). Surgem no fundo de suas obras mais
terríveis, como uma espécie de negativo à reificação, à contínua estranheza – o olhar
da infância, sua evocação como princípio de observação, como um instrumento de
correção da observação do mundo.
A proeza de Kafka estava fadada, contudo, a ser imitada, de modo pobre talvez, mas
esta re-utilização ad nauseam levou à miopia sobre como de fato o simulacro e talvez
o próprio esfriamento e o desengajamento interior do sujeito se dá no mundo. O
sinistro ambiente geográfico de Coetzee possui bem mais riqueza do que qualquer um
destes filmes – não são nem mesmo comparáveis. Porém, foi a percepção do
desgaste deste tipo de apresentação que o levou talvez a se fixar com olhos vivos
2 Refiro-me ao texto “Franz Kafka” único que Robert Musil escreveu sobre Kafka. (MUSIL,
1984, p. 437-9.
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sobre os detalhes que envolvem este novo estar no mundo pós-moderno. Nossa idéia,
entretanto, é que, ao renunciar a uma forma simbólica de escrever e abraçar a
tradição realista, Coetzee renovou a inquietante estranheza do nosso admirável
mundo novo.
Disgrace
Disgrace (Desonra), publicado em 1999, foi celebrado nos últimos anos como um dos
livros mais luminosos das últimas décadas escrito em inglês. É a história de um
professor universitário sul-africano, David Lurie, que cai em “desgraça” (ou “desonra”,
e aqui começam os problemas de tradução), perdendo renome, prestígio, assim como
seu trabalho, depois de ver revelado seu envolvimento (Sedução? Assédio?) com uma
aluna. Após um procedimento de consultoria constituído por membros do corpo
docente e discente universitário, ele finalmente perde seus direitos de professor. Após
este episódio, decide visitar sua filha na fazenda onde vive, como única remanescente
de um grupo de amigos “alternativos”, e onde ela insiste em ficar, contra as
expectativas de seu pai e em conflito talvez com sua própria criação dentro de uma
família intelectualizada. A chegada dele à fazenda, embora suscite a idéia regressiva
de um retorno bucólico depois do desastre (David Lurie é um estudioso do poeta
inglês Wordsworth), prova ser ominosa para ele: a fazenda, retirada nos ermos sul-
africanos, é invadida por bandidos de estrada que o aprisionam no banheiro por horas.
Enquanto está aprisionado, ele é incapaz de proteger a própria filha. Após a história
como sedutor de alunas, o romance desenvolverá agudamente o contra-roteiro do
provável estupro de sua filha. Lurie descobrirá aos poucos, em tentativas sucessivas
de aproximar-se da filha, que ela não apenas não quer falar sobre o que ocorreu na
ocasião como não aceita partilhar com ele qualquer intimidade. O retrato da
“desgraça” se completará quando descobre que sua filha, por razões que lhe escapam
(e a nós mesmos), lhe anunciará que se casará com um antigo trabalhador local – um
“kaffir”, expressão que, na África do Sul do apartheid, denotara os “colored people”
(pessoas de cor),um antigo trabalhador rural já casado.
Esta trama paralela em dois tempos, na qual os temas da violência e da imposição
sexual estão associados ao exercício do poder e à submissão do outro, propõe uma
ironia do destino? David Lurie, o professor universitário que seduz uma jovem – mas
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que também foi, em seu próprio fraco desejo, seduzido –, vive, num efeito de ironia
especular, as dores de um pai obrigado a suportar impotentemente a violência contra
sua própria filha. O paralelismo, entretanto, não é de modo algum exato. Se Melanie, a
jovem seduzida, o “denuncia”, a filha de David reage de um modo estranhíssimo, e
que parece ao próprio David – e a nós que acompanhamos sempre o ponto de vista
deste homem – enigmático. Ele pede à sua filha que lhe diga o que aconteceu
enquanto estava aprisionado no banheiro, mas ela não apenas se resguarda –
nenhuma questão de pudor aqui–, como recusa entreter com seu pai qualquer sorte
de emotiva e gratificante cumplicidade. Ela discretamente o coloca de lado, parece
insistentemente informá-lo de sua impotência paterna: a própria renúncia dela de
retornar ao “mundo” – ou seja, o mundo da cidade, o mundo do futuro, o mundo
prometido do brilho social – e sua concomitante decisão de criar raízes na terra e na
natureza indômita – e de se afundar de novo num estado natural, pois tal é a
assustadora impressão que nos é sugerida epidermicamente por este livro – são
atitudes que soam não raro como uma espécie de castigo velado contra o pai.
Um curioso narrador
Questões como essas são possíveis neste romance porque o narrador, quando não
fala do ponto de vista do próprio narrador (sempre em terceira pessoa), assume com
muita freqüência o ponto de vista de David Lurie. Ele é a consciência central, e ainda
mais de um intelectual, atento ao mundo, hábil em olhá-lo através do viés da literatura
e do seu refinado senso poético. Mas é também uma consciência deficitária ao
extremo, o que nos é indicado pela ironia quase invisível que o autor imprime ao seu
narrador e que percebemos sempre fugidiamente. O narrador não raro incorpora o
próprio senso irônico onipresente de David Lurie, mas também o supera, produzindo
uma sobreposição irônica que não nos permite nem comprar suas dores, nem vê-lo
sem engajamento ético e moral. Logo na primeira parte do romance temos uma
descrição da situação sexual deste professor universitário.
For a man of his age, 52, divorced, he has, to his mind, solved the problem of
sex rather well. (COETZEE, Disgrace, 1999, p.1 )
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Quem fala é o narrador, sugerindo que David Lurie se ilude com as suas quintas-feiras
de “luxúria e volúpia” com uma prostituta de codinome Soraya. A ironia ocorre no
minúsculo acréscimo depositado pelo narrador que dá a propriedade da formulação e
do sentimento-pensamento a Lurie (...to his mind...). Os narradores de Coetzee
incorporam o ponto de vista e o tom da formulação do pensamento das personagens
centrais. Dão-nos também indícios que nos levam a entender as deficiências deles,
sem nomeá-las, descrevê-las ou mesmo aludi-las com rodeios: o que salta à vista é
que estamos perto do personagem, com a capacidade adicional de flagrar suas
fraquezas ou defeitos. A arte diabólica de Coetzee de revelar sem revelar, criar cenas
onde o ato, a responsabilidade e a intenção ficam ocultos a ponto de nos deixar em
dúvida como julgar os personagens ultrapassa em muito o estilo mesmo dos fluxos de
consciência mais comuns. O narrador assume um tom casual – às vezes cool –, e
multiperceptivo e multiperspectivo, que abarca um dos traços pessoais de David Lurie.
Um exemplo desta ironia implícita nos atos é o modo como somos dirigidos a perceber
a presença entranhada do tédio que envolve a vida de Lurie, em todas estas
descrições do “oasis de luxo e volúpia” de sua vida. É num tom as matter of fact, num
a propos vivo de ironia, que descobrimos que ele é “tecnicamente velho o bastante
para ser pai dela; mas enfim, tecnicamente, você pode ser pai aos doze anos.”
(COETZEE, Disgrace, 1999, p.1)
As múltiplas vidas: simulacro e anomia
É graças a este narrador que agarra o pensamento, a sensação ou ainda a impressão
imediata do personagem que ingressamos no modus operandi tanto de David como do
mundo que o circunda. Fica evidente, página a página, o quanto a vida de Lurie está
empobrecida por funções substitutivas dos simulacros. Não é à toa que o romance
inicie com a conclusão irônica do “bem estar” possível dentro de um paraíso de gozo.
A garota de programa, a bela Soraya, possui as qualidades que agradam a Lurie: não
é “efusiva”, mas, antes, quieta, silenciosa e dócil, talvez quase um ser impessoal, tipo
ideal para fornecer a Lurie a devida ficção. Salta aos olhos, logo de início, que a vida
de Lurie está suspensa dentro de ambientes de algum modo degradados não pela
pobreza, mas pela irrealidade ou encenação de realidade – típicos simulacros
modernos. Suas visitas a Soraya, com a conseqüente e inesperada satisfação que lhe
proporcionam, produzem em David a pergunta se haveria genuinidade no prazer de
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Soraya, pensamento fugidio que toma o cuidado de não aprofundar nem continuar, a
fim de manter em perfeito estado o cenário do seu simulacro. Mas Soraya revela, nos
desvãos, o seu outro lado: mostra sua indignação moral com as mulheres ocidentais
que expõem nas praias os seus “ubres”. O círculo mágico do simulacro da prostituição
e de seus paraísos artificiais é em certo momento trincado quando David, por
coincidência, encontra Soraya no cenário da “vida real”, flanqueada por dois meninos,
carregando pacotes, saindo das compras. Uma mãe com seus filhos, David percebe
com curioso voyeurismo. Ele os segue e, finalmente, num átimo, ele e Soraya trocam
um olhar, que ele ressente na hora. Quando se reencontram na próxima quinta-feira,
(...) nenhum dos dois menciona o incidente. Não obstante, a memória paira
inquieta sobre os dois. Ele não deseja perturbar o que deve ser, para Soraya,
uma precária vida dupla. Ele é inteiro um homem de vidas duplas, vidas triplas,
vidas vividas em compartimentos. De fato, ele sente, na verdade, ainda maior
ternura por ela. Seu segredo está a salvo comigo, ele gostaria de dizer.
(COETZEE, Disgrace, 1999, p. 6)
Duplas vidas, triplas vidas. Ele gostaria de saborear com ela esta comovente e
dolorosa cumplicidade. Soraya, que porta este codinome em sua profissão, suporta as
vidas duplas em seu mundo só na medida em que pode manter íntegras as paredes
que as separam, sem mútua contaminação, mas David Lurie é homem que se
habituou a manter impermeáveis os diversos zoneamentos de seu mundo. Os
simulacros só se sustentam na medida em que os atores envolvidos em cada
zoneamento não queiram participar dos outros. David Lurie é assim um homem que
preenche o vazio total de sua existência com sucessivos espetáculos de divertimentos
certamente modestos, e por escapadas duvidosas, bem aquém das do seu poeta
preferido, Lord Byron.
Essa duplicidade dos cenários privados encontra ressonância na própria duplicidade
de Lurie em sua vida acadêmica. Embora seja um erudito conhecedor da poesia de
Wordsworth, suas atividades na universidade são, tal como o narrador nos informa,
“Communications 101, Communications Skills” e outros do gênero, ainda que lhe seja
premiado ministrar um curso ao seu gosto, para manter “o moral”. Vivendo a
deliqüescência das universidades contemporâneas, a partir da década de 70, meros
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simulacros do saber que, no dizer de Baudrillard, são no fundo “zonas de alojamento e
de vigilância para todo um grupo etário”, David Lurie é em parte uma exceção, mas
não totalmente. Seu cultivo literário e em especial sua agudeza para compreender as
nuanças de poetas românticos como Wordsworth tornam-no, senão uma exceção, ao
menos uma anomalia, um estranho ao universo circundante. O romance parece
marcado por esta ansiedade não verbalizada diante de uma realidade que não se
preenche de significado.
Eis o lugar onde o familiar estranho, o kafkianismo de Coetzee se alojou. A realidade
existe a custo, senão nas impotentes tentativas de Lurie de resgatar as efusões de
espírito de seu admirado Byron, mas que esbarram na sua impotente descoberta de
que lhe falta a imaginação para fazer a sua “ópera". Há uma sucessão de ambientes
em que os personagens não se encontram, mas apenas passam numa espécie de
reprocessamento do lazer, num ambiente preparado. Um kafkianismo invertido, onde
se substitui o estranhamento dos castigos desproporcionais ou absurdos, inexplicados
segundo apontamentos objetivos, por uma prorrogação contínua em ambientes de
simulacro. Coetzee é um dos autores mais atentos ao desgaste de antigas formas de
pensamento e da eticidade, e nos mostra como isso pode ocorrer no contexto da vida
de um homem cuja complexidade intelectual, a princípio, o tornaria impermeável a
este estado de coisas.
Essas muitas vidas compartimentadas pressupõem pessoas cujas existências em
diferentes contextos não se comunicam. É possível viver tudo e, ao mesmo tempo,
não viver nada, numa vida em que se pode optar seriadamente entre as diversas
opções que o universo do hiper-real oferece a todo o momento. Essa abertura infinita
não é apenas um fato concreto, mas tem conseqüências importantes, e a maior delas
é a anomia que se insinua através da pouca necessidade de escolha num mundo de
múltiplas escolhas. Anomia aqui não significa a ausência de leis ou mesmo de
reconhecimento de leis, da instituição enquanto fenômeno formal. David Lurie é, não
obstante o clima de indiferença instalado em seus cursos de literatura romântica, um
professor aplicado que busca desempenhar seu dever pedagógico de modo
escrupuloso. O desligamento não é muito menos uma deficiência ética particular, mas
uma posição instável de criação de “setores da vida” que não se comunicam
obrigatoriamente. Há muitos sujeitos éticos possíveis, desempenháveis conforme uma
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lógica variável similar ao que foi protagonizada pela chamada Ironia Romântica– são
sujeitos éticos com combinações tão diversas quanto o são numerosos os cenários
urbanos oferecidos à sua inveterada performance. Todos são um pouco irreais,
inconsistentes já que sua existência é uma contínua e prolongada permuta, um
desconhecimento de qualquer essência individual, ainda que sua consistência se
molde nas virtualidades da vida.
Há aqui a ausência de sentimento de pertencimento, combinado à impotência pessoal
e a uma insolidariedade generalizada que permeia o convívio social, mesmo que
oculta por trás de discursos morais “fortes”. Essa desconexão com a comunidade,
morte de todo o senso genuíno e franco de civilidade, aparece como uma indiferença
aos sentimentos de fides, tornando o sujeito um apolis, um homem fora da cidade,
vivendo no atomismo pós-moderno da individualidade atomizada3. Que isso não seja
compreendido como um defeito moral, mas um estado disseminado – estrutural. O
senso da atomização individualista aparece em Disgrace no cuidado como cada
personagem zela por sua individualidade. Na metade do livro, Bill Shaw toma a
iniciativa de ir até o hospital onde David e sua filha são atendidos depois do ataque à
fazenda. Ele os aguarda na sala de espera. Quando David pede polidamente desculpa
por ter “arruinado” a tarde, Bill lhe responde: “Nonsense! (...) What else are friends for!
You would have done the same!” (COETZEE, Disgrace, 1999, p. 10). Transcrevo
abaixo a seqüência de reações interiores do próprio David.
Spoken without irony, the words stay with him and will not go away. Bill Shaw
believes that if he, Bill Shaw, had been hit over the head and set on fire, then
he, David Lurie, would have driven to the hospital and sat waiting, without so
much as a newspaper to read, to fetch him home. Bill Shaw believes that,
because he and David Lurie once had a cup of tea together, David Lurie is his
friend and the two of them have obligations towards each other. Is Bill Shaw
wrong or right? Has Bill Shaw, who was born in Hankey, not two hundred
3 A seqüência de termos foi suscitado pelo ensaio “Sobre o Princípio de Insolidariedade” da
professora Judith Martins-Costa. Francisco José de Oliveira Viana usa a expressão “princípio de
insolidariedade” para definir uma característica do individualismo brasileiro. Retomo assim o termo,
resgatado pela professora Judith Martins Costa, mas adaptando-o ligeiramente ao contexto da anomia
psicológica pós-moderna tal como a apresenta Coetzee. “No país do latifúndio e da escravidão (...) somos
todos apolis. O que tece uma comunidade é a solidariedade voluntária, a mutuação em prol de interesses
supra-pessoais..”.(Grifo meu) (MARTINS-COSTA, J. 2003, p. 148). Embora a pós-modernidade e o
universo político “cordial” brasileiro muito se distanciem, os dois se encontram quando se trata de
apresentar um sujeito “anômico” e insolidário.
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kilometers away, and works in a hardware shop, seen so little of the world that
he does not know there are men who do not readily make friends, whose
attitude toward friendships between men has been corroded with scepticism?
(COETZEE, Disgrace, p. 10).
A anomia, que é o resultado do ceticismo inveterado, fundamente penetrante,
pressupõe uma existência que comporta uma boa dose de “anonimato”, anonimato
não de um homem médio, reificado, porém cultivado, do qual mesmo a paternidade –
e seu conseqüente poder – foi arrancada. Lurie é tratado com distância indiferente por
sua filha que não o chama pelo vocativo “pai”, mas “David”. Ele fracassa em proteger a
filha quando a casa da fazenda é atacada por bandidos que possivelmente a
estupram. Sua filha nem mesmo lhe concede a gratificação de partilhar com ele o que
de fato aconteceu enquanto ele estava preso dentro do banheiro da casa. A atitude de
sua filha e de sua ex-esposa para com ele revela que as duas praticam com ele uma
indulgência que geralmente dirigimos às pessoas incorrigíveis. Portanto, a anomia
aqui não é apenas a ausência de leis e até de sua efetivação, mas tem o sentido de
estar à deriva. É uma condição pessoal – socialmente alastrada – em que normas e
leis não são mais percebidas organicamente, de modo que mesmo as práticas sociais
se tornam estranhas, não integradas à vida. No admirável mundo novo do simulacro, a
anomia é um sentimento contínuo de que ou se está no domínio da exceção (das
transgressões leves) ou se está em um contexto cujas regulações, sempre
inflacionadas pela produção de regras que se sobrepõem e não raro se contradizem,
permitem apenas uma solidariedade mecânica, se muito.
É esse mecanismo – não raro atenuado à familiaridade insidiosamente introduzida no
domínio das relações públicas – que produz toda a situação de artificialismo da vida
acadêmica de David. As duas, até mesmo as triplas identidades de David, revelam um
aspecto da anomia, do sangramento contínuo da identidade, da dissolução das
funções que dão sustentação ao sujeito: ele é um homem separado. Sua posição
acadêmica é já em si mesmo indefinida, sua moralidade é uma negociação contínua
com os simulacros e com as posturas apresentadas. Sem dúvida, David Lurie é
complacente consigo mesmo e sua auto-indulgência o leva sempre de volta ao que ele
deixou de ser, alguém que se satisfaz com os prazeres mornos, mas suas atitudes
estão atreladas a uma rede exterior de que não é fácil se desembaraçar. Coetzee
parece mostrar, por outro lado, que David Lurie parece abraçar sua compulsividade,
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seu incorrigível donjuanismo a fim justamente de encontrar a sua desgraça –
invertendo os papéis processuais, tornando-se algoz de si.
Em particular na existência acadêmica de David Lurie soam as palavras fortes de
Baudrillard.
A troca de signos (de saber, de cultura) na Universidade, entre „docentes‟ e
„discentes‟ já não é, desde há um certo tempo, mais que um conluio
acompanhado da amargura da indiferença (a indiferença dos signos que
arrasta consigo a desafeição das relações sociais e humanas), um simulacro
acompanhado de um psicodrama (o de uma procura vergonhosa de calor, de
presença, de troca edipiana, de incesto pedagógico que procura substituir-se à
troca perdida de trabalho e de saber). (BAUDRILLARD, 1991, p. 192)
Esse psicodrama aparece em sua “relação” com a jovem Melanie que ele seduz, após
sua tentativa fracassada de voltar a restabelecer contato com Soraya. Chega ao
ridículo de, na sedução, citar versos procriativos de Shakespeare, mas, sendo David
uma consciência crítica e auto-irônica, registra, num ato mental impecável, que ali está
o mestre escola ardendo de volúpia, mas que acaba deslizando numa onda de fala
fácil que mistura sedução e mal uso da poesia. Sua vida de professor subitamente é
intensificada pela sensual presença da jovem Melanie, nova audiência para este
secreto egotista: suas interpretações de poemas estão continuamente apelando às
evocações eróticas de sua própria sedução. Isso permite imprimir, não um novo
sentido à vida de David, mas apenas criar um simulacro de aventura que morre num
patético intercurso sexual nos seus medianos aposentos de solteirão recidivo.
Um pseudoprocesso
A sensação angustiante de estar flutuando em um meio sem forma e ao mesmo tempo
dominado pelas formalidades do mundo moderno. Logo após, contudo, se encenará
um pseudoprocesso que levará Lurie à sua “desgraça”. A grande ironia da obra está,
aliás, na sua dupla proposição de mostrar um mundo esvaziado de eticidade efetiva e
o uso (contínuo) de termos moralmente carregados como “disgrace” – no caso, uma
estranha ressurgência de um universo ético da honra e da “perdição” com seus
acentos terrivelmente velho-testamentários. Em geral, todos os personagens seguem
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a tendência contemporânea de sempre contornar ou simplesmente evitar os “termos
fortes” capazes de denotar moralmente os sujeitos, afinal este é o mundo em que não
há pecado, não há nem mesmo o que poderíamos chamar de uma falta. A ironia
reside no fato de que a folga ética proporcionada pela multiplicidade de papéis pode
subitamente se estreitar e levar à infelicidade se o sujeito desistir de seguir o percurso
e o roteiro apropriados dos simulacros. É isso certamente que acontece com David
Lurie ao negar seguir o caminho de seus colegas no processo que se instaura nos
corredores frios da universidade.
Aqui nenhum processo no sentido kafkiano, nada de ambientes em que se identifique
de pronto, não obstante sua realidade latente, o trabalho do pesadelo e do fantasma,
como parece a todo momento emanar de O Processo. Esta projeção ao exterior de um
mundo patriarcalmente opressivo da ilogicidade de algumas leis paternas era em
Kafka apenas o anúncio de que a própria figura paterna ruiria com o avanço de novos
hábitos modernos. Mas como negar que, realista ao extremo, Coetzee nos sugere
todo o kafkianismo, porém de modo realista, limitando-se a nos apresentar cenas que
não seriam tão estranhas em nossas próprias realidades? Como não achar bizarra e
normal a pusilanimidade oculta sob as vestes da prudência e da consideração, fatos
que surgem no pseudojulgamento? Aliás, entre pai e amante, professor e amante,
Lurie não sabe bem escolher seu papel. A jovem Melanie não parece seguir hábitos
acadêmicos sérios, e está sempre ausente em suas aulas. É uma ausente. O que
fazer diante deste escândalo: ganhar controle da situação, ele pensa... A situação
então degenerará aos poucos e David será julgado, ou melhor, será “consultado”.
O pseudoprocesso que traz a desgraça de Lurie é uma cena cheia de reverberações
estranhas – kafkianas– se não fosse um acontecimento já bastante familiar hoje em
dia. O que leva Lurie a cair em desgraça não é, curiosamente, um processo formal,
mas um semiprocesso, uma “consultation” de uma comissão acadêmica chamada
para fazer uma “recomendação” sobre o seu caso. Entretanto, é a aqui que o
kafkianismo realista de Coetzee se insinua, no simples oferecimento que nos faz de
fatos não inteiramente incomuns na realidade acadêmica dos países anglo-saxões.
Abstenho-me em parte de me concentrar na bizarra e desafiadora postura de David
Lurie, algo suicidária para o contexto que ali enfrenta, e concentro-me na situação
específica da “consultation”. O corpo de docentes e dicentes reunidos, esclarece
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Mathabane, professor de estudos religiosos, “não possui poderes. Tudo o que pode
fazer são recomendações” (COETZEE. Disgrace, 2000, p 47). O encontro parece de
fato ordenado para encontrar uma saída através dos meandros do impasse, que salve
a honra da instituição, evitando ao mesmo tempo um conflito frontal com o cabeçudo
Lurie. Este, contudo, chega à reunião com a “vanity of the gambler, vanity and self-
righteousness” (COETZEE. Disgrace, 2000, p. 47) – pensamento que, supomos, é
dele, e não apenas do narrador. É uma vaidade de que está ciente e de algum modo
lhe causa espanto. Para a surpresa de todos, ele alega “culpa nas duas acusações”.
Ele ainda pede, ultrapassando os limites deliberativos reservados ao comitê, que a
sentença seja passada. Seu pedido é recebido com estupor e estudo, e ele é alertado
de que o comitê é de inquérito, não tendo poder nenhum de decisão. A situação
começa a se tornar kafkiana à medida que a pressão sobre David aumenta para que
não apenas aceite sua culpa, mas, primeiramente, verbalize exatamente de que ele é
acusado e, depois, demonstre (!) sua contrição. Essa seqüência, que soa absurda, é
impelida sobretudo por uma das colegas que exige dele não apenas uma aceitação de
culpa, um esclarecimento sobre o conteúdo de sua culpa e uma retratação, mas uma
demonstração de seu “sincero” sentimento de contrição. Passa-se muito rapidamente
do fato positivo e técnico para uma exigência de retratação do interior culpado, uma
culpa e uma contrição real, sem a qual não é possível nem mesmo começar a pensar
em um perdão. Salto aqui todos os minuciosos detalhes descritivos e narrativos que
acompanham este pseudoprocesso: o óbvio ódio de alguns dos presentes que se
escondem atrás de uma aparente retidão moral, senão de formalismos legais. O
importante é assinalar a inquietante estranheza da cena, aspecto mais funesto do
acontecimento. Se de um lado há da parte de alguns presentes a disposição a facilitar
as coisas para David, da parte de outros trata-se de penetrar profundamente na sua
interioridade, entender aquilo que, enfim, todos conhecem muito bem: o desejo e a
transgressão.
Kafkianismo transposto à realidade mais presente, mais “realista”, mas ao mesmo
tempo uma situação mais complexa do que qualquer “processo”: o que David Lurie
faz, ao assumir sua culpa e não aceitar a retratação é, voluntariamente ou
involuntariamente, quebrar a lógica de um procedimento que teria encontrado sua
resolução pacífica numa negociação, numa aceitação de culpa e finalmente numa
demonstração “teatral” – semelhante à contrição pública de alguns políticos
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americanos atuais quando diante de acusação de abuso. O que Lurie faz sem saber é
romper o roteiro retórico e simulacral que seus colegas, seguindo a normalidade em
tais casos, teriam seguido à risca. Qualquer que seja o delito de David, o fato é que o
procedimento do comitê extravasa todas as suas atribuições criando uma situação
paradoxal de retorno à investigação de consciência que era comum nos tribunais de
bruxaria.
Para os que conhecem a segunda parte do livro de Coetzee, o segundo roteiro que
inclui a cena da possível violação da própria filha de David e o anúncio do casamento
futuro dela com Petrus– o nativo sul-africano, originário das antigas classes de
“colored” people, que vive nas cercanias da casa dela –, pode soar simplesmente
como um roteiro-espelho. David Lurie sofreria no âmago o sentido do sofrimento que
ele mesmo infligiu à jovem Melanie ao ver a filha humilhada (disgraced) por bandidos.
Esta é uma questão crucial, mas que de modo algum se soluciona com as certezas
terríveis das justiças retributivas. Depois das decepções na fazenda de sua filha e do
fracasso de David de se aproximar como um pai “compreensivo” de sua filha, ele
retorna a Cidade do Cabo, onde surpreendentemente acaba em um jantar em
companhia com a família de Melanie. A expectativa de fundo do leitor é que ali talvez
venha a se encenar ou uma contrição ou ainda uma acusação (da parte do pai). A
atmosfera pequeno-burguesa e sobretudo carola dominante na casa dos pais de
Melanie, o teatro cuidadosamente montado para que culpados e vitimados se
expressem apropriadamente, assim como não sei que desejo do velho de ver seu
visitante contrito (talvez até mesmo humilhado), sugerem, no fundo, que a decisão de
Lurie de mostrar contrição cai no vazio, não gera nenhum fato patológico gratificante,
nem para ele, nem para o leitor do livro. O mundo do velho é igualmente um simulacro
à sua maneira: esboça-se ali uma falsa felicidade. A arte de Coetzee produz
paradoxos, oferece horizontes de retribuição, mas bem raramente satisfaz os anelos
apaziguadores.
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BIBLIOGRAFIA
BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d‟Água, 1991.
COETZEE, J. M. Disgrace. Penguin,1999.
COETZEE, J. M. Waiting for the Barbarians. Penguin, 1999.
MARTINS-COSTA, J. Sobre o Princípio de Insolidariedade (os cumes das montanhas
e os universos submersos).In: FLORES-PEREIRA, L.; ROSENFIELD, K. Revista
Letras: Ética e Cordialidade Santa Maria. Revista Letras (PPGL/UFSM), 2006.
MUSIL, Robert. Essais. Conférences, critique, aphorismes, réflexions. Paris : Seuil,
1984.