_discurso na vida e discurso na arte

Upload: cleciooliver

Post on 05-Jul-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    1/18

    DISCURSO NA VIDA E DISCURSO NA ARTE(sobre poética sociológica)

    V. N. Voloshinov / M. M. Bakhtin

    I

    No estudo da literatura, o métodosociológico tem sido aplicado quase queexclusivamente para tratar de questõeshistóricas, enquanto permanece virtual-mente intocado com relação aos proble-mas da assim chamada “poética teórica” – toda a área de enunciados envolvendoa forma artística e seus vários fatores,

    estilo, etc.Um ponto de vista falacioso, mas en-contrável mesmo em alguns marxistas,entende que o método sociológico só setorna legítimo naquele ponto em que aforma poética adquire complexidade atra-vés do fator ideológico (o conteúdo) ecomeça a se desenvolver historicamentenas condições da realidade social exter-na. A forma em si e por si, de acordo comeste ponto de vista, possui sua próprianatureza e sistema de determinação de

    caráter não sociológico mas especifica-mente artístico.

    Tal visão contradiz fundamentalmen-te as bases primeiras do método marxista – seu monismo e sua historicidade. Aconseqüência disso e de pontos de vistasimilares é que forma e conteúdo, teoriae história, são deixados separados.

    Mas não podemos descartar esta vi-são equivocada sem uma investigaçãomais detalhada; ela é muito característica

    de todo o estudo moderno das artes.O desenvolvimento mais patente econsistente do ponto de vista em questãoapareceu recentemente num trabalho doprofessor P. N. Sakulin1. Sakulin distin-gue duas dimensões na literatura e suahistória: a imanente e a causal. “O cora-ção artístico” imanente da literatura pos-sui estrutura especial e um direcionamen-to peculiar por si só; assim dotado, ele écapaz de desenvolvimento evolucionárioautônomo, “por natureza”. Mas no pro-

    cesso desse desenvolvimento, a literatura

    1P. N. Sakulin, The sociological method inthe study of literature (l921).

    se torna sujeito da influência “causal” domeio social extra-artístico. Com o “cora-ção imanente” da literatura, sua estruturae evolução autônoma, o sociólogo nãotem nada a fazer – tais tópicos caem nacompetência exclusiva da poética teóricae histórica e seus métodos especiais2. Ométodo sociológico só pode estudar comsucesso a interação causal entre literatu-ra e seu meio social extra-artístico cir-

    cundante. Além disso, a análise imanen-te (não sociológica) da essência da litera-tura, incluindo seu direcionamento autô-nomo, intrínseco, deve preceder a análisesociológica3.

    Naturalmente, nenhum sociólogomarxista poderia concordar com tal as-serção. No entanto, temos que admitirque a sociologia, até o presente momen-to, tem tratado quase que exclusivamentede temas concretos na história da litera-tura e não tem feito uma única tentativa

    séria de utilizar seus métodos no estudoda assim chamada estrutura imanente daobra de arte. Esta estrutura tem, de fato,sido relegada ao campo do estético ou dopsicológico ou de outros métodos que

    2“Elementos da forma poética (som, pala-vra, imagem, ritmo, composição, gênero), temáticapoética, estilo artístico na totalidade - todas essascoisas são estudadas, como matérias prelimina-res, com a ajuda de métodos que têm sido postosem prática pela poética teórica, baseados na psi-

    cologia, estética e lingüística, e que são agora pra-ticados em particular pelo assim chamado métodoformal”. Ibid., p. 27.

    3“Vendo a literatura como um fenômeno so-cial, nós inevitavelmente chegaremos à questãode seu condicionamento causal. Para nós, isso éum assunto da causalidade sociológica. Apenashoje o historiador da literatura recebeu o direito deassumir a posição de um sociólogo e colocarquestões causais tais como incluir fatos literáriosdentro do processo geral da vida social de algumperíodo particular, e assim definir o lugar da litera-tura no movimento global da história. É nesse pon-to que o método sociológico, aplicado à história da

    literatura, se torna um método histórico-sociológico.

    No nível primeiro, imanente, uma obra éconcebida como um valor artístico, e não em seusignificado social e histórico.” Ibid, pp. 27-28. 

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    2/18

      2

    nada têm em comum com sociologia.Para comprovar este fato basta e-

    xaminar qualquer trabalho moderno so-bre poética ou mesmo sobre o estudo dateoria da arte em geral. Não encontra-remos um traço de qualquer aplicação de

    categorias sociológicas. A arte é tratadacomo se ela fosse não-sociológica “pornatureza”, exatamente como é a estrutu-ra física ou química de um corpo. A mai-or parte dos estudiosos de arte da Euro-pa ocidental e da Rússia tem esta pre-tensão de ver a literatura e a arte comoum todo, e na base defendem persisten-temente o estudo da arte como uma dis-ciplina especial, contra abordagens socio-lógicas de qualquer espécie.

    Eles justificam este ponto de vista

    aproximadamente do seguinte modo.Todo artigo que se torna objeto de ofertae demanda, isto é, que se torna umamercadoria, está sujeito, quanto ao seuvalor e sua circulação na sociedade hu-mana, à determinação de leis sócio-econômicas. Vamos supor que nós co-nhecemos estas leis muito bem; apesardesse fato, nós não sabemos exatamentenada sobre a estrutura física e químicado artigo em questão. Ao contrário, o es-tudo das mercadorias necessita por simesmo de uma análise física e químicapreliminar de dada mercadoria. E as úni-cas pessoas competentes para realizartal análise são os físicos e químicos, coma ajuda de métodos específicos de seuscampos. Na opinião desses estudiososde arte, a arte se encontra em situaçãoanáloga. A arte, também, desde que setorna um fator social e está sujeita à in-fluência de outros fatores, igualmente so-ciais, ocupa seu lugar, naturalmente,

    dentro do sistema global de determina-ção sociológica – mas desta determina-ção nós nunca seremos capazes de deri-var a essência estética da arte, do mes-mo modo como não podemos descobrir afórmula química desta ou daquela mer-cadoria das leis econômicas que gover-nam a sua circulação. O que cabe ao es-tudo da arte e à poética fazer é procurartal fórmula na obra de arte – uma formaespecífica da arte e independente da so-ciologia.

    Esta concepção da essência da arteestá, como temos dito, fundamentalmen-te em contradição com as bases do mar-

    xismo. Certamente, nunca encontrare-mos uma fórmula química pelo métodosociológico, mas uma “fórmula” científicapara qualquer domínio da criação ideoló-gica pode ser encontrada, e só pode serencontrada, pelos métodos da sociologia.

    Todos os outros métodos “imanentes” es-tão pesadamente envolvidos em subjeti-vismo e têm sido incapazes, até hoje, dese libertarem da infrutífera controvérsiade opiniões e pontos de vista e, portanto,menos ainda capazes de encontrar qual-quer coisa mesmo remotamente seme-lhante às fórmulas rigorosas e exatas daquímica. Nem, naturalmente, pode o mé-todo marxista reivindicar tal fórmula; o ri-gor e a exatidão das ciências naturaissão impossíveis no domínio do estudo da

    criação ideológica devido à própria natu-reza do que aí se estuda. Mas uma mai-or aproximação a uma genuína ciência noestudo da criação ideológica se tornoupossível pela primeira vez graças ao mé-todo sociológico na sua concepção mar-xista. Corpos químicos e físicos ou subs-tâncias existem tanto fora da sociedadehumana quanto dentro dela, mas todosos produtos da criatividade humana nas-cem na e para a sociedade humana. De-finições sociais não são aplicáveis de forapara dentro, como no caso dos corpos esubstâncias naturais – formações ideoló-gicas são intrinsecamente, imanentemen-te sociológicas. Ninguém discutirá estaquestão com respeito às formas políticase jurídicas – que propriedades imanentes,não sociológicas, poderíamos encontrarnelas? As mais sutis nuanças formais deuma lei ou de um sistema político são i-gualmente tratáveis pelo método socioló-gico, e apenas por ele. Mas exatamente a

    mesma coisa é verdadeira para outrasformas ideológicas. Elas são totalmentesociológicas, ainda que sua estrutura,mutável e complexa como é, preste-se auma análise exata apenas com enormedificuldade.

    A arte, também, é imanentementesocial; o meio social extra-artístico afe-tando de fora a arte, encontra respostadireta e intrínseca dentro dela. Não setrata de um elemento estranho afetandooutro, mas de uma formação social, o es-

    tético, tal como o jurídico ou o cognitivo,é apenas uma variedade do social . A te-oria da arte, conseqüentemente, só pode

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    3/18

      3

    ser uma sociologia da arte4. Nenhuma ta-refa “imanente” resta neste campo.

    II

    Se a análise sociológica deve ser

    própria e produtivamente aplicada à teo-ria da arte (à poética em particular), de-vemos então rejeitar dois pontos de vistafalaciosos que estreitam severamente aesfera da arte ao operar exclusivamentecom certos fatores isolados.

    O primeiro ponto de vista pode serdefinido como a fetichização da obra ar-tística enquanto artefato. Este fetichismoé a atitude que hoje prevalece no estudoda arte. O campo de investigação se res-tringe à obra de arte por si só, a qual e

    analisada de tal modo como se tudo emarte se resumisse a ela. O criador da o-bra e os seus contempladores permane-cem fora do campo de investigação.

    O segundo ponto de vista, ao contrá-rio, restringe-se ao estudo da psique docriador ou do contemplador (mais fre-qüentemente, simplesmente iguala osdois). Por isso, toda arte se resume nasexperiências da pessoa contemplando ouda pessoa criando.

    Assim, para um ponto de vista o ob- jeto de estudo é apenas a estrutura daobra em si (artefato), enquanto para ou-tro é apenas a psique individual do cria-dor ou contempla dor.

    O primeiro ponto de vista coloca omaterial na vanguarda da investigaçãoestética. A forma, entendida muito estrei-tamente como a forma do material – aqui-lo que o organiza como um artefato únicoe completo – se torna o principal e quaseque exclusivo objeto de estudo.

    Uma variedade do primeiro ponto devista é o assim chamado método formal.Para o método formal, uma obra poéticaé um material verbal organizado de al-gum modo particular como forma. Alémdisso, ele toma o verbal não como um fe-nômeno sociológico, mas de um ponto devista lingüístico abstrato. Que ele adotas- 

    4Fazemos uma distinção entre teoria e his-tória da arte apenas como divisão técnica do tra-balho. Não pode haver nenhuma separação meto-dológica entre elas. Categorias históricas são, na-

    turalmente, aplicáveis em absolutamente todos oscampos das humanidades, sejam eles históricosou teóricos.

    se justo tal ponto de vista é perfeitamentecompreensível: o discurso verbal, tomadono seu sentido mais largo como um fe-nômeno de comunicação cultural, deixade ser alguma coisa auto-suficiente e nãopode mais ser compreendido indepen-

    dentemente da situação social que o en-gendra.O primeiro ponto de vista não pode

    ser consistentemente seguido até o fim.O problema é que se se permanece den-tro dos limites do artefato da arte, não hámeio de se assinalar nem mesmo asfronteiras de material ou quais de seustraços têm significado artístico. O mate-rial em si e por si funde-se diretamentecom o meio extra-artístico circundante etem um número infinito de aspectos e de-

    finições – em termos de matemática, físi-ca, química e assim por diante, e tambémda lingüística. Por mais que se vá longena análise de todas as propriedades domaterial e de todas as combinações pos-síveis dessas propriedades, nunca se se-rá capaz de encontrar seu significado es-tético, a menos que lancemos mão, decontrabando, de um outro ponto de vistaque não pertença à moldura da análisedo material. Similarmente, por mais queanalisemos a estrutura química de umcorpo ou substância, nós nunca entende-remos seu valor e significado como mer-cadoria a menos que coloquemos a eco-nomia no quadro.

    A tentativa da segunda visão, de en-contrar o estético na psique individual docriador ou do contemplador, é igualmentevã. Para continuar na nossa analogiaeconômica, podemos dizer que tal coisaé similar à tentativa de analisar a psiqueindividual de um proletário de modo a

    descobrir as relações de produção objeti-vas que determinam sua posição na so-ciedade.

    Ao final das contas, ambos os pontosde vista pecam pela mesma falta: elestentam descobrir o todo na parte, isto é,eles pegam a estrutura de uma parte,abstratamente divorciada do todo, apre-sentando-a como a estrutura do todo.Entretanto, o “artístico” na sua total inte-gridade não se localiza nem no artefatonem nas psiques do criador e contempla-

    dor consideradas separadamente; elecontém todos esses três fatores. O artís-tico é uma forma especial de interrelação

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    4/18

      4

    entre criador e contemplador fixada emuma obra de arte.

    A comunicação artística deriva dabase comum a ela e a outras formas so-ciais, mas, ao mesmo tempo, ela retém,como todas as outras formas, sua própria

    singularidade; ela é um tipo especial decomunicação, possuindo uma forma pró-pria peculiar. Compreender esta formaespecial de comunicação realizada e fi- xada no material de uma obra de arte  –eis  aí precisamente a tarefa da poéticasociológica. 

    Uma obra de arte, vista do lado defora desta comunicação e independen-temente dela, é simplesmente um artefa-to físico ou um exercício lingüístico. Elase torna arte apenas no processo de inte-

    ração entre criador e contemplador, co-mo o fator essencial nessa interação.Qualquer coisa no material de uma obrade arte que não pode participar da comu-nicação entre criador e contemplador,que não pode se tornar o “médium”, omeio de sua comunicação, não pode i-gualmente ser o recipiente de valor artís-tico.

    Os métodos que ignoram a essênciasocial da arte e tentam encontrar sua na-tureza e distinguir características apenasna organização do artefato, são obriga-dos realmente a projetar a interrelaçãosocial do criador e do contemplador emvários aspectos do material e em váriosprocedimentos para estruturar o material.Exatamente do mesmo modo, a estéticapsicológica projeta as mesmas relaçõessociais na psique individual do contem-plador. Esta projeção distorce a integri-dade dessas interrelações e dá um falsoquadro tanto do material quanto da psi-

    que.A comunicação estética, fixada numaobra de arte, é, como já dissemos, intei-ramente única e irredutível a outros tiposde comunicação ideológica, tais como apolítica, a jurídica, a moral, etc. Se acomunicação política estabelece institui-ções correspondentes e, ao mesmo tem-po, formas jurídicas, a comunicação esté-tica organiza apenas uma obra de arte.Se esta última rejeita esta tarefa e come-ça a ter o propósito de criar mesmo a

    mais transitória das organizações políti-cas ou qualquer outra forma ideológica,então por esse mesmo fato ela deixa de

    ser comunicação estética e abdica de seucaráter singular. O que carateriza a co-municação estética é o fato de que ela étotalmente absorvida na criação de umaobra de arte, e nas suas contínuas re-criações por meio da co-criação dos con-

    templadores, e não requer nenhum outrotipo de objetivação. Mas, desnecessáriodizer, esta forma única de comunicaçãonão existe isoladamente; ela participa dofluxo unitário da vida social, ela reflete abase econômica comum, e ela se envolveem interação e troca com outras formasde comunicação.

    O propósito do presente estudo étentar alcançar um entendimento do e-nunciado poético, como uma forma destacomunicação estética especial, verbal-

    mente implementada. Mas para fazer issonós precisamos antes analisar em deta-lhes certos aspectos dos enunciados ver-bais fora do campo da arte – enunciadosda fala da vida e das ações cotidianas,porque em tal fala já estão embutidas asbases, as potencialidades da forma artís-tica. Além disso, a essência social do dis-curso verbal aparece aqui num relevomais preciso e a conexão entre um enun-ciado e o meio social circundante presta-se mais facilmente à análise.

    III

    Na vida, o discurso verbal é clara-mente não auto-suficiente. Ele nasce deuma situação pragmática extraverbal emantém a conexão mais próxima possí-vel com esta situação. Além disso, taldiscurso é diretamente vinculado à vidaem si e não pode ser divorciado dela semperder sua significação.

    A espécie de caracterizações e ava-liações de enunciados pragmáticos, con-cretos, que comumente fazemos são ex-pressões tais como “isto é mentira”, “istoé verdade”, “isto é arriscado dizer”, “vocênão pode dizer isto”, etc.

    Todas essas avaliações e outras si-milares, qualquer que seja o critério queas rege (ético, cognitivo, político, ou ou-tro) levam em consideração muito maisdo que aquilo que está incluído  dentrodos fatores estritamente verbais (lingüís-

    ticos) do enunciado. Juntamente com osfatores verbais, elas também abrangem asituação extraverbal do enunciado. Es-

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    5/18

      5

    ses julgamentos e avaliações referem-sea um certo todo dentro do qual o discursoverbal envolve diretamente um evento navida, e funde-se com este evento, for-mando uma unidade indissolúvel. O dis-curso verbal em si, tomado isoladamente

    como um fenômeno puramente lingüísti-co, não pode, naturalmente, ser verdadei-ro ou falso, ousado ou tímido.

    Como o discurso verbal na vida serelaciona com a situação extraverbal queo engendra? Analisemos essa questão,usando para nosso propósito um exemplointencionalmente simplificado.

    Duas pessoas estão sentadas numasala. Estão ambas em silêncio. Então,uma delas diz “Bem.” A outra não res-ponde.

    Para nós, de fora, esta “conversa-ção” toda é completamente incompreen-sível. Tomado isoladamente, o enuncia-do “Bem.” é vazio e ininteligível. No en-tanto, este colóquio peculiar de duaspessoas, consistindo numa única palavra – ainda que, certamente, pronunciadacom entoação expressiva – faz plenosentido, é completo e pleno de significa-ção.

    Para descobrir o sentido e o signifi-cado deste colóquio, devemos analisá-lo.Mas o que é exatamente que vamossubmeter à análise? Por mais valor quese dê à parte puramente verbal do enun-ciado, por mais sutilmente que se defi-nam os fatores fonéticos, morfológicos esemânticos da palavra bem, não se a-vançará um simples passo para o enten-dimento do sentido total do colóquio.

    Vamos supor que a entoação com aqual esta palavra foi pronunciada nos éconhecida: indignação e reprovação mo-

    deradas por um certo toque de humor.Esta entoação de algum modo preencheo vazio semântico do advérbio bem, masainda não nos revela o significado do to-do.

    O que é que nos falta então? Falta-nos o “contexto extraverbal” que torna apalavra bem uma locução plena de signi-ficado para o ouvinte. Este contexto ex-traverbal   do enunciado compreende trêsfatores: 1) o horizonte espacial   comum dos interlocutores (a unidade do visível –

    neste caso, a sala, a janela, etc.), 2) oconhecimento e  a  compreensão  comumda situação por parte dos interlocutores,

    e 3) sua avaliação comum  dessa situa-ção.

    No momento em que o colóquio a-contecia, ambos os interlocutores olha-vam para a janela e viam que começava  a nevar; ambos sabiam  que já

    era maio e que já era hora de chegar aprimavera; finalmente, ambos  estavamenjoados  e cansados  do prolongado in-verno – ambos estavam esperando ansi-osamente  pela primavera e ambos esta-vam amargamente desapontados pelaneve recente. É deste “conjuntamentevisto” (flocos de neve do outro lado da ja-nela), “conjuntamente sabido” (a épocado ano – maio) e “unanimemente avalia-do” (cansaço do inverno, desejo da pri-mavera) – é disso tudo que o enunciado

    depende diretamente, tudo isto é captadona sua real, viva implicação – tudo istolhe dá sustentação. E, no entanto, tudoisto permanece sem articulação ou espe-cificação verbal. Os flocos de neve per-manecem do lado de fora da janela; a da-ta, na folha do calendário; a avaliação, napsique do falante; e, não obstante, tudoisto está presumido na palavra bem.

    Agora que nós percebemos o pre-sumido, isto é, agora que nós conhece-mos o horizonte espacial e ideacionalcompartilhado pelos falantes, o sentidoglobal do enunciado Bem é perfeitamenteclaro para nós e compreendemos igual-mente sua entoação.

    Como se relaciona o horizonte extra-verbal com o discurso verbal, como o ditose relaciona com o não-dito?

    Primeiro de tudo, é perfeitamenteóbvio que, no caso dado, de maneira al-guma o discurso reflete a situação extra-verbal do modo como um espelho reflete

    um objeto. Mais exatamente, o discursoaqui analisa a situação, produzindo umaconclusão avaliativa, por assim dizer.Muito mais freqüentemente, enunciadosconcretos continuam e desenvolvem ati-vamente uma situação, esboçam um pla-no para uma ação futura e organizam es-ta ação. Mas para nós há um outro as-pecto do enunciado concreto que é deespecial importância: qualquer que seja aespécie, o enunciado concreto, sempreune os participantes da situação comum

    como co-participantes  que conhecem,entendem e avaliam a situação de manei-ra igual. O enunciado, conseqüentemen-

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    6/18

      6

    te, depende de seu complemento real,material, para um e o mesmo segmentoda existência e dá a este material ex- pressão ideológica e posterior desenvol-vimento ideológico comuns.

    Assim, a situação extraverbal está

    longe de ser meramente a causa externade um enunciado – ela não age sobre oenunciado de fora, como se fosse umaforça mecânica. Melhor dizendo, a situa-ção se integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estruturade sua significação. Conseqüentemente,um enunciado concreto como um todosignificativo compreende duas partes: (l)a parte percebida ou realizada em pala-vras e (2) a parte presumida. É nessesentido que o enunciado concreto pode

    ser comparado ao entimema5.Contudo, é um entimema de um tipo

    especial. O próprio termo entimema (lite-ralmente traduzido do grego, “algumacoisa localizada no coração ou na men-te”) soa um tanto psicológico. Poderianos levar a pensar na situação como al-guma coisa na mente do falante, um atofísico-subjetivo (um pensamento, uma i-déia, um sentimento). Mas não é o caso.O individual e o subjetivo têm por trás,aqui, o social e o objetivo. O que eu co-nheço, vejo, quero, amo, etc. não podeser presumido. Apenas o que todos nósfalantes sabemos, vemos, amamos, re-conhecemos – apenas estes pontos nosquais estamos todos unidos podem setornar a parte presumida de um enuncia-do. Além disso esse fenômeno funda-mentalmente social é completamente ob- jetivo; ele consiste, sobretudo, da unida-de material do mundo que entra no hori-zonte dos falantes (no nosso exemplo, a

    sala, a neve atrás da janela, etc.) e da u-nidade das condições reais de vida quegeram uma comunidade de julgamentosde valor – o fato de os falantes pertence-rem à mesma família, profissão, classe,ou outro grupo social, e o fato de perten-cerem ao mesmo período de tempo (osfalantes são, afinal, contemporâneos).Julgamentos de valor presumidos são,

    5O entimema é uma forma de silogismo emque uma das premissas não é expressa, mas pre-

    sumida. Por exemplo: “Sócrates é um homem, por-tanto é mortal”. A premissa presumida: “Todos oshomens são mortais”.

    portanto, não emoções individuais, masatos sociais regulares e essenciais. E-moções individuais podem surgir apenascomo sobretons  acompanhando o tombásico da avaliação social. O “eu” poderealizar-se verbalmente apenas sobre a

    base do “nós”.Assim, cada enunciado nas ativida-des da vida é um entimema social objeti-vo. Ele é como uma “senha” conhecidaapenas por aqueles que pertencem aomesmo campo social. A característicadistintiva dos enunciados concretos con-siste precisamente no fato de que elesestabelecem uma miríade de conexõescom o contexto extraverbal da vida, e,uma vez separados deste contexto, per-dem quase toda a sua significação – uma

    pessoa ignorante do contexto pragmáticoimediato não compreenderá estes enun-ciados.

    Este contexto imediato pode ter umescopo maior ou menor. No nosso exem-plo, o contexto é extremamente estreito:ele é circunscrito pela sala e pelo mo-mento da ocorrência, e o enunciado é in-teligível apenas para as duas pessoasenvolvidas. Contudo, o horizonte comumdo qual depende um enunciado pode seexpandir tanto no espaço como no tem-po: o “ presumido” pode ser aquele da fa-mília, do clã, da nação, da classe e podeabarcar dias ou anos ou épocas  inteiras.Quanto mais amplo for o horizonte globale seu correspondente grupo social, maisconstantes se tornam os fatores presu-midos em um enunciado.

    Quando o horizonte real presumidode um enunciado é estreito, quando, co-mo no nosso exemplo, ele coincide com ohorizonte real de duas pessoas sentadas

    na mesma sala e olhando a mesma coi-sa, então mesmo a mudança mais mo-mentânea dentro deste horizonte pode setornar a parte presumida. Onde o campode alcance é mais amplo, o enunciadopode agir apenas se sustentando em fa-tores constantes e estáveis da vida e emavaliações sociais substantivas e funda-mentais.

    As avaliações presumidas adquirem,nesse caso, uma importância especial. Ofato é que todas as avaliações sociais

    básicas que derivam diretamente das ca-racterísticas distintivas da vida econômi-ca de um grupo social dado, usualmente

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    7/18

      7

    não são enunciadas: elas estão na carnee sangue de todos os representantesdeste grupo; elas organizam o compor-tamento e as ações; elas se fundiram,por assim dizer, com os objetos e fenô-menos aos quais elas correspondem, e

    por essa razão elas não necessitam deuma formulação verbal especial. Pareceque ao mesmo tempo em que percebe-mos a existência do objeto, percebemosseu valor como uma de suas qualidades;por exemplo, ao mesmo tempo em quesentimos seu calor e luz, sentimos tam-bém o valor do sol para nós. Todos osfenômenos que nos cercam estão domesmo modo fundidos com julgamentosde valor. Se um julgamento de valor é defato condicionado pela existência de uma

    dada comunidade, ele se torna uma ma-téria de crença dogmática, alguma coisatida como certa e não submetida a dis-cussão. Ao contrário, sempre que um julgamento básico de valor é verbalizadoe justificado, nós podemos estar certosde que ele já se tornou duvidoso, sepa-rou-se de seu referente, deixou de orga-nizar a vida e, conseqüentemente, per-deu sua conexão com as condições exis-tenciais do grupo dado.

    Um julgamento de valor social quetenha força pertence à própria vida e des-ta posição organiza a própria forma deum enunciado e sua entoação; mas demodo algum tem necessidade de encon-trar uma expressão apropriada no conte-údo do discurso. Uma vez que um jul-gamento de valor desvia-se dos fatoresformais para o conteúdo, podemos estarcertos de que uma reavaliação é iminen-te. Assim, um julgamento de valor qual-quer existe em sua totalidade sem incor-

    porar-se ao conteúdo do discurso e semser deste derivável; ao contrário, ele de-termina a  própria seleção do materialverbal  e a forma do todo verbal . Ele en-contra sua mais pura expressão na ento-ação. A entoação estabelece um elo fir-me entre o discurso verbal e o contextoextraverbal – a entoação genuína, viva,transporta o discurso verbal para alémdas fronteiras do verbal, por assim dizer.

    Paremos aqui para considerar emmaiores detalhes a conexão entre a en-

    toação e o contexto pragmático da vidano exemplo que estamos usando. Istonos permitirá fazer uma série de obser-

    vações importantes sobre a natureza so-cial da entoação.

    IV

    Antes de mais nada, precisamos en-

    fatizar que a palavra bem – uma palavravirtualmente vazia do ponto de vista se-mântico – não pode em nenhuma hipóte-se predeterminar a entoação através deseu próprio conteúdo. Qualquer entoaçãoalegre, triste, de desprezo, etc. – pode li-vre e facilmente agir nesta palavra; tudodependerá do contexto no qual ela ocor-ra. No nosso exemplo, o contexto que de-terminou a entoação usada (indignação-reprovação, moderadas pelo humor) édado inteiramente pela situação extraver-

    bal que nós já analisamos, uma vez que,neste caso, não há um contexto verbalimediato. Poderíamos dizer de início quemesmo que houvesse um tal contextoverbal imediato, e mesmo que, além dis-so, tal contexto fosse inteiramente sufici-ente de todos os outros pontos de vista, aentoação ainda assim nos levaria alémde seus limites. A entoação só pode sercompreendida profundamente quandoestamos em contato com os julgamentosde valor presumidos por um dado gruposocial, qualquer que seja a extensão des-te grupo.  A entoação sempre está nafronteira do verbal com o não-verbal, dodito com o não-dito. Na entoação, o dis-curso entra diretamente em contato coma vida. E é na entoação sobretudo que ofalante entra em contato com o interlocu-tor ou interlocutores – a entoação é socialpor excelência. Ela é especialmentesensível a todas as vibrações da atmos-fera social que envolve o falante.

    A entoação no nosso exemplo derivada ânsia comum dos interlocutores pelaprimavera e do descontentamento co-mum com relação ao prolongado inverno.Esta comunhão de avaliações presumi-das entre eles fornece a base da entoa-ção, a base para a nitidez e para a clare-za de sua tonalidade principal. Mas senão houvesse este “apoio coral” firme-mente dependente, a entoação teria idonuma direção diferente e adquirido tonsdiferentes – talvez de provocação ou a-

    borrecimento com o ouvinte, ou talvez aentoação teria simplesmente se contraídoe se reduzido ao mínimo. Quando uma

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    8/18

      8

    pessoa prevê a discordância de seu inter-locutor ou, pelo menos, está incerta ouduvidosa de sua concordância, ela entoasuas palavras diferentemente. Veremosmais adiante que não só a entoação, mastoda a estrutura formal da fala depende,

    em grau significativo, de qual é a relaçãodo enunciado com o conjunto de valorespresumido do meio social onde ocorre odiscurso. Uma entoação criativamenteprodutiva, segura e rica, é possível so-mente sobre a base de um “apoio coral”presumido. Quando falta tal apoio, a vozvacila e sua riqueza entoacional é reduzi-da, como acontece, por exemplo, quandouma pessoa rindo percebe repentinamen-te que ela está rindo sozinha – sua risadaou cessa ou se degenera, torna-se força-

    da, perde sua segurança e clareza e suacapacidade de provocar humor e alegria.A comunhão de julgamentos básicos devalor presumidos constitui a tela sobre aqual a fala humana viva desenha os con-tornos da entoação.

    O jogo da entoação em direção deuma possível simpatia, em direção do “a-poio coral”, não exaure sua natureza so-cial. Ele é apenas um lado da entoação –o lado voltado para o interlocutor. A ento-ação contém ainda outro fator extrema-mente importante para a sociologia dodiscurso.

    Se nós analisamos a entoação donosso exemplo, notaremos que ela temum aspecto “misterioso” que requer ex-planação especial.

    De fato, a entoação da palavra bem transmite não apenas insatisfação passi-va com um evento (a neve caindo), mastambém ativa indignação e reprovação.Para quem se dirige essa reprovação?

    Claramente não ao interlocutor, mas aalguém mais. Este pequeno traço do mo-vimento entoacional claramente abre a si-tuação a um terceiro participante. Quemé este terceiro participante? Quem é oreceptor da reprovação? A neve? a natu-reza? o destino, talvez?

    Naturalmente, neste nosso simplifi-cado exemplo de um enunciado concreto,o terceiro participante – o “herói” destaprodução verbal – ainda não tomou umaforma plena e definitiva; a entoação de-

    marcou um lugar definido para o heróimas seu equivalente semântico não foipreenchido e permanece sem nome. A

    entoação estabeleceu uma atitude ativaem direção ao referente, em direção aoobjeto do enunciado, uma atitude de cer-ta forma tendendo a apostrofar este obje-to como o culpado vivo, encarnado, en-quanto o interlocutor – o segundo partici-

    pante – é convidado, por assim dizer,como testemunha e aliado.Quase todo exemplo de entoação vi-

    va na fala concreta emocionalmente car-regada se processa como se ela se en-dereçasse, por atrás de objetos e fenô-menos inanimados, a participantes ani-mados e agentes na vida; em outras pa-lavras, ela tem uma tendência inerente para a personificação. Se a entoação nãoé restringida, como no nosso exemplo,por um certo toque de ironia, então ela se

    torna a fonte da imagem mitológica, oencantamento, a oração, como foi o casonos estágios primitivos da cultura. Nonosso caso, contudo, temos de lidar comum fenômeno extremamente importanteda criatividade da linguagem – a metáfo-ra entoacional:  a entoação do enunciado“bem” faz a palavra soar como se ela es-tivesse reprovando o culpado vivo da ne-ve tardia de inverno. Temos no nosso e-xemplo um caso de metáfora entoacional pura, totalmente confinada nos limites daentoação; mas latente dentro dela, noberço, por assim dizer, existe a possibili-dade da metáfora semântica  usual. Sefosse para realizar esta possibilidade , apalavra “bem” se expandiria em algumaexpressão metafórica tal como “que in-verno teimoso, ele não vai parar, e Deussabe que é hora.” Mas esta possibilidade,inerente à entoação, permaneceu nãorealizada e o enunciado se restringiu aoadvérbio bem, semanticamente quase

    neutro.Deve-se notar que a entoação na fa-la concreta, no todo, é muito mais meta-fórica do que as palavras usadas. O espí-rito primitivo de criar mitos parece per-manecer vivo nela. A entoação soa comose o mundo que circunda o falante esti-vesse ainda cheio de forças animadas –ela ameaça e reclama delas, ou adora eacalenta objetos e fenômenos inanima-dos, enquanto que as metáforas usuaisda fala coloquial na maior parte se apa-

    garam e as palavras se tornaram seman-ticamente magras e prosaicas.

    Um forte parentesco une a metáfora

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    9/18

      9

    entoacional com a metáfora gesticulatória (na verdade, as palavras foram elas pró-prias originalmente gestos linguais consti-tuindo um componente de um gesto om-nicorporal complexo) – o termo gesto sendo entendido aqui num sentido mais

    amplo, incluindo a mímica como gesticu-lação facial. O gesto, tanto quanto a en-toação, requer o apoio coral das pessoascircundantes; apenas numa atmosfera desimpatia um gesto livre e seguro é possí-vel. Além do mais, e de novo tanto quan-to a entoação, o gesto abre a situação eintroduz um terceiro participante – o he-rói. O gesto sempre tem latente dentro desi o germe do ataque ou da defesa, daameaça ou do carinho, com o contem-plador ou ouvinte relegados ao papel de

    aliados ou testemunhas. Freqüentemen-te, o “herói” é meramente uma coisa ina-nimada, alguma ocorrência ou circuns-tância na vida. Quantas vezes nós sacu-dimos nossos punhos para “alguém” numacesso temperamental ou simplesmentefranzimos o cenho ao espaço vazio, enão há literalmente nada de que nãopossamos rir – o sol, as árvores, os pen-samentos.

    Um ponto que se deve ter em menteconstantemente (algo que a estética psi-cológica com freqüência esquece de fa-zer) é este: a entoação e o gesto são ati-vos e objetivos por tendência. Eles nãoapenas expressam o estado mental pas-sivo do falante, mas também sempre seimpregnam de uma relação forte e vivacom o mundo externo e com o meio soci-al – inimigos, amigos, aliados. Quandouma pessoa entoa e gesticula, ela assu-me uma posição social ativa com respeitoa certos valores específicos e esta posi-

    ção é condicionada pelas próprias basesde sua existência social. É precisamenteeste aspecto objetivo e sociológico da en-toação e do gesto – e não subjetivo oupsicológico – que deveria interessar osteóricos das diferentes artes, uma vezque é aqui que residem as forças da arteresponsáveis pela criatividade estética eque criam e organizam a forma artística.

    Como vemos, então, cada instânciada entoação é orientada em duas dire-ções:  uma em relação ao interlocutor

    como aliado ou testemunha, e outra emrelação ao objeto do enunciado como umterceiro participante vivo, a quem a ento-

    ação repreende ou agrada, denigre ouengrandece. Esta orientação social duplaé o que determina todos os aspectos daentoação e a torna inteligível . E a mes-míssima coisa é verdadeira para todos osoutros fatores dos enunciados verbais:

    eles são todos organizados e tomamforma, sob todos os aspectos, no mesmoprocesso da dupla orientação do falante;esta origem social só é mais facilmentedetectável na entoação porque ela é o fa-tor verbal de maior sensibilidade, elastici-dade e liberdade.

    Assim, como agora podemos argu-mentar, qualquer locução realmente ditaem voz alta ou escrita para uma comuni-cação inteligível   (isto é, qualquer umaexceto palavras depositadas num dicio-

    nário) é a expressão e produto da intera-ção social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor  (leitor) e o tópico (oque ou o quem) da fala (o herói). O dis-curso verbal é um evento social: ele nãoestá autoencerrado no sentido de algumaquantidade lingüística abstrata, nem podeser derivado psicologicamente da consci-ência subjetiva do falante tomada em iso-lamento. Portanto, tanto a abordagemlingüística formal quanto a abordagempsicológica falham: a essência sociológi-ca, concreta, do discurso verbal, aquiloque sozinho pode torná-lo verdadeiro oufalso, banal ou distinto, necessário oudesnecessário, permanece fora do alcan-ce e do campo de ambos os pontos devista. Desnecessário acrescentar que éesta mesmíssima “alma social” do discur-so verbal que o torna belo ou feio, isto é,que lhe dá também significado artístico.Certamente que, uma vez subordinados àbásica e mais concreta abordagem socio-

    lógica, os dois pontos de vista abstratos –o lingüístico formal e o psicológico – con-servam seu valor. Sua colaboração émesmo absolutamente indispensável;mas, separadamente, cada um por si iso-ladamente, eles são inertes.

    O enunciado concreto (e não a abs-tração lingüística) nasce, vive e morre noprocesso da interação social entre osparticipantes da enunciação. Sua formae significado são determinados basica-mente pela forma e caráter desta intera-

    ção. Quando cortamos o enunciado dosolo real que o nutre, perdemos a chavetanto de sua forma quanto de seu conte-

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    10/18

      10

    údo – tudo que nos resta é uma cascalingüística abstrata ou um esquema se-mântico igualmente abstrato (a banal “i-déia da obra”, com a qual lidaram os pri-meiros teóricos e historiadores da litera-tura) – duas abstrações que não são

    passíveis de união mútua porque não háchão concreto para sua síntese orgânica.Resta-nos agora apenas sumariar

    nossa breve análise do enunciado na vi-da e daqueles potenciais artísticos, aque-les rudimentos de forma e conteúdo futu-ros, que já detectamos nele.

    O significado e a importância de umenunciado na vida (seja qual for a espé-cie particular deste enunciado) não coin-cide com a composição puramente verbaldo enunciado. Palavras articuladas estão

    impregnadas de qualidades presumidas enão enunciadas. O que se chama de“compreensão” e “avaliação” de um e-nunciado (concordância ou discordância)sempre engloba a situação pragmáticaextraverbal juntamente com o próprio dis-curso verbal. A vida, portanto, não afetaum enunciado de fora; ela penetra e e-xerce influência num enunciado de den-tro, enquanto unidade e comunhão da e-xistência que circunda os falantes e uni-dade e comunhão de julgamentos de va-lor essencialmente sociais, nascendodeste todo sem o qual nenhum enuncia-do inteligível é possível. A enunciação es-tá na fronteira entre a vida e o aspectoverbal do enunciado; ela, por assim dizer,bombeia energia de uma situação da vidapara o discurso verbal, ela dá a qualquercoisa lingüisticamente estável o seu mo-mento histórico vivo, o seu caráter único.Finalmente, o enunciado reflete a intera-ção social do falante, do ouvinte e do he-

    rói como o produto e a fixação, no mate-rial verbal, de um ato de comunicação vi-va entre eles,

    O discurso verbal é como um “cená-rio” de um dado evento. Um entendimen-to viável da significação global do discur-so deve reproduzir   este evento de rela-ção mútua entre os falantes; deve, porassim dizer, “representá-lo” de novo, coma pessoa que quer compreender assu-mindo o papel do ouvinte. Mas para re-presentar esse papel, ela precisa com-

    preender distintamente também as posi-ções dos outros dois participantes.

    Para o ponto de vista lingüístico, na-

    turalmente, nem este evento nem seusparticipantes vivos existem; o ponto devista lingüístico lida com palavras nuas,abstratas, e com seus componentes i-gualmente abstratos (fonéticos, morfoló-gicos, etc.). Portanto, o conteúdo total do

    discurso e seu valor ideológico – o cogni-tivo, político, estético, ou outro – são ina-cessíveis a ele. Do mesmo modo comonão pode haver uma lógica lingüística ouuma política lingüistica, também não po-de haver uma poética lingüística.

    V

    De que modo um enunciado verbalartístico – uma obra completa de arte po-ética – difere de um enunciado na corren-

    te da vida?É imediatamente óbvio que o discur-

    so na arte não é e nem pode ser tão es-treitamente dependente de todos os fato-res do contexto extraverbal, de tudo aqui-lo que e visto é sabido, como na vida.Uma obra poética não pode confiar emobjetos e eventos do meio imediato comocoisas “entendidas”, sem fazer mesmo amais ligeira alusão a eles na parte verbaldo enunciado. A esse respeito, muitomais é exigido do discurso na literatura:muito do que poderia permanecer fora doenunciado na vida precisa encontrar re-presentação verbal. Nada deve ser dei-xado não dito numa obra poética do pon-to de vista pragmático-referencial.

    Daí se segue que, na literatura, o fa-lante, o ouvinte e o herói entramem contato pela primeira vez, nada sa-bendo um do outro, não tendo nenhumhorizonte em comum, e sendo, portanto,destituídos de qualquer coisa em que pu-

    dessem conjuntamente se apoiar ou fa-zer pressuposições? Alguns autores queescrevem sobre esses tópicos estão in-clinados a pensar que sim.

    Mas, na realidade, uma obra poética,também, está estreitamente enredada nocontexto não articulado da vida. Se fosseverdadeiro que autor, ouvinte e herói,como pessoas abstratas, entram em con-tacto pela primeira vez esvaziados dequalquer horizonte unificante e que aspalavras usadas são tomadas como de

    um dicionário, então é muito pouco pro-vável que disso resultasse mesmo umaobra não poética, e certamente não uma

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    11/18

      11

    obra poética. A ciência, até certo grau, seaproxima deste extremo – uma definiçãocientífica tem um mínimo de “presumido”;mas seria possível provar que mesmo aciência não pode ficar inteiramente sem opresumido.

    Na literatura, julgamentos de valorpresumidos têm um papel de particularimportância. Poderíamos dizer que umaobra poética é um poderoso condensadorde avaliações sociais não articuladas  –cada palavra está saturada delas. Sãoessas avaliações sociais que organizam aforma como sua expressão direta.

    Julgamentos de valor, antes de tudo,determinam a seleção de palavras do au-tor e a recepção desta seleção (a co-seleção) pelo ouvinte. O poeta, afinal,

    seleciona palavras não do dicionário, masdo contexto da vida onde as palavras fo-ram embebidas e se impregnaram de jul-gamentos de valor. Assim, ele selecionaos julgamentos de valor associados comas palavras e faz isso, além do mais, doponto de vista dos próprios portadoresdesses julgamentos de valor. Pode-se di-zer que o poeta trabalha constantementeem conjunção com a simpatia, com aconcordância ou discordância de seusouvintes. Além disso, a avaliação operatambém em relação ao objeto do enunci-ado – o herói. A simples seleção de umepíteto ou uma metáfora já é um ato deavaliação ativo orientado em duas dire-ções – em direção do ouvinte e em dire-ção do herói. Ouvinte e herói são partici- pantes constantes do evento criativo, oqual não deixa de ser nem por um instan-te um evento de comunicação viva envol-vendo todos os três

    O problema da poética sociológica

    seria resolvido se cada fator da formapudesse ser explicado como a expressãoativa da avaliação nestas duas direções –em direção do ouvinte e em direção doobjeto do enunciado, o herói6. Mas hojeos dados são muito insuficientes para selevar a cabo tal tarefa. Tudo que pode serfeito é levantar pelo menos os passospreliminares que nos levem em direção aesse objetivo.

    A estética formalista de hoje define aforma artística como a forma do material .

    6Aqui ignoramos questões técnicas sobre aforma, mas diremos algo sobre esse tópico maisadiante.

    Se este ponto de vista fosse assumidoconsistentemente, o conteúdo deverianecessariamente ser ignorado, uma vezque não sobra espaço para ele na obrapoética; na melhor das hipóteses, ele po-de ser visto como um fator do material e

    deste modo, indiretamente, ser organiza-do pela forma artística no seu apoio dire-to no material7.

    Assim entendida, a forma perde seuativo caráter avaliativo e se torna mera-mente um estímulo de um passivo senti-mento de prazer no receptor.

    Subentende-se que a forma é reali-zada com a ajuda do material – ela estáfixada no material: mas, em virtude desua significação, ela ultrapassa o materi-al. O significado, a significação da forma

    tem relação não com o material, mascom o conteúdo. Assim, por exemplo,pode-se dizer que a forma de uma está-tua não é a forma do mármore, mas aforma do corpo humano, com a qualifica-ção acrescentada que a forma “heroíza”o homem esculpido, ou o idolatra, ou, tal-vez, o denigre (o estilo caricatural nas ar-tes plásticas); isto é, a forma expressaalguma avaliação específica sobre o ob- jeto esculpido.

    A significância avaliativa da forma éespecialmente óbvia no verso. O ritmoou outros elementos formais do versoabertamente expressam uma certa atitu-de ativa em direção do objeto.

    A estética psicológica chama isso de“fator emocional” da forma. Mas não é olado psicológico do assunto que é impor-tante para nós, não a identidade das for-ças psíquicas que tomam parte na cria-ção da forma e na percepção co-criativada forma. O que é importante é a signifi-

    cância destas experiências, seu papel a-tivo, seu suporte no conteúdo. Pela me-diação da forma artística, o criador as-sume uma posição ativa com respeito aoconteúdo. A forma em si e por si não ne-cessita ser necessariamente agradável (aexplicação hedonística da forma é absur-da); o que ela precisa ser é uma avalia-ção convincente do conteúdo. Assim, porexemplo, enquanto a forma do “inimigo”poderia mesmo ser repulsiva, o estadopositivo, o prazer que o contemplador ex-

    trai ao fim é uma conseqüência do fato

    7Ponto de vista de V. M. Zirmunskij.

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    12/18

      12

    de que a forma é apropriada ao inimigo eque ela é tecnicamente perfeita  na suarealização através da ação do material. Énestes dois aspectos que a forma deveriaser estudada: em relação ao conteúdo,como sua avaliação ideológica e em rela-

    ção ao material, como a realização técni-ca desta avaliação.Não se deve pensar que a avaliação

    ideológica expressada através da forma éuma mera transposição para o interior doconteúdo de uma máxima ou uma propo-sição moral, política, ou de outra espécie.A avaliação deve permanecer no ritmo,no próprio ímpeto avaliativo do epíteto ouda metáfora, na maneira de desdobrar  oevento representado; supõe-se que sejarealizada apenas pelos meios formais do

    material. Mas, ao mesmo tempo, emboranão transpondo para o interior do conte-údo, a forma não deve perder sua cone-xão com o conteúdo, sua correlação comele, pois de outro modo ela se torna umaexperiência técnica esvaziada de qual-quer importância artística real.

    A definição geral de estilo que a poé-tica clássica e neo-clássica promoveu junto com a divisão básica do estilo em“alto” e “baixo”, apropriadamente trouxe àtona, de modo preciso, a natureza avalia-tiva ativa da forma artística. A estruturada forma é na verdade, hierárquica, eneste aspecto ela se aproxima das gra-dações políticas e jurídicas. Do mesmomodo, a forma cria, num conteúdo artisti-camente configurado, um sistema com-plexo de interrelações hierárquicas: cadaum desses elementos – um epíteto ouuma metáfora, por exemplo – ou eleva oreferente a um degrau mais alto, ou o di-minui, ou o iguala. A seleção de um herói

    ou de um evento determina desde o inícioo nível geral da forma e a admissibilidadedeste ou daquele conjunto particular deelementos configurantes. E esta exigên-cia básica da adequabilidade estilísticatem em vista a adequabilidade hierárqui-co-avaliativa da forma e do conteúdo: e-les devem ser igualmente adequados umpara o outro. A seleção do conteúdo e aseleção da forma constituem um e omesmo ato estabelecendo a posição bá-sica do criador; e neste ato uma e a

    mesma avaliação social encontra expres-são.

    VI

    A análise sociológica só pode tomarcomo ponto de partida, naturalmente, aconformação lingüística, puramente ver-bal, de uma obra, mas ela não deve e

    não pode se confinar dentro destes limi-tes, como faz a poética lingüística. A con-templação artística via leitura de uma o-bra poética começa, certamente, do gra-fema (a imagem visual de palavras escri-tas ou impressas), mas no instante mes-mo desta percepção esta imagem visualdá lugar para, e é quase obliterada poroutros fatores verbais – articulação, ima-gem sonora, entoação, significado – eesses fatores eventualmente nos levampor completo para além da fronteira do

    verbal. E assim pode-se dizer que o fator   puramente lingüístico de uma obra está para o todo artístico como o grafema está para o todo verbal . Na poesia, como navida, o discurso verbal é o um “cenário”de um evento. A percepção artísticacompetente representa-o de novo, sensi-velmente inferindo, das palavras e dasformas de sua organização, as interrela-ções vivas, específicas, do autor com omundo que ele descreve, e entrandonessas interrelações como um terceiroparticipante (o papel do ouvinte). Onde aanálise lingüística vê apenas palavras eas interrelações de seus fatores abstratos(fonéticos, morfológicos, sintáticos, etc.),a percepção artística viva e a análise so-ciológica concreta revelam relações entre pessoas, relações meramente refletidas efixadas no material verbal. O discursoverbal é o esqueleto que só toma formaviva no processo da percepção criativaconseqüentemente, só no processo da

    comunicarão social viva.No que se segue, tentaremos forne-cer um quadro breve e preliminar dos fa-tores essenciais nas interrelações dosparticipantes de um evento artístico – a-queles fatores que determinam as linhasgerais e básicas do estilo poético comoum fenômeno social. Qualquer detalha-mento posterior desses fatores ultrapas-saria, naturalmente, os limites do presen-te ensaio.

    O autor, herói e ouvinte de que es-

    tamos falando todo esse tempo devemser compreendidos não como entidadesfora da própria percepção de uma obra

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    13/18

      13

    artística, entidades que são fatores cons-titutivos essenciais da obra. Eles são aforça viva que determina a forma e o esti-lo e são distintamente detectáveis porqualquer contemplador competente. Istosignifica que todas aquelas definições

    que um historiador da literatura e da so-ciedade poderia aplicar ao autor e seusheróis – a biografia do autor, as qualifi-cações precisas dos heróis em termoscronológicos e sociológicos, etc. – estãoexcluídas aqui: elas não entram direta-mente na estrutura da obra, mas perma-necem do lado de fora. O ouvinte, tam-bém, é entendido aqui como o ouvinteque o próprio autor leva em conta, aquelea quem a obra é orientada e que, porconseqüência, intrinsecamente determina

    a estrutura da obra. Portanto, de modoalgum nós nos referimos às pessoas re-ais que de fato formam o público leitor doautor em questão.

    O primeiro fator determinante daforma do conteúdo é a escala avaliativa do evento descrito e seu agente – o herói(tenha nome ou não), tomada em estritacorrelação com a escala do criador e docontemplador. Aqui temos de lidar, exa-tamente como na vida legal ou política,com uma relação bilateral:  patrão-escravo, soberano-dominado, camarada-camarada, etc., como heróis de um e-nunciado, também determinam sua estru-tura formal. E este  peso hierárquico es- pecifico do herói é determinado, por suavez, pelo contexto não articulado de ava-liações básicas do qual uma obra poéticatambém participa. Do mesmo modo comoa “metáfora entoacional”, no nosso e-xemplo de enunciado na vida, estabele-ceu uma relação orgânica com o objeto

    do enunciado, todos os elementos do es-tilo de uma obra poética estão tambémimpregnados da atitude avaliativa do au-tor com relação ao conteúdo e expres-sam sua posição social básica. Frisemosuma vez mais que aqui não nos referimosàquelas avaliações ideológicas que estãoincorporadas no conteúdo de uma obrana forma de julgamentos ou conclusões,mas àquela espécie mais entranhada,mais profunda de avaliação via forma queencontra expressão na própria maneira

    pela qual o material artístico é visto e dis-posto.

    Algumas línguas, a japonesa em par-

    ticular, têm um estoque rico e variado deformas lexicais e gramaticais especiaispara serem usadas em estrito acordocom a classe do herói do enunciado (lin-guagem protocolar)8.

    Poderíamos dizer que o que é ainda

    matéria gramatical  para o japonês, já setornou para nós uma matéria estilística. Os componentes estilísticos mais impor-tantes do herói épico, da tragédia, da o-de, e assim por diante, são determinadosprecisamente pelo status  hierárquico doobjeto do enunciado, com relação ao fa-lante.

    Não se deve supor que esta interde-finição hierárquica de criador e herói foieliminada da literatura moderna. Ela setornou mais complexa, e não reflete a hi-

    erarquia sócio-política contemporâneacom o mesmo grau de distinção, como,por exemplo, o classicismo fez em seutempo – mas o mesmo princípio de mu-dança de estilo de acordo com a mudan-ça do valor social do herói do enunciado certamente permanece forte como antes.Afinal, não é seu inimigo pessoal que opoeta odeia, não é seu amigo pessoalque ele trata com amor e carinho, nãosão os eventos de sua vida privada que oalegram ou entristecem. Mesmo se opoeta, de fato, extrai sua paixão emgrande parte das circunstâncias de suaprópria vida privada, ainda assim ele pre-cisa socializar esse sentimento, e, con-seqüentemente, elaborar o evento cor-respondente ao nível de significação so-cial .

    O segundo fator determinante do es-tilo na interrelação entre herói e criador éo grau de sua proximidade recíproca. To-das as línguas possuem meios gramati-

    cais diretos de expressão deste aspecto:primeira, segunda e terceira pessoas eestrutura de sentença variável de acordocom a pessoa do sujeito (“eu” ou “você”ou “ele”). A forma de uma proposiçãosobre uma terceira pessoa, a forma deum tratamento de uma segunda pessoa,a forma de um enunciado sobre si próprio(e suas modificações) já são diferentesem termos de gramática. Assim, aqui aprópria estrutura da língua reflete o even-to da interrelação entre os falantes.

    8Veja W. Humboldt, Kawi-Werk  nº 2:335, eHoffman, Japan. Sprachlehre. p. 75.

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    14/18

      14

    Algumas línguas têm formas pura-mente gramaticais capazes de transmitircom maior flexibilidade as nuanças da in-terrelação social dos falantes e os váriosgraus de sua proximidade. Deste ângulo,as assim chamadas formas “inclusiva” e

    “exclusiva” do plural em algumas línguasrepresentam um caso de especial inte-resse. Por exemplo, se um falante, aousar a forma nós, tem o ouvinte em men-te e o inclui no sujeito da proposição, en-tão ele usa uma forma, enquanto que seele se refere a si mesmo e a mais algumaoutra pessoa (nós no sentido de eu e e-le), ele usa uma forma diferente. Tal é ouso do dual em certas línguas australia-nas, por exemplo. Lá são encontradas,também, duas formas especiais do trial:

    uma significando eu e você e ele, e a ou-tra eu e ele e ele (com você – o ouvinte –excluído)9.

    Nas línguas européias estas interre-lações similares entre falantes não têmexpressão gramatical especial. O caráterdessas línguas é mais abstrato e não tãocapaz de refletir a situação do enunciadovia estrutura gramatical. Contudo, as in-terrelações entre os falantes encontramexpressão nessas línguas – e expressãode muito maior sutileza e diversidade –no estilo e entoação dos enunciados. A-qui a situação de criatividade social refle-te-se completamente numa obra por meiode esquemas puramente artísticos.

    A forma de uma obra poética é de-terminada, portanto, em muitos de seusfatores, pelo modo como o autor percebeseu herói  – o herói que funciona como ocentro organizador do enunciado. A for-ma da narração objetiva, a forma da sau-dação ou apóstrofe  (oração, hino, algu-

    mas formas líricas), a forma da auto-expressão  (confissão, autobiografia, de-claração lírica – uma forma importante dalírica amorosa) são determinadas preci-samente pelo grau de proximidade entreautor e herói .

    Os dois fatores que indicamos – ovalor hierárquico do herói e seu grau deproximidade com o autor – são até agorainsuficientes, tomados independente e i-soladamente, para a determinação daforma artística. O fato é que há um tercei-

     9Veja Matthews,  Aboriginal Languages of

    Victoria. Também Humboldt, Kawi-Werk.

    ro participante tomando parte também –o ouvinte, cuja presença afeta a interrela-ção dos outros dois (criador e herói).

    A interrelação de autor e herói, afi-nal, nunca é realmente uma relação ínti-ma de dois; todo o tempo a forma leva

    em conta o terceiro participante – o ou-vinte – que exerce influência crucial emtodos os outros fatores da obra.

    De que modo pode o ouvinte deter-minar o estilo de um enunciado poético?Aqui, também, devemos distinguir doisfatores básicos: primeiro, a proximidadedo ouvinte com relação ao autor, e, se-gundo, sua relação com o herói. Nadamais perigoso para a estética do que ig-norar o papel autônomo do ouvinte. Umaopinião muito comumente sustentada é

    que o ouvinte deve ser olhado como igualao autor, exceto na experiência técnicamais recente, e que a posição de um ou-vinte competente deve supostamente seruma simples reprodução da posição doautor. Na realidade, isto não é assim.Na verdade, é antes o contrário que podeser verdadeiro: o ouvinte nunca é igual aoautor . O ouvinte tem seu lugar próprioindependente  no evento de uma criaçãoartística; ele deve ocupar uma posiçãoespecial, e, mais ainda, uma posição bila-teral   com respeito ao autor e com respei-to ao herói – e é esta posição que temefeito determinativo no estilo de um e-nunciado.

    Como o autor sente seu ouvinte? Nonosso exemplo de um enunciado na cor-rente da vida, vimos em que grau a con-cordância ou discordância presumidas doouvinte dão forma ao enunciado. Exata-mente o mesmo é verdadeiro com rela-ção a todos os fatores da forma. Para fa-

    lar figurativamente, o ouvinte normalmen-te fica lado a lado com o autor como seualiado, mas esta posição clássica do ou-vinte não é de modo algum sempre o ca-so.

    Algumas vezes o ouvinte começa ase inclinar pelo herói do enunciado. Aexpressão mais inequívoca e típica dissoé o estilo polêmico que põe juntos o heróie o ouvinte. A sátira, também, pode en-volver o ouvinte como alguém planeja-damente próximo do herói ridicularizado e

    não do autor que ridiculariza. Isto consti-tui uma espécie de forma do ridículo in-clusiva, distintamente diferente da forma

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    15/18

      15

    exclusiva, na qual o ouvinte está solidáriocom o autor que ridiculariza. No roman-tismo, um fenômeno interessante podeser observado quando o autor determina,por assim dizer, uma aliança com seu he-rói contra o ouvinte (Lucinda, de Friedrich

    Schelegel, e, na literatura russa. Herói donosso tempo, até certo ponto).De especial característica e interesse

    para a análise é a percepção que o autortem de seu ouvinte nas formas da confis-são e da autobiografia. Todas as grada-ções de sentimento, de referência humil-de diante do ouvinte, como diante de um juiz verdadeiro, até a desconfiança des-denhosa e hostilidade, podem ter efeitodeterminativo no estilo de uma confissãoou de uma autobiografia. Material extre-

    mamente interessante para a ilustraçãodesta disputa pode ser encontrado nasobras de Dostoiévski. O estilo confessio-nal do “artigo” de Ippolit (O idiota) é de-terminado no mais alto grau pela descon-fiança desdenhosa e hostilidade dirigidasa todos aqueles que vão ouvir sua con-fissão mortal. Tons similares, mas de al-guma forma suavizados, determinam oestilo das Notas do subterrâneo. O estiloda “Confissão de Stavrogin” (Os demô-nios/Os possessos) demonstra muitomaior confiança no ouvinte e reconheci-mento de seus direitos, ainda que aquitambém, de tempos em tempos, irrompaum sentimento quase que de ódio para oouvinte, o que acarreta o traço recortadodo seu estilo. Fazer-se de bobo, comouma forma especial de enunciado, querepousa certamente na periferia do artís-tico, é determinado sobretudo por um ex-tremamente complexo e emaranhadoconflito do falante com o ouvinte.

    Uma forma especialmente sensível àposição do ouvinte é a lírica. A condiçãosubjacente para a entoação lírica é a ab-soluta certeza da simpatia do ouvinte.Qualquer dúvida a esse respeito que seinsinuasse na situação lírica, o estilo dolírico mudaria drasticamente. Este conflitocom o ouvinte encontra sua mais eminen-te expressão na assim chamada ironia lí-rica (Heine, e, na poesia moderna, Lafor-gue, Annenskij, e outros). A forma da i-ronia em geral é condicionada por um

    conflito social: é o encontro, em uma voz,de dois julgamentos de valor personifica-dos e sua interferência recíproca.

    Na estética moderna, foi feita umaproposta especial, a assim chamada teo-ria jurídica da tragédia, uma teoria querepresenta essencialmente a tentativa deconceber a estrutura da tragédia como aestrutura de um julgamento no tribunal10.

    A interrelação de herói e coro, de umlado, e a posição global do ouvinte, deoutro, na verdade leva-os, até certo grau,a uma interpretação jurídica. Mas natu-ralmente isto só pode ser entendido co-mo uma analogia. O traço comum impor-tante entre a tragédia – na verdade entrequalquer obra de arte – e o processo ju-dicial resume-se meramente à existênciade “lados”, isto é, à ocupação dos váriosparticipantes de  posições diferentes. Ostermos, tão difundidos na terminologia li-

    terária, que definem o poeta como “juiz”,“expositor”, “testemunha”, “defensor”, emesmo “executor” (terminologia para asátira do açoite” – Juvenal, Barbier, Ne-krasov e outros) e definições semelhan-tes para heróis e ouvintes, revelam pormeio da analogia a mesma base socialda poesia. Em todo caso, autor, herói eouvinte em parte alguma se fundem nu-ma só massa indiferente – eles ocupam posições autônomas, eles são na verda-de “lados”, lados não de um processo ju-dicial, mas de um evento artístico comestrutura social específica cujo “protoco-lo” é a obra de arte.

    Não seria inoportuno neste ponto a-centuar, uma vez mais, que nós enten-demos o ouvinte, e o temos entendidotodo esse tempo, como um participanteimanente do evento artístico que tem e-feito determinativo na forma da obra des-de dentro. O ouvinte, a par com o autor eo herói, é um fator intrínseco essencial,

    da obra, e de modo algum coincide como assim chamado público leitor, localiza-do fora da obra, cujos gostos artísticos eexigências podem ser conscientementelevados em conta. Tal “levar em conta” éincapaz de um efeito direto e profundosobre a forma artística no processo desua criação viva. E mais, se o fato de le-var conscientemente em conta o públicoleitor vem ocupar uma posição de algumaimportância na criatividade do poeta, estacriatividade inevitavelmente perde sua

    10Para maior desenvolvimento deste pontode vista, veja Hermann Cohen. Asthetik des reinenGefühls, vol. 2.

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    16/18

      16

    pureza artística e se degrada a um nívelsocial mais baixo.

    Este interesse externo indica a perdapelo poeta de seu ouvinte imanente, seudivórcio do todo social   que intrinseca-mente, à parte de todas as considera-

    ções abstratas, tem a capacidade de de-terminar seus  julgamentos de valor   e aforma artística de seus enunciados poéti-cos, forma esta que é a expressão da-queles julgamentos de valor crucialmentesociais. Quanto mais um poeta está se-parado da unidade social do seu grupo,mais provável é que ele leve em conta asexigências externas  de um  público leitor particular . Apenas um grupo social alheioao poeta pode determinar seu trabalhocriativo desde fora. Um grupo próprio não

    necessita de tal definição externa: ele e-xiste na voz do poeta, na entoação e notom básico desta voz – queira o poeta ounão.

    O poeta adquire suas palavras e a-prende a entoá-las ao longo do curso desua vida inteira no processo do seu con-tato multifacetado com seu ambiente. Opoeta começa a usar aquelas palavras eentoações já na fala interior  com a ajudada qual ele pensa e se torna conscientede si próprio, mesmo quando ele nãoproduz enunciados. É ingênuo supor quese possa assimilar como própria uma falaexterna que seja contrária à fala interior ,isto é, que seja contrária a toda a manei-ra verbal interior de se ser consciente desi próprio e do mundo. Mesmo que sejapossível criar tal coisa em alguma situa-ção pragmática, ainda, como alguma coi-sa separada de todas suas fontes de sus-tentação, será destituída de qualquerprodutividade artística. O estilo do poeta

    é engendrado do estilo de sua fala interi-or , o qual não se submete a controle, esua fala interior é ela mesma o produtode sua vida social inteira, “O estilo é ohomem”, dizem; mas poderíamos dizer: oestilo é pelo menos duas pessoas ou,mais precisamente, uma pessoa maisseu grupo social na forma do seu repre-sentante autorizado, o ouvinte – o partici-pante constante na fala interior e exteriorde uma pessoa.

    O fato é que nenhum ato consciente

    de algum grau de nitidez pode existir sema fala interior, sem palavras e entoações – sem avaliações, e, conseqüentemente,

    todo ato consciente já é um ato social,um ato de comunicação. Mesmo a maisíntima auto-consciência é uma tentativade se traduzir no código comum, de seavaliar de outro ponto de vista, e, conse-qüentemente, vincula a orientação para

    um ouvinte possível. Este ouvinte podeser apenas o portador dos julgamentosde valor do grupo social ao qual a pessoa“consciente” pertence. Neste sentido, aconsciência, desde que não percamos devista seu conteúdo, não é apenas um fe-nômeno psicológico, mas também, e so-bretudo, um fenômeno ideológico, um produto do intercâmbio social . Esteconstante co-participante  de todos nos-sos atos conscientes determina não ape-nas o conteúdo da consciência, mas

    também – e eis aqui o ponto principal pa-ra nós – a própria seleção do conteúdo, aseleção daquilo de que nós precisamentenos tornamos conscientes, e assim de-termina também aquelas avaliações  quepermeiam a consciência e às quais usu-almente a psicologia denomina de “tomemocional” da consciência. É precisa-mente deste participante constante detodos nossos atos conscientes que o ou-vinte que determina a forma artística éengendrado.

    Não há nada mais perigoso do queconceber esta estrutura social sutil dacriatividade verbal como análoga às es-peculações conscientes e cênicas do edi-tor burguês que “calcula as expectativasdo mercado do livro”, e aplicar à caracte-rização da estrutura imanente de uma o-bra categorias do tipo “oferta-procura”.Ora, demasiado número de “sociologis-tas” estão inclinados a identificar o traba-lho criativo do escritor para a sociedade

    com a vocação do editor-empresário.Sob as condições da economia bur-guesa, o mercado do livro, naturalmente,“regula” os escritores, mas isto de modoalgum deve ser identificado com o traba-lho regulador do ouvinte como um cons-tante elemento estrutural na criatividadeartística. Para um historiador da literaturada era capitalista, o mercado é um fatormuito importante, mas para a poética teó-rica, que estuda a estrutura ideológicabásica da arte, este fator externo é irrele-

    vante. Contudo, mesmo no estudo histó-rico da literatura, a história do mercadodo livro não deve ser confundida com a

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    17/18

      17

    história da literatura.

    VII

    Todos os fatores determinantes daforma de um enunciado artístico que nós

    analisamos – 1. o valor hierárquico do he-rói ou evento funcionando como o conte-údo do enunciado; 2. o seu grau de pro-ximidade com o autor, e 3. o ouvinte esua interrelação com o autor, de um lado,e com o herói, de outro – todos esses fa-tores são os  pontos de contato entre asforças sociais da realidade extra-artísticae a arte verbal . Graças precisamente aesta espécie de estrutura intrinsecamentesocial  que a criação artística possui, queela é aberta em todos os lados à influên-

    cia dos outros domínios da  vida. Outrasesferas ideológicas, incluindo principal-mente a ordem sócio-política e a econo-mia, têm efeito determinativo na arte ver-bal não meramente de fora, mas do ân-gulo direto de seus elementos estruturaisintrínsecos. E, inversamente, a interaçãoartística de autor, ouvinte e herói podeexercer sua influência em outros domí-nios de intercâmbio social.

    A elucidação total e completa dequestões tais como de quais são os he-róis típicos da literatura em algum perío-do particular, qual é a orientação formaltípica do autor com relação a eles, quaissão as interrelações de autor e herói como ouvinte no todo da criação artística – aelucidação de tais questões pressupõe aanálise completa das condições econô-micas e ideológicas do tempo.

    Mas estas questões históricas con-cretas ultrapassam o campo da poéticateórica, a qual, contudo, ainda inclui uma

    outra importante tarefa. Até agora nóstratamos apenas aqueles fatores que de-terminam a forma em sua relação com oconteúdo, isto é, a forma como a avalia-ção social corporificada de um conteúdopreciso, e verificamos que todo fator daforma é um produto da interação social.Mas nós igualmente assinalamos que aforma pode também ser compreendidade um outro ângulo – como a forma reali-zada com a ajuda de um material especí-fico. Isto abre toda uma longa série de

    questões relacionadas com o aspectotécnico da forma.

    Naturalmente, estas questões técni-

    cas só podem ser   separadas das ques-tões da sociologia da forma em termos abstratos; na realidade, é impossível di-vorciar a significação artística de algumrecurso, digamos, uma metáfora que serelaciona ao conteúdo e que expressa a

    avaliação formal sobre ele (isto é, a me-táfora rebaixa o objeto ou o eleva a umaclasse mais alta), da especificação  pura-mente lingüística de tal invenção.

     A significação extraverbal de umametáfora – um reagrupar de valores – esua cobertura lingüística – uma mudançasemântica – são meramente diferentespontos de vista sobre um e mesmo fe-nômeno real. Mas o segundo ponto devista está subordinado ao primeiro: umpoeta usa uma metáfora para reagrupar

    valores, e não com a finalidade de umexercício lingüístico.

    Todas as questões da forma podemser tomadas em relação com o material –no caso dado, em relação com a línguaem sua concepção lingüística. A análisetécnica irá então responder à questão dequais meios lingüísticos são usados paraa realização do propósito sócio-artísticoda forma. Mas, se esse propósito não éconhecido, se sua significação não é pre-viamente elucidada, a análise técnica se-rá absurda.

    As questões teóricas da forma, natu-ralmente, vão além do campo de alcanceda tarefa a que nos propusemos aqui.Além do mais, seu tratamento requeruma análise incomparavelmente mais di-versificada e elaborada do aspecto sócio-artístico da arte verbal. Aqui pudemosfornecer apenas um quadro breve das di-reções básicas que tal análise deve to-mar.

    Se fomos bem sucedidos em de-monstrar apenas a mera possibilidade deuma abordagem sociológica da estruturaimanente da forma poética, podemosconsiderar nossa tarefa plenamentecumprida.

    Este texto foi originalmente publicadoem russo, em 1926, sob o título “Slovo vzhizni i slovo v poesie”, na revista Zvezdanº 6, e assinado por V. N. Voloshinov. Atradução para o português, feita por CarlosAlberto Faraco e Cristovão Tezza, para usodidático, tomou como base a tradução in-

  • 8/16/2019 _Discurso Na Vida e Discurso Na Arte

    18/18

    glesa de I. R. Titunik (“Discourse in life anddiscourse in art – concerning sociologicalpoetics”), publicada em V. N. Voloshinov,Freudism, New York. Academic Press,1976.