direitos sociais, omissÃo inconstitucional e o papel da jurisdiÇÃo constitucional ·...

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DIREITOS SOCIAIS, OMISSÃO INCONSTITUCIONAL E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Alex Alves Lessa 1 SUMÁRIO: Introdução; 1. Estado Democrático de Direito e Direitos Sociais; 2. O papel da Jurisdição Constitucional diante da Omissão Inconstitucional; 3. A Tipologia das Omissões Inconstitucionais; 4. O Dogma do Legislador Negativo, Omissões Inconstitucionais e Sentenças Aditivas; Conclusão; Bibliografia. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que o Estado Democrático de Direito ou Estado Constitucional de Direito surgiu como resposta ao modelo de Estado Liberal e ao modelo de Estado Social de Direito, estados não democráticos e que falharam na proteção do ser humano. Este novo modelo de Estado incorpora como objeto de tutela não apenas direitos fundamentais de primeira dimensão, mas também direitos fundamentais de segunda e de terceira dimensão. Por decorrência lógica da força normativa da Constituição, o papel da jurisdição constitucional se amplia, para além da mera atuação como legislador negativo, nas hipóteses de ações inconstitucionais, como também para atuação nas hipóteses de omissões inconstitucionais. Neste aspecto, primeiro, busca-se analisar a natureza dos direitos sociais, que são o principal objeto da omissão inconstitucional e, em segundo plano, o novo papel da jurisdição constitucional. Em seguida, a partir da tipologia da omissão inconstitucional, faz-se uma análise dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e a evolução da jurisprudência nos julgamentos das omissões inconstitucionais, principalmente por meio do mandado de injunção. 1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS SOCIAIS. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe em seu preâmbulo que “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o 1 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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DIREITOS SOCIAIS, OMISSÃO INCONSTITUCIONAL E O PAPEL DA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Alex Alves Lessa1

SUMÁRIO: Introdução; 1. Estado Democrático de Direito e Direitos Sociais;

2. O papel da Jurisdição Constitucional diante da Omissão Inconstitucional;

3. A Tipologia das Omissões Inconstitucionais; 4. O Dogma do Legislador

Negativo, Omissões Inconstitucionais e Sentenças Aditivas; Conclusão;

Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que o Estado

Democrático de Direito ou Estado Constitucional de Direito surgiu como resposta ao

modelo de Estado Liberal e ao modelo de Estado Social de Direito, estados não

democráticos e que falharam na proteção do ser humano.

Este novo modelo de Estado incorpora como objeto de tutela não apenas

direitos fundamentais de primeira dimensão, mas também direitos fundamentais de

segunda e de terceira dimensão. Por decorrência lógica da força normativa da

Constituição, o papel da jurisdição constitucional se amplia, para além da mera atuação

como legislador negativo, nas hipóteses de ações inconstitucionais, como também para

atuação nas hipóteses de omissões inconstitucionais.

Neste aspecto, primeiro, busca-se analisar a natureza dos direitos sociais,

que são o principal objeto da omissão inconstitucional e, em segundo plano, o novo

papel da jurisdição constitucional. Em seguida, a partir da tipologia da omissão

inconstitucional, faz-se uma análise dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e a

evolução da jurisprudência nos julgamentos das omissões inconstitucionais,

principalmente por meio do mandado de injunção.

1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS SOCIAIS.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe em seu

preâmbulo que “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia

Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o

1 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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exercício dos direitos sociais e individuais”. Apesar da ausência de natureza normativa,

o preambulo fez referência inicial aos direitos sociais, antes mesmo dos direitos

individuais. Com efeito, é notório que a Constituição Brasileira lançou um projeto de

Estado Democrático Direito, de base social democrata, cuja normatização no seu art. 1º

já evidencia a sua finalidade primordial de proteção e de promoção dos direitos

fundamentais. É senão “a existência de um núcleo (básico) que albergue as conquistas

civilizatórias assentadas no binômio democracia e direitos humanos fundamentais-

sociais” 2.

Nessa linha, a finalidade primordial do Estado Democrático de direito é a

tutela de direitos fundamentais, que não é restrita a não intervenção estatal (proibição de

excesso), mas inclui o dever de promover e de proteger direitos (teoria do dever de

proteção e vedação de proteção deficiente). Como destaca Gilmar Mendes, “os direitos

fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote),

expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para

utilizar a expressão de Canaris, não apenas a proibição de excesso (Übermassverbote),

mas também a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote). E tal princípio

tem aplicação especial no âmbito dos direitos sociais” 3.

No que se refere aos direitos sociais, na afirmação de Canotilho, a

realização da democracia econômica, social e cultural é consequência política e lógico-

material do princípio democrático. Assim, para o autor português, o princípio da

socialidade é o “núcleo firme do Estado Constitucional Democrático” 4. Nesse passo, o

conceito de democracia econômica, social e cultural possui o mesmo grau de validade e

dignidade constitucional do princípio do estado de direito e do princípio da democracia

política, razão pela qual está garantido contra reformas constitucionais 5.

Assim, diante dos pressupostos fundamentais do “Estado Democrático”6, ou

no dizer de Canotilho, “Estado Constitucional Democrático” ou “Estado Democrático e

2 STREEK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis B. CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira;

SARLET, Ingo Wolfgang; STREEK, Lênio Luiz. (coords.) ____ Comentários à Constituição do Brasil.

São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 116. 3 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo:

Saraiva, 2012, p. 477. 4 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição. Coimbra:

Almedina, 2000, p. 335. 5 CANOTILHO, ob. cit., p. 337.

6 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 117.

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Social de Direito”7, não há como negar o status constitucional dos direitos econômicos,

sociais e culturais. E não apenas como um mínimo de existência digna, mas como

direitos fundamentais exigíveis do Estado por serem garantias constitucionais

originárias, segundo Cristina Queiroz 8.

A ausência de previsão expressa de direitos sociais pela Lei Fundamental da

Alemanha não foi obstáculo para o reconhecimento de direitos sociais pelo Tribunal

Constitucional daquele país, uma vez que foi proclamado o dever de prestação do

Estado a partir do princípio da dignidade humana, da cláusula do Estado Social e do

enunciado geral de igualdade fática. Com efeito, o Tribunal Constitucional Federal, ao

decidir sobre os direitos subjetivos a prestações, acabou por definir “um direito

fundamental a um mínimo existencial” 9, mesmo sem previsão expressa na Constituição

Alemã 10

.

É preciso ressaltar que o Welfare State11

na Alemanha foi estruturado a

partir de concepções políticas de cunho socialdemocrata, que, segundo Ricardo Lobo

Torres, tinha como teses básicas: a) todos os direitos sociais são direitos fundamentais;

b) os direitos fundamentais sociais são plenamente justificáveis, independente da

intermediação do legislador; c) os direitos fundamentais sociais são interpretados de

7 CANOTILHO, ob. cit. p. 335-337.

8 QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos Fundamentais. Teoria Geral. 2ª edição. Coimbra, p. 193.

9 SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial

e direito à saúde: algumas aproximações. Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do Possível” / org.

Ingo Wolfgang Sarlte e Luciano Benetti Timm; Ana Paula de Barcellos...[et al.]. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2008. Esclarecem os autores que a vinculação dos direitos sociais passou a ser designada

como uma garantia de mínimo existencial, ou seja, um direito fundamental às condições materiais que

assegurem uma vida com dignidade. O direito subjetivo a recursos mínimos para uma existência digna

originou na Alemanha, no início da década de 1950, com o publicista Otto Bachof, que construí a tese a

partir do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso I, da Lei Fundamental da

Alemanha, aliado ao direito a vida e integridade corporal (artigo 2º, inciso II, da LF). Esta ideia foi

incorporada pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha que consagrou o reconhecimento de um

direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna, resultando no

reconhecimento definitivo do status constitucional da garantia do mínimo existencial, como integrante do

conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito. 10

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo,

Malheiros, 2008, p. 435-436. 11

GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Direitos Fundamentais Sociais. Releitura da uma Constituição

Dirigente. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2010, p. 55-63. “O welfare state, por conseguinte, significou,

sobretudo em países europeus que experimentaram padrões de políticas públicas mais universais, um

novo arranjo econômico-político nas estruturas jurídicas dos Estados; apresentou-se, assim, diante dos

efeitos recessivos das duas Guerras Mundiais, como uma “resposta intermediária” entre a política do

Kremlin e os ideais do liberalismo, intervindo na ordem social, sem, contudo, deslocar ou ultrapassar o

perfil constitucional do Estado Democrático de Direito”.

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acordo com princípios de interpretação constitucional, tais como os da máxima

efetividade, concordância prática e unidade da ordem jurídica12

.

Contudo, com o colapso do socialismo real e a crise do Estado de Bem-

Estar-Social, simbolizados pela queda do muro de Berlim (1989), as perspectivas sobre

os direitos sociais foram alteradas. Nesse sentido, segundo Torres, a tese de

indivisibilidade dos direitos humanos não mais se justificaria, por si só, dada a

insuficiência quanto à resolução do problema de efetividade dos direitos sociais 13

14

.

Bem por isso muitos doutrinadores têm negado aos direitos sociais a sua

classificação como direitos subjetivos. As teses contrárias a judicialização do tema se

baseiam na dependência econômica, com ênfase à reserva financeira do possível e a

escassez de recursos, além da necessidade de se fazer escolhas alocativas como típicas

12

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza

orçamentária. SARLET, Ingo Wolfgang (org). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do Possível”.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 70. 13

TORRES, ob. cit., p. 80-86. Para Ricardo Lobo Torres, há uma importante distinção a se fazer entre

mínimo existencial e os direitos econômicos e sociais. Somente o primeiro comporia o que se entende

como direitos fundamentais sociais, pois independem de atuação do legislador e contra o qual não se pode

opor a reserva do possível. Já os segundos dependeriam integralmente de uma concessão do legislador,

que pode ser de natureza orçamentária. Com isso, defende que os direitos econômicos e sociais não

passam de meras normas programáticas, que se limitam a fornecer diretrizes ou orientações para o

legislador e sem eficácia vinculante, sem status constitucional, uma vez que a Constituição não se envolve

com autorizações de gastos públicos nem se imiscui com problemas econômicos conjunturais. De outro

lado, na doutrina nacional, Ana Paula de Barcelos afirma que: a) a Constituição estabelece como um de

seus fins essenciais a garantia e a promoção dos direitos fundamentais; b) as políticas públicas constituem

o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemática e abrangente; c) as

políticas públicas envolvem gasto de dinheiro público; d) os recursos públicos são limitados e é preciso

fazer escolhas; e) em certa medida, a Constituição vincula as escolhas em matérias de políticas públicas e

o gasto de recursos públicos. BARCELOS, ob. cit., p. 117. No mesmo sentido: SARLET, ob. cit., p. 17.

Ao discorrerem sobre reserva do possível e mínimo existencial, definem categoricamente que os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais como autênticos direitos fundamentais. A partir da ideia de que tantos os direitos de defesa, quanto os direitos a prestações geram para o Estado ações negativas e

positivas, ou seja, de que os direitos de defesa também geral custos para o Estado, defendem uma

fundamentalidade própria dos direitos sociais assegurados na Constituição, baseando-se na dupla

fundamentalidade formal e material. 14

HESSE, Konrad. Temas Fundamentais de Direito Constitucional. Significado dos Direitos

Fundamentais. Tradução: Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 46. Talvez por isso,

Konrad Hesse, ao dissertar sobre direitos sociais fundamentais, escreveu que a problemática de tais

direitos envolve uma estrutura distinta dos tradicionais direitos de liberdade e de igualdade. Por isso,

dependem de ações estatais, não apenas a regulamentação pelo legislador, mas também a atuação da

Administração, razão pela qual não poderiam ser invocados judicialmente de forma direta. Segundo o

autor: “Em princípio, não podem tais direitos fundamentais sociais assumir o caráter de direitos

subjetivos individuais. Ao limite, apenas se distinguem das normas constitucionais definidoras de

competências do Estado, hoje no centro do debate”.

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decisões políticas 15

, isso apesar das contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein,

de que todas as dimensões de direitos geram custos públicos 16

.

Carlos Blanco, doutrinador português, faz uma distinção entre direitos

sociais contidos em normas preceptivas executáveis por si próprias e normas

programáticas. Para ele, as primeiras constituem direitos públicos subjetivos, em razão

do disposto no §1º do art. 5º da Constituição Brasileira, de modo que, ainda que

dependam da intermediação do legislador, não estão sujeitas à reserva do possível e a

edição da norma constitui obrigação indeclinável do legislador 17

. Por sua vez, as

segundas não seriam direitos subjetivos e o exercício do direito dependeria de lei

mediadora de sua realização, além de estarem sujeitas à reserva do possível18

.

Contudo, para outra corrente defensora da atuação do Poder Judiciário, a

concretização de direitos sociais são indispensáveis para a promoção da dignidade da

pessoa humana, ao menos quanto ao “mínimo existencial” de cada um destes direitos19

.

Para Cristina M.M. Queiroz, os direitos sociais garantidos diretamente pela

Constituição são normas de escalão constitucional e, por isso, dispõem de vinculação

geral em relação a todos os poderes, não constituindo mero apelo ao legislador, mas sim

deveres de proteção e de ação (imperativo constitucional). Por esta razão, constituem

direitos públicos subjetivos exigíveis do Estado e configuram uma imposição

constitucional legitimadora de transformações sociais e econômicas necessárias para sua

efetivação, ainda que dentro de uma reserva do possível. Implicam também em uma

interpretação das normas legais conforme a Constituição social, econômica e cultural, e

15

MENDES, ob. cit. p. 464-466. 16

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: why Liberty Depends on Taxes. W.W.

Norton & Company: New York, 1999. 17

No mesmo sentido: RAMOS, Elival da Silva. Mandado de Injunção e Separação de Poderes.

MENDES, Gilmar Ferreira (org.). Mandado de Injunção. Estudos sobre a sua regulamentação. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 244-245. 18

MORAIS, Carlos Blanco. As Omissões Legislativas e os Efeitos Jurídicos do Mandado de Injunção:

um ângulo de visão português. MENDES, Gilmar Ferreira (org.). Mandado de Injunção. Estudos sobre a

sua regulamentação. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 368-369. “Na Constituição Brasileira, diversamente do

que sucede com a portuguesa, muitos direitos sociais estão contidos em normas preceptivas por si

próprias, outros em normas programáticas. Esta distinção releva, na medida em que no tocante aos

direitos sociais contidos em normas programáticas é questionável que se trate de direitos subjetivos e

que, por conseguinte, sejam diretamente disfrutáveis. Quer os direitos sociais contidos em normas

preceptivas não exequíveis em si próprias quer em normas programáticas carecem de lei mediadora para

a sua realização. Ainda assim, no caso das primeiras, a edição da lei necessária para os concretizar não

está sujeita à reserva do possível devendo a mesma edição constituir uma obrigação indeclinável e

imediata do decisor legislativo”. 19

MENDES, ob. cit. p. 465.

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a inércia do Estado quanto à efetiva realização desses direitos constitui

inconstitucionalidade por omissão 20

·

É certo que a implementação de políticas públicas direcionadas à promoção

dos direitos sociais, econômicos e sociais gera custos, de modo que estes direitos só

podem ser garantidos na medida do possível, ou seja, de modo proporcional ao seu

desenvolvimento e ao progresso econômico e social. Este condicionamento e

dependência conjuntural estão ligados aos recursos disponíveis, o que gera um grave

problema de “execução efectiva” 21

. No entanto, embora a dependência aos recursos

disponíveis seja um reconhecimento de que a inexistência de recursos financeiros enseja

a menor efetividade dos direitos sociais, a reserva do possível não é princípio absoluto e

não exclui a garantia constitucional de um “mínimo social”, garantia esta que decorre

diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana 22

. Esta garantia é definida

como uma “forma de liberdade” por Cristina M.M. Queiroz, de mesma natureza de um

direito de defesa, ainda que traduzida por um direito a prestação positiva por parte do

Estado 23

. Por isso, o mínimo existencial prevalece sobre a reserva do possível.

Em outros termos, o legislador tem a primazia na concretização da

Constituição, uma vez que é responsável pela determinação dos meios orçamentários e

financeiros necessários para a realização dos objetivos constitucionais, dentro de sua

competência constitucional, e, portanto, possui margem de ação para determinar as

“prioridades políticas”. Entretanto, a previsão expressa na Constituição de políticas

públicas diminui a margem de ponderação do legislador. As escolhas devem ser feitas

consoante os fins, as metas e os objetivos traçados pela Constituição, sob pena de

inconstitucionalidade por omissão. Ademais, a não realização ou a realização deficiente

destes direitos pode conduzir a uma quebra ou violação do princípio da confiança que

está na base da formação do contrato social, ou seja, da própria sociedade 24

.

20

QUEIROZ, ob. cit., p. 187-192. “Por essa razão, alguns países optaram por inscrever os direitos

sociais, econômicos e culturais numa ‘declaração de direitos’ sem efeito vinculante”, a exemplo da

Constituição da Espanha de 1978 e da Constituição Suíça de 1999”. 21

QUEIROZ, ob. cit., p. 185. 22

QUEIROZ, ob. cit., p. 186. 23

QUEIROZ, ob. cit., p. 193. 24

QUEIROZ, ob. cit., p. 191-192. Nesse mesmo sentido: BARCELOS, ob. cit., p. 117. Para a autora

aponta que: a) a Constituição estabelece como um de seus fins essenciais a garantia e a promoção dos

direitos fundamentais; b) as políticas públicas constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem

ser realizados de forma sistemática e abrangente; c) as políticas públicas envolvem gasto de dinheiro

público; d) os recursos públicos são limitados e é preciso fazer escolhas; e) em certa medida, a

Constituição vincula as escolhas em matérias de políticas públicas e o gasto de recursos públicos.

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Nesse mesmo sentido, para Robert Alexy, a partir de uma ideia-guia do

conceito geral e formal de direitos fundamentais, “os direitos sociais são posições que

são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser

simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples” 25

. Com efeito, esta

concepção formal de direitos vincula o legislador, não sendo passível de revisão, pela

ordem jurídica já constituída, aquilo que a Lei Fundamental estabelece como

“fundamental”.

A primazia da Constituição e seu caráter vinculante são pressupostos da

função constitucional como ordem jurídica fundamental da comunidade. Assim, como

aduz Hesse, “Daí que o Direito Constitucional não possa ser derrogado nem reformado

por leis ordinárias; nenhuma disposição do ordenamento jurídico nem ato estatal pode

contradizê-lo; todos os poderes públicos, inclusive o legislativo, acham-se vinculados

pela Constituição”26

.

Para Canotilho, “os direitos económicos, sociais e culturais e respectiva

proteção andam estreitamente associados a um conjunto de condições – enconómicas,

sociais e culturais – que a moderna doutrina dos direitos fundamentais designa por

pressupostos de direitos fundamentais” 27

. Estes pressupostos seriam a multiplicidade

de fatores como a capacidade econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo

de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico, criatividade

cultural, convenções sociais, ética filosófica ou religiosa, os quais condicionam a

existência e a proteção destes direitos.

No entanto, com o fim de justificar a vinculação constitucional dos direitos

sociais, afirma Canotilho 28

que: “...o princípio da democracia económica, social e

25

ALEXY, ob. cit., p. 446. 26

HESSE, Konrad. Temas de Direito Constitucional. Constituição e Direito Constitucional. Tradução:

Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 8-9. 27

CANOTILHO, ob. cit., p. 473. 28

CANOTILHO, ob. cit., p. 476 e 477-480. Os direitos sociais são direitos subjetivos públicos “inerentes

ao espaço existencial do cidadão, independente da sua justicialidade e exequibilidade imediatas”. Com

efeito, são direitos com a mesma dignidade subjetiva dos direitos fundamentais de primeira dimensão. De

outro lado, no aspecto objetivo, os direitos sociais são 1) imposições legiferantes, cujo legislador

infraconstitucional é obrigado a atuar positivamente com o fim de criar condições materiais e

institucionais para a realização destes direitos; 2) fornecimento de prestações aos cidadãos, densificadoras

da dimensão subjetiva essencial destes direitos e executoras das imposições constitucionais. Os direitos

sociais originários (direitos originários a prestações) são aqueles que: 1) decorrem da garantia

constitucional; 2) o Estado tem o dever de criar pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efetivo

desses direitos; e 3) faculdade de um cidadão exigir de forma imediata as prestações constitutivas desses

direitos. O conceito de direitos sociais originários não se reduzem a um simples apelo ao legislador, mas

configura imposição constitucional legitimadora de transformações sociais e econômicas necessárias para

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cultural é um mandato constitucional juridicamente vinculativo que limita a

discricionariedade legislativa quanto ao <<se>> da actuação, deixando, porém, uma

margem considerável de liberdade de conformação política quanto ao como da sua

concretização” 29

.

Ademais, segundo o mestre português, o princípio da proibição de

retrocesso determina que os direitos sociais e econômicos, uma vez obtido um

determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia

institucional e um direito subjetivo. Com efeito, embora tal princípio não seja imune a

crises econômicas (reversibilidade fática), limita a reversibilidade jurídica dos direitos

adquiridos 30

. Evidente também que a efetividade dos direitos sociais passa pela reserva

do possível, ou seja, a dependência dos direitos sociais aos recursos disponíveis aos

recursos econômicos. Reconhecimento de que a inexistência de recursos força os

poderes a fazer menos do que se encontram obrigados a fazer, mas não é algo absoluto,

pois há a garantia do mínimo social, que decorre diretamente do princípio da dignidade

da pessoa humana 31

.

efetivação dos direitos. Isso implica o problema de sua efetivação, ainda que dentro de uma reserva do

possível. Além disso, os direitos sociais implicam uma interpretação das normas legais conforme a

Constituição social, econômica e cultural. E por fim a inércia do estado quanto a efetiva realização desses

direitos configura inconstitucionalidade por omissão. Os direitos sociais derivados (direitos derivados a

prestações) são entendidos como direito dos cidadãos a uma participação igual nas prestações do Estado

concretizadas por Lei conforme as capacidades existentes. Assim, os direitos derivados desempenham

uma função de “guarda de flanco” dos direitos sociais garantindo o grau de concretização já obtido. Com

efeito, o poder público não pode eliminar, sem compensação ou alternativa o núcleo essencial já realizado

dos direitos sociais, identificando-se aqui a proibição de retrocesso social. 29

CANOTILHO, ob. cit., p. 338. 30

CANOTILHO, ob. cit., p. 339. 31

SARLET, ob. cit., p. 30-35. Conforme os autores, a reserva do possível apresenta pelo menos uma

dimensão tríplice, que abrange: a) disponibilidade fática de recursos; b) disponibilidade jurídica dos

recursos materiais e humanos (conexão com distribuição de receitas e competências tributárias,

orçamentárias, legislativas e administrativas, conforme o sistema federativo constitucional; c) e

perspectiva do titular de um direito a prestações (a reserva do possível envolve o problema da

proporcionalidade e razoabilidade da prestação, especialmente quanto à exigibilidade). De outro lado, a

reserva do possível não é elemento integrante dos direitos fundamentais, ao revés, constitui apenas uma

espécie de limite fático e jurídico. Sobre a alegação de que a opção de afetação material de recursos e

aplicação destes. Depende de conjuntura socioeconômica global, somada à premissa de que a

Constituição não oferece critérios para essa decisão, de modo que a decisão sobre as políticas públicas

estariam a cargo dos órgãos políticos, especialmente o legislador, afirma que isso exige uma deliberação

responsável sobre a destinação dos recursos, quanto mais for diminuta a disponibilidade orçamentária,

sob pena de se gerar uma crise de efetividade dos direitos sociais sem estar amparado na Constituição.

Com efeito, a reserva do possível não pode ser utilizada como argumento impeditivo da intervenção

judicial e desculpa genérica para omissão estatal, sendo ônus do poder público a comprovação da falta

efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, tendo como parâmetro mínimo a

garantia do mínimo existencial, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade na dimensão que

proíbe a insuficiência ou inoperância decorrente de omissão plena ou parcial dos agentes políticos

Somado a isso, a reserva do possível não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, pois o direito

social condicionado a reserva de cofres cheios equivale a nenhuma vinculação jurídica.

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No Brasil não é difícil apontar este embasamento teórico para a vinculação

de todos os poderes à promoção de direitos sociais, fundados no dever de proteção da

dignidade da pessoal humana, na cláusula do Estado Social e no enunciado geral de

igualdade fática, desde o preâmbulo ao art. 1º, e seus incisos, art. 3º, incisos I e III, art.

6º, art. 7º, art. 170, caput, arts. 196 a 200, arts. 203 a 204, arts. 205 a 214, arts. 215 a

216-A da Constituição da República. Aliado a isso, conforme já decidiu o Supremo

Tribunal Federal por mais de uma vez, há um núcleo formador do mínimo existencial

contra o qual não se pode alegar a reserva do possível32

.

Diante do novo paradigma jurídico de direitos fundamentais, é possível

afirmar, com Cristina MM Queiroz, que surge a necessidade de uma nova redefinição

de direitos que coloca os direitos de dimensão negativa e de dimensão positiva em

mesmo plano, ou seja, liga a liberdade negativa a uma liberdade positiva. Surge um

conceito de estatuto da cidadania, no qual os direitos já não são direitos ‘contra’ o

Estado, mas direitos ‘através’ do Estado, isto é, direitos que facultam e garantem o gozo

efetivo dos bens constitucionalmente protegidos33

34

.

Portanto, é possível afirmar que os direitos econômicos, sociais e culturais

possuem o mesmo grau de fundamentamentalidade dos direitos de primeira dimensão,

ou seja, decorrem do princípio constitucional da dignidade humana (mínimo existencial)

35, da cláusula social estabelecida pela Constituição Democrática e Social (estatuto da

cidadania) 36

, bem como do princípio da igualdade material (justiça social) 37

, conceitos

herdados do Estado de Bem-Estar Social.

32

RE 581352 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 29/10/2013; AI

598212 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/03/2014; RE 642536

AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 05/02/2013; STA 223 AgR, Relator(a):

Min. ELLEN GRACIE (Presidente), Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno,

julgado em 14/04/2008; ADPF 45 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004,

publicado em DJ 04/05/2004. 33

QUEIROZ, ob. cit., 182-183. Nesse sentido, para Cristina M.M. Queiroz, “o ‘estatuto da cidadania’

não consiste unicamente em proteger uma esfera de liberdade face ao Estado. Pelo contrário, o estatuto

da cidadania encontra-se hoje inextricavelmente ligado através de mecanismos de participação,

segurança e independência (isto é, de ‘não dominação’) e não por simples barreiras erguidas contra o

poder do Estado”. 34

QUEIROZ, ob. cit., 180. Do exposto, resulta o que Cristina M.M. Queiroz chama de função social dos

direitos fundamentais, com o abandono unilateral da liberdade como direito individual, uma função “ético-social” que permita os “limites imanentes” dos direitos fundamentais o que implica, por

consequência, em nova redefinição dos direitos fundamentais que coloca os direitos de dimensão negativa

e de dimensão positiva no mesmo plano, com um sistema de correlações entre os aspectos individual e

social em contextos supraindividuais. 35

Art. 1º, inciso III, da Constituição da República. 36

Art. 2º, inciso II, da Constituição da República.

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Com efeito, se há consenso mínimo de que existem pelo menos três

dimensões de direitos fundamentais, dentre as quais estão os direitos sociais como

direitos fundamentais de segunda dimensão 38

; se é inconteste que os direitos previstos

em normas de eficácia plena e de aplicabilidade imediata (normas preceptivas

executáveis por si próprias) são diretamente exigíveis por força do disposto no §1º do

art. 5º da Constituição Federal 39

; se a reserva do possível não é oponível contra os

direitos sociais que compõem o núcleo do mínimo existencial; não há dúvida de que

nestas situações temos direitos públicos subjetivos, os quais, ainda que dependam da

intermediação do legislador, não estão sujeitos à reserva do possível e a edição da

norma constitui obrigação indeclinável do legislador. Por isso, têm aplicação imediata e

são exigíveis de plano.

De outro lado, ainda que estes direitos estejam previstos em normas de

eficácia limitada, normas programáticas, normas de organização ou normas de garantias

institucionais 40

, ainda que se conteste a sua exigibilidade como direitos públicos

subjetivos, sabe-se que os direitos fundamentais, além da perspectiva subjetiva 41

,

possuem também uma perspectiva objetiva 42

, constituindo-se uma ordem objetiva de

valores, entendimento consagrado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha em 1958

43, bem como pelo Tribunal Constitucional Espanhol e pelo Supremo Tribunal

Federal44

, pela doutrina estrangeira 45

46

e pela brasileira 47

. E esta ordem objetiva de

37

Art. 5º, caput, e art. 6º, da Constituição da República. 38

SARLET, ob. cit. p. 51-57. 39

Art. 5º (...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 40

CANOTILHO, ob. cit. p. 474-475. 41

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2003, p. 156. “...noção de que ao titular de um direito fundamental é aberta a possibilidade

de impor judicialmente seus interesses juridicamente tutelados perante o destinatário (obrigado)”. 42

SARLET, ob. cit. p. 147. “...os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem

direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem

decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento

jurídico e que fornecem diretrizes para órgãos legislativos, judiciários e executivos”. 43

BVERFGE 7, 198, (LÜTH-URTEIL), RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL CONTRA DECISÃO

JUDICIAL, 1958. “Da mesma forma é correto, entretanto, que a Grundgesetz, que não pretende ser um

ordenamento neutro do ponto de vista axiológico (BVerfGE 2, 1 [12]; 5, 85 [134 et seq., 197 et seq.]; 6,

32 [40 s.]), estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico

objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um aumento da força jurídica dos direitos

fundamentais (…). Esse sistema de valores, que tem como ponto central a personalidade humana e sua

dignidade, que se desenvolve livremente dentro da comunidade social, precisa valer enquanto decisão

constitucional fundamental para todas as áreas do direito; Legislativo, Administração Pública e

Judiciário recebem dele diretrizes e impulsos”. 44

STF: RE 201819/RJ. 45

HESSE, ob. cit. p. 41. “Além desses efeitos, a concepção dos direitos fundamentais como normas

objetivas supremas do ordenamento jurídico tem uma importância capital, não só teórica, para as tarefas

do Estado”.

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valores vincula todos os poderes públicos, inclusive o legislador, de maneira que a

inércia injustificada e violadora dos fins, das metas e dos objetivos traçados pela

Constituição configura omissão inconstitucional, que, em razão dos princípios da força

normativa48

e da máxima efetividade dos direitos fundamentais, pode ser objeto de

controle de constitucionalidade.

Como ensina Hesse, “Partindo dessa premissa da vinculação dos poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário aos direitos fundamentais (art. 1.3 GG), surge não

só uma obrigação (negativa) do Estado de abster-se de ingerências no âmbito que

aqueles direitos protegem, mas também uma obrigação (positiva) de levar a cabo tudo

àquilo que sirva à realização dos direitos fundamentais, inclusive quando não conste

uma pretensão subjetiva dos cidadãos”49

.

2. O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DIANTE DA OMISSÃO

INCONSTITUCIONAL

Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), diante da experiência

totalitarista vivida na Europa e com o desenvolvimento das bases teóricas do

movimento denominado “neoconstitucionalismo”50

51

52

, surgem, no âmbito das

46

CANOTILHO, ob. cit. p. 476. 47

MENDES, ob. cit. p. 477. “Também entre nós pode-se afirmar que, ao gravar os direitos fundamentais

com a cláusula de eternidade (CF, art. 60, §4º), pretendeu o constituinte explicitar o especial significado

objetivo dos direitos fundamentais como elementos da ordem jurídica objetiva”. No mesmo sentido:

SARLET, ob. cit. p. 147. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 265. 48

HESSE, Konrad. Temas de Direito Constitucional. A Força Normativa da Constituição. Tradução:

Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 124-171. 49

HESSE, ob. cit. p. 41. 50

SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. Marcelo Novelino

Camargo (org.). Leituras Complementares de Constitucional: Teoria da Constituição. Salvador: Jus

Podivm, 2009, p. 32-33. 51

Para compreensão do paradigma e a polissemia do conceito “neoconstitucionalismo”, vide:

SANTIAGO, Marcus Firmino. Neoconstitucionalismo: direitos fundamentais como alicerces e norte para

a atuação estatal (no prelo): "Neoconstitucionalismo é palavra utilizada por vários autores para designar

todo um sistema de pensamento jurídico que se espalha pela Teoria Constitucional, Teoria do Direito e

Filosofia Jurídica, sempre a partir de uma raiz comum: um novo paradigma constitucional, impregnado de

elementos valorativos, que impõe a reaproximação entre Direito e Moral. (...) O apoio em semelhante

convicção abre espaço para que o papel das Constituições seja redefinido: perde destaque sua função de

justificar e organizar o poder estatal e controlar as forças políticas em prol do seu reconhecimento como

espaço protetivo dos interesses comuns e materializador de direitos fundamentais”. 52

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas

Públicas. Marcelo Novelino Camargo (org.). Leituras Complementares de Constitucional: Direitos

Fundamentais. 2ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 44-45. Consoante Ana Paula de Barcelos, o

neoconstitucionalismo apresenta dois elementos, sendo um formal e outro material. Do ponto de vista

metodológico-formal, o constitucionalismo atual parte de três premissas fundamentais: a) normatividade

da Constituição; b) superioridade da Constituição sobre o restante da ordem jurídica; c) centralidade da

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relações internacionais, iniciativas de explicitação da proeminência da dignidade da

pessoa humana nos ordenamentos jurídicos das nações 53

.

Um novo paradigma jurídico enseja o reconhecimento da força normativa

dos princípios jurídicos e a valorização da sua importância no processo de aplicação do

Direito. Em razão das atrocidades cometidas em nome do princípio da legalidade,

principalmente por Estados Totalitários (nazismo e fascismo)54

, surge uma rejeição ao

formalismo, com uso mais frequente de métodos mais abertos de raciocínio jurídico:

ponderação, tópica, teorias da argumentação, etc., com a irradiação das normas e

valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, e

consequente reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior

da Filosofia nos debates jurídicos. Em decorrência, aumenta-se a judicialização da

política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do

Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário55

56

.

Constituição em relação aos sistemas jurídicos. Do ponto de vista material, o neoconstitucionalismo se

caracteriza pela: a) incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais,

sobretudo, quanto à promoção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais; b) pela

expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas, isto é, adoção de valores e opções politicas fundamentais, que representam um consenso mínimo a ser respeitado pelas

maiorias circunstanciais. 53

Nesse sentido, é a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. 54

SEGADO, Francisco Fernández. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional (Modelo Americano –

Modelo Europeo-Kelseniano) de los Sistemas de Justicia Constitucional. “En definitiva, los casos alemán

e italiano ejemplifican perfectamente lo acontecido en el constitucionalismo de la segunda postguerra

que, en el punto que nos ocupa, va a venir caracterizado por la revitalización del poder judicial, al que va

a convertir en una de las piezas centrales del Estado de Derecho. La sujeción de los jueces a la Ley no

impedirá que a ellos se encomiende, con carácter ordinario, la tutela de los derechos, pudiendo aplicar de

modo inmediato y directo la Constitución, como norma limitadora de la actuación de los poderes

públicos, y que, aún estándoles vedada la inaplicación de aquellas normas legales que, com ocasión de su

aplicación en una "litis" de la que estén conociendo, interpreten contradictorias con la Lex superior,

puedan, sin embargo, tras el pertinente juicio de constitucionalidade realizado por ellos mismos, paralizar

el litigio antes de dictar sentencia y plantear la oportuna cuestión de inconstitucionalidad ante el Tribunal

Constitucional que, de este modo, pierde el monopolio del control de constitucionalidad, residenciándose

en él tan sólo un monopolio de rechazo, tal y como ya destacamos precedentemente”. 55

SARMENTO, ob. cit., p. 32. 56

Por sua vez, a Declaração Universal de Direitos Humanos introduz o conceito de indivisibilidade dos

direitos humanos e estabelece duas categorias de direitos: os direitos civis e políticos e os direitos

econômicos, sociais e culturais, combinando os discursos liberal e social, a partir da conjugação do valor

liberdade com o valor igualdade. Por consequência desta conjugação, foram aprovados, em 1966, pela

Assembleia Geral das Nações Unidas: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo objeto de

proteção são direitos fundamentais de primeira dimensão (liberdades públicas), tendo incluído direitos

não previstos na Declaração de 1948; e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, cujo objeto de proteção e de promoção são os direitos fundamentais de segunda dimensão.

Neste contexto, a Comissão de Direitos Humanos da ONU trabalhou com um único projeto de pacto, que

conjugava as duas categorias de direitos. Contudo, sob influência dos países ocidentais, especialmente

dos Estados Unidos, foram elaborados dois pactos em separado.

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Nesse contexto, a dignidade humana é elevada ao status de valor máximo

inerente a todo ser humano titular de direitos iguais e inalienáveis 57

. A condição de

pessoa passa a ser o requisito único e exclusivo para titularidade de direitos 58

. Em

decorrência do universalismo dos direitos humanos, apesar de fortes resistências do

relativismo cultural, a dignidade humana é definida como mínimo ético irredutível 59

60

.

Com o novo paradigma61

de Estado Democrático ou Estado Social e

Democrático, como aduzem Canotilho 62

e M.M. Cristina63

, a função da jurisdição

constitucional se amplia para a tutela dos direito sociais64

, ainda que esta tutela esteja

sujeita ao princípio da reserva financeira do possível, mesmo porque a reserva

orçamentária logicamente também atinge os direitos e liberdades públicas, os quais

igualmente geram grandes custos, a exemplo dos gastos com segurança pública

(exército, polícias, sistema prisional, etc.) 65

.

Somando a isso, consoante aduz Perez Luño, a evolução do Estado de

Direito para o Estado Constitucional de Direito66

exige que a tutela dos direitos

fundamentais por meio da jurisdição não seja restrita aos direitos fundamentais de

57

RUIZ, Alicia E. C..La realización de los derechos sociales em um Estado de Derecho. Francisco José

Rodrigues de Oliveira Neto (org.). Constituição e o Estado Social: os obstáculos à concretização da

Constituição. Coedição. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Editora Coimbra, 2008, p. 55-56.

“Afinal, como salienta Alícia E.C.Ruiz, “El sistema internacional de derechos humanos fue creado em

protección de las personas y no de los Estados”. 58

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12ª edição. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 196. 59

No século XX, vários episódios graves (a exemplo do genocídio dos ucranianos pelo Stalinismo na

URSS e genocídio dos judeus pelo Estado Nazista - holocausto). A ideia de que milhões de pessoas poderiam ser mortas de acordo com um ordenamento jurídico de um país provocou uma grande mudança

no paradigma de Estado, de Direito e dos Direitos Fundamentais. 60

PIOVESAN, ob. cit., p. 207-214. 61

CANOTILHO, ob. cit., p. 339. 62

CANOTILHO, ob. cit. p. 335-337. 63

QUEIROZ, ob. cit. p. 193. 64

MENDES, ob. cit. p. 524. 65

PIOVESAN, ob. cit., p. 234-235. Naquele momento, era firme a ideia de que os direitos civis e

políticos devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora (auto-aplicabilidade). De

outro lado, os direitos sociais, econômicos e culturais, nos termos do Pacto de Direitos Sociais, devem ser

implementados progressivamente. Cabe destacar, contudo, que tanto os direitos sociais, econômicos e

culturais, como os direitos civis e políticos, demandam do Estado prestações positivas e negativas, sendo

equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais só demandariam prestações positivas, enquanto

que os direitos civis e políticos prestações negativas ou mera abstenção. Com efeito, se a plena realização

de relevantes direitos pode ser alcançada progressivamente, medidas nesta direção devem ser adotadas em

um período razoavelmente curto, no sentido de cumprimento do pacto. Ademais, da obrigação da

progressividade de implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais decorre a chamada

cláusula de proibição do retrocesso social , “na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo

da implementação desses direitos. Vale dizer, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e

culturais proíbe o retrocesso ou a redução das políticas públicas voltadas às garantias de tais direitos,

cabendo ao Estado o ônus da prova” . 66

PEREZ LUÑO, A. E. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constituición. Madrid: Tecnos, 1990,

p. 75-77.

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primeira dimensão (direitos e liberdades públicas), mas também direitos fundamentais

de segunda dimensão (direitos econômicos, sociais e culturais) e direitos fundamentais

de terceira dimensão (direitos difusos e coletivos), sob pena de caracterizar uma

poluição das liberdades, processo de erosão e degradação dos direitos fundamentais,

principalmente em razão do uso de novas tecnologias, com relevância ao meio ambiente

e à qualidade de vida, entre outros direitos difusos e coletivos67

.

Neste passo, é decorrência logica do Estado Democrático ou do Estado

Constitucional de Direito a superação do dogma do legislador negativo proposto por

Kelsen68

, cujo contexto histórico da proposição ainda envolvia o positivismo jurídico

que elevou o princípio da legalidade ao extremo, com separação estática de poderes

(apesar do controle judicial de constitucionalidade) e tutela de direitos fundamentais,

essencialmente, de primeira dimensão, em sua perspectiva negativa. Por isso que, nessa

perspectiva positivista, a teoria da nulidade era facilmente aplicável.

Evidente que, diante da expansão da jurisdição constitucional, surgiram

doutrinas com pesadas críticas ao papel da Constituição69

, essencialmente quanto ao

grau de legitimidade das Cortes Constitucionais para definirem padrões morais, diante

de uma sociedade pluralista sem consenso ético em voga 70

71

72

.

67

SARLET, ob. cit. p. 55. 68

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003,p . 263-264. “Do ponto

de vista teórico, a diferença entre um tribunal constitucional com competência para cassar leis e um

tribunal civil, criminal e administrativo normal é que, embora sendo ambos aplicadores e produtores do

direito, o segundo produz apenas normas individuais, enquanto o primeiro, ao aplicar a Constituição a um

suporte fático de produção legislativa, obtendo assim uma anulação da lei inconstitucional, não produz,

mas elimina uma norma geral, instruindo assim o actus contrarius correspondente à produção jurídica, ou

seja, atuando – como formulei anteriormente – como legislador negativo. Porém entre o tipo de função de

tal tribunal constitucional e o dos tribunais normais insere-se, com seu poder de controle de leis e

decretos, uma forma intermediária muito digna de nota. Pois um tribunal que não aplica no caso concreto

uma lei por sua inconstitucionalidade ou um decreto por usa ilegalidade, elimina uma norma geral atua

também como legislador negativo (no sentido material da palavra lex-lei)”. 69

SARMENTO, ob. cit., p. 33. “constata-se uma ampla diversidade de posições jusfilosóficas e de

filosofia política: há positivistas e não-positivistas, defensores da necessidade do uso do método na

aplicação do Direito e ferrenhos opositores do emprego de qualquer metodologia na hermenêutica

jurídica, adeptos do liberalismo político, comunitaristas e procedimentalistas”. 70

MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 21-30. 71

BARCELLOS, ob. cit. p. 47-48. “Além dos conflitos específicos, o neoconstitucionalismo convive

ainda com um conflito de caráter geral, que diz respeito ao próprio papel da Constituição. Trata-se da

oposição entre duas ideias diversas acerca desse ponto. A primeira delas sustenta que cabe à Constituição

impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se considerem essenciais e

consensuais. Essa primeira concepção pode ser descrita, por simplicidade, como substancialista. Um

grupo importante de autores, no entanto, sustenta que cabe à Constituição garantir o funcionamento

adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento

histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas. Nenhuma geração poderia impor à

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Nesse embate sobre quem deve dar a última palavra sobre direitos

fundamentais, atualmente, há teorias “mais inclinadas”73

por Cortes Constitucionais e

juízes, bem como há teorias “mais inclinadas” por parlamentos e legisladores74

. E em

seguinte suas próprias convicções materiais. Esta segunda forma de visualizar a Constituição pode ser

designada de procedimentalista”. 72

MENDES, ob. cit. p. 37. Nos Estados Unidos, por exemplo, é possível apontar a retórica da antirevisão

judicial em uma compilação de expressões: “grupo de guardiões platônicos”, “reis-filosóficos” (bevy of

Platonic Guardianss, philosopher kings), “oráculo constitucional” (constitutional oracle), “oráculos do

direito” (oracles of law), “censores morais da escolha democrática” (moral censors of democratic choice),

“ideólogo da democracia americana” (ideologue of the American democraciy), “confraria de guardiões da

verdade moral”, “conselho sábio de tutores na verdade moral” (conterie of guardians of the moral trhth,

wise council of tutors in moral truth), “profeta moral” ( moral profhet), “oligarquia judicial” (judicial

oligarcky), “juristocracia” (juristocracy) etc. No Brasil já se fala em “Supremocracia”. 73

MENDES, ob. cit. p. 70-88. E síntese, a argumentação em favor de juízes e Cortes Constitucionais é

fundada nas seguintes premissas: a) a Corte protege as precondições da democracia; b) a Corte assegura o

processo de formação da vontade democrática; c) a Corte protege os direitos das minorias e impede a

tirania da maioria; d) a Corte é emissária do povo genuíno e operacionaliza o pré-comprometimento; e) a

decisão da Corte pode ser rejeitada, ao final, por emenda constitucional o por uma nova constituição,

poder que continua com o povo; f) a supremacia judicial é exigência do estado de direito; g) a Corte é um

agente externo que julga com imparcialidade, enquanto o legislador não poderia julgar a si mesmo; i) a

Corte é um veto inerente à dinâmica da separação de poderes; j) a Corte analisa um caso concreto,

submete-o a uma racionalidade incremental e o insere dentre de sua jurisprudência; l) a Corte é menos

falível em questões de princípio e está mais próxima da resposta certa; m) a Corte promove uma

representação deliberativa e argumentativa; n) a Corte é instituição educativa e promove o debate público;

p) a Corte integra um sistema democrático, não está à margem dele; r) a Corte é composta de membros

indicados por autoridades eleitas. Somando-se a estes argumentos, são apresentadas objeções contra os

legisladores e parlamento, quais sejam: a) o parlamento não é a encarnação essencial da democracia, mas

a conversão de uma instituição que historicamente exerceu outros propósitos; b) a dinâmica

representativo-eleitoral incentiva um comportamento legislativo que barateia direitos fundamentais

(MENDES, ob. cit. p. 84. “O parlamento, da maneira como é composto, não permite que se leve direitos a

sério. Legisladores têm, às vezes legitimamente, muitas outras coisas na cabeça. São influenciados por

um conjunto de incentivos mais imediatos, ligados à conveniência da política pública...Parlamentos são,

ainda, foros destinados à retórica, à teatralização e à opinião forte, nada que se compare a um foro

deliberativo sereno, em que pessoas argumentam sinceramente para tentar convencer seus pares,

respeitam o desacordo e estão abertas a serem convencidas. Ao contrário, discursos se dirigem à

audiência externa, a marcar posições que resultem em votos nas eleições.”); c) a representação eleitoral

não é o único tipo possível de representação. Trata-se de uma representação puramente agregativa,

atomística, que pensa a política como mercado; d) restrições ao parlamento eleito não resgatam

argumentos de tradição antidemocrática. Simplesmente apontam problemas que os incentivos

institucionais geram no comportamento do legislador; e) a regra da maioria é insensível à intensidade de

preferências, consequência da igualdade formal, em prejuízo de minorias; f) a regra da maioria não tem

racionalidade que parece. Seu resultado é arbitrário; g) o mundo não é bipartido entre maioria e minoria,

pois as preferências políticas não são estáticas. 74

MENDES, ob. cit. p. 89-104. De outro lado, a argumentação em favor do parlamento e dos legisladores

é fundada nas seguintes premissas: a) o parlamento representativo é o mais próximo que se pode chegar

do ideal de democracia nos estados modernos, ainda que de forma indireta; b) o processo de composição

do parlamento representativo estrutura a competição política; c) o parlamento representativo é um

aperfeiçoamento da democracia direta; d) a atividade decisória do parlamento estimula o compromisso, a

acomodação dos extremos, não a polarização; e) a objeção contra a supremacia do parlamento

representativo ecoa preconceitos da tradição antidemocrática; f) a regra da maioria é o único princípio de

decisão coletiva que respeita o imperativo moral da igualdade; g) a regra da maioria limita o poder; h)

decisões sobre questões de justiça não devem ser sensíveis à intensidade das preferências. Além disso, são

apresentadas objeções contra os juízes e Cortes, quais sejam: a) a Corte não protege as precondições da

democracia, pois não está fora da política; b) a Corte não protege direito das minorias: moralmente, isso é

controverso; empiricamente, isso é falso (MENDES, ob. cit. p. 97. “Pode haver um desacordo razoável e

sincero entre pessoas que levam direitos a sério. Tirania da maioria não deve ser confundida, por isso,

com qualquer situação de desacordo”); c) a Corte não é emissária do poder constituinte nem mecanismo

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profunda análise desse debate em sede de direito comparado, no Brasil, Conrado

Hübner Mendes vai propor a superação das inclinações por juízes ou parlamentares por

uma teoria de diálogo institucional, isto é, um diálogo sem última palavra 75

. De todo

modo, como afirma o próprio autor, não se pode desconsiderar a necessidade do Estado

de Direito por decisões estáveis, ainda que provisórias. Em outros termos, por mais rica

e valorosa que seja a proposta de diálogo institucional sem última palavra,

inevitavelmente, diante de ação ou omissão inconstitucional, sempre haverá a

necessidade de uma última palavra, essencialmente em sede de direitos fundamentais,

diante do papel da Constituição de definição e garantia de direitos. E, neste caso,

consoante nossa Constituição Federal de 1988, cabe ao Supremo Tribunal Federal,

inexoravelmente, por meio do controle de constitucionalidade76

, exercer este papel.

Ademais, no que se refere aos traços filosóficos do relativismo, sobretudo

moral, apesar de haver uma sociedade democrática, pluralista, cujo consenso ético é

difícil de efetivar, existem padrões ou consensos morais que não são aceitáveis, a

exemplo da barbárie, da violência ou da injustiça extrema 77

. Assim também, apesar das

teorias procedimentalista serem sedutoras, em razão do seu fundamento democrático e

participativo, em países marcados por grande desigualdade social e econômica, como é

o caso do Brasil, os envolvidos (e afetados) no embate político e jurídico não dispõem

de pré-comprometimento. Esse é um disfarce que encobre um agente político que faz escolhas morais

controversas; d) a Corte, de fato, pode ter sua decisão rejeitada, ao final, pelo poder de emenda ou por

uma nova constituição. Essa dificuldade, porém, não se justifica; e) a revisão judicial não é decorrência

necessária do estado de direito e não deve ter exclusivamente a interpretação da constituição.

Interpretações do parlamento devem prevalecer; f) a Corte não é um agente externo que julga com

imparcialidade, pois não está fora da política. Alguém precisa decidir por último, e nenhum dos possíveis

candidatos a essa autoridade será neutro; g) o controle de constitucionalidade não é mera decorrência da

dinâmica da separação de poderes. Não há razão para que tenha a última palavra; h) no controle de

constitucionalidade, a Corte não analisa exatamente um caso concreto diferente dos casos concretos que

informam a deliberação da lei; i) a Corte é igualmente falível em questões de princípio, e pessoas

discordam sobre a resposta correta; j) a Corte promove uma representação deliberativa ou argumentativa,

porém, os juízes não representam, não são eleitos, e sim uma elite profissional; l) a Corte não é uma

instituição educativa, nem promove um debate público melhor do que o legislador. Está presa a uma

linguagem empobrecida, verborrágica, inflexível e amarrada a tecnicalidades jurídicas; m) a Corte integra

um sistema democrático, mas não deve ter a última palavra; n) a Corte é composta de membros indicados

por autoridades eleitas, mas este mecanismo não é suficiente para a prestação de contas democrática. 75

MENDES, ob. cit. p. 33-34. “Proponho que o dilema real e mais importante, em relação a esse aspecto,

não é a escolha de uma ou outra instituição como a última autoridade legítima. Em vez disso, o desafio é

desenhar um diálogo que maximize a capacidade democrática de produzir respostas melhores em direitos

fundamentais ou, em outras palavras, de levar o potencial epistêmico da deliberação interinstitucional,

sem desconsiderar a necessidade do estado de direito por decisões estáveis, ainda que provisórias”. 76

Art. 102, I , “a”, e III, “a” e “b”, CF. 77

BARCELOS, ob. cit. p. 118-128.

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das mesmas armas e ferramentas. Nestes termos, no atual estágio democrático

vivenciado no Brasil, é necessária a adoção de uma postura substancialista 78

.

Com efeito, o Tribunal Constitucional deve assumir o desafio

contramajoritário79

80

, não para um debate político amplo, que depende essencialmente

da luta e dos instrumentos democráticos81

, mas, sobretudo, para implementação e

concretização de direitos das minorias, a partir de consensos mínimos, essenciais para a

dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, além da garantia

do próprio pluralismo político, que não podem ser afetados pelas maiorias políticas

ocasionais 82

. Diante do escopo assumido pelo Estado Democrático de não violação, de

proteção e de promoção de direitos fundamentais83

, por decorrência do Estado de

Direito e do princípio da supremacia da Constituição, é poder-dever da Corte

Constitucional assegurar estes direitos. Por isso, inarredável a garantia de justicialidade

(reconhecida pela Suprema Corte Americana em 1803, no caso "Marbury contra

Madison)84

ou a garantia jurisdicional da constituição, conforme Kelsen85

, em função da

força normativa que vincula todos os poderes constituídos86

.

Além disso, com a ampliação da jurisdição constitucional para a tutela dos

direito sociais, as Cortes Constitucionais passaram a dar a última palavra não apenas em

78

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. 2ª edição. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 92-94. 79

SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Tradução: Geraldo de Carvalho. Coordenação e

supervisão: Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 37. Nas lições do autor: “Atualmente, a

regulamentação da norma constitucional serve para tutelar certas questões e certos interesses, que antes

eram assunto da legislação ordinária, contra esse legislador, i.e, contra maiorias parlamentares alternantes.

Essa ‘ancoragem’ da norma constitucional deve proteger determinados interesses, especialmente

interesses minoritários, contra a respectiva maioria...a ‘verdadeira’ democracia pode ser definida também

como proteção da minoria". 80

KELSEN, ob. cit. p. 181. A jurisdição constitucional controla não somente os vícios de forma, mas

também os vícios de conteúdo, contra a dominação, por atropelos da maioria, em proteção das minorias.

“No que concerne em especial ao controle e constitucionalidade das leis, seria extremamente importante

conceder também legitimação a uma minoria qualificada no Parlamento. E isso tanto mais que a

jurisdição constitucional, como mostraremos mais adiante, deve necessariamente servir, nas democracias

parlamentares, à proteção das minorias (p. 176)...Se virmos a essência da democracia não na onipotência

da maioria, mas no compromisso constante entre os grupos representados no Parlamento pela maioria e

pela minoria, e por conseguinte na paz social, a justiça constitucional aparecerá como um meio

particularmente adequado à realização dessa ideia (KELSEN, ob. cit. p. 182)”. 81

CANOTILHO, ob. cit. p. 968. 82

BARROSO, ob. cit. p. 90. 83

PIOVENSAN, ob. cit. p. 236. 84

SARLET, ob. cit. p. 48. 85

KELSEN, ob. cit. p. 123-125. 86

SEGADO, ob. cit. Não por acaso, as teses de jurisdição constitucional, embora com algumas

peculiaridades, prevaleceram tanto nos Estados Unidos como na Europa, sendo adotada pela maioria dos

países civilizados, embora, é claro, a jurisdição constitucional não esteja imune de críticas, pois inexiste

função estatal infalível.

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sede do controle da ação inconstitucional, mas também avançar no controle das

omissões inconstitucionais, com a evolução do modelo Kelseniano de legislador

negativo, como observa Francisco Fernández Segado 87

.

Evidente que, em sede de perspectiva negativa dos direitos fundamentais, o

método de exclusão do ato normativo inconstitucional pela nulidade (técnica do

legislador negativo proposto por Kelsen88

) é mais aceitável e facilmente aplicável. O

grande problema surge nas omissões inconstitucionais, diante da perspectiva positiva

dos direitos fundamentos, que exige um agir estatal. Neste caso, a teoria da nulidade não

aparece tão fácil de ser aplicada e aceita e, por isso, não raramente, são apresentadas

objeções quanto à legitimidade da atuação do Tribunal Constitucional e a consequente

violação da separação de poderes.

Em contrapartida, a aplicação estática do princípio da separação de poderes

pode resultar no retorno da supremacia do Parlamento, que é inconciliável com a ideia

de supremacia da Constituição, uma vez que acarreta inevitável debilidade do seu valor

jurídico. Nesse contexto, a Constituição não estará protegida contra ações e omissões do

Poder Legislativo. Com efeito, se de um lado o ativismo judicial gera críticas por

“invadir” a esfera dos demais poderes, de outro, há o risco de retrocesso ao conceito de

Estado Liberal, no qual a supremacia do Parlamento tornava impensável um controle de

constitucionalidade das leis pelo da Poder Judiciário, tido como um órgão destinado a

realizar a aplicação mecânica da lei, por meio de silogismo, enquanto que o princípio da

separação de poderes atuava para constranger os juízes a não intervir, ainda que para

tutelar direitos fundamentais assegurados na Constituição. Não custa lembrar que a

subordinação do Judiciário ao Parlamento era tamanha que, embora se tivesse criado a

ideia de Constituição escrita, com função de precípua de estruturar o Estado e,

principalmente, definir e garantir direitos fundamentais, esta não tinha proteção efetiva

e, portanto, não tinha valor jurídico89

.

87

“En este nuevo contexto se entiende que aunque, por razones en alguna medida de orden práctico, en la

línea kelseniana, el control de constitucionalidad se siga acomodando a uma estructura concentrada en un

órgano, el Tribunal Constitucional, que tendrá la última palavra en lo que al mismo se refiere, ya no se

considere necesaria la conversión del Tribunal en um "legislador negativo", como modo de articular su

colaboración con el "legislador positivo", y todo ello frente al poder judicial. La praxis de los Tribunales

Constitucionales no ha hecho sino avanzar en esta dirección, certificando la quiebra del modelo

kelseniano del legislador negativo” (SEGADO, ob. cit.). 88

KELSEN, ob. cit. p. 262-263. 89

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de Ponderação na Jurisdição Constitucional. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 23-27.

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De todo modo, em razão da complexidade que envolve a omissão

inconstitucional, surge a necessidade de um diálogo institucional90

91

, contudo, sem a

desconsideração da força normativa da constituição e da exigência constitucional de

última palavra pelo Poder Judiciário, essencialmente no controle de constitucionalidade,

em função até mesmo do princípio da inafastabilidade 92

. Neste caso, novas técnicas

surgem como alternativas, a exemplo de apelo ao legislador, de ciência da mora e

fixação de prazo93

, de declaração de nulidade parcial sem redução de texto94

, de

declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade95

, de interpretação

conforme à Constituição, de situações constitucional imperfeita ou lei ainda

90

MENDES, ob. cit. p. 33-34. 91

Nesse sentido, é interessante observar que este diálogo institucional foi utilizado pelo Supremo no

julgamento do Mandado de Injunção de nº 943. O art. 7º, XXI da Constituição exige uma lei para

estabelecer o aviso prévio proporcional, mas o tema nunca foi deliberado no Congresso. MI 943 buscava

a fixação de critério pelo STF. Incialmente o pedido foi deferido. Mas qual seria o critério a ser adotado?

Diferente do direito de greve, não havia regulamentação por lei para aplicar ser a analogia. No STF,

cogitou-se a adoção de critérios com base em legislação de outros países, em projetos de lei, etc. Mas, na

realidade e na cultura jurídica, como isso se daria no Brasil? Ademais, a decisão afetaria o mercado de

trabalho. A superproteção poderia impedir a permanência de trabalhadores por muito tempo. Como

substituir o legislador? Somado a isso, a decisão judicial vem dotada de uma ideia de irreversibilidade ou

tendência de imutabilidade no tempo. Diferente do legislador, que pode fazer experimentos e, no futuro,

diante de insucesso, fazer correções e adaptações. Por proposta do Min. Relator Gilmar Mendes, decidiu-

se suspender o julgamento com apelo ao legislador. Nesse período, o Congresso deliberou sobre a questão

e aprovou a Lei. Por conseguinte, assim restou decidido: Ementa: Mandado de injunção. 2. Aviso prévio

proporcional ao tempo de serviço. Art. 7º, XXI, da Constituição Federal. 3. Ausência de regulamentação.

4. Ação julgada procedente. 5. Indicação de adiamento com vistas a consolidar proposta conciliatória de

concretização do direito ao aviso prévio proporcional. 6. Retomado o julgamento. 7. Advento da Lei

12.506/2011, que regulamentou o direito ao aviso prévio proporcional. 8. Aplicação judicial de

parâmetros idênticos aos da referida legislação. 9. Autorização para que os ministros apliquem

monocraticamente esse entendimento aos mandados de injunção pendentes de julgamento, desde que

impetrados antes do advento da lei regulamentadora . 10. Mandado de injunção julgado procedente.(MI

943, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/2013). 92

Art. 5º, XXXV, CF. 93

Sobre a mora do legislador na elaboração de Lei Complementar para tratar da criação, incorporação,

fusão e desmembramento de Municípios, decidiu o STF: EMENTA: “... 4. Ação julgada procedente para

declarar o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, em prazo razoável de

18 (dezoito) meses, adote ele todas as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever

constitucional imposto pelo art. 18, § 4º, da Constituição, devendo ser contempladas as situações

imperfeitas decorrentes do estado de inconstitucionalidade gerado pela omissão. Não se trata de impor um

prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal

razoável, tendo em vista o prazo de 24 meses determinado pelo Tribunal nas ADI n°s 2.240, 3.316, 3.489

e 3.689 para que as leis estaduais que criam municípios ou alteram seus limites territoriais continuem

vigendo, até que a lei complementar federal seja promulgada contemplando as realidades desses

municípios.” (ADI 3682, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007) 94

EMENTA: “...Declaração de nulidade sem redução de texto do art. 9º da lei estadual para excluir a

concessão de benefícios fiscais em relação ao ICMS. Ação julgada parcialmente procedente.” (ADI 2866,

Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2010). 95

O exemplo emblemático é o salário mínimo, de modo que, apesar da omissão inconstitucional em razão

do valor insuficiente, a declaração de nulidade agravaria o direito fundamental previsto na constituição.

Nesse sentido: ADI 1996 MC, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em

16/06/1999.

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constitucional96

, de modulação de efeitos, ex nunc ou pro futuro 97

, e até mesmo de

colmatação da lacuna por meio de sentenças manipulativas aditivas98

.

Em razão das dimensões deste trabalho, não se busca discorrer sobre todas

estas técnicas, mas apenas sobre a adoção das sentenças aditivas pelo Supremo Tribunal

Constitucional, a partir da análise dos tipos de omissões inconstitucionais, tema

abordado a seguir.

3. A TIPOLOGIA DA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL

Existem diversas classificações de omissões inconstitucionais, nem sempre

coincidentes no plano conceitual e semântico. Aqui será adotada a classificação usada

em países como Portugal99

e Itália 100

, além da classificação dada pelo Ministro Gilmar

Mendes 101

.

Em uma primeira classificação do doutrinador português Carlos Blanco de

Morais, as omissões podem ser: a) absolutas ou relativas; b) absolutas totais ou parciais;

c) relativas definidas ou indefinidas 102

.

Nas omissões absolutas, não há a produção da norma pelo legislador, seja

na totalidade ou em parte. O legislador não elabora o ato legislativo vinculado pela

Constituição para concretizar uma norma constitucional de eficácia limitada (não

executável em si própria).

96

Nesse sentido: RE 135328, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em

29/06/1994). Assim também: (RE 147776, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira

Turma, julgado em 19/05/1998. 97

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 188 e seguintes. 98

No Brasil, a jurisprudência do Supremo são vários precedentes com no uso da técnica de declaração de

nulidade, sem redução de texto. Nesse sentido, decidiu o STF ao apreciar a constitucionalidade do art. 20,

§ 3º, da Lei 8.742/1993, relativo ao critério para o benefício assistencial LOAS (RE 567985, Relator(a):

Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em

18/04/2013). 99

MORAES, Carlos Blanco. As Omissões Legislativas e os Efeitos Jurídicos do Mandado de Injunção:

um ângulo de visão português. MENDES, Gilmar Ferreira (org.). Mandado de Injunção. Estudos sobre a

sua regulamentação. São Paulo: Saraiva, 2013. 100

BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas do controle da omissão inconstitucional no

Direito brasileiro - Página 2/6. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 539, 28 dez. 2004. Disponível em:

<http://jus.com.br/artigos/6126>. Acesso em: 11 out. 2014. 101

MENDES, Gilmar Ferreira. O Mandado de Injunção e a Necessidade de sua Regulamentação

Legislativa. MENDES, Gilmar Ferreira (org.). Mandado de Injunção. Estudos sobre a sua

regulamentação. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 16-44. 102

MORAIS, ob. cit. p. 352-358.

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Assim, as omissões absolutas se dividem em duas subespécies, que se

distinguem pero critério quantitativo.

Tem-se a omissão absoluta total sempre que o legislador se furtar

integralmente ao cumprimento do seu dever de legislar imposto pela Constituição. Não

há qualquer produção de ato legislativo. Assim, por exemplo, a ausência de lei que

regulamente a licença paternidade prevista no inciso XIX do art. 7º da Constituição

constitui omissão absoluta total103

.

De outro lado, haverá omissão absoluta parcial se o legislador cumprir

apenas uma parcela do seu dever de legislar, nos termos fixados pela Constituição em

norma de eficácia limitada (não executável em si própria), abstendo-se de dar o

cumprimento integral do seu mister. Por exemplo, ao regular o disposto no inciso XXIV

do art. 5º da Constituição, a lei estipular procedimento de desapropriação por utilidade

pública, mas não contemplar um regime processual para desapropriação por interesse

social, tal como determina a Constituição.

Se por ventura, o legislador elaborar a lei, sem regulamentar a questão e

estabelecer requisitos para o exercício do direito, haverá uma omissão parcial centrada

no defict de regulamentação que inviabiliza o seu fim constitucional. É um subtipo de

omissão parcial que envolve uma dimensão quantitativa (existe incompletude

normativa) e qualitativa (a insuficiência normativa inviabiliza o fim constitucional

pretendido).

Ao contrário das primeiras, as omissões relativas decorrem, em regra, de

leis ordinárias violadoras do princípio da isonomia, uma vez que não inclui no seu

“âmbito de previsão subjetivo” uma dada categoria de sujeitos, em que pese o fato dos

últimos se encontrarem posicionados em uma situação igual ou homóloga em relação

aos destinatários desse regime jurídico. Aqui existe uma falha qualitativa de regulação

que não se reduz a uma simples lacuna técnica, mas se define em uma lacuna

axiológica, uma vez que o silêncio do legislador que não inclui, sem justificativa

material razoável, uma categoria de pessoas a título de destinatários da norma, equivale

a uma norma ideal (implícita) de exclusão de pessoas, a qual viola “por acção”o

princípio constitucional da isonomia, atenta a discriminação positiva ou negativa

infundada na causa.

103

MORAIS, ob. cit. p. 353.

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Além disso, as omissões relativas podem ser definidas ou indefinidas. As

primeiras ocorrem quando a norma constitucional determina uma solução única, de

modo que haverá a extensão do benefício à outra categoria. Por sua vez, a omissão

relativa indefinida ocorre sempre que essa solução não exista, podendo emergir diversas

soluções normativas válidas.

Para Carlos Blanco, as omissões parciais não se confundem com as

omissões relativas. As omissões absolutas parciais implicam que a lei não dê uma

complementação integral da norma constitucional não executável em si própria.

Diversamente, a omissão relativa não têm nada a ver com a necessidade de

concretização de normas constitucionais de eficácia limitada, mas sim, não raras vezes,

com a falha na regulação positiva que, em razão da não inclusão de pessoas, violam o

princípio da isonomia 104

.

Em uma segunda classificação, apresentada por Juliano Taveira Bernardes,

as omissões podem ser: a) em sentido formal ou material; b) absoluta ou relativa; c)

relativa explícita ou implícita; d) material definida ou indefinida; d) indefinida própria

ou imprópria 105

.

Quanto à omissão formal, esta decorre da ausência de qualquer emanação de

atos voltados ao desenvolvimento da aplicabilidade da constituição. Assim, a omissão

formal se equivale a seu próprio conceito naturalístico (omissão-inatividade), pois a

providência que afastaria a configuração da inércia inconstitucional nem chegou a se

exteriorizar.

De outro lado, a omissão material não se confunde com a concepção

naturalística de atos omissivos (inexistência de ato). Em verdade, esta omissão é

constatada a partir de um ato comissivo (omissão-produto) ao qual se agrega, porém,

um juízo de valor acerca da respectiva adequação à constituição.

A omissão ainda pode ser total ou parcial. A omissão é total quando, apesar

da obrigação concreta de implementar a aplicabilidade de alguma norma constitucional,

não se toma "nenhuma" providência. Por sua vez, é parcial se essa mesma obrigação for

104

MORAIS, ob. cit. p. 355. 105

BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas do controle da omissão inconstitucional no

Direito brasileiro - Página 2/6. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 539, 28 dez. 2004. Disponível em:

<http://jus.com.br/artigos/6126>. Acesso em: 11 out. 2014.

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cumprida de forma "insuficiente" para atender integralmente à norma constitucional que

necessita de interposição normativa.

Na omissão absoluta ou relativa, o primeiro tipo resulta do simples não-

exercício da competência normativa geral conferida pela constituição, sem que daí se

extraia necessária relação de inconstitucionalidade. O segundo tipo, embora não haja

prévia e concreta obrigatoriedade de atuação normativa, o ato produzido pelo órgão

constituído descumpre o texto constitucional, em razão de não contemplar determinadas

pessoas, fatos ou situações que igualmente deveriam estar incluídos no respectivo

programa normativo. Assim, como o legislador espontaneamente resolveu estabelecer

certa disciplina jurídica, torna-se então obrigado a produzir proposições que sejam

compatíveis com o princípio isonômico. Com relação às omissões relativas, portanto, é

de suma importância verificar o papel desempenhado pelo princípio da isonomia.

De seu turno, as diferenças entre omissão parcial e omissão relativa são

bastante sutis. Porém, a delimitação desses tipos de omissão parece residir nos

respectivos parâmetros de controle. Na omissão parcial, existe prévia obrigação

concreta de atuação normativa voltada à exeqüibilidade de alguma norma constitucional

e, neste caso, a inconstitucionalidade está no cumprimento insuficiente do próprio

preceito que impõe essa obrigação. Na omissão relativa, inexiste tal obrigação prévia,

de modo que o parâmetro utilizado para sustentar a inconstitucionalidade é composto

por preceitos autoaplicáveis que conduzem a atuação normativa no sentido da

observância do princípio constitucional da isonomia e das normas que dele decorrem106

.

Somando-se a isso, no caso de a omissão relativa, promove-se uma

"exclusão" ou "não-inclusão" de maneira incompatível com o princípio da igualdade,

como na hipótese de norma que "concede vantagens ou benefícios a determinados

106

BERNARDES , ob. cit. “Essa linha distintiva, porém, não afasta exemplos fronteiriços das duas

espécies de omissão. Imagine-se a lei de que cuida o inciso X do art. 37 da CF/88, com redação dada

pela EC 19/98. [33] Nesse caso, o legislador está obrigado, entre outras coisas, a conceder revisões

remuneratórias anuais aos servidores públicos, sem distinção de datas ou índices. Aqui, portanto,

depara-se com preceito miscigenado que agrega, no que interessa, duas normas distintas, que bem

poderiam estar destacadas em disposições autônomas. A primeira dessas normas não possui

aplicabilidade imediata (dever de revisão anual); a outra deriva do próprio princípio da isonomia (a

revisão não pode conter distinção de datas ou índices). Logo, como a última norma, embora tenha sua

incidência condicionada à imposição da primeira, não necessita da intermediação do legislador para

adquirir aplicabilidade, o cumprimento deficiente do preceito miscigenado pode se enquadrar tanto no

conceito de uma omissão parcial quanto no de uma relativa. [34] De outro lado, se a lei prevista no

inciso VIII do art. 37 da CF/88 [35] reservasse ínfimo percentual dos cargos e empregos públicos para

pessoas portadoras de deficiência, ter-se-ia uma omissão parcial, pois insuficiente a disciplina legal.

Mas se a mesma lei discriminasse mulheres em igual situação de deficiência, haveria uma omissão

relativa, conquanto afrontado o princípio da isonomia e não o próprio preceito do inciso VIII do art. 37.”

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segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições

idênticas"107

. Disso exsurge outra distinção importante para o controle de

constitucionalidade: a divisão da omissão relativa em explícita e implícita. Na explícita,

o ato normativo incompleto veicula norma que promove expressamente a "exclusão"

daquelas pessoas, fatos ou situações que deveriam merecer igual disciplina. Na omissão

implícita, o vício está na "não-inclusão" no enunciado textual da disposição, de outros

supostos que haveriam de receber o mesmo tratamento.

Dentro das omissões materiais, a doutrina italiana identifica outras duas

categorias de grande relevo no momento de saber que tipo de provimento judicial se

deve utilizar ao se reconhecê-las. Neste caso, as omissões podem ser definidas e

indefinidas. Nas omissões definidas, o déficit da medida contrapõe-se a uma única

disciplina constitucional reparatória. Neste caso, a Constituição aponta uma única

solução jurídica para o comportamento omissivo é "logicamente necessária e

freqüentemente está implícita no contexto normativo"; ou é "unívoca e

constitucionalmente vinculatória", motivo pelo qual se deve aplicar essa singular e

preexistente regra constitucionalmente obrigatória. De outro lado, a omissão indefinida

é aquela deficiência, constante na providência normativa, para a qual se apresentam

diversas soluções constitucionais, todas elas indiferentes do ponto de vista do respectivo

parâmetro de controle 108

.

E ainda em sede de omissões materiais, as omissões indefinidas podem ser

próprias ou impróprias. As primeiras são aquelas cujas soluções não competem aos

órgãos judiciais, mas à discricionariedade do próprio órgão normativo. A pauta de

soluções está inserida na esfera das escolhas discricionárias a partir das quais só ele

pode operar. As segundas são aquelas para as quais, embora não se tenha identificado

regra que sirva como única solução constitucionalmente obrigatória, é cabível indicar

quais os princípios constitucionais específicos para remediá-las, sem vulnerar a

competência discricionária do órgão normativo omisso. Com efeito, é possível

107

BERNARDES , ob. cit. 108

SATÈ, Luca Geninatti. Contributo allo studio dei remedi della Corte costituzionale alle lacune ed alle

omissioni del legislatore (con alcune osservazioni sulle sentenze di inammissibilità). Sezione I, p. 1-23.

Diritto & Diritti – rivista giuridica on line. Disponível em:

http://www.diritto.it/materiali/costituzionale/sate_sez1.html. Acesso em: 11 out. 2014.

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individualizar a solução nos casos concretos, a despeito de a inatividade normativa

persistir 109

.

Por fim, cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal 110

e o Ministro do

Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, a princípio, não fazem distinção entre as

omissões parciais e as omissões relativas, de maneira que entendem que a omissão é

absoluta ou parcial, estando englobada nesta última a omissão relativa. Assim, a “como

omissão deveria ser entendida não só a chamada absoluta do legislador, isto é, a total

ausência de normas, como também a omissão parcial, na hipótese de cumprimento

imperfeito ou insatisfatório de dever constitucional de legislar” 111

.

Contudo, a análise da tipologia da omissão inconstitucional, principalmente

marcada pela distinção entre a omissão parcial e a omissão relativa é de extrema

importância técnica, para efeito de balizar o controle da omissão inconstitucional e

definir os limites de atuação da jurisdição constitucional.

Nesse sentido, como aponta Carlos Blanco de Moraes, somente cabe

sentença aditiva nas hipóteses de omissões relativas definidas, quando há violação do

princípio da isonomia e a norma constitucional determinou, no caso, uma única solução

válida, de maneira que a extensão do benefício de uma categoria para outra decorre

diretamente da Constituição112

. Nesse sentido, ao falar do projeto de lei que busca

regulamentar o Mandado de Injunção, anota o jurista português que “o sistema de

garantia dos direitos e liberdades públicas ganhará com a possibilidade de o STF

poder reparar omissões relativas para o caso concreto, através de decisões com efeitos

aditivos, conquanto as mesmas sejam ‘constitucionalmente obrigatórias’ ou se limitem

a substituir regimes legais, especiais ou excepcionais, criadores de lacunas axiológicas,

por regimes gerais que se encontrem em vigor”113

.

De outro lado, aponta Blanco que nos casos de omissões relativas

indefinidas não permitem a edição de uma sentença aditiva, uma vez que nestas

situações a norma constitucional defere ao legislador várias soluções válidas e, por isso,

há grande margem de discricionariedade. Com estas razões, critica a decisão do

109

ROMBOLI, Roberto. Il giudizio di costituzionalità delle leggi in via incidentale. In: ____ (Org.) et al.

Aggiornamenti in tema di proceso costituzionale (1999-2001). Torino: G. Giappichelli, 2002, p. 107-108.

apud BERNARDES, ob. cit. 110

MI 542/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28. 6. 2002. 111

MENDES, ob. cit. p. 25. 112

MORAIS, ob. cit. p. 354. 113

MORAIS, ob. cit. p. 366.

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Supremo Tribunal Federal proferida no julgamento dos mandados de injunção de nº 712

e de nº 708, por meio dos quais o Supremo, diante da omissão inconstitucional do

legislador na regulamentação do direito de greve dos servidores, aplicou o regime

jurídico de greve do setor privado da Lei nº 7.783/89, com adaptações, uma vez que

neste caso, não se tratava de regime jurídico único114

.

4. O DOGMA DO LEGISLADOR NEGATIVO, OMISSÕES

INCONSTITUCIONAIS E SENTENÇAS ADITIVAS.

Consoante lição de Kelsen, o Tribunal Constitucional, ao efetivar o controle

de constitucionalidade, produz apenas normas individuais a um suporte fático de

produção legislativa, obtendo assim uma anulação da lei inconstitucional. Com efeito, a

Corte Constitucional não estaria a produzir, mas a eliminar uma norma geral, instruindo

assim uma ação contrária correspondente à produção jurídica, ou seja, como legislador

negativo. Em outros termos, ao declarar uma lei ou ato normativo inconstitucional, o

Tribunal Constitucional elimina uma norma geral e por isso atua como legislador

negativo (em sentido material) 115

.

O Supremo Tribunal Federal por diversas vezes afirmou e reafirmou o

dogma do legislador negativo e apontou para proibição de atuar como legislador

positivo 116

. O Supremo chegou a decidir que o pedido de atuação do STF como

legislador positivo geraria a extinção do processo por impossibilidade jurídica do

pedido 117

, isso em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a posição do

Supremo sempre foi de mera ciência ao legislador118

, até pela redação do art. 103, §2º,

da Constituição. Entretanto, em certos casos, fixou prazo para o legislativo suprir a

omissão119

. Contudo, cabe ressaltar que, no julgamento da ADI nº 3276, o Supremo

114

MORAIS, ob. cit. p. 349-350. 115

KELSEN, ob. cit. p. 263-264. 116

Nesse sentido: ADI 1063 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em

18/05/1994. 117

ADI 1822, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 26/06/1998). 118

FERNANDES, ob. cit. p. 971-972. Nesse sentido: ADI 1458 MC, Relator(a): Min. CELSO DE

MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/1996. 119

(ADI 3682, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007.

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Tribunal Federal evoluiu para aplicar diretamente o art. 75 da Constituição e integrar a

omissão em relação à criação de carreiras junto ao TCE (Ceará) 120

.

A grande complexidade, porém, incide nas omissões relativas, mesmo

porque, com o decurso do tempo, as omissões formais (totais e absolutas) tendem a

desaparecer com a atuação do legislador121

.

No que tange ao mandado de injunção, por exemplo, houve claramente uma

evolução da jurisprudência do Supremo, bem mais relevante do que nos julgamentos de

ações diretas, em processo objetivo. Inicialmente, o Supremo entendeu que haveria a

necessidade de regulamentação do remédio constitucional 122

. Esta questão, no entanto,

restou superada pelo Supremo no julgamento do mandado de injunção de nº 283, de

relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, que, além de julgar procedente o writ injuncional,

estipulou prazo para o Congresso legislar, bem como decidiu pelo direito à indenização

por perdas e danos decorrente da mora legislativa, a ser liquidada em sentença 123

. Em

regra, as decisões do Supremo Tribunal se limitaram a declarar a omissão

120

EMENTA: “(...). 2. O preceito veiculado pelo artigo 73 da Constituição do Brasil aplica-se, no que

couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito

Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Imposição do modelo federal

nos termos do artigo 75. (...) 4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão julgada procedente.

(ADI 3276, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2005). 121

Para Gilmar Mendes, haveria fungibilidade entre a ADI e ADO no caso de omissões relativas

(MENDES, ob. cit. p. 299). De outro lado, para Juliano Taveira Bernardes, as omissões formais (totais e

absolutas) são atacadas somente por meio de ADO ou por ADPF autônoma, vias adequadas e

direcionadas ao controle dos atos omissivos puros. De outro lado, no que se refere às omissões materiais

(parciais e relativas), por decorrerem da edição de atos normativos (omissão-produto). Em relação às

omissões parciais, cujo objeto é o dever constitucional de legislar para permitir a aplicabilidade da

Constituição, estas devem ser atacadas também pela via de controle dos atos omissivos. Contudo, em

relação às omissões relativas, como uma exigência constitucional de tratamento isonômico, apresenta-se

como mais adequado que sejam atacadas por meios de mecanismos de controle dos atos comissivos

(BERNARDES, ob. cit.). Para Canotilho, todavia, no caso das omissões relativas, se o pedido exigir

tratamento igual, caberia controle por omissão. Se o pedido exigir proibição de tratamento desigual, a via

seria do controle por ação (CANOTILHO, ob. cit. p. 969). 122

EMENTA : “(...)se tratando de mandado de injunção, quem pertença a categoria a que a Constituição

Federal haja outorgado abstratamente um direito, cujo exercício esteja obstado por omissão com mora na

regulamentação daquele. (...) Precedente do STF: MI 235. Mandado de injunção não conhecido.(MI 107,

Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 21/11/1990)”. 123

EMENTA: “...Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a)

declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8., par. 3., ADCT,

comunicando-o ao Congresso Nacional e a Presidência da Republica; b) assinar o prazo de 45 dias, mais

15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se

ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de

obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença liquida de condenação a reparação

constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a

superveniência de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter

os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável. (MI 283, Relator(a): Min.

SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/1991)”. No mesmo sentido: MI º 232, de

relatoria do Min. Moreira Alves, e MI nº 284, de relatoria do Min. Celso de Mello.

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inconstitucional e a mora do legislador, bem como a notificá-lo para suprir a lacuna, em

uma posição não concretista 124

. Adiante, no julgamento dos mandados de injunção de

nº 670, nº 708 e nº 712, em 25/10/2007, houve uma virada na jurisprudência da Corte,

com a adoção de uma corrente concretista, inclusive, com efeitos erga omnes, e, por

isso, recebeu críticas da doutrina125

.

Não obstante a mudança de entendimento, nos mandados de injunção nº

670, 708 e 712, cumpre observar que, antes mesmo, no julgamento da ADI nº 3276, em

02/06/2005, o Supremo Tribunal Federal já havia suprido a omissão e aplicado

diretamente a Constituição, diante de uma omissão legislativa. Assim também ocorreu

no julgamento do AI 141189, julgado em 09/06/1992, quando a Corte, apesar de se

refutar a tese da súmula 339 do próprio STF, em situação de típica omissão relativa

implícita, estendeu aos servidores inativos aumentos remuneratórios discriminatórios,

em razão de ofensa ao princípio da isonomia 126

. No mesmo sentido foram os

julgamentos do RE 173682/SP e RE 145.005/DF127

. Igualmente no julgamento do RMS

22307, em 19/02/1997, no qual se decidiu que, em função do princípio da isonomia, a

revisão geral de remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre

servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data 128

.

124

(MI 369, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. FRANCISCO REZEK,

Tribunal Pleno, julgado em 19/08/1992); (MI 95, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/

Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 07/10/1992); (MI 278,

Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno,

julgado em 03/10/2001); (MI 695, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado

em 01/03/2007). 125

MORAIS, ob. cit. p. 339-343 126

ISONOMIA - ATIVOS E INATIVOS - § 4º DO ARTIGO 40 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL -

APLICABILIDADE. A garantia insculpida no § 4º do artigo 40 da Constituição Federal e de eficácia

imediata. A revisão dos proventos da aposentadoria e a extensão aos inativos de quaisquer benefícios e

vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade pressupõem, tão-somente, a existência

de lei prevendo-os em relação a estes últimos. O silêncio do diploma legal quanto aos inativos não e de

molde a afastar a observância da igualação, sob pena de relegar-se a atuação do legislador ordinário como

se a este fosse possível introduzir, no cenário jurídico, temperamentos a igualdade. Uma vez editada lei

que implique outorga de direito aos servidores em atividade, da-se pela existência da norma

constitucional, a repercussão no campo patrimonial dos aposentados. A locução contida na parte final do

§ 4º em comento - "na forma da lei" - apenas submete a situação dos inativos as balizas impostas na

outorga do direito aos servidores da ativa. (AI 141189 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO,

Segunda Turma, julgado em 09/06/1992). 127

RE 173682/SP, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Primeira Turma, julgado em 22/10/1996; e

RE 145.005/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, primeira turma, julgado em 28/02/1997. 128

EMENTA: (...) REVISÃO DE VENCIMENTOS - ISONOMIA. "a revisão geral de remuneração dos

servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre

na mesma data" - inciso X - sendo irredutíveis, sob o ângulo não simplesmente da forma (valor nominal),

mas real (poder aquisitivo) os vencimentos dos servidores públicos civis e militares - inciso XV, ambos

do artigo 37 da Constituição Federal. (RMS 22307, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal

Pleno, julgado em 19/02/1997).

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Nestas situações, não é possível dizer que o Supremo Tribunal Federal

atuou como legislador positivo. Isto porque estas situações envolveram justamente a

existência de omissões relativas definidas, salvo no caso dos mandados de injunção de

greve, de modo que a Corte nada mais fez do que aplicar diretamente a Constituição

Federal, a partir de um preceito dotado de autoaplicabilidade e corolário do princípio da

isonomia. Ademais, é prevalente a tese de que o tribunal constitucional, como acima

sustentado, apenas faz emergir, por via da interpretação, norma autoaplicável e já

presente no texto constitucional129

. Desta feita, as exigências constitucionais podem

impor a extensão do regime previsto no preceito discriminatório. Nessa linha, a sentença

aditiva seria uma maneira de salvar, ao menos parcialmente, a decisão tomada pelo

legislador 130

. Cabe registrar, por outro lado, que há decisões do STF que, ao invés de

estenderem, excluíram benefício incompatível com o princípio da isonomia,

essencialmente em matéria de direito tributário 131

.

De outro lado, a questão se mostrou mais complexa no julgamento dos

mandados de injunção de nº 670, 708 e 712, por meio dos quais o Supremo Tribunal

Federal aplicou o regime jurídico privado de greve aos servidores públicos (leis nº

7.783/89 nº 7.701/88), diante da omissão inconstitucional do Poder Legislativo. Antes

destes julgamentos, o Supremo, por várias vezes, já havia declarado a omissão

inconstitucional e dado ciência ao órgão legislativo (MI 20, MI 485, MI 585, MI 631),

sem qualquer efetividade. No caso em questão, ao julgar os recentes mandados de

injunção sobre o direito de greve, além de fixar o prazo de 60 dias para o Congresso

legislar sobre a matéria, o Supremo se viu obrigado a criar regras de transição, por não

se tratar de relações jurídicas idênticas (setor privado e setor público)132

. Em razão

disso, a doutrina designou de obra do “criacionismo” jurisprudencial do STF133

.

É interessante destacar que o Min. Eros Grau, relator do MI 712, destacou

em seu voto que não houve agressão à separação de poderes, uma vez que a própria

Constituição instituiu o instrumento. Assim, não haveria como se cogitar um princípio

129

BERNARDES, ob. cit. 130

MARTÍRES, Temistocle. Diritto Costituzionale. 13ª ed. rev. Por Gaetano Silvestre. Milano: Giuffre,

2000, p. 493, apud BERNARDES, ob. cit. 131

ADI 4276, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2014; RE 405579,

Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2010. 132

MI 670, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES,

Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007); MI 708, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno,

julgado em 25/10/2007; e MI 712, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em

25/10/2007. 133

MORAIS, ob. cit. p. 336-350.

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da separação de poderes advindo do direito natural. Para o Ministro “o Judiciário está

vinculado ao dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a

norma regulamentadora faltante”134

.

De outro lado, o Ministro Gilmar Mendes também destacou em seu voto no

MI 708 que o Supremo Tribunal Federal não estaria a assumir a figura de legislador

positivo. Em razão da necessidade de concretização do direito de greve, não poderia o

Tribunal se abster de reconhecer que, assim como no controle da atividade do

legislador, é possível atuar também nos casos de omissão do Legislativo. No caso do

direito de greve dos servidores públicos, segundo o Ministro, identificou-se a

necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional, uma vez que não

seria dado ao legislador escolher se concede ou não o direito de greve, podendo apenas

dispor sobre a adequada configuração do seu exercício. A partir da experiência do

direito Alemão sobre declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade,

em casos de omissões parciais, bem como de sentenças aditivas do direito italiano, a

omissão inconstitucional reclamaria solução diferenciada 135

.

As maiores críticas, dentre outras, foram apontadas por Carlos Blanco de

Morais, no sentido de que o Supremo teria atuado como legislador positivo, com

exercício de função normativa, que não foi atribuída expressamente pela Constituição.

Por se tratar de cláusula pétrea, cujas exceções devem ser expressas, houve violação do

princípio da separação de poderes. Além disso, por não haver uma única solução válida,

já que o regime jurídico de greve do setor privado é distinto do regime jurídico do setor

público, não seria caso de sentença aditiva, que somente é cabível no caso de omissão

relativa definida, que autoriza, em nome da isonomia, a aplicação de analogia como

resultado da aplicação direta da constituição. Por fim, não poderia o STF ter atribuído

eficácia erga omnes à decisão136

. Para tanto, deveria ter editado súmula vinculante 137

.

De outro lado, Elival da Silva Ramos, após discorrer sobre o princípio da

separação de poderes e de revelar sua preferência sobre a interpretação que situa o

mandado de injunção dentro do controle incidental de constitucionalidade, processo de

natureza concreta e subjetiva, reconheceu que a posição assumida pelo STF, na

134

MI 712, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007. 135

MI 670, Relator: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007. 136

Rcl 6200 MC, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Presidente Min. GILMAR MENDES, julgado em

29/01/2009. 137

MORAIS, ob. cit. p. 376-380.

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apreciação dos três mandados de injunção sobre o direito de greve dos servidores

públicos, não se destoa da textualidade do dispositivo e encontra amparo no elemento

sistemático (o princípio da máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais –

art. 5º, §1º, da CF), não havendo que se falar em ativismo judicial, apesar de a decisão

se revelar menos favorável ao princípio da separação de poderes do que a diretriz

concretista-subjetivista restrita 138

.

Em análise da decisão do direito de greve dos servidores públicos, deveras,

como observou Carlos Blanco de Morais, não se teria uma omissão relativa definida.

Contudo, estaria configurada, pelo menos, a omissão relativa indefinida imprópria, ou

seja, embora não haja uma única solução constitucionalmente obrigatória, é plenamente

cabível a indicação de princípios constitucionais específicos para solução obrigatória,

diante da inércia injustificada. Em outros termos, existem ocasiões em que as

consequências jurídicas derivadas da Constituição são suficientemente genéricas a

ponto de exigir uma concretização, mas não são tão genéricas ao ponto de tornar

imprescindível que a concretização se realize pelo próprio legislador 139

, ainda mais no

caso do direito de greve que tem um caráter negativo e que não exige uma prestação

estatal. Somado a isso, existem outras situações que, embora a intervenção do legislador

seja muito conveniente ou necessária, ainda assim, cabe uma aplicação “provisional”

dos princípios constitucionais considerados como soluções ao problema da providência

deficiente 140

.

E isto restou bem claro no voto do Ministro Gilmar Mendes (MI 708),

quando afirmou que os episódios de greves relativas à paralisação dos controladores de

vôo, dos servidores do Judiciário do Estado de São Paulo ou dos peritos do INSS,

trouxeram prejuízos irreparáveis à população dependente desses serviços. Nesse

sentido, a não regulação do direito de greve acabou por propiciar um quadro se

selvageria com sérias consequências para o Estado de Direito. Nesse quadro, diante de

inúmeras decisões do STF em mandados de injunção, nos quais apenas se reconheceu a

mora e deu ciência ao órgão legislativo, não haveria como justificar a inércia legislativa

138

RAMOS, Elival da Silva. Mandado de Injunção e Separação de Poderes. p. 247 139

BERNARDES, ob. cit. 140

REVORIO, Francisco Javier Diaz. Las sentencias interpretativas del Tribunal Constitucional.

Valladolid: Lex Nova, 2001, p. 241 apud BERNARDES, ob. cit.

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e a inoperância das decisões da Corte Constitucional, sob pena de configurar também

uma espécie de “omissão judicial” da Corte Constitucional 141

.

Portanto, o Supremo Tribunal Federal, apesar da necessária integração

adaptativa em razão da distinção das relações jurídicas em questão, nada mais fez do

que integrar o direito fundamental para permitir o seu exercício, em cumprimento do

seu dever-poder de garantir a força normativa da constituição e a máxima efetividade

dos direitos fundamentais (art. 37, VII, CF c/c art. 5º, §1º, CF)142

, diante de reiterada

omissão inconstitucional pelo Legislativo. A mudança de entendimento se deu,

portanto, muito mais pela permanente conduta desrespeitosa do legislador, do que de

uma intenção de assumir o papel de legislador positivo.

CONCLUSÃO

O Estado Democrático de Direito tem por finalidade primordial a tutela de

direitos fundamentais em todas as suas dimensões. Com efeito, os direitos econômicos,

sociais e culturais possuem o mesmo grau de fundamentamentalidade dos direitos de

primeira dimensão, ou seja, decorrem do princípio constitucional da dignidade humana

(mínimo existencial), da cláusula social estabelecida pela Constituição Democrática e

Social (estatuto da cidadania), bem como do princípio da igualdade material (justiça

social).

Os direitos fundamentais que estejam previstos em normas de eficácia plena

e de aplicabilidade imediata (normas preceptivas executáveis por si próprias) são

diretamente exigíveis por força do disposto no §1º do art. 5º da Constituição Federal,

independente de sua dimensão de evolução.

O princípio reserva financeira do possível não é oponível contra os direitos

sociais que compõem o núcleo do mínimo existencial, ainda que dependam da

intermediação do legislador, cuja edição da norma constitui obrigação legislativa

indeclinável e, por isso, têm aplicação imediata e são exigíveis de plano. No entanto,

deve ser um princípio a ser considerado e valorado pela Corte no momento de julgar a

legitimidade e a constitucionalidade de lei, ato normativo ou omissão estatal.

141

MI 708, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007. 142

“Art. 37...VII- o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”; e

art. 5º, §1º “§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

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Os direitos sociais que estejam previstos em normas de eficácia limitada,

normas programáticas, normas de organização ou normas de garantias institucionais,

mesmo que haja debate quanto a sua exigibilidade como direitos públicos subjetivos,

em razão da perspectiva objetiva (ordem objetiva de valores), vinculam todos os

poderes públicos, inclusive o legislador, cuja inércia injustificada e violadora dos fins,

das metas e dos objetivos traçados pela Constituição configura omissão

inconstitucional, que, por sua vez, em razão dos princípios da força normativa e da

máxima efetividade dos direitos fundamentais, pode ser objeto de controle de

constitucionalidade.

A tipologia das omissões inconstitucionais é importante baliza para a

solução da omissão inconstitucional, nas hipóteses de violação do princípio da

isonomia. Neste caso, as sentenças aditivas somente devem ser aplicadas nas omissões

inconstitucionais relativas e definidas. Contudo, diante da omissão voluntária, reiterada

e proposital do legislador, como ocorreu no caso de ausência de regulamentação de lei

greve dos servidores públicos (STF, MI 670, MI 712 e MI 708), é possível afirmar que a

omissão relativa indefinida imprópria também autoriza a Corte Constitucional a suprir a

lacuna, sob pena de também incorrer em omissão inconstitucional, principalmente

quando envolver sentença aditiva de garantia, cujo objeto seja um direito que não exija

atuação positiva do Estado.

Nos casos de sentenças aditivas de gastos, ou situações em que a omissão

inconstitucional envolva situações complexas, nas quais não haja consenso ético em

voga e, de outro lado, exista um desacordo moral razoável, essencialmente em situações

que envolvem grandes gastos, com afetação financeira e orçamentária, além de

elementos de organização Administrativa e condições materiais de concretização plena,

é preciso haver um autocontrole (self-retraint) da Corte Constitucional, antes de se

reconhecer a inconstitucionalidade e, sobretudo, utilizar o mecanismo de diálogo

institucional ou de apelo ao legislador, a exemplo do que ocorreu no julgamento do MI

943 (aviso prévio proporcional), sob pena de se resultar em uma decisão sem qualquer

efetividade, a exemplo do que ocorreu no julgamento da ADI 4425 pelo STF (decisão

que julgou a inconstitucionalidade da EC nº 62/2009).

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