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Guido Timoteo da Costa Zaniolo Direitos Materialmente Fundamentais, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis no Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2014

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Guido Timoteo da Costa Zaniolo

Direitos Materialmente Fundamentais, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Controle Jurisdicional de Convencionalidade

das Leis no Brasil

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2014

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Guido Timoteo da Costa Zaniolo

Direitos Materialmente Fundamentais, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Controle Jurisdicional de Convencionalidade

das Leis no Brasil

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2014

Dissertação apresentada como exigência para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, sob orientação da Professora Dra. Flávia Piovesan.

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III

À Banca Examinadora Dissertação de Mestrado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP Título: Direitos Fundamentais, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis. Autor: Guido Timoteo da Costa Zaniolo Orientadora: Professora Dra. Flávia Cristina Piovesan _________________________ Comissão Julgadora: ________________ _________________________________

________________ _________________________________

________________ _________________________________ A Banca, após examinar o candidato, considerou-o ______________, com a nota ________. São Paulo, São Paulo, __/__/__.

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IV

Dedico este estudo aos meus pais, Guilherme e Isabela, uma vez que, chegar até aqui, sem seu afeto, interesse, apoio, paciência, solidariedade e persistência, seria tarefa certamente inimaginável. Dedico este estudo à Profa. Dra. Flávia Piovesan e à Profa. Dra. Maria Garcia, exemplos verdadeiros de dedicação à vida acadêmica e ao comprometimento, conhecimento e preparação por ela exigidos. Dedico este estudo ao Dr. José Henrique Rodrigues Torres, Juiz Titular da 1ª Vara do Júri de Campinas/SP, pelas valiosas lições recebidas em estágio realizado durante a graduação em Direito.

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V

[...] Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé [...]. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo

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VI

Resumo O presente trabalho apreciou os tratados internacionais de direitos humanos como fontes de direitos fundamentais e objetivou, ao longo de seus quatro capítulos, avaliar tópicos que com ele se relacionam indiscutivelmente, dentre eles o significado e a abrangência do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, cláusula de abertura do ordenamento jurídico nacional à ordem jurídica internacional; o conceito material de direitos fundamentais na Magna Carta de 1988; os parâmetros de referência para um conceito material de direitos fundamentais; os princípios fundamentais, princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais; a dignidade humana, seus delineamentos históricos e conceito atual, os conteúdos essenciais, as funções e as modalidades de eficácia da dignidade humana; os conceitos, os sujeitos e os elementos formais dos tratados internacionais; a relação entre Direito Internacional e Direito Interno - Dualismo e Monismo e correntes alternativas; o relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito Interno nas Constituições de diversos países (estudo de direito comparado). Além destes foram abordadas a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos na doutrina e para o Supremo Tribunal Federal, dando-se destaque às quatro correntes identificadas em sua jurisprudência (supraconstitucionalidade, legalidade, constitucionalidade e supralegalidade), à Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro, ao estudo acerca deste controle e da Teoria da Dupla Compatibilidade Vertical Material, às espécies, difusa e concentrada, de controle, bem como à afinidade dele com o denominado Diálogo das Fontes e o Princípio Pro Homine. Palavras-chave: tratados internacionais de direitos humanos, direitos fundamentais materiais, artigo 5º, § 2º, CF/1988, Dualismo, Monismo, controle jurisdicional de convencionalidade das leis.

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VII

Abstract

The present work has analyzed the existence of fundamental rights in human rights treaties. It also studied topics surrounding this theme such as: the range and meaning of article 5th, § 2, of Brazil’s Federal Constitution, that opens the national law system to the international law system; the material concept of fundamental rights in the 1988 Brazilian Constitution; the parameters used in order to establish a definition of material fundamental rights; the relationship between fundamental principles, the human dignity principle and the fundamental rights; the human dignity, its historical outlining and its recent concept; the core elements, functions and types of efficiency regarding the human dignity; definitions, subjects and formal components of international treaties, the relation involving International Right and National Right (Dualism, Monism, alternate theories); foreign constitutional provisions about International Right and National Right. Besides all that, there have been examined the juridical value of the human rights treaties for the doctrine and for the Brazilian Supreme Court; the General Theory of Judicial Conventionality Control in Brazilian Law; the Double Vertical Material Compatibility Control; the diffuse and concentrated species of control and its affinity with the Theory of Source Dialogues and the Pro Homine principle. Key-Words: human rights treaties, material concept of fundamental rights, article 5th, § 2, of Brazil’s Federal Constitution, Dualism, Monism, Judicial Conventionality Control.

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Sumário

Introdução ............................................................................................................................................ 10

Capítulo 1 - O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais no direito

constitucional positivo brasileiro ....................................................................................................... 12

1.1 – Significado e abrangência do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988 ........ 12

1.2 - Conceito Material de Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988 ......... 22

1.3 – Parâmetros de referência para um conceito material de direitos fundamentais ........ 27

1.4 – Princípios Fundamentais, Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Direitos

Fundamentais ................................................................................................................................. 28

1.4.1 Dignidade da Pessoa Humana – Delineamentos Históricos ..................................... 32

1.4.2. Dignidade da Pessoa Humana – Conceito Atual, Conteúdos Essenciais, Funções

e Modalidades de Eficácia ........................................................................................................ 41

Capítulo 2 - Direitos Fundamentais nos Tratados Internacionais ............................................... 64

2.1 - Referências Primevas – Conceitos, Sujeitos, Elementos Formais................................ 64

2.2 – O Direito Internacional e o Direito Interno - Dualismo e Monismo .............................. 72

2.3 O Direito Internacional e o Direito Interno – correntes doutrinárias alternativas ao

Dualismo e Monismo ..................................................................................................................... 93

2.4 O Direito Internacional e o Direito Interno nas Constituições – Estudo Comparado .... 95

Capítulo 3 - Natureza Jurídica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos - Doutrina e

Supremo Tribunal Federal Brasileiro ............................................................................................. 114

3.1 – Notas Iniciais ....................................................................................................................... 114

3.2 – Da Supraconstitucionalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ... 114

3.3 – Da Constitucionalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ............. 119

3.4 – Da Infraconstitucionalidade ou Legalidade Ordinária dos Tratados Internacionais de

Direitos Humanos ......................................................................................................................... 125

3.5 – Da Supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ................... 128

Capítulo 4 - Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro ............... 133

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9

4.1 Notas Inicias ........................................................................................................................... 133

4.2 O Controle Jurisdicional de Convencionalidade Brasileiro e a Teoria da Dupla

Compatibilidade Vertical Material .............................................................................................. 133

4.3 Controle Jurisdicional de Convencionalidade (Difuso e Concentrado) e o respeito aos

tratados internacionais de direitos humanos ............................................................................ 143

4.4 Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis, Diálogo das Fontes, Princípio

Pro Homine, Poder Judiciário ..................................................................................................... 151

Conclusão .......................................................................................................................................... 158

Referências Bibliográficas ............................................................................................................... 162

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10

Introdução

De partida cumpre afirmar que a Constituição Federal Brasileira de 1988

disciplinou pioneiramente em âmbito nacional, no artigo 5º, § 2º, que os direitos e garantias

expressos ali não vêm a excluir outros oriundos do regime e dos princípios por ela

empregados, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja

parte.

Lembra-se que o artigo 153, § 36, da Constituição de 1967, com a redação

conferida pela Emenda n. 01/1969, apenas estatuía não ter a especificação de direitos e

garantias naquele texto o poder de afastar outros direitos e garantias decorrentes do regime

e dos princípios por ela adotados.

Certamente houve inovação, pois a Carta Magna de 1988 fez incluir entre o rol

de direitos objeto da tutela constitucional aqueles elencados nos tratados de que o país

participa.

É correto pontuar que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988,

nasceram, tanto em âmbito doutrinário, quanto na esfera jurisprudencial, interpretações que

conferiram tratamento normativo diferenciado aos tratados que versam sobre direitos

humanos.

A disposição constitucional do artigo 5º, § 2º, deu guarida, pois, a instigante

discussão doutrinária e jurisprudencial, igualmente verificada no direito comparado, acerca

do status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, a qual

vem a ser representada por quatro correntes principais, sendo elas: (a) vertente que atesta

natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos,

(b) entendimento que confirma caráter constitucional a esses diplomas alienígenas, (c)

tendência que atribui natureza de lei ordinária a essas avenças internacionais e (d)

posicionamento que reconhece natureza de norma supralegal a documentos internacionais

acerca de direitos humanos.

E, também é correto, que a definição da real hierarquia normativa dos tratados

internacionais em comento importa para a investigação a respeito da possibilidade de

ocorrência do denominado controle jurisdicional de convencionalidade das leis, controle

judicial da lei doméstica perante esses instrumentos externos sobre direitos humanos.

Pois bem. A atual dissertação possui por tema central os tratados internacionais

de direitos humanos como fontes de direitos fundamentais e almeja, ao longo de seus

quatro capítulos, avaliar tópicos que com ele se relacionam indiscutivelmente, dentre eles o

significado e a abrangência do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, verdadeira

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cláusula de abertura do ordenamento jurídico nacional à ordem jurídica internacional; o

conceito material de direitos fundamentais na Magna Carta de 1988; os parâmetros de

referência para um conceito material de direitos fundamentais; os princípios fundamentais,

princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais; a dignidade humana,

seus delineamentos históricos e conceito atual, os conteúdos essenciais, as funções e as

modalidades de eficácia da dignidade humana; os conceitos, os sujeitos e os elementos

formais dos tratados internacionais; a relação entre Direito Internacional e Direito Interno -

Dualismo e Monismo e correntes alternativas; o relacionamento entre o Direito Internacional

e o Direito Interno nas Constituições de diversos países (estudo de direito comparado).

Além destes serão abordadas a natureza jurídica dos tratados internacionais de

direitos humanos na doutrina e para o Supremo Tribunal Federal, dando-se destaque às

quatro teorias acima catalogadas, à Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no

Direito Brasileiro, ao estudo acerca deste controle e da Teoria da Dupla Compatibilidade

Vertical Material, às espécies, difusa e concentrada, de controle, bem como à afinidade dele

com o denominado Diálogo das Fontes e o Princípio Pro Homine.

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Capítulo 1 - O conceito materialmente aberto de direitos

fundamentais no direito constitucional positivo brasileiro

1.1 – Significado e abrangência do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de

1988

A regra inserida no artigo 5º, § 2º, da Lei Maior de 1988, embora tenha inovado,

conforme salientado acima, manteve a tradição do direito constitucional republicano iniciada

com a Constituição de 18911, sob influência da Nona Emenda da Constituição dos Estados

Unidos da América2, e perpetuada nas Cartas Brasileiras supervenientes (1934 – artigo 114;

1937 – artigo 123; 1946 – artigo 144; 1967 – artigo 150, § 36; Emenda n. 1/1969 – artigo

153, parágrafo XXXVI)3, segundo a qual ao lado do conceito formal de Constituição, existe

um significado material, ou seja, há direitos que em razão de seu conteúdo e substância,

compõem o corpo fundamental da Magna Carta de um Estado, ainda que não integrem

expressamente o catalogo estabelecido pelo Poder Constituinte Originário.

O elenco de direitos fundamentais do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988

é seguramente analítico, porém não adota caráter taxativo. É possível, saliente-se,

encontrar semelhante formulação nos artigos 33, da Carta Constitucional da Argentina, 44,

da Constituição da Guatemala, 4º, da Constituição do Peru, 16, n. I, da Constituição

Portuguesa de 1976 e 50, da Constituição da Venezuela.

O tema assume, de proêmio, relação com a diferenciação entre direitos

fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em aspecto material, que se esteia

na separação mantida entre Direito Constitucional em sentido formal e Direito Constitucional

em sentido material.

1Artigo 78, da Constituição de 1891 – A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967). 2The enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people (Disponível em: www.archives.gov. Acesso em 09/03/2013). Este artigo é traduzido do seguinte modo por Pontes de Miranda – a enumeração de alguns direitos na Constituição não pode ser interpretada no sentido de excluir ou enfraquecer outros direitos que tem o povo (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967). 3Artigo 114, da Constituição de 1934 – A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros, resultantes do regime e dos princípios que ela adota; Artigo 123, da Constituição de 1937 – A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado, em nome dela constituído e organizado nesta Constituição; Artigo 144, da Constituição de 1946 – A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967).

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Ingo Wolfgang Sarlet4 5 preleciona, citando lição de Jorge Miranda, que a

constatação da diferença entre direitos formal e materialmente fundamentais revela a ideia

de que o Direito Constitucional brasileiro, à semelhança de seu equivalente lusitano, se

associou a uma ordem de valores e de princípios não vinculados obrigatoriamente ao Poder

Constituinte, porém relacionados a um senso jurídico coletivo e à definição de Constituição.

Desta maneira, a estruturação de um significado formal e outro material de direitos

fundamentais, bem como da própria Constituição, apenas terá êxito se respeitada a

ordenação dominante de valores, as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais

de uma respectiva ordem constitucional vigente.

A separação entre direitos fundamentais em sentido formal e direitos

fundamentais em sentido material não vem sendo hodiernamente objeto de variados

estudos ou importantes divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

A função hermenêutica da regra do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de

1988 é constantemente destacada entre os estudiosos do Direito Constitucional, voltando-se

eles, principalmente, para o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos ou direitos

fundamentais decorrentes. É sedimentada a lição de que este dispositivo afasta, de uma vez

por todas, a aplicação do tradicional princípio hermenêutico do inclusio unius alterius est

exclusius, ou seja, na Magna Carta está incluído sim o que não foi expressamente previsto,

porém que implícita e indiretamente pode ser deduzido.

Pontes de Miranda6 esclarece que os textos constitucionais, quando se

preocupam com os direitos dos indivíduos e dos nacionais, mais imaginam sobre os que

facilmente se põem em posição de perigo. Isto não traz como efeito a negativa de outros

direitos. Uma das consequências da regra jurídica do artigo 150, § 36, da Constituição de

1967 (artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988) é refugar-se, no âmbito de direitos e

garantias, o princípio da interpretação inclusio unius alterius exclusius.

E, Laurence Tribe7 orienta, ao verificar a Nona Emenda à Constituição Norte-

Americana, que este diploma contém regra de interpretação, uma vez que a omissão de

uma previsão formal no texto constitucional não provoca a impossibilidade de recepção de

determinado direito fundamental, precisamente diante da não exaustividade do rol

constitucional.

4SARLET, Ingo Wolfgang. et al. Curso de Direito Constitucional. 1 ed. São Paulo: RT, 2012. 5SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 6MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967 7SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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Ainda, Floyd Abrams8 advoga que o principal efeito da Nona Emenda é sublinhar

a intenção dos autores da Constituição de que direitos humanos devem ser protegidos da

interferência ou destruição governamental e servem de complemento à cláusula do devido

processo na implementação de instrumentos flexíveis à garantia destes direitos. A Nona

Emenda é de importância substantiva, pois permite proteção judicial a direitos não

procedimentais, não especificados de outra forma na Constituição.

Jorge Miranda9 explana que Hans Kelsen, ao avaliar o texto constitucional

americano, escreve que ele fortalece a doutrina dos direitos naturais. Os pais da

Constituição objetivaram afirmar a ocorrência de direitos não expressos na Lei Maior, nem

na ordem positiva. O resultado é que os órgãos de execução do Direito, especialmente os

tribunais, podem criar outros direitos, pois indiretamente atribuídos pela Constituição.

Note-se que o Supremo Tribunal Federal, em decisão de 15/12/1993 (Ação

Direita de Inconstitucionalidade n. 939-7-DF), publicada no Diário Oficial da União em

18/03/1994, reconheceu expressamente que o princípio da anterioridade, previsto no artigo

150, inciso III, alínea b, por força do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, encerra

autêntico direito e garantia fundamental do cidadão-contribuinte10.

8[...] The principal effect of the Ninth Amendment is to underscore the intention of the framers of the Constitution that essential human rights are to be protected from governmental interference or destruction and to complement the due process clause in providing a flexible instrument for protectinc such rights. […] In short, the Ninth Amendment is of substantive importance as it allows judicial protection to be granted to non-procedural rights not otherwise specified in the Constitution. Em português – O principal efeito da Nona Emenda é o de sublinhar a intenção, dos idealizadores da Constituição, de que direitos humanos fundamentais devem ser protegidos contra interferência governamental e destruição, além de complementar a cláusula do devido processo legal, providenciando um instrumento flexível de proteção de proteção de tais direitos. Em resumo, a Nona Emenda é de substancial importância a medida que permite a garantia da proteção judicial aos direitos não procedimentais, não especificados de outra forma na Constituição. (ABRAMS, Floyd. What Are the Rights Guaranteed by the Ninth Amendment? American Bar Association Journal. v. 53, n. 11, p. 1033-1039, november 1967). 9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. 10Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b", "c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivado, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, "b" e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, "b" da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributaria recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I,e art. 150, VI, "a", da C.F.); 3. - a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: "b"): templos de qualquer culto; "c"): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e "d"): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a

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Para Konrad Hesse11, direitos fundamentais em sentido formal são posições

jurídicas da pessoa na sua dimensão individual ou coletiva que, em função de decisão

expressa anterior do Poder Constituinte, restaram contempladas pelo catálogo de direitos

fundamentais. Ao passo que, direitos fundamentais em sentido material são aqueles que,

apesar de estarem fora do rol, por seu conteúdo e importância devem receber tratamento

jurídico semelhante aos direitos formalmente fundamentais.

José Joaquim Gomes Canotilho12 assevera que os direitos consagrados e

reconhecidos pela Lei Maior, denominam-se direitos fundamentais formalmente

constitucionais, porque são discriminados e guardados por normas com valor constitucional

formal, normas que detém forma constitucional. A Constituição Portuguesa de 1976 (artigo

16) autoriza, como o fez a Constituição Brasileira de 1988, a recepção a outros direitos

fundamentais decorrentes de leis e regras aplicáveis de Direito Internacional, lembrando que

a Magna Carta Brasileira determina que há direitos fundamentais oriundos do regime e dos

princípios por ela adotados, além de estipular que o país deve ser parte dos tratados

internacionais, para que estes funcionem como fontes de direitos fundamentais.

Pelo motivo de as normas que os criam e tutelam não terem forma

constitucional, continua J.J. Gomes Canotilho13, referidos direitos são intitulados direitos

materialmente fundamentais. Tem-se, na realidade, norma de fattispecie aberta, de jeito a

incluir, não só as positivações concretas, porém também todas as opções de direitos que se

propõem no comportamento humano, afirmando, portanto, a aplicação do princípio da não

identificação ou da cláusula aberta. O único problema, contudo, reside no apontar, dentre os

direitos sem assento constitucional, aqueles que reúnem dignidade suficiente para

receberem a característica de fundamentais. Os direitos extraconstitucionais materialmente

fundamentais são os que, por objeto e importância, se equiparam aos diversos tipos de

direitos formalmente fundamentais. O campo normativo do artigo 16º/1 da Constituição

Portuguesa de 1976, tal qual o do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal Brasileira

de 1988, é alargado, ampliado, aberto a todos os direitos fundamentais e não a uma isolada

categoria deles (direitos, liberdades e garantias).

sua impressão; 3. Em consequência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, "a", "b", "c" e "d" da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 12/03/2013. 11SARLET, Ingo Wolfgang. et al. Curso de Direito Constitucional. 1 ed. São Paulo: RT, 2012. 12CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008. 13CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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Jorge Miranda14 anuncia, em exposição válida, portanto, para o Direito

Constitucional Brasileiro, que o artigo 16, n. 1, aponta para um sentido material de direitos

fundamentais. Estes não são unicamente os que as normas formalmente constitucionais

enunciem, porém são ou podem ser também direitos oriundos de outras fontes, na

perspectiva mais ampla da Constituição material.

O leitor não está, segundo o autor português, pois, diante, no texto

constitucional, de um elenco taxativo de direitos fundamentais. Ao contrário, a enumeração,

sem pretensão a ser exemplificativa, é aberta, sempre pronta a ser preenchida ou

completada por novos direitos ou faculdades de direitos para além das que estão

determinadas em cada oportunidade. Daí poder-se apelidar tal dispositivo de cláusula de

abertura ou de não tipicidade. A Nona Emenda à Constituição dos Estados Unidos da

América, atrás investigada, vem sendo normalmente cogitada como precursora das

cláusulas abertas, de importância simbólica, porque relativa à primeira Constituição

moderna, ícone este histórico de Lei Maior Liberal.

Não se deve falar exclusivamente de complementação ou integração do

catálogo existente na Carta Constitucional. Tem-se, de acordo com Jorge Miranda,

materialização do princípio da liberdade, em contraposição ao princípio da competência,

liberdade das pessoas em contrariedade à fixação normativa prévia dos poderes do Estado

e de seus órgãos e, além disto, de consequência da ideia nodal de dignidade da pessoa

humana. A realização individual de cada homem ou mulher não se esgota a este ou aquele

rol de direitos instituídos em dado tempo.

As Constituições Americana, Portuguesa e Brasileira, ao suporem direitos

fundamentais não expressos em seus textos, aderem a um conjunto de valores que

transcendem as disposições vinculadas à capacidade ou vontade do Poder Legislativo

Constituinte. A enumeração constitucional, ao invés de restringir, se abre para outros

direitos, existentes ou não, que não permanecem ao alvedrio do Poder Político.

Assim, com fulcro no exposto acima, duas são as espécies de direitos

fundamentais, a saber: (1) direitos formal e materialmente fundamentais e (2) direitos

unicamente materialmente fundamentais, pois não sediados no bojo do texto constitucional.

Há, entretanto, corrente doutrinária capitaneada, no Brasil, por Ricardo Lobo

Torres, Manoel Gonçalves Ferreira Filho15, Ingo Wolfgang Sarlet16, e, em Portugal, por José

14MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. 15[…] Claro está que tais documentos (Declarações, Constituições, Tratados, Leis) podem enunciar direitos que não apresentem todos esses caracteres. Serão, por isso, direitos fundamentais apenas formais, por importantes que sejam. Na Constituição Brasileira, no artigo 5º, há direitos fundamentais matérias, como o direito à vida (caput), mas também direitos fundamentais apenas formais, por exemplo, o direito a certidões (inciso XXXIV, b). Este, embora importante, não se liga à dignidade da pessoa humana. É, pois, apenas formalmente fundamental, enquanto aquele obviamente seria material, por sua essência, e formalmente, por estar reconhecido como tal na Constituição, como

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17

Carlos Viera de Andrade17 e Jorge Miranda18, que sustenta a existência de terceira categoria

de direitos, ou seja, direitos exclusivamente formalmente fundamentais que, mesmo

delimitados no texto constitucional, não manteriam ligação direta com a dignidade da pessoa

humana e outros bens ou valores fundamentais compartilhados pela sociedade brasileira e

também pela comunidade internacional19.

Ingo Wolfgang Sarlet20 obtempera que:

dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Com efeito, Canotilho21 aduz que a distinção entre direitos constitucionais

materiais e direitos meramente formalmente constitucionais, aventada por José Carlos Vieira

de Andrade, parte de uma pré-compreensão típica do subjetivismo axiológico e de um

individualismo que se aproxima das teorias atomistas da sociedade, seguindo à retirada, do

catálogo material de direitos, de todos aqueles que não tenham um radical subjetivo, ou

seja, não reúnam por pressuposto a ideia de dignidade da pessoa humana, vindo a atingir

então uma teoria de direitos fundamentais não constitucionalmente adequada.

fundamental. [...] A proliferação de direitos fundamentais meramente formais tem o duplo inconveniente de desvalorizar os verdadeiros direitos fundamentais e de trivializar a noção (FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direitos Humanos Fundamentais. 14 ed. Saraiva: São Paulo, 2012). 16Um rápido olhar direcionado ao longo catálogo constitucional brasileiro de direitos fundamentais é suficiente à instigação de questionamentos fundamentados sobre a alegação de que todas as posições jurídicas lá reconhecidas preservam obrigatoriamente um conteúdo diretamente sedimentado no valor supremo da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, a título exclusivamente exemplificativo, são citados os incisos XVIII, XXI, XXV, XXVIII, XXIX, XXXI, XXXVIII, do artigo 5º, e os incisos XI, XXVI e XXIX, do artigo 7º (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. Livraria do Advogado: São Paulo, 2011). 17[...] Haverá, assim, direitos fundamentais em sentido material que não o são formalmente porque não estão incluídos no catálogo constitucional. Tal como, logicamente, inversa se tona, pelo menos, viável: poderá haver preceitos incluídos no catálogo que não constituem matéria de direitos fundamentais, e até porventura, ˂˂direitos subjetivos˃˃ só formalmente fundamentais. Decisivo e, pois, o critério material a utilizar (ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5 ed. Almedina: Coimbra, 2012). 18MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. 19SARLET, Ingo Wolfgang. et al. Curso de Direito Constitucional. 1 ed. São Paulo: RT, 2012. 20SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. Livraria do Advogado: São Paulo, 2011. 21CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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18

Isto porque, com o fito de preservar a coerência em seu pensamento, José

Carlos Vieira de Andrade atesta, ante as disposições da Magna Carta Portuguesa que

instituem direitos fundamentais das pessoas coletivas, que eles são direitos individuais

coletivizados. Em segundo lugar, contra previsões expressas da Lei Maior assegurando

direitos fundamentais de associações e organizações, o autor os reclassifica, sem o devido

amparo constitucional, aventando que não passam de poderes concedidos a entidades

objetivando-se a concretização de opções de organização econômico-social. Por fim, a

diferença entre direitos fundamentais materiais e direitos fundamentais exclusivamente

formais não abarca resultados práticos, visto que a Constituição elencou ambos os tipos de

direitos valendo-se da mesma dignidade, importância e título.

Gilmar Ferreira Mendes22 diverge parcialmente de J.J. Gomes Canotilho e em

explicação bastante razoável, ponderada, comenta que, em que pese a inafastável

subjetividade envolvida nos esforços de discernir a nota de fundamentalidade de um direito

e, não obstante haja direitos fundamentais que não demonstram ligação direta e imediata

com o princípio da dignidade da pessoa humana, é ele base de inspiração dos típicos

direitos fundamentais, atendendo o dever de respeito à vida, à liberdade, à integridade física

e intima de cada ser humano, ao mandamento da igualdade em dignidade de todos os

homens e à segurança. O princípio sob enfoque requer fórmulas de limitação do poder,

evitando o arbítrio e a injustiça. Os direitos fundamentais podem, de forma geral, ser

considerados, pois, densificações do princípio da dignidade da pessoa humana.

José Afonso da Silva23 conceitua direitos fundamentais, à semelhança de Gilmar

Ferreira Mendes, como prerrogativas e instituições, que no nível do direito positivo, são

concretizadas pelo ordenamento jurídico em prol de uma convivência digna, livre e igual de

todas as pessoas. O adjetivo fundamentais que acompanha estes direitos significa que

tratam eles de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não realiza, não convive

e, até mesmo, por vezes, nem sobrevive.

É oportuno salientar que não há unanimidade no que tange à posição assumida

pelos direitos materialmente fundamentais e ao fato de se eles podem ou não (e em caso

positivo, de que forma) ser equiparados, quanto ao seu regime jurídico, aos direitos do

catálogo constitucional.

Ademais, mantendo-se no exame da exposição de J.J. Gomes Canotilho24, a

detecção de direitos fundamentais não expressamente positivados em normas

constitucionais gera problemas apontados pela doutrina já há muito tempo, de modo que,

José Ferreira Marnoco e Souza preconiza, comentando, com ceticismo, a Constituição

22MENDES, Gilmar Ferreira. et al. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 23SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. 24CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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Política da República Portuguesa do ano de 1911, que as garantias inseridas em outras leis

são ordinárias, mas não constitucionais, dando ensejo a duas possibilidades: (1) ou as

garantias estabelecidas em demais leis constituem matéria constitucional, mas nesse caso

cai-se no absurdo de considerar como constitucionais, garantias estatuídas por leis

ordinárias, tornando a sua reforma atividade extremamente difícil, (2) ou mencionadas

garantias claramente não perfazem matéria constitucional.

José Ferreira Marnoco e Souza25 aduz, em exposição acerca do artigo 4º de

referida Carta Magna, que ele teve por fonte o artigo 78 da Constituição Brasileira e nele

foram sancionadas outros direitos e garantias individuais além dos especificados no artigo

3º. Na linha do dispositivo, direitos e garantias individuais podem resultar: 1º Da forma de

governo que a Constituição estabelece; 2º Dos princípios que ela consigna e 3º Dos

princípios que constam de outras leis.

O autor português em questão salienta que não se compreendem bem as

garantias da terceira categoria, lembrando que o mencionado artigo 78 da Constituição

Brasileira não as elenca. As garantias que constam de outras leis são ordinárias, mas não

constitucionais. Todas as leis (civis, penais, fiscais e processuais) contemplam algumas

garantias em favor do indivíduo. Não se consideram, entretanto, estas garantias

constitucionais, porque são estabelecidas em leis ordinárias. Para Marnoco e Souza era

melhor não ter feito o acréscimo ao artigo da Constituição Brasileira.De todo modo, somente

as garantias que a Constituição define e aquelas que são consignadas por seus princípios é

que não devem ser revogadas por leis ordinárias.

A experiência do Direito Constitucional nacional aponta também para a exclusão

da legislação infraconstitucional como fonte de direitos materialmente fundamentais porque

nunca houve qualquer referência à lei nos dispositivos encarregados de abrir o catálogo de

direitos. Entretanto, não se mostra absolutamente desprovida de razão interpretação

extensiva que autorize expansão do rol de direitos fundamentais igualmente para posições

jurídicas estatuídas por legislação infraconstitucional, pois, muitas vezes é ao Legislador

Ordinário que se atribui o ineditismo de compilar valores fundamentais em certa sociedade e

garanti-los, tutelá-los juridicamente, antes mesmo de um movimento de constitucionalização

deles.

E, ao contrário, consigna-se que um direito fundamental legal, fundado na

legislação infraconstitucional, não é, em certas situações, nada mais do que o aclaramento

através de ato legislativo de direitos implícitos desde muito integrantes da Constituição.

25SOUZA, José Ferreira Marnoco e. Constituição Política da República Portuguesa Comentário. 1 ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda: Lisboa, 2011.

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20

Tome-se o direito aos alimentos que, conforme parcela da doutrina, pode ser

deduzido do direito à vida com dignidade, estando relacionado às prestações de natureza

existencial. Atribuiu-se ao Legislador Ordinário apenas o dever de reconhecer no plano legal

a obrigação de despender alimentos, definindo-lhe parâmetros, sujeitos passivos e ativos,

bem como versando acerca de questões processuais.

O mesmo se atesta sobre os direitos de personalidade fixados no novel Código Civil

de 2002, posto que eles são tranquilamente deduzidos da cláusula geral de proteção da

personalidade (típico direito fundamental implícito) esteada naturalmente no direito geral de

liberdade e no princípio da dignidade da pessoa humana. Outro exemplo se acomoda no

direito ao nome, na linha do que decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE n. 248.869-1-SP

(Min. Rel. Maurício Correa, Segunda Turma, Diário de Justiça 12/03/2004), verbis:

3. O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz a sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 27).

Luis Roberto Barroso26 adverte que, em Estados de democratização mais tardia,

a exemplo de Portugal, Espanha e, máxime, o Brasil, a constitucionalização do Direito é um

processo recente, apesar de bastante intenso. Apurou-se aqui o mesmo deslocamento

translativo acontecido inicialmente na Alemanha e, depois na Itália, qual seja a passagem da

Magna Carta para o centro do sistema jurídico. A partir de 1988 e, especialmente nos

últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a gozar não unicamente de supremacia

formal, que sempre teve, porém também de supremacia material, axiológica, fortificada pela

abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios. Mediante intenso

impulso, exibindo força normativa sem precedentes, a Lei Maior adentrou no panorama

jurídico do país e no discurso dos operadores do Direito.

Diante disto, a Constituição Federal não é mais apenas um sistema em si,

dotado de ordem, unidade e harmonia, porém é, da mesma maneira, um jeito de interpretar

os outros ramos do Direito. Este fenômeno denominado por muitos autores de filtragem

constitucional traduz o esforço de ler e apreender a ordem jurídica sob a ótica da Magna

Carta, realizando os seus valores. A constitucionalização do direito infraconstitucional não

possui o condão de introduzir normas oriundas de variados domínios na Lei Maior, mas visa

a reinterpretação de seus institutos sob o prisma constitucional. Qualquer operação de

26BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional – RDCI 58/129 – jan.-mar./2007 (CLÈVE, Clémerson e Luis Roberto Barroso. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. Vol. 1 – Teoria Geral da Constituição. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011).

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concretização do Direito envolve a aplicação direta ou indireta da Constituição Federal

respectivamente quando uma pretensão se fundar em norma do próprio texto constitucional

ou quando uma pretensão se embasar em norma infraconstitucional por dois motivos –

antes de empregar a norma, o interprete deverá examinar se ela é compatível com a Magna

Carta, porque se não for, não deverá permitir-lhe a incidência e ao aplicar a norma, o

intérprete haverá de orientar seu sentido e alcance ao desempenho dos fins constitucionais.

Robert Alexy27 orienta que a expansão delineada do conteúdo jurídico-

fundamental efetuou uma constitucionalização material da ordem jurídica. Os três poderes

são atingidos por ela diretamente. Em comparação à jurisdição especializada, há uma

constitucionalização indireta ou formal. A aplicação viciada do Direito é inconstitucional, pois

afronta a vinculação da lei a ele, ordenada pelo artigo 20, inciso 328, da Lei Fundamental

Alemã. Uma violação jurídico-ordinária a qualquer direito assemelha-se a

inconstitucionalidade de conteúdo igual. Se um titular de direitos é prejudicado, existe então,

no viés proposto pela sentença de Elfes29 30, evidente lesão do direito fundamental a

liberdade de ação geral.

A abertura material do sistema dos direitos fundamentais exige a delimitação de

um conceito material de direitos fundamentais e demanda um regime jurídico-constitucional

privilegiado e, a priori, equivalente àquele assegurado aos direitos fundamentais

expressamente enumerados na Constituição Federal de 1988.

Além disso, esta expansão do catálogo constitucional, segundo a jurisprudência,

especificamente as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), não se limita à

identificação de direitos e garantias de cunho individual, compatíveis com os direitos

27ALEXY, Robert. Direito Constitucional e Direito Ordinário. Jurisdição Constitucional e Jurisdição Especializada. Revista dos Tribunais – RT 809/54 – mar./2003 (CLÈVE, Clémerson e Luis Roberto Barroso. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. Vol. 1 – Teoria Geral da Constituição. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011). 28Die Bundesregierung gibt dem Bundestag Gelegenheit zur Stellungnahme vor ihrer Mitwirkung an Rechtsetzungsakten der Europäischen Union. Die Bundesregierung berücksichtigt die Stellungnahme des Bundestages bei den Verhandlungen. Das Nähere regelt ein Gesetz. Em português - O poder legislativo está submetido à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito (Disponível em www.brasil.diplo.de. Acesso em 15/01/2014). 29O alcance da nova doutrina já havia sido delimitado um ano antes, quando, na sentença de Elfes (Decisões do Tribunal Constitucional Federal 6.32), o Tribunal Constitucional Federal interpretou o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, contido no artigo 2, § 1º, da Lei Fundamental, como direito geral à liberdade, que protege toda conduta humana imaginável, não localizada no âmbito de proteção de um direito especial à liberdade. A completa proteção ao direito fundamental, assim garantida, torna generalizada a eficácia dos direitos fundamentais, pois são poucas as normas fundamentais, pois são poucas as normas jurídicas, que não afetam pelo menos a liberdade geral de ação (GRIMM, Dieter. Constituição e Política. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006). 30Na chamada sentença de Elfes, o Tribunal determinou que uma norma jurídica lesaria a liberdade de ação se contrariasse disposições ou princípios constitucionais, tanto no que se refere ao aspecto formal, quanto no que diz respeito ao aspecto material (GRIMM, Dieter. Constituição e Política. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006).

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estabelecidos no artigo 5º, e incisos, da Magna Carta de 1988, mas abrange direitos

políticos, direitos sociais, direitos econômicos, direitos culturais e direitos ambientais.

Os argumentos a favor da interpretação retro se avolumam, a saber: (1) o artigo

5º, § 2º, da Magna Carta Brasileira menciona genericamente direitos e garantias expressos

na Constituição, sem traçar restrições quanto à sua posição no texto; (2) o compromisso

indiscutível da Lei Maior com os direitos sociais enumerados no título dos direitos

fundamentais, porém em capítulo separado; (3) seguramente a localização do dispositivo no

capítulo I, do título II não predomina ante a interpretação que adota a finalidade do artigo e

as características próprias do subsistema de direitos fundamentais; (4) o artigo 7º e incisos,

ao detalharem os direitos essenciais dos trabalhadores, consolidam a abertura a outros

direitos similares e (5) os elencos de direitos sociais e de direitos sociais dos trabalhadores,

edificados nos artigos 6º e 7º, são exemplificativos, funcionado como cláusulas especiais de

abertura.

Decerto, a tradição constitucional brasileira somada à inovação introduzida pelo

artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988 (adição de nova fonte de direitos

fundamentais - os tratados internacionais de direitos humanos), propiciou a inferência de

que aludido mandamento reproduz autêntica norma geral inclusiva, imprimindo à

Constituição Brasileira a capacidade de acolher constantemente outros direitos

fundamentais.

Ingo Wolfgang Sarlet31, aduzindo ensinamento de Cristina Queiroz, preleciona

que, neste cenário, partindo-se da premissa de que os direitos fundamentais são variáveis

no tempo e no espaço, a necessária abertura do rol constitucional de direitos relaciona-se à

circunstância de que não existe um catálogo finito de possibilidades de tutela, porque

também não há um elenco fechado de riscos para a pessoa humana e os direitos que lhe

são imanentes, não sendo desprovida de motivação a afirmação de R. Medeiros32 de que

não há um fim da historia em matéria de direitos fundamentais.

1.2 - Conceito Material de Direitos Fundamentais na Constituição Federal de

1988

A doutrina constitucional consente acerca da abertura material do catálogo de

direitos fundamentais na Magna Carta de 1988. Todavia, apura-se a falta de teorias

31SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 32MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

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referentes à definição do conteúdo do significado substancial deles respaldado no Direito

Constitucional positivo pátrio.

É mister proceder ao estudo pormenorizado das opções disponibilizadas pelo

artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988. Desta maneira, deve-se começar pela

categoria dos direitos implícitos, destacando-se que José Afonso da Silva33 os coloca ao

lado dos direitos individuais expressos e dos direitos individuais decorrentes do regime e

dos tratados internacionais (estes últimos nem explicita e nem implicitamente delineados,

mas de difícil caracterização a priori), os definindo como aqueles subentendidos nas regras

das garantias fundamentais, a saber - direito à identidade pessoal, certos desdobramentos

do direito à vida e direito à atuação geral (artigo 5º, inciso II).

Flávia Piovesan34 elucida, esquematicamente, que para José Afonso da Silva os

direitos individuais podem, portanto, ser classificados em três grupos – o dos direitos

individuais expressos, explicitamente enunciados; o dos direitos individuais implícitos,

compreendidos nas regras de garantias e o dos direitos individuais decorrentes do regime e

de tratados internacionais assinados pelo Brasil.

A atual Lei Maior Brasileira, diferentemente de sua equivalente portuguesa,

proclamou, obviamente, ao se reportar a outros direitos decorrentes do regime e dos

princípios, a existência de direitos fundamentais não escritos que, porém, podem ser

deduzidos mediante ato interpretativo, tomando-se por base os direitos constantes do rol

de direitos fundamentais, o regime e os princípios essenciais por ela empregados.

Sob risco de restar esvaziado o sentido da norma, merece acolhida a tese de

que ao lado dos direitos fundamentais fora do catálogo, com ou sem assento constitucional,

o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, engloba direitos não

expressamente positivados.

Na Alemanha, narra Ingo Wolfgang Sarlet35, H.H. Rupp separa os direitos não

escritos, não direta e explicitamente previstos no texto constitucional (ungeschiebene

Grundrechte) das posições fundamentais deduzidas, no sentido de acrescentadas no

espectro de proteção do direito geral de personalidade, do direito geral de liberdade,

associando o desinteresse reiterado pelos direitos não escritos à tradição doutrinária e

jurisprudencial de obter uma série de direitos inseridos no artigo 2º, inciso I36, da Lei

33SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. 34PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 35SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 36Artikel 2 - [Persönliche Freiheitsrechte] - (1) Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persönlichkeit, soweit er nicht die Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmäßige Ordnung oder das Sittengesetz verstößt (Nomosgesetze – Öffentlichesrecht. 19 Auflage. Baden Baden: Nomosverlaggesellschaft, 2010). Em português - Artigo 2 - [Direitos de liberdade] - (1) Todos

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Fundamental Alemã de 1949 (cláusula aberta – direito à própria imagem, direito da liberdade

contratual e direito à autodeterminação informativa, dentre outros).

Desta forma, o artigo 5º, parágrafo 2º, reúne os direitos fundamentais escritos

fora do catálogo, repise-se com ou sem assento constitucional, e os direitos não escritos,

direitos implícitos ou decorrentes, salientando-se que estes hão de ser considerados, não

como o fez José Afonso da Silva, mas sim em sentido mais amplo, ou seja, direitos

subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias e aqueles decorrentes do

regime e dos princípios.

Em tempo, ultrapassando-se a análise da função hermenêutica garantida ao

dispositivo, que foi outrora ponto estudado por Rui Barbosa e Pontes de Miranda, alcança-

se o entendimento doutrinário sobre o desenvolvimento interpretativo dos direitos não

escritos.

Carlos Maximiliano37, nos seus comentários ao artigo 144 da Constituição de

1946, reiterando suas notas à Constituição de 1891, aduziu que a Magna Carta não pode

especificar todos os direitos, nem mencionar com precisão todas as liberdades. A Lei

Ordinária, a doutrina e a jurisprudência completam a obra. Não são autorizados, porém,

nenhum antagonismo relativo à índole do regime e aos princípios cristalizados pela Lei

Maior. Portanto, não é tido por constitucional somente o que está escrito no estatuto básico,

mas sim o que é deduzido do sistema por ele desenhado e do conjunto das franquias dos

particulares e dos povos universalmente estruturados.

No mesmo pensamento, Paulino Jacques38 reflete que o Poder Legislador

Constituinte, ao se reportar aos termos regime e princípios, almejou promover o

reconhecimento e a proteção a outros direitos nascidos das necessidades da vida social e

das circunstâncias impostas pelo transcurso de tempo. Tem-se cláusula reveladora do

princípio da equidade e da construção jurisprudencial que embasam o direito anglo-

americano. No Brasil não é a Lei a única fonte do direito, pois o regime, ou seja, a forma de

associação política (democracia social) e os princípios da Magna Carta (república federal

presidencialista) possuem o poder de instituir direitos fundamentais.

A conclusão a que se chega é a de que o conceito materialmente aberto de

direitos fundamentais suscitado pelo artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, revela

amplitude sui generis recepcionando a viabilidade de identificação e organização têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em www.brasil.diplo.de. Acesso em 16/03/2013). 37SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 38SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos, não expressamente

positivados, de direitos previstos em outras partes da Magna Carta e nos tratados

internacionais.

A escolha do Poder Constituinte Originário Brasileiro de fazer referência a

direitos decorrentes do regime, dos princípios e de direitos positivados em tratados

internacionais dos quais o país participe, não esgotou as possibilidades relativas à abertura

material, mas conferiu caráter abrangente que não afasta o exame mais aprofundado sobre

sua extensão o qual, pois, se apresenta deveras importante em ordem a se desempenhar

com sucesso uma atividade investigativa e definidora destes direitos fundamentais.

Com fulcro no sentido literal da norma sob cotejo e objetivando-se tornar o

estudo do conceito materialmente aberto dos direitos fundamentais mais ordenado, deve-se

visualizar as variadas alternativas oferecidas pela interpretação de referido mandamento

constitucional.

Neste cenário, diverge-se da proposta de catalogação elaborada por José

Afonso da Silva e, apoiando-se em tudo o que foi exposto acima, advoga-se licitamente a

existência de dois grupos centrais de direitos fundamentais manifestamente os direitos

fundamentais expressamente positivados ou escritos e os direitos expressamente não

escritos que, por sua vez, não possuem previsão específica pelos Direitos Positivos

Constitucional e Internacional.

O primeiro grupo não difunde quaisquer dificuldades sendo composto por duas

subcategorias diferentes, quais sejam, a dos direitos expressamente contemplados no

próprio rol dos direitos fundamentais ou em outras partes do texto constitucional (direitos

material e formalmente constitucionais), ou ainda, sediados expressamente no bojo de

tratados internacionais.

Por outro lado, o segundo grupo também é dividido em dois outros subgrupos

distintos. O primeiro constitui-se dos direitos fundamentais implícitos, no sentido de posições

fundamentais subentendidas nas normas instituidoras de direitos e garantias fundamentais.

Em contrapartida, o segundo corresponde aos direitos fundamentais que a norma do artigo

5º, § 2º, designa de direitos decorrentes do regime e dos princípios.

Concorda-se com a crítica formalizada por Flávia Piovesan39 a José Afonso da

Silva, de acordo com a qual a sua classificação peca ao equiparar direitos decorrentes dos

tratados internacionais àqueles advindos do regime e dos princípios utilizados pela Magna

Carta de 1988. Se estes últimos, para José Afonso da Silva, não são nem explicita, nem

implicitamente enumerados, porém nascem ou podem surgir do regime empregado, sendo

direitos de difícil identificação ab ovo, o mesmo não se deve afirmar acerca dos direitos

39PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte, que são expressos,

enumerados e cristalinamente determinados, não merecendo a pecha de penosamente

caracterizados a priori.

Aliás, a categorização de direitos fundamentais idealizada por Flávia Piovesan é

bastante parecida com a aqui articulada e defendida, realçando-se que na esteira daquela

os direitos seriam ordenados em três grupos: (1) direitos expressos na Constituição,

elencados pelo texto no artigo 5º, incisos I a LXXVII; (2) direitos expressos em tratados

internacionais de que o pais participe e (3) direitos implícitos, direitos subentendidos nas

regras ou oriundos do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal.

Apenas não se concorda quanto à inclusão, patrocinada por Flávia Piovesan40,

na subclasse dos direitos implícitos, dos direitos subentendidos nas regras de direitos e

garantias fundamentais juntamente com os direitos decorrentes do regime e dos princípios

utilizados pela Lei Maior Brasileira de 1988. Em razão de serem distintos entre si, prefere-se

alocá-los no grupo de direitos não escritos, não expressamente positivados, separando-os

em esferas autônomas.

Note-se que o termo implícito se reporta ao que se encontra subentendido,

àquilo que está envolvido, porém de maneira não muito clara. A categoria dos direitos

implícitos corresponde então à possibilidade de dedução de um novo direito fundamental

tendo-se por parâmetro os demais direitos constantes do catálogo e à extensão, através de

recurso à hermenêutica, do espectro de proteção de certo direito fundamental

expressamente positivado, tratando-se, pois, nesta hipótese, não da configuração

doutrinária e jurisprudencial de um novo direito fundamental, porém da redefinição do âmbito

de incidência de determinado direito fundamental anteriormente expressamente positivado.

Em paralelo, os direitos decorrentes do regime e dos princípios não devem ser

misturados na subclasse dos direitos implícitos, vistos estes na definição restrita de

posições jurídicas fundamentais compreendidas nas normas de direitos fundamentais da

Magna Carta.

Não obstante o critério classificatório empregado, o artigo 5º, § 2º, da

Constituição Federal de 1988 possui caráter eminentemente declaratório. Na seara dos

direitos implícitos e dos direitos decorrentes do regime e dos princípios cumpre rememorar

que na doutrina e na jurisprudência mais modernas, ainda que não se alcance um

verdadeiro consenso, vêm obtendo grande aceitação, segundo Ingo Wolfgang Sarlet41,

como direitos fundamentais, o direito à resistência ou o direito à desobediência civil, o direito

40PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 41SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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à identidade genética da pessoa humana, o direito à identidade pessoal, as garantias de

sigilo fiscal, bancário e o direito à boa administração pública.

1.3 – Parâmetros de referência para um conceito material de direitos

fundamentais

A Lei Maior Brasileira, diferentemente da portuguesa42, não contém dispositivo

que discorra especificamente sobre direitos análogos. Entretanto, é correto relatar que

direitos fundamentais em sentido material poderão ser tão só os que por seu conteúdo e

importância permitam equiparação aos descritos no catálogo constitucional43.

Essa ideia não propicia a clarificação dos critérios que conduzam à verificação

da equiparação, mas seguramente servirá de guia em ordem a se elucidar quais os

elementos-chave do conceito material de direitos fundamentais na Constituição Federal de

1988, ou seja, qualquer posição jurídica enquadrada na noção de direitos implícitos ou

decorrentes, identificada na Constituição, fora de seu rol próprio, ou em tratado

internacional, haverá de, para ser visto como direito fundamental típico, se equivaler em

substância e dignidade aos direitos fundamentais do catálogo.

O artigo 5º, § 2º, introduziu, portanto, princípio implícito de forma que também no

Direito Constitucional Nacional é adequado utilizar a expressão direitos fundamentais

análogos. A regra comentada acima vale para todas as categorias de direitos fundamentais

abarcadas pela norma de referido mandamento constitucional.

Note-se, contudo, que, em virtude dos direitos não escritos/implícitos serem

reconhecidos pela norma constitucional, ainda que não expressamente, descabe, apenas

quanto a eles, a equiparação sub examine. Tem-se, na realidade, mero ato de retirada

daquilo que já está mesmo dentro do texto constitucional. A existência de direitos

fundamentais implícitos, apesar de vaticinada pelo artigo 5º, § 2º, dele independe, de sorte

42Artigo 17º - Regime dos direitos, liberdades e garantias: O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga (Constituição da República Portuguesa. Disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Acesso em 31/03/2013). 43Ingo Wolfgang Sarlet aduz que tal conceituação pode ser encontrada igualmente no direito constitucional alemão, onde também se fala em direitos fundamentais equiparados (grundrechtsgleiche Rechte), embora não haja um consenso sobre a terminologia utilizada, bem como a respeito do alcance da cláusula de abertura. Ressalte-se que o art. 93, inc. I, alínea a, da Lei Fundamental de 1949 equipara alguns dispositivos da Constituição aos direitos fundamentais do catálogo, na medida em que prevê sua proteção judicial mediante Reclamação Constitucional (Verfassungsbeschwerde), remédio processual interposto por qualquer titular de um direito fundamental diretamente perante o Tribunal Federal Constitucional, com o objetivo específico de garantir a proteção e/ou efetivação de determinado direito fundamental. A respeito destes direitos fundamentais fora do catálogo no direito constitucional alemão, v., dentre outros, K. Stern, Staatsrecht III/1, p. 358 e ss., e Pieroth-Schlink, Grundrechte, p. 16 (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011).

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que a dedução de tais direitos é atividade inseparável do sistema constitucional, haja ou não

norma autorizadora expressa nesta direção.

Nessa conjuntura, o Poder Constituinte Originário ao elevar determinada

matéria a direito fundamental se respaldou na efetiva importância que ela detém para a

comunidade em particular momento histórico.

Robert Alexy, citado por Ingo Wolfgang Sarlet44, conceitua os direitos

fundamentais como aquelas posições jurídicas que, sob o prisma do Direito Constitucional,

são deveras importantes para uma sociedade e que não podem ser relegadas, pois, ao

âmbito de disponibilidade absoluta do legislador ordinário. Os direitos fundamentais

resguardam uma dimensão axiológica, correspondendo a valores aceitos em consenso no

meio social, lembrando-se, porém, que esta anuência pode se associar a uma solução de

caráter compromissório e contingencial, resultado do choque das forças políticas

participantes do processo constituinte, sem que isto represente a vontade legítima e

dominante do povo. A conexão com o sentido jurídico preponderante dependerá da

sensibilidade do intérprete da norma.

E, no que tange o segundo critério eleito para a equiparação, qual seja, o do

conteúdo, há que se sustentar que a decisão de considerar determinada posição jurídica

similar à dos direitos fundamentais presume um mínimo de nitidez quanto ao paradigma

escolhido. É essencial que o operador do Direito saiba detectar o que configura matéria dos

direitos fundamentais segundo o Direito Constitucional Positivo em vigência. Ressalva-se

que não se deve efetuar estudo de preceitos isolados do catálogo, porém precisam ser

verificados os elementos comuns a todos os direitos fundamentais do Título II, da

Constituição Federal de 1988.

1.4 – Princípios Fundamentais, Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e

Direitos Fundamentais

A interpretação do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988 inicia-se pela

definição dos termos regime e princípios constantes dele. De acordo com os comentários

efetuados supra, estas expressões são concernentes às disposições trazidas no Título I,

artigos 1º a 4º, Dos Princípios Fundamentais, local no qual se detecta o delineamento dos

contornos basilares do Estado Social e Democrático de Direito. Nesta seção, além da

consagração do regime democrático, se situam expressamente os fundamentos, objetivos e

44SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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princípios essenciais reitores do Estado Brasileiro em nível interno e no âmbito das relações

internacionais.

Dessa maneira, os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios

se revelam posições jurídicas material e formalmente fundamentais fora do rol constitucional

(Título II), mas diretamente deduzidas do regime e dos princípios basilares integrantes do

Título I, artigos 1º a 4º, da Lei Maior de 1988. Interessante de se registrar o fato de que os

direitos oriundos do regime e dos princípios hão de manter relação de sintonia (equiparação)

com os direitos do catálogo constitucional.

Da leitura do artigo 5º, § 2º, seria viável concluir que somente os direitos

fundamentais decorrentes do regime e dos princípios fundamentais mantêm estrita

vinculação aos princípios elencados no Título I da Constituição Federal de 1988. Logo, os

outros direitos fundamentais estatuídos fora do rol, situados na Magna Carta ou nos tratados

internacionais, não decorrem ou não precisam necessariamente advir daqueles. Mas, não

obstante o fato de se tratar de direitos pertencentes a categorias distintas entre si, é acurado

afirmar que os direitos integrantes do catálogo e os direitos estranhos a ele, escritos ou não,

preservam alguma conexão com os princípios fundamentais da Lei Maior, ainda que eivados

de diferenças de conteúdo e intensidade.

Exemplificativamente, os direitos à vida, à liberdade e à igualdade se conformam

diretamente com as imposições básicas do princípio da dignidade da pessoa humana. Em

outra toada, os direitos políticos materializam os princípios democrático e da soberania

popular. E, os direitos sociais se baseiam no princípio da dignidade da pessoa humana e

nos princípios que erigem o Estado Democrático e Social de Direito.

No tocante à separação de elementos de identificação do conceito material de

direitos fundamentais, a doutrina constitucional portuguesa oferece formulações bastante

interessantes e mais avizinhadas ao Direito Constitucional Nacional. Na verdade, elas são

propaladas em estudo desenvolvido por José Carlos Vieira de Andrade45, o qual, dentre

outros pontos, define direitos fundamentais por seu conteúdo comum alicerçado justamente

no princípio da dignidade da pessoa, também expressamente enunciado no artigo 1º, inciso

III, da Constituição Brasileira de 1988. Este princípio traduz valor unificador de todos os

direitos fundamentais, que são concretizações dele. O mencionado princípio exerce função

legitimadora do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou

previstos em tratados internacionais, deixando, pois, transparecer sua íntima relação

com o artigo 5º, § 2º, da Carta Magna de 1988.

É salutar encartar nesta oportunidade a lição integral de José Carlos Vieira de

Andrade, verbis:

45ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5 ed. Almedina: Coimbra, 2012.

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1.3.46 A nosso ver, é efetivamente possível definir o domínio dos direitos fundamentais, dando assim autonomia institucional ao conjunto que formam. Em primeiro lugar, pela importância do seu radical subjectivo. O núcleo estrutural da matéria dos direitos fundamentais é constituído por posições jurídicas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a todos os indivíduos ou a categorias abertas de indivíduos. É certo que, como já se foi dizendo, esse elemento subjetivo não abrange a totalidade dos efeitos jurídicos das normas repetitivas, que por vezes se limitam a estabelecer garantias para essas posições jurídicas. Mas o elemento subjetivo é nuclear na estrutura de preceitos e mostra-se preponderante na sua aplicação prática. Em segundo lugar, a função de todos os preceitos relativos aos direitos fundamentais há de ser a proteção e a garantia de determinados bens jurídicos das pessoas ou de certo conteúdo das suas posições ou relações na sociedade que sejam considerados essenciais ou primários. Os preceitos que não atribuam posições jurídicas subjetivas só pertencem à matéria dos direitos fundamentais se contiverem normas que se destinem diretamente e por via principal a garantir essas posições jurídicas. Em terceiro lugar, a consagração de um conjunto de direitos fundamentais tem uma intenção específica, que justifica a sua primaridade: explicitar uma ideia de Homem, decantada pela consciência universal ao longo dos tempos, enraizada na cultura dos homens que formam cada sociedade e recebida, por essa via, na constituição de cada Estado concreto. Ideia de Homem que, no âmbito de nossa cultura, se manifesta juridicamente num princípio de valor, que é o primeiro da Constituição Portuguesa: o princípio da dignidade da pessoa humana. Com a ajuda deste critério tríplice, que implica a afirmação do caráter essencial do seu núcleo subjetivo, embora sem a ele se reduzir, poder-se-á definir a matéria dos direitos fundamentais, conferindo-lhe solidez institucional e algum relevo jurídico-dogmático.

Da mesma maneira, Manoel Gonçalves Ferreira Filho47, demonstra que um

direito fundamental deve manifestar cinco traços, ao menos, sendo eles: (1) ser vinculado

diretamente à dignidade da pessoa humana; (2) portanto, concernir a todos os seres

humanos; (3) ter valor moral; (4) ser suscetível de promoção ou garantia pelo Direito; e (5)

pesar de modo capital para a vida de cada um. De acordo com tal explanação, estes seriam

os direitos fundamentais materiais verdadeiros, estejam ou não elencados na Constituição,

mas fora da Declaração de Direitos, posição esta aceita pelo Supremo Tribunal Federal, ao

recepcionar como fundamentais direitos inscritos no capítulo relativo ao Sistema Tributário

Nacional.

Saliente-se que a tese enunciada supra (todos os direitos fundamentais se

originam do princípio da dignidade da pessoa humana), como já visto, deve ser considerada

com cuidado. À luz do Direito Constitucional Brasileiro, se apresenta passível de discussão

a qualificação do princípio da dignidade da pessoa humana como verdadeiro direito

fundamental, apesar de sua relevante e notável função de referência para a aplicação e

46ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5 ed. Almedina: Coimbra, 2012. 47FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direitos Humanos Fundamentais. 14 ed. Saraiva: São Paulo, 2012.

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interpretação de direitos fundamentais, além de condição de fundamento para a dedução de

direitos fundamentais implícitos, direitos fundamentais decorrentes e direitos fundamentais

constantes de tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Na história do constitucionalismo brasileiro, a Lei Maior de 1988 foi a primeira a

destinar título específico aos princípios fundamentais, situado, em reverência ao especial

significado e função deles, na parte inaugural do texto, depois do Preâmbulo e antes dos

direitos fundamentais. Esta atitude autorizou o entendimento de que a intenção clara e

inequívoca do Poder Constituinte Originário foi deferir aos princípios fundamentais a

qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, incluindo-

se nela os direitos fundamentais, que participam também do conhecido núcleo essencial da

Constituição material.

Com efeito, semelhantemente, não encontra precedentes no desenvolvimento

constitucional, o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal48) que foi

contemplado pelo Poder Constituinte em diversos trechos da Constituição Federal de 1988,

a saber: ao estabelecer que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos

existência digna (artigo 170, caput), ao estruturar o planejamento familiar nos princípios da

dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, parágrafo 6º) e ao

assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput).

Note-se que a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana é

fenômeno recente tanto no direito constitucional brasileiro, quanto na evolução

constitucional em âmbito internacional. Ainda mais quando consideradas as origens remotas

às quais ele pode ser relacionado.

O valor fundamental da dignidade da pessoa humana se tornou reconhecido

expressamente nos diferentes textos constitucionais após ter sido consagrado pela

Declaração Universal da ONU no ano de 1948. Mas, nem todos os Estados-membros

integrantes da comunidade internacional procederam à inserção de tal princípio em suas

respectivas Constituições Federais. A título de elucidação, tomando-se alguns exemplos

encontrados na esfera do direito comparado europeu, somente as Constituições da

Alemanha (artigo 1º, inciso I49 50), Espanha (artigo 10.1), Grécia (artigo 2º, inciso I), Irlanda

48Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos – a dignidade da pessoa humana (Brasil. Código Civil, Código de Processo Civil, Código Comercial, Legislação Civil, Processual Civil e Empresarial e Constituição Federal. Organização de textos, notas remissivas e índices por Yussef Said Cahali. 11 ed. São Paulo: RT, 2009). 49Artikel 1 - [Menschenwürde – Menschenrechte – Rechtsverbindlichkeit der Grundrechte] - (1) Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt. (Nomosgesetze – Öffentlichesrecht. 19 Auflage. Baden Baden: Nomosverlaggesellschaft, 2010. Em português - Artigo 1 - [Dignidade da pessoa humana – Direitos

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(preâmbulo) e Portugal (artigo 1º51) o previram claramente. No Mercosul, as Constituições

do Brasil (artigo 1º, inciso III) e do Paraguai (preâmbulo) elevaram o valor da dignidade ao

patamar de norma constitucional. E, no espectro dos demais países americanos, são

destacadas a Magna Carta do Peru (artigo 4º) que faz menção indireta à dignidade da

pessoa humana no momento em que reconhece outros direitos além dos já positivados,

desde que derivem dela, da soberania popular, do Estado Democrático e Social de Direito e

da forma republicana; a Constituição da Guatemala que, no preâmbulo, se refere à primazia

da pessoa humana ao passo que no artigo 4º estatui o princípio da isonomia (todos são

iguais em dignidade e direitos) e a Constituição do Chile que, no artigo 1º determina

nascerem todos os homens livres e iguais em direito.

O presente e breve estudo sobre o princípio da dignidade da pessoa humana

deve percorrer três etapas de especial relevância: (1) observações sobre seu significado e

conteúdo; (2) caracterização do mandamento em questão como norma jurídica e definição

de suas funções e, ao final, (3) posição ocupada por ele na esfera da concepção

materialmente aberta dos direitos fundamentais defendida pela Magna Carta Brasileira de

1988.

1.4.1 Dignidade da Pessoa Humana – Delineamentos Históricos

A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana no rol de princípios

fundamentais e, portanto, de fundamentos do Estado Brasileiro Democrático e Social de

Direito sinalizou decisão essencial do Poder Constituinte Originário sobre o sentido,

finalidade e justificação da existência e das funções estatais. Do mesmo modo que na

Alemanha, no Brasil disseminou-se, através da Constituição Federal de 1988, a ideia de que

humanos – Vinculação jurídica dos direitos fundamentais] - (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em www.brasil.diplo.de. Acesso em 27/04/2013). 50Hans D. Jarass ensina que depois dos crimes hediondos praticados pelo estado nacional-socialista, os quais feriram gravemente a dignidade da pessoa humana, o Poder Constituinte Originário Alemão de 1949 colocou tal valor no início da nova Lei Fundamental, assim como fez a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, diferentemente da Carta da República de Weimar de 1919. A partir desta medida tornou-se cristalino que, segundo a ordem constitucional iniciada pela Lei Maior de 1949, primeiro vem o homem e, então, após, o Estado. Houve total reversão dos princípios orientadores do estado nacional-socialista que pregavam ser o indivíduo nada, enquanto que o Estado ou a comunidade, tudo. O Projeto de Constituição de Herrenschiemsee estabelecia em seu artigo 1º, inciso I, que o Estado existe para o querer dos indivíduos e que, o contrário, a existência dos indivíduos para a satisfação do querer do Estado, é impossível. O Estado e seus objetivos não possuem valores próprios, mas encontram legitimidade na lei para poderem, pois, servir às pessoas concretamente. Aí também reside um afastamento dos ideais românticos alemães de endeusamento do Estado e da comunidade da população (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012). 51Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária (Constituição de Portugal. Disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Acesso em 28/04/2013).

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o Estado existe em função da pessoa humana e não o contrário. O homem se configura

finalidade principal e não meio da atividade da Administração Pública.

Neste sentido, Jorge Reis Novais52 estatui que a elevação da dignidade da

pessoa humana à condição de princípio constitucional estruturante53 e fundamento do

Estado Democrático e Social de Direito significa que o Estado será o garante e promotor

maior da dignidade das pessoas consideradas individual e coletivamente.

Ademais, Ingo Wolfgang Sarlet54 tem razão ao afirmar que há bastante

controvérsia acerca do fato de se o Poder Constituinte Originário pretendeu inaugurar uma

ordem constitucional fundada no direito natural, mas municiada de plena eficácia normativa.

No entanto, inviável desconsiderar a relação filosófica e histórica do princípio em comento

com a doutrina jusnaturalista.

Lembre-se, alias, que segundo Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de

Almeida55, o Direito Natural surge, pela primeira vez na história do pensamento, entre os

gregos, que buscavam detalhar a ligação do Direito com as forças e as leis da natureza

(fonte de lei que tem oponibilidade em toda parte e não se vincula à diversidade de

opiniões).

No século XVII, tal corrente filosófica recupera o prestígio e aparece como

reação racional à situação teocêntrica na qual o Direito havia sido inserido durante a Idade

52NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editores, 2006. 53José Joaquim Gomes Canotilho preconiza que a articulação de princípios e regras, de diferentes tipos e características, iluminará a compreensão da Constituição como um sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez, assentam em subprincípios e regras constitucionais concretizadoras desses mesmos princípios. Quer dizer: a constituição é formada por regras e princípios de diferente grau de densificação (=diferente densidade semântica). Existem, em primeiro lugar, certos princípios designados por princípios estruturantes, constitutivos e indicativos das ideias directivas básicas de toda ordem constitucional. São, por assim dizer, as traves-mestras jurídico-constitucionais do estatuto jurídico político. Estes princípios ganham concretização através de outros princípios (ou subprincípios) que densificam os princípios estruturantes, iluminando o seu sentido jurídico-constitucional e político-constitucional, formando, ao mesmo tempo, com eles, um sistema interno (a uma união perfeita, alude Larenz). [...] Estes princípios gerais fundamentais podem, por sua vez, densificar-se ou concretizar-se ainda mais através de outros princípios constitucionais especiais. [...] Os princípios estruturantes não são apenas densificados por princípios constitucionais gerais ou especiais. A sua concretização é feita também por várias regras constitucionais, qualquer que seja a sua natureza. [...] Este esquema não se desenvolve apenas numa direção, de cima para baixo, ou seja dos princípios mais abertos para os princípios e normas mais densas, ou de baixo para cima, do concreto para o abstracto. A formação do sistema interno consegue-se mediante um processo bi-unívoco de esclarecimento recíproco (Larenz). Os princípios estruturantes ganham densidade e transparência através das suas concretizações (em princípios gerais, princípios especiais ou regras) e estas formam com os princípios uma unidade material -unidade da Constituição (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008). 54SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 55BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

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Média. Há a migração do pensamento teocêntrico para o antropocêntrico. A razão humana,

independente da fé, conforma a natureza humana e desta são extraídos direitos naturais.

Deus não é mais a fonte de normas jurídicas ou a justificativa para a sua existência,

assumindo a natureza esta função.

Os diferentes autores da Escola Clássica do Direito Natural não concordavam

necessariamente uns com os outros. Henrique e Samuel Coccejo, Gottfried Wilhelm von

Leibniz e Cristian von Wollf empreenderam posição antirracionalista afirmando,

categoricamente, portanto, que Deus era sim a fonte última do Direito, opondo-se, pois, à

famosa e clássica frase de Hugo Grócio, verbis – O Direito Natural existiria mesmo que

Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas humanas.

Em tempo, saliente-se, a propósito, que a filosofia escolástica, superada pelo

jusnaturalismo, exaltava a ocorrência de uma lei divina, a partir da qual deveria ser extraída

a lei humana. A primeira não possuiria nenhuma espécie de erro ou falha, certamente em

razão de sua natureza transcendente, sendo, então, perfeita e imutável.

A ideia ora exposta advém limpidamente das lições de Santo Agostinho e Santo

Tomás de Aquino. Para eles, a Cidade de Deus é o lugar regido pela lei divina que contrasta

com a cidade dos homens, administrada pela lei humana. A atividade de englobar a lei

divina na lei humana é o que deve ser realizado pelo Direito, apesar de constituir tarefa

deveras difícil. A concepção tomista prevê que haja uma lei eterna, uma lei natural e outra

lei humana. A lei eterna regula toda a ordem cósmica (céu, estrelas e constelações) e a lei

natural dela se origina (Santo Agostinho considera lei superior a lei divina). Os dois

pensadores concordam que a lei maior emana de Deus, uma força sobre-humana.

O valor da pessoa humana espalha suas raízes no pensamento clássico e na

ideologia cristã56. É feita referência a ele no Antigo e no Novo Testamento, uma vez que

nestes textos consta que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, premissa da

qual o cristianismo extraiu a consequência de que o ser humano é dotado de um valor

particular, intrínseco, não devendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.

Por um lado, a dignidade da pessoa humana, no bojo do pensamento clássico,

se reportava à posição social ocupada pelo indivíduo e ao seu nível de reconhecimento

pelos demais participantes da sociedade, de jeito que era lícito separá-la em graus - maior e

menor. De outro, ela significava a qualidade que, por ser imanente ao ser humano, o

distinguia das demais criaturas, inferindo-se, neste sentido, que todos os seres humanos

desfrutam dela por igual. Este segundo conceito de dignidade, erigido especificamente pela

filosofia estoica, situa-se visceralmente associado à noção de liberdade pessoal de cada

56Sobre o cristianismo e o valor da pessoa humana v. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, págs. 20/23.

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indivíduo (o homem é livre e responsável por seus atos e destino) e ao dogma de que, todos

os homens, em razão de sua natureza humana, são iguais em dignidade.

Maria Celina Bodin de Moraes57, trazendo à baila ensinamento de Jean-Marie

Breuvart, disciplina que o desenvolvimento do pensamento cristão sobre a dignidade

humana deu-se sob um duplo fundamento – (1) o homem é um ser originado por Deus para

ser o centro da criação; (2) como ser amado pelo criador, foi salvo de sua natureza

originária através da noção de liberdade de escolha, que o torna capaz de decidir mesmo

em contrariedade ao seu desejo natural.

A doutrina atribui a Anício Mânlio Torquato Boécio, fundador da escolástica, o

apontamento, em texto datado do século VI, que favoreceu, mediante o modelo teológico, a

transmissão da cultura greco-latina aos filósofos medievais. Foi ele quem, revolvendo o

mistério da Santíssima Trindade, propôs uma definição de pessoa, que viria a ser

oportunamente utilizada por Santo Tomás de Aquino (substância individual de natureza

racional).

O estudo de referido pensador autorizou a visualização da dignidade da pessoa

humana, como o fez Santo Tomás de Aquino, sob dois ângulos diferentes, a saber: a

dignidade é inerente ao homem como espécie e existe só no homem, passando a habitar a

própria alma de cada ser humano; o homem deve agora não mais olhar exclusivamente

para Deus, mas também para si mesmo, tomando ciência de sua dignidade e agindo de

forma compatível.

Além disso, para o filósofo sub examine, a natureza humana consiste no

desempenho da razão e é, por meio dela, que se espera a sujeição às leis naturais,

oriundas da autoridade divina.

A mudança evidente aconteceu porque o cristianismo, ao contrário das outras

religiões da Antiguidade, nasceu como uma crença de pessoas que não se determinam por

sua ligação a uma nação ou a um Estado, porém pela relação direta com um único e mesmo

Deus.

Houve, através do cristianismo, o acréscimo de duas novas concepções éticas –

a virtude se verifica pela vinculação com Deus e não com a polis ou outros homens e,

apesar de os seres humanos possuírem vontade livre, o seu primeiro estímulo, advindo da

natureza humana fraca e pecadora, dirigia-se à transgressão. Uma vez que a própria

vontade humana se situa, originariamente, deformada pelo pecado, o cristianismo parte da

premissa de que o homem, sozinho, é incapaz de realizar o bem, necessitando da ajuda de

Deus para se tornar virtuoso. E ela será somente despendida se ocorrer obediência estrita à

lei divina, ora inserida no coração de cada indivíduo, mediante atos de dever.

57MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana – Estudos de direito civil-constitucional. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

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Na Idade Média, a concepção cristã e estoica continuou a angariar adeptos.

Ademais, em pleno Renascimento, mais precisamente no ano de 1486, Giovanni Pico,

Conde de Mirandola, publicou a obra Oratio de Homnis Dignitate asseverando seu

compromisso com a valorização e a promoção filosófica do homem. O antropocentrismo

constante do texto não é pioneiro, é verdade, já tendo sido relatado e explorado por outros

célebres autores como Petrarca, Bruni e Manetti. A característica que o diferencia dos

outros e o torna digno de apontamento é que na sua teoria não traça a consagrada relação

de subordinação ou dependência entre a ratio theologica e a ratio philosophica, ou seja, não

estabelece o liame de causa e efeito entre o Criador e suas criaturas.

David Edward Cooper, citado por Maria Celina Bodin de Moraes58, preleciona

que no Discurso de Pico sobressai o tema humanista de que a dignidade do homem não se

deve ao fato de compartilhar a natureza divina. Os seres humanos são seres sui generis,

sem afinidade com os animais, nem com os anjos e muito menos com Deus. Pico de

Mirandola deixa claro que os indivíduos devem se aproximar de Deus, sim, por meio da

contemplação, porém avisa que a dignidade humana independe do êxito deste

empreendimento, mas da capacidade de efetuá-lo livremente, tornando-se igual a Deus. As

teses de Pico foram consideradas heréticas pelo Papa Inocêncio VIII, embora tenha o autor

recebido, posteriormente, a absolvição do Papa Alexandre IV, seu sucessor.

Nos séculos XVII e XVIII, conforme adverte Ingo Wolfgang Sarlet59, a concepção

de dignidade da pessoa humana e a Direito Natural sofrem um processo de racionalização e

laicização, preservando, entretanto, o conceito básico, fundamental da igualdade de todos

os homens em dignidade e liberdade.

Samuel Pufendorf, por exemplo, apregoa que mesmo o monarca há de respeitar

a dignidade da pessoa humana, definindo-a como a liberdade do ser humano de escolher de

acordo com sua razão e de agir segundo seu entendimento e opção. O homem, para

Pufendorf, deixado à sua pura condição natural, esclarecem Eduardo C. B. Bittar e

Guilherme Assis de Almeida60, reduz-se a pouco mais que um animal – sozinho ele é mudo,

carente de proteção, permanece em luta com os outros animais, sem auxílio, entregue ao

autoabastecimento rudimentar até que sobrevenha a morte.

A comunidade dos homens se revela algo essencial. Toda vantagem obtida ao

longo da vida humana será creditada ao mútuo auxílio promovido pelos indivíduos. Após a

Divina Providência, nada no mundo se mostra mais benéfico para a humanidade do que o

58MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana – Estudos de direito civil-constitucional. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 59SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 60BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

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próprio homem. Em contrapartida, a humanidade torna-se capaz de muitas irracionalidades,

dentre as quais se situa a guerra. Os homens causam mal uns aos outros mais do que os

seres irracionais. Nas condições naturais, ausente um pacto civil, não há como solicitar, em

caso de ofensa, auxílio de um terceiro já denominado magistrado civil. Por isso, o direito

natural se erige como lei de garantia da sociabilidade. Todo indivíduo deve, na medida do

possível, preservar e promover a sociedade, o bem-estar, pois, da humanidade.

No mesmo período, Thomas Hobbes, no Leviatã ou Matéria, forma e poder de

uma comunidade eclesiástica e civil, obra publicada em 1651, influenciado por

ensinamentos de Cícero, discorre acerca do significado de pessoa humana e conclui que a

única solução para se evitar a guerra se encontra na criação do Estado como entidade

capaz de reduzir a pluralidade de vontades dos sujeitos a uma única, mediante a entrega de

todos os poderes e direitos (exceto do direito à vida) à pessoa de um soberano.

O estado de natureza humana incentiva o uso irrestrito da liberdade a ponto de

os homens lesarem, prejudicarem e destruírem seus semelhantes (o homem pode ser

chamado de lobo do próprio homem – homo homini lupus – expressão utilizada

pioneiramente por Plauto, na peça Comédia dos Asnos, no ano de 206 ou 211 A.C e

aproveitada por Thomas Hobbes).

Julian Marías61 informa que, para Hobbes, os homens não têm um interesse

direto na companhia de seus semelhantes e só a mantêm enquanto possam subjugá-los. Os

três pivôs da discórdia entre humanos são: a competição, que provoca as agressões para

obter lucro; a desconfiança que leva as pessoas a se atacarem visando a segurança e a

glória que os hostiliza por motivos de reputação.

Não existe controle racional dos indivíduos em pleno estado de natureza, nem

aquele estado idílico e bucólico de gozo ilimitado na forma que imaginado, no século XVIII,

por Jean-Jacques Rousseau. Rompendo a tradição iniciada por Aristóteles, Hobbes nega

que o homem seja originariamente um animal político; afirma ser ele um animal egoísta e

defende a obrigatoriedade de se prevenir que a vida se extinga pelo enfrentamento de todos

contra todos e fundamenta a importância do contrato que constrói o Estado. A manutenção

da espécie humana está condicionada à criação do pacto social, sob autoridade do

soberano, que, por sua vez, situa-se acima de todos e tem capacidade justamente de evitar

a guerra e a morte.

A situação natural dos homens se caracteriza pela perpétua luta, pela guerra

generalizada entre os integrantes de um povo (bellum ominium contra omnes). Não se trata,

porém, de atos solitários de luta, mas de um estado, um tempo em que se está, uma

disposição permanente em que não se tem certeza do contrário. O homem reúne poder do

61MARÍAS, Julián. História da Filosofia. 1 ed. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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qual se vale à medida de seu arbítrio; tem paixões e desejos que o levam a buscar coisas e

a querer conquistá-las dos demais. Uma vez que a coletividade conhece este

comportamento, é espalhada a desconfiança e o estado natural consiste no ataque. Pouco a

pouco, o indivíduo compreende que a situação de insegurança não se sustenta, que a

contenda perpétua promove uma forma de vida miserável e se vê obrigado a buscar a paz.

Thomas Hobbes traça diferenças entre jus ou direito, que interpreta como

liberdade, e lex ou lei, que simboliza a obrigação. O homem possui liberdade, direito de

fazer tudo o que possa e queira, entretanto com um direito é viável adotar três opções:

exercê-lo, renunciá-lo ou transferi-lo. Quando a transferência é mútua, recíproca, está-se

diante de um pacto, contrato, convênio, convenant. Isto leva à estruturação do conceito de

comunidade política.

Em ordem a obter segurança, continua Julián Marías62, o homem tenta substituir

o status naturae por um status civilis, através de um convênio em que cada um transfere

parcela de seu direito para o Estado. O soberano representa a força conformada por tal

instrumento e o restante das pessoas são seus súditos. O Estado constituído nestes moldes

é absoluto, superior a tudo, um Deus mortal, seu poder irrestrito e não existe entre ele e o

cidadão nenhuma outra instância. Hobbes o nomeia então de Leviatã, em comparação à

grande besta bíblica.

Após o falecimento do filósofo inglês retratado, John Locke, opondo-se a ele,

propugna em Tratados sobre o Magistrado Civil, no ano de 1689, que o estado de natureza

não seria a guerra, mas a paz, esteado na liberdade e igualdade, porque os homens reúnem

as mesmas condições de nascimento e faculdades. Da liberdade nasce a obrigação; Deus é

dono e senhor de todas as coisas e impõe uma lei natural. A partir da igualdade advém um

amor dos homens uns pelos outros, os quais jamais podem arrebentar a lei natural.

A paz, no entanto, seria encerrada pela ausência de um terceiro (tertius) cuja

responsabilidade seria julgar os conflitos que, ainda assim, emergissem. O surgimento do

pacto que origina a vida em sociedade está correlacionado à ideia, segundo a qual é

imprescindível a presença de um terceiro para a decisão das inquietudes instauradas na

vida social.

Na filosofia política de John Locke convivem, portanto, o estado de natureza e o

estado civil. Este último é erigido em ordem a garantir a vigência e proteção dos direitos

naturais que sofreriam no estado de natureza enorme perigo. A comunidade representa

artifício de manutenção dos direitos naturais e inibição de seus desvirtuamento e supressão.

A guerra e a desordem intimidam os homens e servem de motivo para a

formação de regras que configuram o modo de vida regido pelas leis e pelo Estado. A

62MARÍAS, Julián. História da Filosofia. 1 ed. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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princípio, os homens não nascem na liberdade, mas para a liberdade, por isso, o rei não tem

autoridade absoluta, mas a recebe do povo. A forma ideal de Estado se restringe à

monarquia constitucional.

Posteriormente, em outra obra, Ensaio sobre o entendimento humano, divulgada

no ano seguinte, 1690, Locke anuncia que o termo pessoa designa aquilo que um sujeito

denomina de si mesmo. O autor procura estabelecer vínculos entre o vocábulo pessoa e as

palavras identidade, consciência e memória, vendo o ser humano autônomo e

individualizado como ser dotado de identidade reflexiva, adquirida através da consciência

particular desta identidade.

Com efeito, Immanuel Kant editou, no ano de 1788, Crítica da Razão Prática e

abordou o conceito de moralidade a partir do que denominou imperativo categórico. O

homem que age moralmente deverá fazê-lo não pelo fato de objetivar o alcance de qualquer

outra coisa (prazer, realização na felicidade, auxílio a outrem), porém em função de postar-

se de acordo com a máxima do imperativo categórico. O agir livre é o agir moral; o agir

moral é o agir seguindo-se o dever; o agir com o dever é fazer de sua lei subjetiva um

princípio de legislação universal, a ter incidência em toda a natureza. Disto decorre que o

sumo bem somente pode ser algo independente totalmente de qualquer desejo externo ao

indivíduo, de maneira que significará o completo cumprimento do dever pelo dever. A

máxima beatitude e a absoluta felicidade surgem como simples mérito e consequência de se

estar conforme o dever e pelo dever. O atuar pelo dever revela a ética kantiana.

O imperativo categórico encontra-se na sentença Age de tal modo que a máxima

de tua vontade possa sempre valer simultaneamente como um princípio para a legislação

geral, repartida por Kant em três outras máximas morais:(1) Age como se a máxima de tua

ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da natureza; (2) Age de tal

maneira que sempre trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem,

como um fim e nunca como um meio e (3) Age como se a máxima de tua ação devesse

servir de lei universal para todos os seres racionais.

Maria Celina Bodin de Moraes63 pontifica que o dever para Kant não se resume

a conteúdos fixos, a uma lista ou catálogo de virtudes, mas configura-se mediante uma

forma que deve imperar universal e incondicionalmente, ou seja, categoricamente para toda

e qualquer ação moral.

A autora explica que a primeira máxima corresponde à universalidade da

conduta ética, válida em todo tempo e lugar, enquanto a segunda estampa o cerne do

imperativo, porque assegura a dignidade dos seres humanos. E a terceira simboliza a

63MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana – Estudos de direito civil-constitucional. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

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separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins, imputando à vontade

humana uma vontade legisladora geral.

A determinação do imperativo categórico, de acordo com a qual o homem nunca

há de ser visto ou usado como um meio para atingir outros fins (deve, entretanto, ser

considerado como fim em si mesmo) indica que todas as normas decorrentes da vontade

legisladora do indivíduo terão, obrigatoriamente, como finalidade o homem, a espécie

humana, de sorte que, o imperativo categórico kantiano se orienta pelo valor fundamental,

absoluto, universal e incondicional da dignidade da pessoa humana, sendo ele que ilumina e

influencia o mandamento ético maior do respeito pelo outro. Como consequência direta

deste raciocínio, é lícito formular, lembrando Luis Roberto Barroso64, outra enunciação do

imperativo categórico – toda pessoa, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, e

não como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia.

Segundo Immanuel Kant, no mundo social são delineadas duas categorias de

valores – o preço (Preis) e a dignidade (Würden). O primeiro representa um valor externo,

mercadológico, denota interesses particulares, enquanto que o segundo estampa um valor

interno, moral, de interesse geral. Os bens têm preço; os indivíduos, dignidade. As pessoas

não podem ser substituídas, como as coisas, umas pelas outras, possuindo, então, um valor

absoluto, ao qual se dá o nome de dignidade.

A exigência de nunca transformar o homem em meio para o alcance de fins

específicos é resultado do fato de que o valor moral se situa muito acima do valor de

mercadoria. Em consequência, a legislação elaborada pela razão prática, imperante no

mundo social, há de conservar como finalidade suprema o valor intrínseco da dignidade

humana.

O estudo histórico da dignidade da pessoa humana evidencia que, embora

variados autores notáveis tenham negado as tentativas de fundamentação religiosa e

metafísica de referido valor, e apesar das catastróficas experiências pelas quais passa a

humanidade cotidianamente, a conclusão a que se chega é a de que ele remanesce, mais

do que nunca, ocupando lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, sendo

comprovação disto a implementação dele como valor fundamental em variadas ordens

jurídicas.

A influência da concepção jusnaturalista se manifesta na máxima de que,

Constituições que tenham recepcionado, de maneira direta ou indireta, a dignidade da

pessoa humana, utilizam como pressuposto o fato do homem, em virtude exclusivamente de

sua condição biológica, natural e independentemente de outras circunstâncias de qualquer

64BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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tipo, ser titular de direitos, que devem ser respeitados por outras pessoas (terceiros) e pelo

Estado.

Martin Kriele, citado por Ingo Wolfgang Sarlet65, corrobora deste entendimento e

pontua que a titularidade de direitos pelo homem, em função meramente de sua natureza

humana, serviu de base para o reconhecimento dos direitos humanos, a proteção dos fracos

e oprimidos e não apenas daqueles que foram contemplados com direitos pela lei, por

contratos, ou em virtude de sua posição social ou econômica.

1.4.2. Dignidade da Pessoa Humana – Conceito Atual, Conteúdos Essenciais,

Funções e Modalidades de Eficácia

A expressão dignidade da pessoa humana contempla contornos vagos,

imprecisos, ambíguos e porosos, de modo que, não obstante as observações realizadas

acima, se mostra impossível defini-la com exatidão. Este princípio fundamental parece

integrar o rol de realidades contrárias à claridade e que se obscurecem na proporção direta

dos trabalhos árduos para a sua elucidação.

A despeito disto, a dignidade é algo tangível, sem dúvidas, mesmo porque não

se desvela difícil de separar quais as situações em que ela é afastada, atacada, agredida.

Ademais, doutrina e jurisprudência já buscaram demarcar os limites básicos do conceito e

concretizar o seu conteúdo.

É proveitoso, sob esta ótica, o pensamento de Peter Häberle66, consoante o qual

se apresenta forçosa a utilização de exemplos concretos cujo fito é a obtenção de uma

aproximação maior do conceito de dignidade da pessoa humana, destacando-se a

relevância de um preenchimento desta ideia de baixo para cima, ou seja, a própria ordem

jurídica infraconstitucional oferece material para a definição dos contornos do significado.

Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana é costumeiramente

imaginado como categoria axiológica aberta, sendo equivocado estruturá-lo de forma

fechada, restrita, pois um conceito desta natureza não se compatibiliza em nada com o

pluralismo e a multiplicidade de valores que se materializam hodiernamente nas sociedades

democráticas.

65SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 66SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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Luis Roberto Barroso67 esclarece que atores jurídicos há, especialmente na

tradição romano-germânica, que são ávidos por definições abrangentes e detalhadas. Mas,

a dignidade deve ser imaginada como um conceito aberto, plástico, plural. A realidade,

continua ele, para bem ou para mal, é que a dignidade da pessoa humana, no mundo

contemporâneo, passou a ser arguida em cenários diversificados e complexos que se

estendem da bioética à proteção do meio ambiente, atravessando a liberdade sexual, de

trabalho e de expressão. O anseio de produzir um conceito transnacional de dignidade lida

com circunstâncias históricas, religiosas e políticas de diferentes países, dificultando, pois, a

elaboração de uma concepção unitária.

A dignidade é, consoante estudado anteriormente, qualidade intrínseca da

pessoa humana, algo que tão somente existe, sendo irrenunciável, inalienável, elemento

que caracteriza o ser humano, dele não podendo ser apartado. Daí a reflexão de Günter

Dürig68 de que é inadmissível cogitar-se na hipótese de certa pessoa ser titular de uma

pretensão a que lhe seja concedida dignidade. Uma vez que ela é inerente ao ser humano,

à natureza da pessoa humana, todos devem reconhecê-la, respeitá-la e protegê-la,

automaticamente, sem maiores formalidades, não configurando ela, contudo, algo que

possa ser criado ou retirado para e dos indivíduos.

Cabe a ressalva de que aspectos substanciais da dignidade poderão ser

paralisados em determinadas situações. Isto acontece, à guisa de exemplo, nos casos de

prisão legítima de um condenado criminalmente.

Com efeito, Jorge Miranda69, embasado no artigo 1º70 da Declaração Universal

dos Direitos Humanos da ONU (1948), preconiza que a igualdade entre os homens se

escora na razão e consciência, qualidades comuns a todas as pessoas. E, Günter Dürig

parece concordar com o autor português, quando estabelece que a dignidade da pessoa

humana se conforma no fato de que cada ser humano é humano em função de seu espírito,

que o distingue da natureza inanimada (impessoal) e que o torna apto para, baseando-se

em sua particular decisão, transformar-se em consciente de si mesmo, capaz de

autodeterminar a sua conduta, de formatar a sua existência e a do meio que o engloba.

67BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013. 68SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 69SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 70Artigo I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011).

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O componente nodal da dignidade da pessoa humana está essencialmente na

autonomia da vontade e no direito individual de autodeterminação. Eis que a liberdade

expressa na autonomia há de ser apreciada em abstrato e definida como a capacidade em

potência, expectativa, de cada ser humano autodeterminar sua conduta, de maneira que

também o absolutamente incapaz tem igual dignidade que qualquer outra pessoa física e

mentalmente capaz (por exemplo o portador de grave doença mental). Günter Dürig,

novamente, adverte que mesmo o consentimento do ofendido não descaracteriza uma

autêntica afronta à dignidade da pessoa humana.

Concomitantemente, alguns autores, a exemplo de Peter Häberle, relatam que a

dignidade da pessoa humana deve ser entendida tanto como algo inerente e inato às

pessoas quanto como fruto do desenvolvimento de diversas gerações e da humanidade,

razão pela qual as dimensões natural e cultural se complementam e se relacionam entre si.

E, isto justifica a verificação doutrinária de que a dignidade é também limite e

tarefa dos poderes estatais.

Na condição de limite do comportamento estatal, materializa algo pertence a

cada um dos indivíduos e, por isto mesmo que não pode ser retirado, perdido, alienado,

porque, passando a não mais existir, restará atingido e não assegurado o elemento imutável

e fixo da dignidade, desaparecendo, por conseguinte, o limite a ser implementado e

respeitado. Outrossim, na qualidade de tarefa reservada ao Estado, ela exige que este

coordene suas ações rumo à preservação da dignidade existente e à criação de meios que

permitam o seu pleno exercício, dependente da ordem comunitária, acentuando-se que é de

se investigar se o indivíduo consegue sozinho atingir suas necessidades básicas ou se, ao

contrário, precisa, para tal finalidade, do concurso do Estado ou da comunidade em que vive

(elemento mutável da dignidade).

Além disso, dentro da análise do sentido da expressão dignidade da pessoa

humana, destaca-se que somente é passível de desrespeito a dignidade de determinado

indivíduo ou de específicas pessoas, não ocorrendo ameaças contra a pessoa humana em

abstrato. Por trás desta afirmação está a máxima de que a dignidade equivale a atributo da

pessoa humana individualmente considerada e não de um ente imaginado, abstrato, não

sendo correto confundir a concepção de dignidade da pessoa humana e dignidade humana,

da humanidade em geral.

No entanto, incabível afastar integralmente a dimensão social ou comunitária da

dignidade da pessoa humana, pois todos são iguais em dignidade e, assim, convivem juntos

em grupo ou sociedade. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet71 defende uma dimensão

71SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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intersubjetiva da dignidade, que se origina da situação básica de ser humano em sua

relação com os demais. Ainda desta maneira não se autoriza o sacrifício da dignidade

pessoal em prol da comunidade, já que como qualidade inerente ao homem, dele não pode

ser arrancada, encerrando-se exclusivamente quando ele perde a vida (excetuados os

conhecidos efeitos post mortem da dignidade). Não se acha vedada, em contrapartida, a

designação de restrições à autonomia e liberdade pessoais.

É repisada a advertência outrora formulada de que se traduz inviável reduzir o

conteúdo do princípio da dignidade da pessoa a um modelo abstrato, genérico, global.

Günter Dürig72, na tentativa de conhecer a essência de referido princípio, enunciou que a

dignidade humana poderia ser reputada atingida quando a pessoa fosse desclassificada a

objeto, a instrumento, a coisa. Embora a explicação autorize a verificação, no caso concreto,

de uma efetiva lesão à dignidade da pessoa humana, conferindo, inclusive, uma direção a

ser seguida, a fórmula idealizada pelo autor alemão não oferece uma solução generalizada

ao problema.

Não há dúvidas de que a dignidade da pessoa humana abranja obrigatoriamente

o respeito e a tutela da integridade física e corpórea do indivíduo e disto advenha a

proibição do trabalho escravo, da pena de morte, da tortura, das penas de natureza

corporal, do emprego da pessoa humana para experiências científicas e da construção de

regras relacionadas aos transplantes de órgãos.

Segundo Luis Roberto Barroso73, a dignidade da pessoa humana restou elevada

a categoria jurídica e, desta maneira, é forçoso dotá-la de conteúdos mínimos que confiram

unidade e objetividade à sua interpretação e aplicação, impedindo-se que, ao contrário, ela

se transforme em embalagem para qualquer produto, simples artifício da retórica, suscetível

de diversas manipulações.

Nesse mister, de saída, na linha do pensamento de referido autor, se impõe

afastar a dignidade de doutrinas intituladas abrangentes, totalizadoras, que expressem um

ponto de vista unitário como as religiões ou as ideologias cerradas. A ruína da ideia de

dignidade seria sua utilização almejando-se legitimar posições moralistas ou perfeccionistas,

a partir de sua intolerância e seu autoritarismo.

O consectário disto reside que, no estabelecimento de conteúdos mínimos da

dignidade, deve-se fazer uma escolha, em primeiro lugar, pela laicidade. O enfoque não

72SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional). 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 73BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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pode ser uma visão judaica, cristã, muçulmana, hindu ou confucionista, à exceção dos

pontos nos quais as principais religiões compartilhem valores comuns.

Em segundo lugar, a dignidade precisa ser esquematizada com o máximo de

neutralidade política possível, com elementos que venham a ser participados pelos liberais,

conservadores e socialistas. Diante de suas incontáveis implicações, é fundamental a

existência de um regime democrático. Ao final, os conteúdos básicos da dignidade devem

ser universalizáveis, multiculturais, usufruídos e queridos pela integralidade do grupo

humano.

Há variados documentos internacionais aptos a servirem de base para estipular

conteúdos laicos, politicamente neutros e universalizáveis74. A Declaração Universal dos

Direitos Humanos (DUDH), a começar, maneja o termo universal e não internacional. Nela

se resume o mínimo ético a ser protegido para a manutenção da dignidade da pessoa

humana. Seu conteúdo foi materializado em outros instrumentos internacionais seguramente

vinculantes, diferentemente da DUDH, costumeiramente considerada como um documento

programático, a saber, dentre outros, – Convenção para Prevenção e Repressão de

Genocídio (1948), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os dois de 16/12/1966, Convenção sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), Convenção sobre

a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984),

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1985),

Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989) e Convenção sobre a Proteção dos

Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares (1990).

Conforme exposição de Luis Roberto Barroso, já mencionada linhas atrás, a

dignidade remonta a um conceito cujo sentido e alcance sofrem influências históricas,

religiosas e políticas, sendo suscetível de alterações nas diferentes jurisdições. Entretanto, o

objetivo do presente exame é o de conferir-lhe um sentido mínimo, universalizável, aplicável

a qualquer ser humano, onde quer que ele esteja. Trata-se de uma tarefa hercúlea em prol

da busca de um conteúdo humanista, transnacional e, mais, transcultural.

Na verdade, para tal autor, o valor ou princípio, sob comento, e os direitos

humanos são duas faces de uma mesma moeda, ou, de Jano, imagem bastante conhecida

do Direito. Uma se volta para a Filosofia, demarca os valores morais, que individualizam

todas as pessoas, transformando-as em merecedoras de igual respeito e atenção; a outra

se dirige ao Direito, revelando posições jurídicas titularizadas por pessoas e tuteladas pelas

normas jurídicas e atuação judicial.

74BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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A dignidade, ante tudo o que restou gizado, detém três conteúdos essenciais:

valor intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana.

O primeiro revela, no plano filosófico, o elemento ontológico da dignidade,

relacionado à natureza do ser, ao que é comum e inerente à totalidade dos seres humanos,

consistindo na afirmação da posição especial ocupada por eles no mundo, o que os

diferencia dos demais seres vivos e das coisas (valor ao qual não é atribuído um preço). A

inteligência, a sensibilidade e a comunicação, através de palavras, arte e olhar, são

características únicas que funcionam como justificativa para a condição particular por eles

ocupada.

Há um valor objetivo, que independe das circunstâncias pessoais de cada

sujeito, apesar de que se vem emprestando enorme magnitude aos sentimentos de

autovalor e de autorrespeito, que surgem de um reconhecimento social. Ronald Dworkin

ensina que toda vida humana possui um tipo especial de valor objetivo, sendo que o

sucesso ou fracasso dela é importante em si, devendo todos no grupo social lamentar uma

vida desperdiçada75.

É do valor intrínseco que flui um postulado anti-utilitarista e outro anti-autoritário.

Aquele acha-se contido no imperativo categórico kantiano do homem como um fim em si

mesmo e não como um meio para o alcance de metas coletivas ou projetos sociais de

terceiros. E, este, se assenta na ideia de que o Estado existe para o indivíduo e não o

oposto.

O valor intrínseco da pessoa humana, conteúdo fundamental da dignidade, a faz

não depender de concessão, não poder ser retirada e não ser perdida, ainda que nas

hipóteses de conduta individual e indigna do seu titular.

Ademais, aproveita-se a oportunidade para recuperar afirmação feita

anteriormente de que, ainda que o componente principal da dignidade da pessoa humana

esteja na autonomia da vontade e no direito individual de autodeterminação, a liberdade

expressa na autonomia necessita ser verificada em abstrato e definida como a capacidade

em potência, expectativa, de cada ser humano autodeterminar sua conduta, de modo que

também o absolutamente incapaz (por exemplo o portador de grave doença mental) tem

igual dignidade que qualquer outra pessoa física e mentalmente capaz.

Note-se que, a propósito, o próprio Código Civil de 2002, no artigo 1767, incisos

I, II, III, 1ª parte, e IV, procurou salvaguardar os interesses e, mais, a dignidade humana,

daqueles que por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário

discernimento para os atos da vida civil, dos que, por outra causa duradoura, não puderem

75BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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exprimir a sua vontade, dos deficientes mentais e dos excepcionais sem completo

desenvolvimento mental (exemplos – indivíduos com Síndrome de Down, pessoas

acidentadas, com sequelas nas funções cerebrais, dentre outros)76.

O dispositivo retro formalizou a curatela que é encargo, múnus público, instituto

de proteção (como a tutela) deferido por lei a alguém para reger a pessoa e administrar os

bens de outrem, que não pode fazê-lo por si mesmo77. O pressuposto fático do instituto é a

incapacidade, estando sujeito a ele os adultos que por causas patológicas, congênitas ou

adquiridas são incapazes de administrar a si e a seu patrimônio78.

No campo jurídico, o valor intrínseco da pessoa humana, reporta Luis Roberto

Barroso, consolida a inviolabilidade de sua dignidade e serve de base a um conjunto de

direitos fundamentais. O primeiro deles, em uma ordem natural, é o direito à vida, que

permeia discussões de ampla complexidade jurídica e moral envolvendo a pena de morte, o

aborto e a morte digna. Em segundo lugar destaca-se o direito à igualdade; todas as

pessoas possuem o mesmo valor intrínseco e, então, merecem igual respeito,

independentemente de raça, cor, sexo, religião, origem nacional ou social ou qualquer outra

condição. Insere-se nisto tanto o tratamento não discriminatório na lei e perante ela,

denominado de igualdade formal, quanto a preservação à diversidade e à identidade de

grupos minoritários, como circunstância obrigatória para a dignidade individual ou igualdade

como reconhecimento.

Do valor intrínseco decorre, em paralelo, o direito à integridade física, nele

incluídos a vedação da tortura, do trabalho escravo ou forçado, das penas cruéis/

degradantes e do tráfico de pessoas. Ao redor deste direito se instauram questionamentos

sobre prisão perpétua, técnicas de interrogatório, regime prisional, pesquisas clínicas,

eugenia, comércio de órgãos e clonagem humana. Por último, apura-se o direito à

integridade moral ou psíquica que compreende o direito de ser visto como pessoa e os

direitos ao nome, à privacidade, à honra e à imagem. É em função dele que em variadas

situações se tutela da a pessoa contra si mesma, evitando-se, assim, condutas lesivas à sua

dignidade.

O segundo conteúdo da dignidade da pessoa humana consiste na autonomia,

que é seu elemento ético, ligado à razão e ao exercício da vontade alinhado com

determinadas normas. A dignidade, enquanto autonomia envolve, de saída, a capacidade de

autodeterminação, ou seja, o direito do sujeito decidir os caminhos de sua vida e de

76DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Família. Vol. 5. 23 ed. Saraiva: São Paulo, 2008. 77PELUSO, Cesar. et al. Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. 4 ed. Manole: São Paulo, 2010. 78DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Família. Vol. 5. 23 ed. Saraiva: São Paulo, 2008.

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construir livremente sua personalidade, realizando escolhas morais e existenciais, livres de

imposições exteriores e inadequadas. As deliberações sobre religião, vida afetiva, trabalho,

ideologia, entre outras, não devem ser suprimidas de um indivíduo sem que tal ato seja

considerado violador de sua dignidade. Na base do instituto da autonomia constata-se a

ideia de pessoa, de um ente moral e consciente, eivado de vontade incondicionada e

responsável.

A autonomia, sob um enfoque jurígeno, requisito da dignidade, se apresenta

como a principal ideia implícita nas declarações de direitos em geral, internacionais e

nacionais (constitucionalismo brasileiro). Ela contém duas dimensões – pública e privada.

No plano dos direitos individuais, se materializa, predominantemente, como

autonomia privada, constante do conteúdo fundamental da liberdade e do direito de

autodeterminação, sem ingerências exteriores e ilegítimas. Entretanto, hão de estar

resguardados todos os meios para a autodeterminação, ou seja, as possibilidades objetivas

de seleção e decisão, interligadas ao direito de igualdade no seu aspecto material.

Em contrapartida, a dignidade figura, da mesma forma, no domínio dos direitos

políticos, como autonomia pública, se referindo ao direito de cada um se envolver no

processo democrático. Todos titularizam o direito de participar politicamente e de exercer

influência no procedimento de tomada de decisão, não somente na via eleitoral, mas

certamente mediante organizações sociais e debates públicos.

Da mesma forma, é viável relacionar a dignidade aos direitos sociais

materialmente fundamentais, dentre os quais precisa ser salientado o conceito de mínimo

existencial, cunhado, pioneiramente, pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, vide os

julgados BVerfGE 40:12179 e BVerfGE 33:303, dentre outros. O homem requer, para ser

livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, que sejam satisfeitas as necessidades

indispensáveis à sua existência física e psíquica.

O direito ao mínimo existencial não se consagrou expressamente em

normatizações constitucionais ou internacionais, embora sua estrutura venha sendo ampla e

implicitamente protegida pelas mesmas. O Supremo Tribunal Federal Brasileiro, inclusive,

79[...] Por fim, [...], também o Tribunal Constitucional Federal acabou por consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna. Da argumentação desenvolvida ao longo desta primeira decisão, extrai-se o seguinte trecho: certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. [...] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos cidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, encontram-se limitados nas suas atividade sociais, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existência digna e envidar os esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais (Sarlet, Ingo Wolfgang e Figueiredo, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana. Acesso em 09/06/2013).

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deixou isto bastante claro, na Medida Cautelar em Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental n. 45/DF80, ao ratificar que a meta principal das Constituições Modernas e da

Carta de 1988, em particular, deve ser condensada na promoção do bem-estar do homem,

cujo ponto de início se encontra na garantia de sua própria dignidade, acrescentando-se a

proteção dos direitos individuais e das condições materiais mínimas de existência. E, a

verificação dos elementos fundamentais desta dignidade (o mínimo existencial) perfaz

seguramente trabalho anterior e de extrema importância para o delineamento dos alvos

prioritários dos gastos públicos.

Portanto, é válido reconhecer que os direitos fundamentais detêm o mínimo

existencial por núcleo essencial e o conteúdo dele se harmoniza aos requisitos para o

exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública. Não é possível,

porém, delimitar, também, o seu conteúdo taxativamente, porque ele varia,

indubitavelmente, no tempo e no espaço. Entretanto, na linha desenvolvida pela

Constituição Federal Brasileira de 1988, incluem-se em seu escopo, dentre outros, os

direitos à educação básica, à saúde essencial, à assistência aos desamparados e ao acesso

à justiça.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal pontuou, no Agravo Regimental em

Agravo de Instrumento n. 708.667-SP81, que a noção de mínimo existencial, que advém, por

implicitude, de específicos preceitos constitucionais e internacionais (artigos 1º, inciso III, e

3º, inciso III, da Lei Maior de 1988 e artigo XXV, da Declaração Universal dos Direitos da

Pessoa Humana) reúne um conjunto de prerrogativas cuja concretização revela-se hábil a

garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a preservar, à pessoa, o

acesso efetivo, real, ao direito geral de liberdade e, igualmente, a prestações de natureza

positiva e originária do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, a

80Ementa: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da reserva do possível. Necessidade de preservação em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). Ação julgada prejudicada por perda superveniente de objeto. Relator Ministro: Celso de Mello. Data de Julgamento: 29/04/2004. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 08/06/2013. 81Ementa: Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Ação civil pública. Obrigação de fazer. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 2. Agravo regimental não provido. Relator Ministro: Dias Toffoli. Data de Julgamento: 28/02/2012. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 14/06/2013.

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exemplo dos direitos à educação, à proteção integral da criança e do adolescente, à saúde,

à assistência social, à moradia, à alimentação e à segurança.

Segundo a teoria retratada somente o conteúdo designado essencial dos direitos

sociais se reveste de fundamentalidade suficientemente apta a gerar, sozinha, direitos

subjetivos aos titulares. Se a pretensão estiver fora do mínimo existencial, o reconhecimento

dos direitos subjetivos permaneceria na dependência de legislação infraconstitucional,

regulamentadora da espécie, não tendo o Poder Judiciário permissão constitucional para

agir desbordando das previsões legais.

A doutrina do mínimo existencial é, lembrando George Marmelstein82, por um

lado, positiva e, por outro, negativa. Primeiramente se reconhece que há uma cristalina

afirmação de que os direitos sociais têm eficácia jurídica e, dentro do núcleo essencial do

bem jurídico tutelado, está autorizada a intervenção do Poder Judiciário cujo fito é dar

efetividade aos direitos, diante das omissões dos outros Poderes. Todavia, um intérprete

ideologicamente oposto aos direitos sociais poderá se utilizar desta teoria para esvaziar ao

máximo a força jurídica de ditos direitos, restringindo extremamente o seu conteúdo basilar,

sendo lícito avisar que a definição do conteúdo mínimo restará atribuída à doutrina e à

prática judicial. Alguns questionamentos, elencados pela doutrina83, vão surgir, a exemplo –

O que seria o mínimo existencial em matéria de educação? Seria apenas saber escrever o

próprio nome? No que consiste o mínimo existencial em matéria de moradia? Seria um

espaço em baixo de uma ponte? Ou mesmo, Qual o mínimo fundamental do direito à

segurança?

Para George Marmelstein84, inclusive, a teoria em comento não se revela

compatível com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. E este raciocínio se esteia

no fato de que a Constituição Federal de 1988 não estabelece que apenas um mínimo será

protegido por ela. Mas, ao revés, são identificados mandamentos orientadores de uma

proteção cada vez maior, a exemplo, no âmbito da saúde, orientado pelos princípios da

universalidade do acesso, integralidade do atendimento, o que, de fato, afasta o enfoque

minimalista. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, incorporado

no ordenamento nacional no mês de janeiro do ano de 1992, menciona, quanto à

implementação de direitos sociais, a obrigação do emprego máximo de recursos

disponíveis, o que, na mesma toada, se mostra não convergente com a ideia minimalista.

Em virtude disto tudo, os aspectos negativos da teoria sub examine serão

afastados proporcionalmente à ampliação cada vez maior do núcleo essencial dos direitos,

conseguindo aquela contribuir energicamente na procura da máxima efetividade dos direitos

82MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4 ed. Atlas: São Paulo, 2013. 83MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4 ed. Atlas: São Paulo, 2013. 84MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4 ed. Atlas: São Paulo, 2013.

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sociais. Ricardo Lobo Torres85 preleciona justamente que é preciso buscar a maximização

dos mínimos sociais e a otimização dos direitos sociais.

Luis Roberto Barroso aduz que a jurisprudência estrangeira vem rotineiramente

consolidando a ideia de autonomia enquanto conteúdo essencial da dignidade86. A Suprema

Corte Canadense, nos autos do processo Rodriguez v. British Columbia consagrou

expressamente, apesar de impedir o suicídio assistido, a habilidade individual de fazer

escolhas. Da mesma forma, a Suprema Corte Americana se utilizou deste conceito em

Lawrence v. Texas, no qual se verificou a legitimidade das relações homoafetivas e

reformou decisão anterior que declarava constitucional lei incriminadora das relações

sexuais entre pessoas de mesmo sexo. Construiu-se o entendimento de que a conduta

sexual íntima era parte da liberdade tutelada pela cláusula do devido processo legal

substantivo (14ª Emenda).

Também a Corte Constitucional da Colômbia defendeu a dignidade como

autonomia ao decidir pela inconstitucionalidade da eutanásia a partir de uma visão secular e

pluralista que haveria de respeitar a autonomia moral do indivíduo. E, ao julgar o caso Laís x

Pandemo, este Tribunal, decretou o caráter lícito da prostituição voluntária, manifestação da

autodeterminação individual, deferindo direitos trabalhistas aos profissionais do sexo.

Finalmente, o terceiro conteúdo da dignidade é o valor comunitário, dignidade

como heteronomia, albergando o seu elemento social, ou seja, o indivíduo em relação ao

grupo. Ele desvela uma visão relacionada a valores repartidos pela sociedade, dependentes

de seus padrões civilizatórios.

O foco não está nas escolhas individuais, mas sim nas responsabilidades e

deveres a elas associados. A dignidade como valor comunitário assume função constritiva

externa da liberdade individual, não refletindo instrumento de sua promoção, porém

ferramenta importante para moldar seu conteúdo e limite. Os objetivos almejados são

variados, podendo ser elencados, a titulo de exemplo, a proteção do próprio indivíduo contra

atos autorreferentes, a tutela do direito de terceiros e o resguardo de valores sociais, neles

inserida a solidariedade.

É, entretanto, importante avisar que o item ora apreciado traz alguns riscos,

quais sejam a utilização da expressão justificando políticas paternalistas e problemas

práticos, institucionais quando na atividade de definir, diante dos perigos do moralismo e

tirania da maioria, os valores compartilhados pela comunidade.

85MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4 ed. Atlas: São Paulo, 2013. 86BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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No que diz respeito à proteção do indivíduo contra si próprio, em face de suas

decisões particulares, cita-se o julgamento em 27/10/1995, pelo Conselho de Estado

Francês, do notório caso Morsang-sur-Orge87.

Naquela assentada restou reexaminado ato do prefeito de tal cidade que proibiu

o lícito jogo de arremesso de anões em discotecas, que consistia em espetáculo em que

integrantes da plateia atiravam um anão vestido com trajes suficientes para prendê-lo pelo

pulso e, simultaneamente, protegê-lo na queda sobre um tapete vermelho. O vencedor era

proclamado dentre os que arremessassem o anão o mais longe possível. Note-se que o

embargo administrativo imposto pelo alcaide havia sido suspenso pelo Tribunal de

Versalhes, a pedido de um estabelecimento comercial atingido e, surpreendentemente, do

anão (Sr. Manuel Wackenheim), sob o argumento de que o prefeito ultrapassara os limites

de seu poder de polícia.

Com efeito, no julgado de 1995, consignou a mais alta Corte Administrativa da

França que no exercício do poder de polícia municipal, os prefeitos são incumbidos de

adotar as medidas necessárias à manutenção da ordem pública, definida, tradicionalmente,

em torno das noções de segurança, tranquilidade e salubridade pública. A jurisprudência,

porém, já cristalizou, aponta a decisão, que a noção de ordem pública pode se estender

para além desta trilogia tradicional, abrangendo certas circunstâncias e aspectos da

moralidade pública.

Em seguida, o Conselho de Estado reconheceu, pela primeira vez,

explicitamente que o respeito à dignidade da pessoa humana deve ser considerado um

componente de ordem pública. A salvaguarda da dignidade contra todas as formas de

subserviência ou de degradação já havia sido elevada à categoria de princípio constitucional

pelo Conselho Constitucional da França no acórdão n. 94-343/345, de 27/07/1994.

O Estado é obrigado, tendo em vista as estipulações do artigo 3º, da Convenção

Europeia de Direitos Humanos, de 04/11/1950, a impedir a imposição de penas ou

tratamentos desumanos ou degradantes. Assim, a dignidade da pessoa humana compõe a

ordem pública, fenômeno não meramente exterior, e a autoridade investida do poder de

polícia municipal está autorizada, mesmo diante da ausência de circunstâncias locais

especiais particulares, a interditar uma atração, como o jogo de arremesso de anão, que,

por sua natureza, flagrantemente a fira ou contra ela atente, auxiliando na construção de um

conceito de homem e proclamando a moralidade pública, instituto da ordem pública88.

87Disponível em www.conseil-etat.fr/fr/presentation-des-grands-arrets/27-octobre-1995. Acesso em 22/06/2013. 88A proibição ao jogo de arremesso de anões veio a ser confirmada após o julgamento de apelo formulado pelo Sr. Manuel Wackenheim à Organização das Nações Unidades (ONU), verbis: Genebra (Reuters) – Um pequeno dublê que protestou contra uma proibição francesa à bizarra prática de lançamento de anões perdeu sua apelação diante de um órgão de defesa dos direitos

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O entendimento sufragado no acórdão discutido acima permite a conclusão de

que há a possibilidade de serem legitimadas restrições à liberdade, fundamentando-as na

guarda da dignidade do próprio sujeito e amparando-se nos valores socialmente

compartilhados.

À semelhança, em determinadas situações é correta a imposição de limitações à

autonomia privada objetivando-se a promoção da proteção dos direitos de terceiros ou a

massificação de certos valores sociais. Este raciocínio é válido para hipóteses de defesa da

vida, combate à pedofilia e supressão da liberdade de expressão em situações de calúnia

ou instigação do discurso do ódio89.

Ademais, o ato de efetivar forçadamente a implantação de direitos sociais, de

autoria do Poder Legislativo, ou, ocasionalmente praticado pelo magistrado da causa, em

função da dimensão comunitária da dignidade da pessoa humana, não sinaliza providência

trivial, insignificante, simples, mas reclama, pois, fundamentação racional e plausível. De

todo jeito há de se verificar a existência ou não de um direito fundamental em questão; a

ocorrência de consenso social forte acerca do tema e eventual risco efetivo ao direito de

outros indivíduos.

Luis Roberto Barroso90 esclarece que, no Brasil, em regra, o uso da dignidade da

pessoa humana pela jurisprudência adquire finalidade exclusivamente de reforço

argumentativo de outro fundamento ou até de ornamento retórico. A justificativa disto se

exprime no nível de abrangência, detalhamento, especificidade que é atingido pela

humanas da Organização das Nações Unidas (ONU), o qual afirmou que a necessidade de proteger a dignidade humana era fundamental. Manuel Wackenheim argumentou que a proibição de 1995, decidida pelo mais alto tribunal administrativo francês, era discriminatória e o privava de um trabalho que consistia em ser arremessado em discotecas por homens grandes. Em um comunicado divulgado na sexta-feira, o Comitê de Direitos Humanos da ONU disse estar satisfeito pela proibição de lançamento de anões não ser abusiva, mas necessária a fim de proteger a ordem pública, incluindo considerações sobre a dignidade humana. O comitê disse ainda que a proibição não se tratava de proibição discriminatória. ONU mantém proibição francesa a lançamento de anões – 27/09/2002. Disponível em http://noticias.uol.com.br/inter/reuters/2002/09/27/ult27u26540.jhtm. Acesso em 22/06/2013. 89Ementa: Habeas-Corpus. Publicação de Livros: Anti-semitismo. Racismo. Crime Imprescritível. Conceituação. Abrangência Constitucional. Liberdade de Expressão. Limites. Ordem Denegada. [...] 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode obrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionadas, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, parágrafo 2º, primeira parte). O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o direito à incitação do racismo, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. Ordem Denegada. HC n. 82.424-2-RS, Relator Ministro: Maurício Corrêa. Data de Julgamento: 17/09/2003. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 25/06/2013. 90BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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Constituição Federal de 1988, principalmente em seu extenso rol de direitos fundamentais.

Muitas situações que requerem, em outras jurisdições estrangeiras, o emprego do princípio

abstrato da dignidade da pessoa humana, estão previstas em regras próprias e dotadas de

maior grau de densidade jurídica na Lei Maior nacional.

Por aqui, a esfera de incidência de referido princípio se conforma em hipóteses

de ambiguidade de linguagem, como parâmetro para escolha da solução que melhor atenda

e efetive a dignidade; de lacuna normativa, servindo de ferramenta integradora da ordem

jurídica em casos do tipo das uniões homoafetivas; de colisões de normas constitucionais e

direitos fundamentais a exemplo do que acontece entre liberdade de expressão e direito ao

reconhecimento e à não discriminação.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal faz inúmeras remissões à

dignidade da pessoa humana em matéria penal e processual penal91. Há uma série de

julgados que atesta expressa ou implicitamente a não aceitação da instrumentalização do

acusado ou do preso aos interesses do Estado durante a persecução criminal. O sujeito não

pode exercer função de engrenagem no processo penal, advindo, de sua dignidade, direitos

e garantias, a saber: à não autoincriminação, à presunção de inocência, à ampla defesa,

contra o excesso de prazo em prisão preventiva, ao livramento condicional, às saídas

temporárias do preso e à não utilização sem propósitos da pena de prisão domiciliar. A

máxima cunhada por Immanuel Kant de que o homem é um fim em si mesmo serviu de

base de sustentação à fixação, pelo Supremo Tribunal Federal, da competência da Justiça

Federal para processar e julgar o crime de redução à condição análoga à de escravo.

Fora do âmbito penal e processual penal destacam-se no STF acórdãos,92

incorporando a dignidade da pessoa humana, relativos à manutenção da integridade física e

moral dos indivíduos, ao tratamento diferenciado devido a portadores de deficiência, à

vedação da tortura, do tratamento desumano, degradante ou cruel, à não recepção da Lei

de Imprensa pela Constituição Federal de 1988 e à demarcação da reserva indígena

Raposa Serra do Sol. No que diz respeito ao direito à saúde, por exemplo, especificamente

no concernente a procedimentos médicos e medicamentos não fornecidos gratuitamente

pelo SUS (Sistema Único de Saúde), a dignidade é utilizada como derradeiro argumento

hábil a finalizar a controvérsia posta em juízo. O Estado não pode se omitir no cumprimento

91BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013. 92BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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da obrigação imposta constitucionalmente a ele valendo-se da afirmativa de que só ao

Poder Executivo cabe definir os critérios de promoção da saúde.

Paralelamente, no Superior Tribunal de Justiça, igualmente são verificadas

decisões envolvendo os mais variados ramos do direito tratando da dignidade da pessoa

humana93. Os precedentes versam, principalmente, sobre: mínimo existencial, restrição ao

direito de propriedade, uso de algemas, crimes de racismo, tortura, proibição ao trabalho

escravo, direito de moradia, direito à saúde, aposentadoria de servidor público por invalidez,

impedimento ao corte de energia elétrica para serviços públicos essenciais, devedores de

alimentos, adoção, investigação de paternidade, disputa de guarda de menor, direito ao

nome, uniões homoafetivas, redesignação sexual e proteção aos portadores de deficiência

física.

Em tempo, o instituto sub examine ocupa, simultaneamente, importante espaço

na jurisprudência dos Tribunais Superiores Brasileiros.

O Superior Tribunal de Justiça Militar o emprega, na esfera criminal94, em casos

relativos à inadmissibilidade de denúncia genérica, à submissão a tratamento médico sem

consentimento e à não aceitação das vedações genéricas ao deferimento de liberdade

provisória. Há julgado que, aliás, estatuiu ser a dignidade da pessoa humana um dos

valores condensados aos princípios da hierarquia e disciplina militares.

E, anote-se que o Tribunal Superior Eleitoral95 aproveitou a dignidade como

limite à liberdade de expressão nas propagandas eleitorais, fundamento para impedir a

elaboração coletiva de teste de alfabetização e, anteriormente à edição da Lei n. 135/2010,

Lei da Ficha Limpa, valor máximo a ser resguardado pela presunção de inocência no campo

de registro de candidatura de pessoas condenadas.

Ainda, o Tribunal Superior do Trabalho96 vem fazendo habitualmente alusão à

dignidade em acórdãos associados à mitigação dos efeitos da nulidade do contrato de

93BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013. 94BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013. 95BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013. 96BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão Provisória para Debate Jurídico. Net, Rio de Janeiro, dez. 2010. Disponível em www.luisrobertobarroso.com.br/?page_id=39. Acesso em 30/05/2013.

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trabalho celebrado, sem concurso público, entre particular e a Administração Pública

Indireta, ao conflito mantido entre intimidade do credor e o direito do trabalhador à

remuneração que lhe é devida, à revista de funcionários, à dispensa discriminatória do

empregado portador de HIV, à isonomia do empregado doméstico em relação aos demais

em matéria de férias, ao dano moral gerado em razão de declarações de cunho racista

proferidas pelo empregador e dirigidas ao empregado, à proibição de remuneração deste

exclusivamente através de cestas básicas, à impossibilidade de supressão, mediante acordo

coletivo, de horários destinados à pausa para alimentação e descanso, à responsabilização

subsidiária do Poder Público nas hipóteses de terceirização de mão de obra quando o

contratante não executa o pagamento dos encargos trabalhistas, à redução progressiva e

posterior supressão de carga horária de professores e à incorporação de gratificação por

cargo de confiança ocupado durante vários anos.

A dignidade da pessoa humana conserva sua fonte na Filosofia. Ab initio

configura um valor, conceito axiológico, ligado à ideia de bom, justo, virtuoso. Nesta

condição ela se assenta do lado de demais valores centrais para o Direito, como justiça,

segurança e solidariedade. É neste plano que a dignidade assume a função de justificação

dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.

Mais a diante, sob influência da política, a dignidade começa a compor

documentos constitucionais e internacionais, alcançando a categoria de um dos principais

fundamentos dos Estados democráticos. A sua concretização era encarada, primitivamente,

entretanto, como atividade e dever exclusivos dos Poderes Legislativo e Executivo. Foi nas

décadas finais do século XX que ela se aproxima definitivamente do Direito transformando-

se em conceito jurídico, expressão de um dever-ser normativo e não meramente moral ou

político. O efeito direto deste desenvolvimento está na viabilidade de defendê-la no Poder

Judiciário.

O caminho traçado pela dignidade, da Filosofia para o Direito, não afasta, em

nenhum momento, o seu caráter de valor moral fundamental, mas lhe garante o status de

princípio jurídico. No trajeto aludido, a dignidade se beneficiou da implantação de uma

cultura jurídica pós-positivista, marcada pela reaproximação entre Direito e a ética, o que fez

o ordenamento jurídico sensível aos valores morais97 98.

97A doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática, na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento da normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; à reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; à formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. [...] De forma sumária e simplificadora, a razão prática cuida da fundamentação racional – mas não matemática – de princípios de moralidade e justiça, opondo-se à razão cientificista, que

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Gradualmente erigiu-se a consciência de acordo com a qual nos casos difíceis,

que não contam com respostas pré-fixadas pelo ordenamento jurídico, a construção de uma

solução constitucionalmente adequada deve incluir necessariamente elementos

extrajurídicos (Filosofia Moral e Filosofia Política). Dentre eles sobressai justamente a

dignidade da pessoa humana. Deste modo, até mesmo antes de adentrar no universo

jurídico, mediante positivação em documentos normativos ou aceitação pela jurisprudência,

ela exercia papel extremamente importante, imaginada como valor pré e extrajurídico, apto a

influenciar o processo interpretativo. A materialização do instituto sob estudo em textos

constitucionais e internacionais fortaleceu, sem dúvidas, o seu procedimento de

judicialização e, mais, colocou termo, sem embargo, ao velho, ultrapassado, argumento de

que o Poder Judiciário estaria produzindo normas sem legitimidade democrática que

autorizasse sua atividade.

Ora, a dignidade da pessoa humana é, pois, um valor fundamental que se

converteu em princípio jurídico de estatura constitucional seja por sua positivação em

norma expressa, seja como mandamento jurídico apreendido do sistema. É

simultaneamente justificativa moral e fundamento normativo de direitos fundamentais.

Nos últimos anos, preconiza Luis Roberto Barroso99, espraiou-se a distinção

qualitativa, também denominada estrutural, entre regra e princípio, o que se consolidou um

dos pilares da moderna dogmática constitucional, imprescindível à superação definitiva do

positivismo legalista, no qual as normas se restringiam às regras jurídicas. A Constituição

começa a ser considerada como um sistema aberto de princípios e regras permeável a

valores jurídicos suprapositivos, passando as ideias de justiça e realização dos direitos

fundamentais a exercerem papel primordial. A alteração de paradigma se consolidou

enxerga nesse discurso a mera formulação de opiniões pessoais insuscetíveis de controle. De forma um pouco mais analítica: trata-se de um uso da razão voltado para o estabelecimento de padrões racionais para a ação humana. A razão prática é concebida em contraste com a razão teórica. Um uso teórico da razão caracteriza-se pelo conhecimento de objetos, não pela criação de normas. O positivismo só acreditava na possibilidade da razão teórica. Por isso, as teorias positivistas do Direito entendiam ser papel da ciência do Direito apenas descrever o Direito tal qual posto pelo Estado, não justificar normas, operação que não seria passível de racionalização metodológica. É por isso que, por exemplo, para Kelsen, não caberia à ciência do Direito dizer qual a melhor interpretação dentre as que são facultadas por determinado texto normativo. Tal atividade exibiria natureza eminentemente política, e sempre demandaria uma escolha não passível de justificação em termos racionais. O pós-positivismo, ao reabilitar o uso prático da razão na metodologia jurídica, propõe justamente a possibilidade de se definir racionalmente a norma do caso concreto através de artifícios racionais construtivos, que não se limitam à mera atividade de conhecer textos normativos (BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 3 ed. 2ª tiragem Saraiva: São Paulo, 2012). 98O novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo é, em parte, produto desse reencontro entre ciência jurídica e a filosofia do Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando do plano ético para o mundo jurídico, os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente (BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 3 ed. 2ª tiragem Saraiva: São Paulo, 2012). 99BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7 ed. Saraiva: São Paulo, 2009.

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essencialmente graças à união das concepções de Ronald Dworkin e Robert Alexy sobre o

tema.

Paulo Bonavides100 esclarece, citando Jean Boulanger, antecessor dos dois

jusfilósofos acima indicados e precursor da normatividade dos princípios, que há entre

princípio e regra jurídica não unicamente uma divergência de importância, porém uma

disparidade de natureza. Na época em que Boulanger atuava, posições doutrinárias de

cunho jusprivatista, civilista ou romanista, típicas do antigo Estado Liberal, ainda

conservavam seu antiquado predomínio na Ciência do Direito.

Assim, regras são, na maioria das vezes, relatos objetivos, descritivos de certas

condutas e incindíveis a um número específico de situações concretas. Acontecendo a

hipótese definida na sua narrativa, a regra há de incidir mediante simples e regular utilização

do mecanismo tradicional da subsunção, atingindo-se, na sequência, uma conclusão. O

emprego de uma regra se dá através do tudo ou nada (all or nothing) – de duas uma: ou ela

regulamenta a matéria totalmente, ou é flagrantemente descumprida. Ante um conflito entre

duas regras, somente uma irá prevalecer.

Em contrapartida, princípios reúnem relatos com maior grau de abstração, não

estipulam a conduta a ser assumida, se aplicam a um número vasto, inexato, de situações

e, de acordo com René Japiot e Jean Boulanger101, haurem parte de sua majestade no

mistério que os envolve. Dentro de uma ordem jurídica democrática, os princípios

comumente estão em tensão e apontam cada um a uma direção diferente, oposta. É por isto

que a aplicação deles depende de ponderação, ou seja, à vista do caso concreto, o

intérprete aferirá os seus pesos, executará concessões recíprocas, preservará o máximo de

todos os mandamentos envolvidos e, ao final, procederá à tomada de uma decisão. O uso

de um princípio não seguirá a esquematização do tudo ou nada, mas será graduado às

circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato.

Ademais, Gutzwiller e Goldschmidt102, doutrinadores que também formalizaram

observações marcantes e pioneiras acerca da relevância dos princípios, ensinavam

respectivamente que um princípio é somente princípio de interpretação

(Auslegunsgsprinzip), mas, não obstante, como princípio heurístico (Heuristichesprinzip),

possui importância criadora e um Direito sem princípios nunca houve verdadeiramente.

Enfim, os princípios são normas e as normas abrangem igualmente eles e as

regras.

100BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. Malheiros: São Paulo, 2013. 101BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. Malheiros: São Paulo, 2013. 102BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. Malheiros: São Paulo, 2013.

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O ato de reconhecer na dignidade da pessoa humana um princípio jurídico

implica a sistematização de suas três modalidades de eficácia, comuns a todos os

princípios, quais sejam – direta, interpretativa e negativa.

. A eficácia direta assegura que um princípio incida sobre o plano dos fatos tal

qual uma regra. Conquanto ele tenha por característica marcante a vagueza, é viável

identificar nele um núcleo de onde são extraídos comandos concretos. O Supremo Tribunal

Federal (STF), por exemplo, retirou do princípio da moralidade (impessoalidade) a proibição

do nepotismo e do princípio democrático depreendeu que o parlamentar que mude de

partido, após a eleição, perde o cargo. Do princípio da dignidade da pessoa humana são

extraídos mandamentos de vedação à tortura, ao trabalho escravo ou às penas cruéis. Ele

serve de base, aliás, para a exigência de que a revista íntima nos presídios, em visitantes

mulheres, não seja realizada por agentes penitenciários masculinos.

Por outro lado, a eficácia interpretativa dos princípios constitucionais designa

que os valores e fins neles consubstanciados dirigem o sentido e alcance das normas

jurídicas em geral. A dignidade, por sua vez, será critério de valoração de situações e

atribuição de pesos em espécies que demandem ponderação. Desta feita, o mínimo

existencial goza de precedência diante de outros interesses, o uso de algemas é autorizado

em hipóteses de risco e não abusivamente, a liberdade não pode ser cerceada, a priori.

É também verdade que os princípios constitucionais exercem papel integrativo, o

que permite a dignidade ser fonte de direitos não elencados e critério de preenchimento de

lacunas normativas.

E, finalmente, a eficácia negativa acarreta a paralisação da aplicação de

qualquer norma ou ato jurídico incompatível com aludido princípio constitucional. Ela

oportuniza, em controles concentrado/abstrato ou difuso, a declaração de

inconstitucionalidade do ato. Ou mesmo interrompe a incidência da norma em uma dada

situação, porque naquela hipótese fática aconteceriam consequências inadmissíveis pela

Lei Maior. Anote-se que a dignidade da pessoa humana serviu de fundamento, dentre

outros, para a recente alteração jurisprudencial promovida no Supremo Tribunal Federal no

que diz respeito à prisão por dívida, tornando-se ela ilegítima no caso do depositário infiel.

Foi a dignidade, da mesma maneira, um dos argumentos nodais pelos quais se rejeitou a

aplicação em variados julgados do dispositivo da Lei n. 11.343/2006, Lei de Entorpecentes,

que proibia taxativamente a liberdade provisória.

Há de se advertir que a dignidade da pessoa humana é parcela do conteúdo dos

direitos materialmente fundamentais, porém não se confunde com qualquer deles em

espécie. Não se trata de um direito fundamental em si, ponderável diante dos demais.

Em que pese seja a dignidade considerada um valor ou princípio fundamental,

não guarda ela caráter absoluto. É seguro atestar que tem precedência na maior parte das

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situações em que entra em confronto com outros princípios, mas em determinados

contextos, características dela virão a ser sacrificadas em favor de outros valores individuais

ou sociais, vide na pena de prisão, na expulsão de estrangeiros ou na vedação a certas

formas de expressão.

Ingo Wolfgang Sarlet103 lembra que dificilmente se questionará que o

encarceramento de condenado pela prática de homicídio qualificado em razão da utilização

de meio cruel, ou de outro delito de enorme gravidade, em prisão com problemas de

superlotação não configure exatamente uma violação de sua liberdade e dignidade pessoal,

ainda que a medida tenha amparo no sistema jurídico-positivo. Do mesmo modo indubitável

que a sanção cominada e aplicada seja oriunda da necessidade de proteção da vida,

liberdade e dignidade dos demais indivíduos, que seguramente não poderão permanecer

expostos a qualquer tipo de violência e lesão à sua dignidade pessoal sob o argumento de

que a segregação do ofensor se traduza impossível, porque implica restrição à sua própria

dignidade.

Gilmar Ferreira Mendes104 leciona, neste sentido, que a dignidade da pessoa

humana é um princípio desde logo visto como valor pré-constituinte, de hierarquia

supraconstitucional, no qual se assenta a República Federativa do Brasil, nos termos do

artigo 1º, da Constituição Federal de 1988. Segundo tal autor, esta tomada de posição,

majoritária na doutrina e que conta com ampla aceitação das mais importantes Cortes

Constitucionais, não é imune a críticas e impugnações, a partir da compreensão de que não

são constatados princípios absolutos no ordenamento jurídico, pois todos eles estão

expostos a juízos de ponderação, em cada situação hermenêutica, com demais bens ou

valores dotados de igual hierarquia constitucional.

Outrossim, Robert Alexy105 sustenta a relatividade deste valor, a partir da teoria

de que, ante o enunciado no artigo 1º, inciso I, da Lei Fundamental de Bonn, já comentado

páginas atrás, tem-se a impressão de que a dignidade consiste em um valor absoluto,

porém o que ocorre é que, na realidade, mencionada norma é tratada em parte como regra

e, em parte, como princípio. Em relação ao que nela é princípio há um amplo grupo de

condições de precedência e um elevado grau de segurança em dizer que, presentes estas

condições, ela prevalece sobre as normas contrapostas. Ao contrário, no que se refere à

regra que nela se contém, descabe questionar, em abstrato, se ela prevalece ou não diante

das outras normas, mas unicamente se, numa dada situação concreta foi violada, resposta

não muito fácil de se fornecer pelo fato de, em função da imprecisão/vagueza/equivocidade

103SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2011. 104MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 105MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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da norma da dignidade da pessoa humana, ser possível um enorme espectro de soluções

razoáveis a esta indagação.

O princípio então estudado, nas palavras de Robert Alexy106, comporta níveis de

realização e a afirmação de que, sob específicas condições, ele precede a todos os demais

princípios, não é capaz de lhe atribuir caráter absoluto, significando somente que, quase não

se identificam razões jurídico-constitucionais que não se deixem comover para uma

preferência da dignidade da pessoa humana. Eis que esta tese, de posição central, vale

para outras normas de direitos fundamentais, sem que isto afete sua natureza de princípio.

Gilmar Ferreira Mendes107 discorda de Robert Alexy e adere ao ensinamento de

Ingo Wolfgang Sarlet, mais razoável, na esteira do qual sendo todas as pessoas iguais em

dignidade, apesar de não se portarem de modo idêntico, e existindo, pois, um dever de

respeito recíproco da dignidade alheia, poder-se-á conjecturar na hipótese de um conflito

direto entre as dignidades de indivíduos distintos, impondo nela o estabelecimento de uma

concordância prática ou harmonização que obrigatoriamente provoca a hierarquização ou a

ponderação dos bens em rota de conflito, neste caso, do mesmo bem (dignidade)

concretamente atribuído a dois ou mais titulares. Ou seja, a dignidade da pessoa humana,

que está sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma

situação fática se encontrará sujeita de confronto com eles, mas tão somente consigo

mesma, naquelas situações peculiares, casos-limite, em que duas ou mais pessoas,

dotadas de semelhante dignidade, entrem em choque capaz de originar lesões mútuas a

mencionado valor-princípio supremo.

A expressão concordância prática ou harmonização108 é adotada no sentido

autêntico idealizado por Konrad Hesse, segundo o qual bens jurídico-constitucionais devem,

no momento da solução do caso concreto, ser aplicados de tal sorte a ter cada um sua

efetividade assegurada, de forma que, na hipótese de colisões, um não há de ser realizado

às custas do outro, impondo-se à luz do princípio da unidade da Constituição, a otimização

dos bens conflitantes, assegurando-lhes o máximo em eficácia e efetividade.

Por mais que se reconheça a viabilidade de alguma relativização e restrição da

dignidade pessoal, não há como transigir no que se refere à preservação de um seu

elemento nuclear intangível, que justamente, reportando-se a Immanuel Kant, estriba-se na

proibição de qualquer conduta que acarrete em coisificação e instrumentalização do ser

humano, que é fim e não meio.

106MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 107MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 108SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2011.

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É imperioso informar que as teorias que preconizam o caráter absoluto da

dignidade109, considerando-a resistente a relativizações ou restrições partem de um conceito

minimalista ou reduzido de dignidade, estatuindo que apenas este se apresenta conciliável

com sua condição de cláusula pétrea, limite material ao poder de reforma constitucional, a

garantia do núcleo essencial e a necessária restrição, para além dele, dos demais direitos

fundamentais, ou seja, apenas uma esfera nuclear da dignidade humana seria alvo de tutela

absoluta pelo ordenamento jurídico.

Na colisão entre dignidade e dignidade, delibera Winfried Brugger110, que a tese

pela qual a dignidade da pessoa humana configura direito fundamental absoluto, totalmente

oposto a relativizações, além de ser de difícil compatibilização com o caráter não absoluto

de todos os demais direitos fundamentais, que estão interligados à dignidade, posto que,

mesmo os direitos não contemplados pela reserva legal, se submetem aos limites implícitos,

acabaria por esvaziar a proteção que se pretendeu atribuir à dignidade.

Este autor ensina ainda que proteger a dignidade de todas as pessoas apenas

transparece atividade verossímil, plausível à medida que se estiver versando acerca da

dignidade como capacidade, potencialidade, para autodeterminação, ressalvando que, no

plano das relações interpessoais concretas, não haverá meio de evitar a necessidade de se

estabelecer limites ao livre desenvolvimento da personalidade, funcionando isto como a

principal justificativa do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha para se referir à

dignidade sempre conjuntamente a um direito fundamental específico que estará sujeito a

algum tipo de restrição.

O princípio da dignidade da pessoa humana, na linha de raciocínio exteriorizada

nas anotações supra, deve ser reputado critério basilar na construção de um conceito

material de direitos fundamentais, ostentando, citando Carlos R. Siqueira Castro111, caráter

de elemento proliferador de direitos fundamentais ao longo dos tempos112. Assim,

109Die Garantie der Menschenwürde unterliegt keinen Beschränkungsmöglichkeiten (unantastbar), auch nicht auf Grund kollidierender Verfassungsgüter, da ihr der höchste Rang im GG zukommt. Mit dem Höchstrang vereinbar ist allerdings, auf der Grundlage der Schutzpflicht die Beeinträchtigung der Menschenwürde durch Privatpersonen mit Mitteln zu bekämpfen, die die Menschenwürde beeinträchtigen, sofern kein milderes Mittel zur Verfügung steht. […] Jedenfalss ist das Folterverbot kein Anwendungsfall. Em português – A garantia da dignidade da pessoa humana não é susceptível de limitações (inviolável), mesmo que em função de bens fundamentais em colisão. A ela é conferida a mais alta posição na Constituição. Com esta supremacia é compatível, entretanto, ante o dever de combater, com todos os meios, os prejuízos à dignidade entre os particulares, o uso de ferramentas que a lesionem, desde que não haja disponível outro meio mais moderado. De qualquer maneira, a proibição à tortura não é caso de aplicação desta teoria (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012). 110SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2011. 111CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 112O postulado da dignidade da pessoa humana universalizou-se como um polo de atração para cada vez mais novos e novíssimos direitos refletores do modismo constitucional-democrático. Com isso,

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determinada posição jurídica fora do catálogo constitucional, para ser tida por

equivalente em conteúdo e importância aos direitos fundamentais do rol positivado

precisa, obrigatoriamente, ser reconduzível diretamente e corresponder ao valor

supremo da dignidade da pessoa humana.

Não se olvide, porém que, neste cenário, ganham destaque também, como

referencial hermenêutico, os demais princípios fundamentais. Eles servem de fundamento à

dedução de direitos não escritos, direitos decorrentes, de que trata o artigo 5º, § 2º, da

Constituição Federal de 1988, além de referencial imprescindível ao reconhecimento da

fundamentalidade material dos direitos coletados fora do catálogo, que obviamente devem

manter afinidade com os princípios fundamentais desta Carta.

abriu-se o receituário dos direitos sublimados na Constituição, que se multiplicaram na razão direta dos conflitos insurgentes no meio social e das exigências insaciáveis de positivação jurídica, na esteira do humanismo ultrapluralista, solidarista e internacionalizado desses tempos. Sob o arrastão do princípio da dignidade da pessoa humana, efetivou-se não apenas a superação da tradicional divisão entre o domínio do Estado e o domínio da sociedade civil, que por sua vez embasara a separação entre o Direito Público e o Direito Privado (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010).

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Capítulo 2 - Direitos Fundamentais nos Tratados Internacionais

2.1 - Referências Primevas – Conceitos, Sujeitos, Elementos Formais

Um dos aspectos essenciais dentro do relacionamento entre direitos humanos,

de matriz internacional, e os direitos fundamentais constitucionais, consiste nos direitos

fundamentais cujo assento está nos tratados internacionais.

Note-se que, neste contexto, a Constituição Federal Brasileira de 1988, segundo

o explicitado no artigo 5º, § 2º, faz menção unicamente aos tratados internacionais, nada

dispondo acerca das convenções ou outras espécies de normas internacionais. Neste item,

o Poder Constituinte Português, preceitua Ingo Wolfgang Sarlet113, estruturou solução bem

mais feliz, posto que estabeleceu, no artigo 16/1 da Lei Maior, que os direitos fundamentais

consagrados na Constituição não excluem outros constantes das leis e regras aplicáveis de

direito internacional, vetando, desde logo, interpretação restritiva, da qual poderia se cogitar

no Direito Constitucional Nacional, diante do termo empregado pelo texto constitucional

pátrio.

A expressão tratados internacionais simboliza, para a unanimidade da doutrina,

a reunião de diversos tipos de instrumentos internacionais, tratando-se de gênero do qual as

convenções e os pactos são espécies. Recorde-se que os tratados, a depender de seu

conteúdo concreto e finalidade, são rotulados diferentemente e a Convenção de Viena de

1969, sobre o Direito dos Tratados, reconhece o substantivo tratado como um vocábulo

genérico, amplo, significando acordo internacional, independentemente de sua denominação

particular.

José Francisco Rezek114 leciona que tratado é o acordo formal, concluído entre

sujeitos de Direito Internacional Público, e destinado a produzir efeitos jurídicos, não se

afigurando importante o rótulo empregado, pois, uma vez que é mero instrumento, deve ser

identificado por seu processo de produção e sua forma final, não pela sua matéria. Portanto,

ainda a interpretação meramente literal da Convenção de Viena, que considera tratados,

convenções e pactos sinônimos, proporciona impedir restrição excessiva ao alcance da

abertura material do catálogo relativamente aos direitos fundamentais advindos do Direito

Internacional.

113SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9 ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2011. 114REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Se assim não fosse, o império de uma interpretação amarrada à letra fria da

norma constitucional brasileira provocaria o desprezo, a título de elucidação, dos direitos

fundamentais idealizados nos Pactos Internacionais da Organização das Nações Unidas

(ONU) sobre Direitos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais, Culturais, bem como na

Convenção Americana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos

(OEA).

Continuando no esforço por sagrar a definição do substantivo tratado, colaciona-

se lição de Louis Henkin115 que proclama ser ele comumente utilizado na designação de

acordos obrigatórios celebrados entre sujeitos de Direito Internacional e regulados por este

ramo do Direito. Outras definições parelhas de acordos internacionais são convenção,

pacto, protocolo, carta e convênio.

Rebecca M. M. Wallace116, simultaneamente, explicita que a palavra tratado é

genérica e inclui as convenções, os acordos, os protocolos e a troca de instrumentos. O

Direito Internacional não diferencia os acordos identificados como tratados de outras formas

de avenças.

Ainda, Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailier e Alain Pellet117 aduzem que, em razão

da antiguidade do tratado como processo de criação das obrigações jurídicas entre Estados,

os elementos constitutivos de seu conceito encontram-se solidamente edificados.

Consequentemente, o tratado representa qualquer acordo concluído entre dois ou mais

sujeitos de Direito Internacional, regulado por ele, e destinado a produzir efeitos jurídicos.

Assim, referido documento pressupõe um concurso de vontades entre as partes

concordantes. Isto não quer dizer que deva existir uma aceitação concomitante, ou seja, um

tratado pode nascer de uma declaração unilateral de vontade de uma parte, seguida da

aceitação da outra, ou de uma declaração coletiva que tenha sido objeto de aceitações

unilaterais posteriores.

Ademais, a formação de um tratado requer que os signatários sejam sujeitos de

Direito Internacional. Durante um tempo, apenas os Estados eram titulares deste direito,

permanecendo sérias dificuldades referentes às entidades de cuja natureza estatal se

duvidava, a exemplo da Santa Sé e dos Estados Federados. Decerto esta categoria de

acordos internacionais continua sendo a mais importante, mas outras apareceram com o

aumento da qualidade de sujeito do apontado direito aos entes não estatais (tratados de

organizações internacionais entre si ou com os Estados Federados).

115PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 116PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 117DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003.

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A única diferença entre as avenças tradicionais e aquelas firmadas entre

organizações internacionais (ONU, OEA, etc.), ou por estas e Estados Federados, reside no

fato de que, conquanto os Estados tenham capacidade de elaborar acordos,

independentemente da matéria, as organizações internacionais somente guardam o direito

de fazer tratados relacionados às suas finalidades primordiais, havendo, pois, um âmbito

mais restrito de celebração.

Acrescente-se que, concorde ao que orienta Celso D. de Albuquerque Mello118,

as organizações internacionais obtiveram reconhecimento de sua personalidade

internacional, pelo Tribunal Internacional de Justiça (Corte Internacional de Justiça) que

estatuiu terem elas os direitos imprescindíveis para a realização dos fins para que foram

constituídas (o parecer da Corte se reportava à ONU, mas seus argumentos vêm sendo

generalizados e ampliados, estendidos às organizações internacionais de um modo geral). A

confecção de tratados por estas entidades remonta a Liga das Nações119 e se desenvolveu

com a ONU e as Organizações criadas depois da 2ª Guerra Mundial. Elas conservam a

necessidade de edificar relações externas, como o têm os Estados, porque não devem

permanecer isoladas dentro da sociedade internacional. Philippe Bretton120 opta por

denominar os tratados entre organizações internacionais de acordos interinstitucionais.

Registre-se que Estados não independentes são desprovidos de capacidade

para a consolidação de tratados. As colônias, os territórios dependentes, os protetorados, os

Estados vassalos, entre outros, não são partes, inicialmente, em acordos internacionais. Um

Estado vassalo, por exemplo, somente terá o direito de firmar um tratado quando autorizado

pelo suserano. O Direito Internacional confere, no entanto, validade jurídica às avenças que,

posteriores à instituição da dependência, alterem, pela vontade livre das partes, os termos

118MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 119Em janeiro de 1919, iniciou-se a Conferência de Paris, no Palácio de Versalhes, onde seriam tomadas as decisões diplomáticas do pós-guerra. Participavam 27 países vencedores e nela não obtiveram assento as nações vencidas. A conferência foi, na prática, presidida por [Woodrow] Wilson, dos Estados Unidos, Lloyd George, primeiro-ministro britânico, e Clemenceay, primeiro-ministro francês. Apesar das discordâncias de Wilson, o Tratado de Versalhes colocou de lado o Programa dos 14 Pontos e estabeleceu a Paz dos Vencedores, pela qual a Alemanha foi despojada de um sétimo do seu território, um décimo de sua população, perdeu suas colônias, viu-se privada do território do Sarre (rico em carvão), foi obrigada a desmilitarizar a região da Renânia (fronteiriça com a França), teve seus exércitos diminuídos para 100 mil homens, seu território separado em duas partes por um corredor de terras que dava acesso para o mar à Polônia, a cidade alemã de Dantzig foi transformada em porto livre e o país arcou com o pagamento de uma indenização de 33 bilhões de dólares. Essa quantia era o triplo do montante sugerido pelos peritos economistas da própria Conferência de Versalhes. Ainda pelo tratado, criou-se oficialmente a Liga das Nações, encarregada de preservar a paz mundial, mas excluindo a Alemanha e a União Soviética de sua composição (MELLO, Leonel Itaussu A.; COSTA, Luís César Amad. História Moderna e Contemporânea. 5 ed. Scipione: São Paulo, 2001). 120MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

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da relação de vassalagem, e aos acordos que objetivam colocar fim à relação de

subordinação ou dependência colonial.

Em relação aos Estados Federados há três situações concretas: (1) ou a União

Federal reconhece a eles a prerrogativa de celebrar tratados, (2) ou a Constituição Federal

nada acrescenta sobre o tema (3) ou mesmo nega solenemente esta possibilidade.

Na primeira, somente os Estados, que têm soberania, estão autorizados a

participar de acordos internacionais e a União Federal, titular de autonomia, apenas se

responsabiliza pelo cumprimento deles, que, afinal, quedaram mantidos em seu nome. A

responsabilidade por eventual ilícito internacional recairá sobre a União, ente que expediu

autorização ao Estado para comprometer internacionalmente a Nação. A propósito, não

existem dispositivos no Direito das Gentes que proíbam o Estado-Federado de assumir

obrigações, desde que permitido pela Lei Maior.

Na segunda, se a Constituição Federal nada previr e a União Federal permitir ao

Estado-Federado a produção de tratados, utiliza-se a mesma regra acima.

Porém, na terceira, quando a Lei Maior vedar expressamente aos Estado-

Federados o poder de celebrar acordos e, em desrespeito a esta orientação, forem eles

firmados, apenas o Estado-Federado é que integrará a avença e sofrerá os efeitos de um

descumprimento das cláusulas internacionais. Houve, na Conferência de Viena sobre o

Direito dos Tratados, proposta da Comissão de Direito Internacional da Organização das

Nações Unidas (ONU) cujo viés era erigir, em dispositivo específico, que Estados-Membros

de uma União Federal detinham capacidade para concluir tratados se ela fosse admitida

pela Constituição Federal e dentro dos limites nela desenhados. O artigo policitado foi

redigido (5º, § 2º, da Convenção de Viena de 1969), mas não contou com a simpatia, o

apoio de diversos Estados que acompanhavam os trabalhos e veio a ser rapidamente

afastado.

É de se perceber que o artigo 52, inciso V, da Constituição Federal Brasileira de

1988 assenta que a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios

estão autorizados a contrair operações externas de natureza financeira, desde que liberados

pelo Senado Federal. Um grande número delas é praticado com organismos internacionais

como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, entidades que titularizam

personalidade jurídica de Direito Internacional. Apesar disto, o artigo 21, inciso I, do diploma

constitucional informa caber somente à União manter relações com Estados estrangeiros e

participar de organizações internacionais, de maneira que inviável se conceber, no sistema

constitucional vigente, a conclusão de tratados em que o Estado Brasileiro não seja parte.

Não podem, ao contrário, ser reconhecidos como tratados os pactos assinados

por um Estado e uma organização não governamental ou associação de direito privado,

independentemente de sua relevância real (a Suíça refutou classificar como acordo oficial os

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compromissos de 1976 com a IATA e a Corte de Cassação Francesa prolatou acórdão no

sentido de que um acordo entre Estado estrangeiro e uma associação, a partir da Lei de

1901, não remontava compromisso internacional da França)121. Da mesma maneira, aquelas

avenças estabelecidas entre empresas privadas ou públicas e Estados (contratos

internacionalizados) não se encaixam dentro de aludida categoria.

A doutrina122 pontifica que, igualmente, avenças mantidas entre Estados e

populações sem governo próprio ou tribos, deveras raras de acontecer atualmente, e

convenções entre Estados e indivíduos estrangeiros são despidas da natureza jurídica de

tratados e a eles em nada se equiparam.

Rememore-se, entretanto, que os Estados Unidos da América concluíram, ao

longo de um grande período de sua história, tratados com tribos indígenas no seu

território123. Os acordos eram aprovados pelo Senado Federal e ratificados pelo Presidente.

A situação perdurou até o ano de 1871. Em 1831 a tribo Cherokee ajuizou ação na Suprema

Corte e juízes filiados à corrente minoritária proclamaram que ela não estava incorporada à

União Americana e possuía território, língua e organização próprios. Os EUA conferiam

personalidade aos índios para estruturação de acordos. Na época da construção da

Confederação, cada colônia considerava os índios plenamente capazes para a compra de

terras e o comércio. É no ano de 1869 que se começa a defender que os índios não têm

soberania. Ao total, quase 400 acordos restaram assinados com os silvícolas. A alteração

identificada provém da entrada em vigor de Lei em 1871.

Em tempo, qualquer tratado cria encargos jurídicos, com caráter obrigatório, às

partes. Se ele é inevitavelmente regulado pelo Direito Internacional, não é indispensável que

esteja submetido exclusivamente a ele. A matéria dos tratados mostra-se interdisciplinar e

dependente conjuntamente das ordens jurídicas internacional e estatal. Especificamente

quanto à conclusão do acordo, atribui-se ao Direito Interno um amplo domínio de

intervenção.

Com efeito, o artigo 2º, § 1º, letra a124, da Convenção de Viena de 1969, ao

defender que tratado significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e

regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais

instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica, acrescenta na

definição de tratado diversos elementos formais que, em boa hora, a complementam.

121DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. 122MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 123MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 124Brasil. Coletânea de Direito Internacional e Constituição Federal. Organização de textos, notas remissivas e índices por Valério de Oliveira Mazzuoli. 7 ed. São Paulo: RT, 2009.

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Os tratados internacionais são, diferentemente dos costumes, ajustes

essencialmente formais. E isto requer compulsoriamente a escrituração deles. Somente

mediante tal ato é que se há de deixar claramente consignado o fim atingido pelas partes ao

término da negociação. O artigo 2º, da Convenção de Havana de 1928125 já disciplinava ser

a forma escrita requisito nodal nos tratados e orientava que a confirmação, a prorrogação, a

renovação ou a recondução seriam feitas também por escrito, salvo disposição em contrário.

A norma atual de regência da matéria, embora exija forma escrita, não retira, no

artigo 3º126, letra a, o valor jurídico dos acordos verbais. Eles, porém, contém regras que não

apresentam provavelmente segurança suficiente à sua codificação e, portanto, a Convenção

não os envolve, ou seja, não incidem, nestes compromissos, as regras, nela contidas, sobre

entrada em vigor, aplicação e extinção de tratados.

A celebração oral de acordos não satisfaz a imposição da formalidade. Nela não

se identificam a clareza e a estabilidade de um acordo escrito, se tornando impossível, para

Celso D. de Albuquerque Mello, o controle legítimo dele pelo Poder Legislativo. Não é

democrático que poucas pessoas celebrem um acordo envolvendo os cidadãos de um

Estado sem que eles tenham conhecimento do seu conteúdo.

Acentue-se que a forma oral de oficialização de um acordo não se coaduna com

a consolidação histórica dos tratados, lembrando que o primeiro exemplar deles foi assinado

entre o Rei dos Hititas, Hattsuil III, e o Faraó egípcio da XIX dinastia, Ramsés II127, por volta

de 1280 e 1272 a.C. Houve o registro imediato dele em escrita cuneiforme em uma barra de

prata128.

125MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: RT, 2009. 126Artigo 3º, da Convenção de Viena de 1969 – [Acordos Internacionais excluídos do âmbito da presente Convenção] – O fato de a presente Convenção não se aplicar a acordos internacionais concluídos entre Estados e outros sujeitos do Direito Internacional, ou entre estes outros sujeitos do Direito Internacional, ou a acordos internacionais que não sejam concluídos por escrito, não prejudicará: a eficácia jurídica desses acordos (Brasil. Coletânea de Direito Internacional e Constituição Federal. Organização de textos, notas remissivas e índices por Valério de Oliveira Mazzuoli. 7 ed. São Paulo: RT, 2009). 127[…] Filho e neto de guerreiros, Ramsés II assumiu o trono com 25 anos, em 1290 a.C. Seu sonho era recuperar a glória de 200 anos antes, quando o Egito era a maior potência do planeta sob o comando de Tutmosés III, a quem seu avô Ramsés I serviria como general. O país chegara a dominar a Palestina e a Mesopotâmia, mas perdeu essas regiões para os hititas. Com apenas 10 anos de idade, participou com o pai (Sethi I) da retomada do litoral do Líbano. Viu o pai arrumar a economia do país e abrir novas minas de ouro. Aprendeu que o caminho para o sucesso passava pelo controle das áreas produtoras de matérias-primas como a madeira, vinda do Líbano, da mão de obra (os derrotados viravam escravos) e das rotas das caravanas comerciais (GOMES, Laurentino. Almanaque Abril Coleção Grandes Impérios. Vol. 1 – Antiguidade. 1 ed. São Paulo: Editora Abril, 2004). 128[…] O exército de Ramsés II, na maioria das vezes voltava vitorioso. Foi assim quando cruzou o Sinai e reconquistou Tiro, na costa do Mediterrâneo. Em seguida ocupou a região de Canaã e Amurru, expulsando os povos que habitavam o local. Cerca de 30 mil soldados egípcios chegaram, em abril de 1274 a.C. à planície de Beirute no Líbano. Um dos confrontos mais famosos do mundo antigo, a batalha de Qadesh, estava para começar. A cidade demarcava os limites entre os impérios egípcio e hitita, que ia do norte da Palestina até a atual Turquia. Foi o encontro de dois dos mais

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Mas não é só. Conforme frisam Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailier e Alain

Pellet129, a palavra tratado designa tanto o conteúdo da avença, ou seja, o próprio acordo,

quanto o instrumento que o formaliza.

A Convenção de Viena elucida que há situações nas quais um tratado

compreenderá dois ou mais instrumentos conexos. Portanto, além do texto principal do

pacto, podem ocorrer outros instrumentos que o acompanham e são organizados

juntamente com ele, a exemplo dos protocolos adicionais e dos anexos.

A dificuldade desponta sempre que os documentos componentes do tratado são

elaborados em momentos distintos uns dos outros, cada um deles firmado apenas no nome

de uma das partes, conforme se passa, aliás, na oficialização de uma troca de cartas ou de

uma troca de notas. A norma internacional sobre a qual se versa ambicionou, sem dúvida,

amparar esta modalidade de compromisso dentro do quadro do Direito dos Tratados,

estando ela apta a surtir seus regulares efeitos jurídicos entre as partes.

Logo, o ingresso do elemento pluralidade no significado de tratado incluiu a troca

de cartas e a troca de notas como meios hábeis à sua produção. A referência feita pela

Convenção de Viena no sentido de ser viável concluir tratados quer constantes em um único

documento, quer de dois ou mais instrumentos conexos gerou a ampliação das avenças

internacionais latu sensu.

O Tribunal Internacional de Justiça (Corte Internacional de Justiça) identificou, no

processo Ambatielos (Reino Unido x Grécia)130, que o acordo vinculante das duas partes,

documento único, englobava um tratado e uma declaração. Ao lado deste se situam os

Acordos de Argel, de 19 de janeiro de 1981, que encerram um tratado especialmente

complexo. Ele reúne duas declarações do governo argelino, uma relativa à libertação de

reféns americanos em Teerã, outra relacionada à regularização das reclamações, e, por

último, um documento anexo, composto por dois exemplares, elencando as obrigações

interdependentes dos Estados Unidos e do Irã. Todos eles, ressalte-se, assinados pelos

países retro precisados.

ferozes exércitos da época. [...] Como não conseguiu vencer, Ramsés II propôs o primeiro tratado de paz de que se tem notícia. Foi assinado pelo próprio e pelo soberano hitita Hattsuil III, como se pode ver em uma tabuleta de prata encontrada em Pi-Ramsés em 1998. [...] O Egito concordava em suspender o cerco a Qadesh e devolver o território de Amurru. Em troca, teria legitimado seu direito sobre Ouipi, a região da atual Damasco (Síria), conquistada anos antes, e consolidado seu domínio sobre toda a Palestina, o litoral do Líbano e da Síria, além das províncias de Egom e Moab. [...] Para selar a paz Ramsés II, que já tinha uma esposa egípcia, Nefertari, casou-se com a filha do rei hitita, Pudukhepa (GOMES, Laurentino. Almanaque Abril Coleção Grandes Impérios. Vol. 1 – Antiguidade. 1 ed. São Paulo: Editora Abril, 2004). 129DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. 130DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003.

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Em adição, mantendo-se na análise do pensamento de Nguyen Quoc Dinh,

Patrick Dailier e Alain Pellet131, a norma internacional já à exaustão referida, ratifica, ao

disciplinar que a expressão tratado se reporta a um acordo internacional, qualquer que seja

a sua denominação particular, a existência de uma pluralidade de títulos diferentes.

À guisa de exemplificação, o Tribunal Internacional de Justiça (Corte

Internacional de Justiça), no acórdão proferido na data de 01 de julho de 1990 (caso da

Delimitação marítima e questões territoriais entre Qatar e Bahrein)132, comentou que um

ajuste internacional pode assumir formas variadas e apresentar-se sob títulos distintos. À

semelhança, a circular do Primeiro-Ministro francês de 30 de maio de 1997, versando sobre

realização e conclusão dos tratados internacionais, preceitua que o Direito Internacional,

que não é formalista, confere toda liberdade às partes no que diz respeito à qualificação

dada ao seu compromisso.

A multiplicidade de vocábulos certamente impressiona – tratado, convenção,

protocolo, declaração, carta, pacto, estatuto, acordo, modus vivendi, troca de notas, troca de

cartas, memorando de acordo, processo verbal aprovado, concordata e, eventualmente,

código de conduta.

É digno de nota, porém, que a concordata, de acordo com o que doutrina e

jurisprudência concluem, se reserva aos ajustes mantidos com a Santa Sé. Afastando-se

esta hipótese, não são separados critérios seguros que autorizem determinar com rigor a

esfera de utilização de cada uma das expressões ora aventadas.

Há o risco dos autores escolherem, em razão do objeto e da forma de certos

acordos, uma ou outra denominação. Na prática, ao revés, a opção está subordinada

exclusivamente às considerações de oportunidade (as palavras tratado, convenção e acordo

são intermutáveis e rotineiramente empreendidas como termos genéricos).

O Tribunal Internacional de Justiça (Corte Internacional de Justiça) defendeu,

neste caminho, no caso do Sudoeste Africano133, que a terminologia não se mostra

aspecto relevante ao caráter de um acordo ou de um compromisso internacional. Os termos

empreendidos têm a mesma significação jurídica em Direito Internacional, embora, talvez,

não a possuam, em Direito Constitucional.

A conclusão a que se chega é a de que o alcance do artigo 5º, § 2º, da

Constituição Federal de 1988 estaria seriamente restringido, na eventualidade de

preponderar a tese de que foram abarcados, pelo Poder Constituinte Originário, em tal

131DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. 132DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003. 133DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003.

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dispositivo, tão somente documentos internacionais batizados com a expressão tratado.

Tendo em vista que os documentos internacionais primaciais vertendo acerca de direitos

humanos não receberam respectiva nomenclatura, poder-se-ia, dentro desta linha absurda

de raciocínio, articular que eles não serviriam de fonte para direitos materialmente

fundamentais.

Por óbvio, a norma constitucional invocada tem por objetivo basilar

proporcionar a incorporação de outros direitos fundamentais não expressamente

previstos na Constituição. Seguramente almejou o texto constitucional recepcionar o

princípio da não tipicidade no campo dos direitos fundamentais trazendo o efeito, não

de atrofiar, mas sim de ampliar, complementar o catálogo nacional dos direitos

fundamentais, integrando a ordem constitucional interna à internacional, solução esta

que atende as exigências contemporâneas de uma comunidade internacional

construída a partir de Estados mais interdependentes.

2.2 – O Direito Internacional e o Direito Interno - Dualismo e Monismo

A delimitação do relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito Interno,

avisa Celso D. de Albuquerque Mello134, é responsável por diversos problemas doutrinários

e práticos. Qual das normas deverá prevalecer na hipótese de conflito entre as normas

externa e interna? Raros autores, como Alf Ross, vislumbram na celeuma uma mera disputa

de palavras e negam a importância do ponto a ser examinado.

Saliente-se que o primeiro estudo sistemático, estruturado da matéria pertence a

Heinrich Triepel, data de 1899 e recebeu o título Völkerrecht und Landesrecht (Direito

Internacional e Direito do Estado). Isto não quer dizer que outros autores não tenham se

debruçado sobre o assunto até o advento dele. Bártolo de Saxoferrato135 já relatava que o

134MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 135[...] Já Leopoldo de Bebenburgo (1297-1363) assinalou que a ideia medieval de Império vinha

sendo paulatinamente substituída pelo costume (consuetudo) internacional. Mas, foi o comentarista posterior Bártolo de Saxoferrato, nascido em Urbino no ano de 1314 e morto em Perugia no ano de 1357, havendo sido catedrático de Bolonha, o primeiro a descobrir o magno processo histórico do qual surgiria o moderno Direito Internacional. Se trata da pujante e paulatina transformação da ordem jurídico hierárquica da alta Idade Média em uma nova comunidade de Estados baseada no princípio da igualdade. Mas Bártolo percebeu o inverso da inovação – se deu conta de que a repulsa do poder imperial implicava a perda da instância central da comunidade internacional que em seu apogeu tinha sido o protetor do Direito das Gentes. Agora, desaparecida a instância central, à qual os litigantes podiam se dirigir, os Estados particulares tinham que assumir eles mesmos a defesa de seus direitos. Desta forma se desenvolveu o instituto das represálias, sendo a primeira exposição acerca do ponto dada por Bártolo em seu Tractatus Represaliarum (1354). O autor distinguia então dois momentos na autotutela – a decisão do Estado ofendido sobre se o adversário cometeu realmente uma injúria, caso em que se pode recorrer à represália, e o exercício em si deste mecanismo. Àquele ato de autotutela se deu o nome de direito de autodecisão e a este de direito de autoexecução. Por isto, Bártolo vislumbra na represália uma modalidade de guerra. Também a guerra é um substitutivo para a falta

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costume que violasse a Lei Divina, o Direito Natural e o Direito das Gentes não era

obrigatório. Amancio Alcorta, posteriormente, analisou a questão sob a ótica da prática

estatal. Ainda, Paul Laband, sustentou especificamente o dualismo.

Heinrich Triepel anunciava que o Direito Internacional e o Direito Interno são

noções distintas e, por conseguinte, as duas ordens jurídicas podem ser tangentes, mas

nunca secantes, ou seja, são independentes, não englobando qualquer área em comum. A

oposição ora transcrita é resultado de três diferenças assinaladas entre referidas ordens

jurídicas.

A primeira envolve relações sociais – na ordem internacional o Estado é o único

sujeito de direito, enquanto, na ordem interna, a posição é ocupada também pelo indivíduo

comum.

A segunda está nas fontes das duas ordens jurídicas: o Direito Interno

materializa a vontade de um Estado e o Direito Internacional tem como fonte a vontade

coletiva dos Estados, que se manifesta claramente nos tratados-leis e no costume

internacional. O autor em comento se esteiou, neste particular, em trabalhos de Karl Magnus

Bergbohm e Karl Binding, advertindo que este último empregava, em obra publicada uma

década antes, o vocábulo Vereinbarung (convenção, ato-união). O instituto idealizado por

Binding equivale à fusão de vontades diferentes marcadas por idêntico conteúdo; que se

traduz nas decisões do Congresso; designa um outro grupo de acordos distinto do contrato

e, para Triepel, seria o elemento criador de normas internacionais. De outro lado, o Vertrag

(contrato) é concebido por Binding como o documento em que as vontades são divergentes.

E, a terceira, se reporta à estrutura de cada uma das ordens jurídicas. A interna

se alicerça em um modelo de subordinação e a internacional em esquema de coordenação.

A comunidade internacional é paritária, igualitária.

A concepção então tratada se encaminha à teoria da incorporação que exige,

para que uma norma internacional tenha incidência na esfera interna, a prévia

transformação dela, pelo Estado, em Direito Interno, incorporando-a ao seu sistema jurídico.

Há aqui o efeito principal da total independência entre as duas ordens jurídicas, o que

autoriza admitir que não existe possibilidade de conflito, choque entre elas. O tratado não é

meio de criação do Direito Interno, mas sim um convite ao Estado para um ato particular de

vontade do outro Estado.

de jurisdição e um poder executivo supraestatal. Bártolo advertiu, desta sorte, a conexão necessária que existe entre a autotutela e o Direito Internacional moderno e desorganizado. E compreendemos porque ele não via com agrado esta transformação da sociedade internacional, salientando, ao contrário, que ela havia sido instituída pelos nossos pecados (VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974).

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Valério de Oliveira Mazzuoli136 ensina, neste sentido, que os dualistas explicam

que as normas de Direito Internacional não têm aplicabilidade imediata e cogência no

interior de um Estado a não ser pela via da recepção, ou seja, em função de um ato do

Poder Legislativo Nacional que transforme o tratado internacional em norma nacional. O

resultado disto é que a norma de Direito Internacional, abrigada pelo Direito Interno, passa a

ter natureza jurídica de Direito Interno, o que permite que um pacto internacional venha a

ser revogado por uma lei interna ordinária posterior. Os signatários da teoria do dualismo

moderado, ao contrário, não alcançam o extremo de compreender que o tratado entre em

vigência no país unicamente depois da edição de um ato legislativo, mas admitem a

necessidade de um ato formal de internação da norma internacional.

Dionísio Anzilotti empregou, com reservas, no ano de 1905, em sua obra Il Diritto

Internazionale nel Giudizio Interno, as reflexões de Heinrich Triepel. Para ele, o Direito

Internacional poderia ser aplicado pelo Direito Interno, em dadas situações, mesmo sem

qualquer transformação.

A doutrina do dualismo conquistou diversos adeptos entre os autores italianos,

mas foram feitas nela, é verdade, algumas alterações, sendo lícito identificar um dualismo

típico daquele país, de características particulares. Tomaso Perassi pregava a autonomia

das duas ordens jurídicas, aduzindo, porém, a superioridade do Direito Internacional perante

os Estados. O Direito Internacional não reflete diretamente na ordem jurídica interna de

modo que uma norma interna contrária a ele somente seria revogada através de um

procedimento prescrito pelo Direito Interno. A esta tese adere Angelo Piero Sereni, que vai

mais à frente e recupera as diferenças selecionadas por Heinrich Triepel.

A corrente continuou reunindo seguidores fora da Alemanha e da Itália. Lassa

Francis Lawrence Oppenheim, ex-aluno de Karl Binding, e Amílcar de Castro a

disseminaram, respectivamente, na Inglaterra e no Brasil. Para este último, a ordem

internacional se diferencia das estatais, pois suas normas se caracterizam como

inconfundíveis pelos sujeitos aos quais elas se dirigem, pelo conteúdo e pelos meios

mediante os quais sua obrigatoriedade é preservada. A convivência entre Estados não

envolve a subordinação a um governo; não há jurisdição internacional e sem ela, o Ius

Gentium só poderá ser visto como único, separado, sem semelhança alguma com o Direito

Estatal.

É de se destacar que foi Alfred Verdross137 quem qualificou de dualista, em

1914, a concepção encabeçada por Heinrich Triepel que, por sua vez, aceitou, no ano de

1923, tal intitulação. O próprio Alfred Verdross aduziu, no entanto, posteriormente, que o

136MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 137VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974.

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termo se mostrava deficiente, posto que havia mais de um Direito Interno sendo correto

denominar a corrente comentada de pluralista.

O dualismo enfrenta críticas, entre elas138: (1) o homem é também sujeito de

Direito Internacional, porque tem direitos e deveres outorgados diretamente pela ordem

internacional; (2) o Direito não é produto da vontade de um Estado ou de vários Estados; (3)

Hans Kelsen anunciava que coordenar é subordinar a uma terceira ordem e, portanto, a

distinção mantida pelas duas ordens não é de natureza, mas de estrutura ou mera diferença

de grau; (4) o Direito Internacional consuetudinário é aplicado pelos Tribunais Nacionais

independentemente de transformação ou incorporação; (5) a visão da Escola Italiana de que

o Direito Internacional atinge o Estado e não seu Direito Interno não impera, pois, citando

Rolando Quadros, não é cabível a separação do Estado e de seu ordenamento jurídico; (6)

o dualismo no Direito Internacional se liga à ideia deste ramo do Direito como sistema

privatístico e (7) não prospera a lição de Heinrich Triepel, no sentido da qual somente a

atuação dos Poderes Executivo e Legislativo de um Estado é que se sujeita ao Direito

Internacional, ao passo que o Poder Judiciário e o homem se submetem exclusivamente ao

Direito Interno, em razão do fato de que não existem princípios de Direito Constitucional ou

de Direito Internacional consagradores desta discriminação – os Tribunais nacionais sempre

reconheceram as imunidades diplomáticas sem que assistisse aos casos incorporação de

norma costumeira externa e, em concordância ao que Triepel salientava, o Direito

Internacional necessita do auxílio dos Direitos Internos, não funcionando sem que estes

cumpram aquele, estando igualmente o Poder Judiciário subordinado ao atendimento da

normativa internacional.

Alfred Verdross139 leciona, acerca dos fundamentos da teoria em análise, que já

não mais cabia colocar em dúvida que um tratado internacional pudesse obrigar no âmbito

interno do Estado. Algumas normas do Direito Internacional costumeiro são diretamente

obrigatórias para os indivíduos e disto se depreende que também eles se encontram

submetidos ao Direito Internacional.

A Corte Permanente de Justiça Internacional decidiu, nesta toada, na data de 03

de março de 1928, no caso das Reclamações Pecuniárias dos Ferroviários de Dantzig

(incorporados ao serviço público polonês pelo Beamtenabkommen – Acordo de Oficiais)140

que é possível ser prontamente admitido, segundo um bem estabelecido princípio de Direito

Internacional, que aquele pacto, por ser um acordo internacional, não pode criar direitos e

138MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 139VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra. Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 140Aviso Consultivo n. 15, Série B, Publicação da Corte Permanente de Justiça Internacional. Disponível www.icj-cij.org. Acesso em 30-09-2013.

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obrigações diretamente aos habitantes de um Estado. Porém, não é passível de discussão

que o objeto em si de um tratado internacional, dependendo da intenção das partes

contratantes, poderá ser a adoção, pelos contraentes, de algumas normas definidas

criadoras de direitos e obrigações individuais e executáveis pelas Cortes Judiciárias

Internas.

Em contrapartida é correto, conforme ensinamento de Alfred Verdross141, que

uma norma estatal oposta ao Direito Internacional ou a um tratado internacional não carece

de falta de força obrigatória, pois os tribunais internos têm, a priori, o dever de aplicar as

leis, ainda que elas os infrinjam. Este princípio advém da ideia de que os tribunais estatais

são órgãos de um ordenamento jurídico interno singular e, então, devem aplicar as normas

que o Direito Pátrio lhes prescreve. Lembre-se que dito autor faz a ressalva de que, como

não cabe presumir que um Estado queira violar conscientemente o Direito Internacional142,

utiliza-se, com caráter geral, na interpretação das leis, a regra pela qual, no que for

compatível, há de se aplicar a lei nacional à luz do Direito Internacional. Somente na

hipótese da lei conter uma norma clara e inequivocamente contraria ao Direito das Gentes é

que deverá incidir tal qual pelos Tribunais Estaduais, isto enquanto o próprio Direito

Estadual não aduzir outra coisa. Esta declaração há, no entanto, de ser adornada

acrescentando-se que a evolução jurídica mais recente se inclina a evidenciar que os

órgãos estatais, por permanecerem diretamente obrigados ao Direito Internacional, podem,

excepcionalmente negar obediência a uma lei do próprio Estado, desde que, ao contrário, o

respectivo órgão, ao emprega-la, venha a praticar um delito internacional.

Ao dualismo se opõe o monismo, cujos sectários admitem a existência de uma

única ordem jurídica ao invés de duas autônomas, independentes, não derivadas. O

movimento comporta duas vertentes – uma que advoga a primazia do Direito Interno e

outra que preleciona a supremacia do Direito Internacional.

A primeira se sedimenta em Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que concebe o

Estado como detentor de soberania absoluta e impassível de submissão a um ordenamento

jurídico não oriundo de sua vontade.

No sistema hegeliano transparece a ideia de que os Estados devem conviver

racionalmente entre si143. O Direito Internacional regulamenta as vontades dos diversos

Estados. O fundamento do Direito dos Povos, como Direito Universal, que, para Hegel, é

141VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra. Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 142Aponta-se que, no caso Peters v. McKay, julgado pela Suprema Corte do Oregon, na data de

14/11/1951, defendeu-se que é solidamente estabelecido que um Tribunal, ao elaborar uma decisão, incorre em uma forte presunção de que o Poder Legislativo não buscou lesionar o Direito Internacional. 143BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

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válido no relacionamento de Estados, habita o dever de se respeitarem os contratos, porque

neles se fundam as obrigações de referidos entes uns perante os outros. É princípio da

relação entre Estados a sua soberania e disto advém que se encontram eles, neste

espectro, em estado de natureza e os seus direitos não consistem numa vontade universal

infundida por um poder que lhes é superior, mas colhem, na vontade particular dos Estados,

a realidade das transações bilaterais mantidas. Eles antepõem em suas dimensões de

atuação para dentro ou para fora, relação entre povos, o bem-estar interno e sua

incumbência é a de provedor das necessidades internas e não externas.

O Direito Internacional, instruía Georg Jellinek, assume a função de

autolimitação do Estado, retira sua obrigatoriedade do Direito Interno e é reduzido a um

Direito Estatal Externo, ou seja, a um Direito Interno que os Estados utilizam na sua vida

internacional. Não são avistadas duas ordens jurídicas autônomas, que preservem relações

entre si.

Esse entendimento restou acompanhado por Max Johann Wenzel, irmãos Zorn,

Decencière-Ferrandiè e, inicialmente, Alfred Vedross144.

Alguns autores soviéticos, a exemplo de Korovine, estabeleceram que o Direito

Internacional é somente válido para o Estado como parte de seu Direito Nacional. É

oportuno alertar que os trabalhos soviéticos mais recentes reprocham a posição do Direito

Interno Estatal Externo; abonam a ocorrência de um elo indivisível entre o Direito Interno e o

Direito Internacional, além da igual importância dos dois sistemas no quesito força

obrigatória, assentando que um não pode contradizer o outro ou conservar superioridade

sobre ele. Pode-se dizer que a indigitada doutrina soviética se assemelharia ao dualismo,

porém os doutrinadores soviéticos desaprovam as lições de Heinrich Triepel e Dionisio

Anzilotti, imaginando a sua posição como singular.

A exposição ora despendida integra a obra Direito Internacional da Academia

Soviética de Ciência da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O

capítulo de mencionado livro, relativo às relações entre Direito Internacional e Direito Interno

foi organizado por Korovine, que teria, deste jeito, reformado a sua posição original. A

doutrina que analisou o pensamento soviético sobre o tema expõe terem os autores

socialistas avaliado o primado do Direito Internacional como um meio dos países capitalistas

interferirem na agenda interna dos Estados.

A teoria tratada contou igualmente com o apoio de juristas nazistas e de

Georges Burdeau, para quem o Direito Internacional era um Direito Nacional de uso

Externo.

144MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

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Da mesma maneira que o dualismo, a subcategoria do monismo em referência

permite a formulação de críticas145: (1) ela nega a existência do Direito Internacional

autônomo e independente, o reduzindo a simples Direito Estatal; (2) é, nas palavras de

Antonio Truyol e Serra, uma teoria pseudomonista, porque não há apenas um único Direito

Interno; (3) se apresenta contrária à prática internacional, uma vez que se a validade dos

tratados internacionais recaísse sobre as normas de Direito Constitucional, que definem o

seu meio de conclusão, toda alteração na Ordem Constitucional importaria a caducidade

dos tratados celebrados sob a égide do regime anterior; pelo princípio da continuidade e

permanência do Estado isto não sucede e ele está obrigado a adimplir as obrigações

assumidas pregressamente.

Paralelamente, a segunda corrente (subcategoria, do monismo, marcado pela

primazia do Direito Internacional), foi construída especialmente por participantes da Escola

de Viena.

É verdade que, pioneiramente, o artigo LXXVI, do Tratado de Münster146,

assinado em 30 de janeiro de 1648, por Espanha e Países Baixos, o qual encerrou a

denominada Guerra dos Oitenta Anos, prescreveu às partes as obrigações de não adotarem

nenhuma conduta contrária ou em prejuízo ao acordo e de renunciarem todas as Leis,

Costumes e outras disposições conflitantes com o que foi nele articulado.

Alguns meses depois, o artigo LXXIX, do tratado de mesmo nome, Tratado de

Münster, Instrumentum Pacis Monasteriensis (IPM)147, celebrado também na cidade de

Münster, em 24 de outubro de 1648, entre o Sacro Império Romano-Germânico e a França,

tendo como subscritores Fernando II e Fernando III (Império), Luis XIII e Luis XIV (França),

com o propósito de pôr fim à Guerra dos Trinta Anos, fixou que, para o aumento da validade

das cessões e tradições territoriais e de bens, levadas a efeito pelo Sacro Império Romano-

Germânico, o Imperador e o Império, em virtude da transação alçada naquele instrumento,

derrogavam expressamente todos os seus Decretos, Constituições, Estatutos e Costumes,

em vigência ou em período de vacatio legis, especialmente a Capitulação Imperial, mediante

a qual era proibida toda alienação de bens e direitos do Império. Concomitantemente, noticia

o dispositivo, permaneciam excluídas todas as exceções e vias de restituição de qualquer

direito ou título.

145MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 146Disponível em www.derechointernacional.net. Acesso em 09/09/2013 (versão em espanhol). A cópia digitalizada do tratado escrito em latim e no alemão de 1648 se situa em www.ieg-friedensvertaege.de. Acesso em 09/09/2013. 147O texto em latim e suas variadas traduções para o alemão de 1648, 1720, 1975 e 1984, espanhol de 1750, francês de 1651 e 1684 e inglês de 1710 estão disponíveis em www.pax-westphalica.de (Die Westfälische Friedensverträge vom 24. Oktober 1648. Texte und Übersetzungen - Em português – Os Tratados de Paz de Westfália de 24 de Outubro de 1648. Texto e Traduções). Acesso em 07/09/2013.

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Hans Kelsen, quando redigiu sua Teoria Pura do Direito, formulou a famosa

estrutura escalonada do Direito (pirâmide de normas), mediante a qual uma norma guarda

sua origem e retira sua obrigatoriedade da norma que lhe é imediatamente superior. No topo

da estrutura está a norma base, Grundnorm, visualizada como uma hipótese livremente

escolhida por cada jurista.

A tese kelseniana recebia o nome de Teoria da Livre Escolha. Depois de grande

influência de Alfred Verdross, Hans Kelsen modificou seu pensamento e estabeleceu que a

norma base seria uma norma de Direito Internacional, a norma costumeira conhecida por

pacta sunt servanda.

No ano de 1927, Léon Duguit e Nicolas Politis proclamaram a superioridade do

Direito Internacional. A eles se uniu toda a Escola Realista Francesa que transportou

consigo argumentos sociológicos. Georges Scelle, por exemplo, patrocinava que as várias

sociedades constituídas por homens formulariam o seu Direito. O surgimento de uma norma

internacional, desenvolvida pela Sociedade Internacional, derrogaria as normas internas

contrárias a ela.

Virginia Leary148 assevera, comentando o fenômeno exposto por George Scelle,

que uma forte predileção pela teoria monista com a prevalência do Direito Internacional,

impõe a sobreposição dos enunciados dos tratados sob as Constituições e leis locais, não

sendo importante se anteriores ou posteriores a elas e não dependendo de se a questão foi

arguida nos sistemas nacional ou internacional.

O ponto perscrutado neste momento emana do corolário de que inexistem

conflitos entre as ordens jurídicas interna e internacional. O regular conceito de soberania,

inclusive, dependeria seguramente da ordem internacional.

É viável destacar que Hans Kelsen defende na obra Teoria Pura do Direito, a

não constatação de choques envolvendo as ordens interna e internacional, pois a norma

inferior (interna) nunca poderia conter dispositivos em contrariedade à norma superior

(internacional), que exercia então o papel de seu fundamento e fonte.

Se a pergunta - Há conflitos insolúveis entre os dois sistemas de normas? – for

respondida, contudo, afirmativamente, a unidade de Direito Interno e Direito Internacional

estará, para Kelsen, suplantada. Porém, nesta situação não seria efetivamente cabível a

validade simultânea do Direito Interno e do Direito Internacional.

Utiliza-se o mesmo raciocínio construído para o confronto de Direito e Moral149.

Uma determinada ordem moral proíbe a morte de homens em quaisquer circunstâncias,

enquanto uma ordem jurídica positiva legaliza a pena de morte de indivíduos e garante ao

148PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 149KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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governo o poder de recorrer à guerra desde que satisfaça requisitos abrangidos pelo Direito

Internacional. Ora, quem considerar o Direito como um sistema de normas válidas deve

desatender a Moral e aqueles que enxerguem nesta última um conjunto de normas válidas

precisa afastar o Direito. Não sucede ponto de vista pelo qual Direito e Moral consigam ser

imaginados como ordens normativas simultaneamente válidas. Afinal, não se consegue

descrever uma ordem normativa de maneira a afirmar que vale a norma A deve ser e, ao

mesmo tempo, impera a norma A não deve ser.

E, Hans Kelsen150 disciplina que se ocorressem conflitos insolúveis entre Direito

Internacional e Direito Estadual e se, em razão disto, fosse inevitável a concepção dualista,

a partir do momento em que se defendesse o Direito Interno como sistema de normas

válidas, não só não se mostraria correto conceber o Direito Internacional como Direito, mas

também não seria razoável aquiescer com uma ordem normativa vinculante em vigência

concomitantemente ao Direito Estadual. Os dualistas, sem fundamento, ensinam que as

duas ordens jurídicas são independentes, autônomas, conflitantes entre si e dotadas de

vigência paralela.

Uma análise mais minuciosa, sublinha o autor austríaco, evidencia que o

denominado antagonismo entre normas internacionais e estaduais não é exatamente um

conflito de normas, permitindo esta situação ser descrita em proposições jurídicas que não

se opõem logicamente.

O exemplo confeccionado por Hans Kelsen é de suma importância, aliás, para a

temática deste estudo que está sendo desenvolvido151 – o Estado está obrigado, por acordo

internacional, a deferir, aos integrantes de uma minoria, direitos políticos iguais aos que

concede aos membros de uma maioria, mas, através de lei interna, os retira dos

participantes de respectivo grupo. A contraposição não prejudica nem a validade da lei nem

a do tratado.

A incongruência entre Direito Interno e Direito Internacional não destrói a

unidade do sistema jurídico, da mesma maneira que a lei inconstitucional é uma lei válida e

permanece tal sem que por isto tenha de se aduzir anulada ou modificada a Constituição. A

sentença ilegal, de outra monta, é norma válida e produz efeitos jurídicos até que venha a

ser anulada por outra decisão. A antinormalidade de uma norma não implica no conflito

direto entre as normas inferior e superior, porém significa unicamente a anulabilidade da

norma inferior ou a punibilidade do órgão competente responsável.

Neste sentido, a promulgação de uma norma inferior contrária à norma superior

pode esculpir um ato delituoso ao qual a ordem jurídica relaciona os seus atos coercitivos

150KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 151KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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específicos (sanções), lembrando-se que o ilícito acontecido (Unrecht) não é negação do

Direito, ou seja, algo que não é Direito, mas um pressuposto específico que acarreta

consequências jurídicas. Entre o delito e o Direito não há discrepâncias. Portanto, não são

apontadas dificuldades lógicas no fato de, mediante um ato qualificado por delito, serem

edificadas normas jurígenas válidas. À norma pode ser definida uma sanção, sem que isto

denote que o texto legislativo é inválido. Ao contrário, ela é válida porque (1) permanece em

vigor até sua anulação por meio de um processo especial previsto pela própria ordem

jurídica e (2) não é anulada se o ordenamento jurídico nacional não organizar mencionado

procedimento. Este raciocínio se transporta para o âmbito das relações entre Direito

Internacional e Direito Interno.

A força impositiva pela qual o Direito Internacional prescreve ao Estado o dever

de adotar comportamentos delimitados ou de desenvolver leis cujo conteúdo é pré-

determinado, se fundamenta nas variadas penalidades descritas pelo Direito Internacional

ou na chance de eventual patrocínio de guerra. A norma expedida com desatenção das leis

externas se mantém válida, ainda sob o enfoque da ordem internacional. É tempestivo

apontar que a norma jurídica contrária ao Direito Internacional não é anulada, uma vez que

não socorre à espécie qualquer processo, estruturado pelo Direito Internacional, destinado a

esta finalidade.

De novo, Hans Kelsen se socorre de exemplo apropriado152. O liame havido

entre a norma internacional e a norma estadual que lhe é contrária é o mesmo que se

aponta entre a Constituição Estadual que, no seu rol de direitos fundamentais desenha o

conteúdo das futuras leis, e leis infraconstitucionais que agridam direitos fundamentais e,

enfim, se exibam eivadas do vício de inconstitucionalidade, desde que a Lei Maior Nacional

não tenha arquitetado processo para a anulação delas, não disciplinando jurisdição

constitucional, mas se restrinja a responsabilizar os seus órgãos editores.

O Direito Internacional assume, segundo a teoria em comento, função de

validade da ordem jurídica estadual, pois o princípio internacional da efetividade delineia a

base de abrangência e o domínio territorial, pessoal e temporal de vigência das ordens

jurídicas estaduais e elas podem então ser visualizadas como delegadas por e subordinadas

a ele. Na realidade são ordens jurídicas parciais inseridas dentro de uma ordem jurídica

universal – a convivência e a sucessão delas no espaço e tempo são juridicamente

autorizadas pelo Direito Internacional.

É aí que se posiciona o primado da ordem jurídica internacional. Além disto,

ressalve-se que ele se harmoniza plenamente com o preceito integrante de Constituição

Estadual, de acordo com o qual o Direito Internacional Geral há de ser cogitado como parte

152 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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da ordem jurídica interna. O dispositivo mencionado não exprime que o Direito Internacional

adquira validade em relação àquele Estado, pois ele não exige reconhecimento formal por

parte do Estado, porém que é, através de uma cláusula geral convertido em Direito

Estadual. O procedimento citado é necessário nas situações em que órgãos internos, dentre

eles os tribunais, possuam permissão constitucional para aplicação exclusiva do Direito

Estadual e, desta feita, somente possam empregar o Direito Internacional quando o seu

conteúdo adotar a forma de norma nacional (lei, decreto). Se, na ausência deste

comportamento, não puder ser empregado o regramento internacional, não se deve

identificar falta de validade do Direito Internacional perante o Estado. A não execução da lei

externa por ele conforma violação e sujeita o ente estatal à sanção que o Direito

Internacional tiver previsto como resultado da conduta desobediente.

Note-se que Hans Kelsen153 leciona ser viável juridicamente a existência

conjunta de uma pluralidade de Estados, ou seja, de uma multiplicidade de ordens

coercitivas. Entretanto, a estipulação do espaço e o lapso de tempo de validade jurídica da

ordem interna, isto é sua sucessão no tempo, são assentadas pelo Direito Internacional. O

início e o fim da validade da ordem jurídica estadual são ditados, regulados, pelo já indicado

princípio da efetividade e o nascimento e desaparecimento do Estado, sob este ângulo, se

apresentam como fenômenos jurígenos à semelhança da constituição ou dissolução de uma

pessoa jurídica nos moldes do Direito Estadual Interno.

Ainda, o Direito Internacional guarda incidência na ordem jurídica de cada

Estado e limita o seu domínio. Os Estados individualizados preservam a competência de

expedição de normas acerca de variados temas, desde que eles não tenham sido

apossados pelo Direito Internacional e retirados de uma livre regulamentação por parte do

ordenamento jurídico nacional. A suposição de que o Direito das Gentes perfaz ordem

jurídica supraestatal envolve, por si só, dizer que o sistema jurídico estadual não titulariza

mais competência soberana. Há sim, em que pese isto, uma pretensão à totalidade

(Totalitätsanspruch)154, exclusivamente limitada pelo Direito Internacional, ou seja, a

capacidade legiferante, estabelecida pela ordem jurídica interna, não é, a priori, restringida a

um rol de certas matérias. O inverso acontece com comunidades ou ordens jurídicas criadas

por tratados internacionais, as quais têm seu poder normativo condicionado aos assuntos

descritos no pacto.

O ente estatal surge determinado, em todas as direções, pelo Direito

Internacional. É uma ordem jurídica delegada por ele em sua validade e em sua esfera de

validade (legitimidade e campo de incidência). A soberania é entregue unicamente à ordem

153KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 154KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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jurídica internacional. E informar que os Estados, as ordens jurídicas estaduais, as

comunidades por elas formadas são soberanos, quer dizer que (1) eles somente se

encontram subordinados à ordem jurídica internacional e (2) são jurídico-internacionalmente

imediatos a ela.

A eventual objeção que se projeta, na esteira da qual o Estado individualizado

não deve ser vislumbrado como uma ordem delegada pelo Direito Internacional, porque os

Estados Históricos, as ordens de coerção estaduais têm de preceder à organização do

Direito Internacional, criado pelos seus costumes, não merece guarida.

Hans Kelsen155 atesta que a impugnação se filia a uma ausência de

diferenciação entre as relações históricas do fato e lógicas das normas. Da mesma

maneira que a família constitui comunidade jurídica mais antiga em comparação ao Estado

Centralizado, e, contudo, é sob a ordem jurídica estadual que se constrói a sociedade

jurídica familiar, a validade de uma ordem jurídica interna funda-se na Constituição do

Estado, embora se saiba que a edição dela é cronologicamente posterior aos Estados

singulares. Não é certo confundir as conexões histórica e normológica.

O Estado é, pois, a partir do Direito Internacional, enquanto ordenamento jurídico

válido, ordem jurídica parcial, imediata perante ele, relativamente centralizada, com domínio

de validade territorial e temporal jurídico-internacionalmente limitado e que, no que diz

respeito ao âmbito de validade material, possui pretensão à totalidade (Totalitäsanspruch)

apenas vinculada à reserva do Direito Internacional.

Celso D. de Albuquerque Mello156 e, ao que parece, Valério de Oliveira

Mazzuoli157, escrevem que, após persuasão de Alfred Verdross, Hans Kelsen alterou sua

teoria e recepcionou a noção de conflitos entre as ordens jurídicas interna e internacional.

É verdade que o monismo radical anterior foi sucedido pelo monismo moderado.

A nova corrente nega que a norma interna deixe de ter validade na hipótese de

contrariedade de preceitos de Direito Internacional, porém avalia que a lei divergente

constitui apenas uma infração que acarreta o direito ao Estado lesado de impugnação e de

demandar sua derrogação, inaplicabilidade, responsabilizando o ente infrator a indenizar

prejuízos decorrentes.

A consequência lógica, pois, da edição de normas internas e contrárias ao

Direito Internacional seria a definição da responsabilidade internacional do Estado

descumpridor. Este instituto transforma-se em sanção escolhida pelo Sistema Jurídico

155KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 156MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 157MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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Internacional apta à manutenção da prevalência do Direito Internacional Público perante o

Direito Interno.

Para Alfred Verdross158, a teoria do monismo radical, que prega ser nula toda

norma contrária ao Direito Internacional, não se mostra sustentável. Não é plausível

defender-se a completa separação entre Direito Internacional e Direito Interno, como faz a

Teoria Dualista, pois ela se esquece de que a obrigatoriedade de uma lei oposta ao Direito

Internacional somente produz efeitos dentro do Estado e provisoriamente.

Este autor, citando ensinamento de Lassa Francis Lawrence Oppenheim, ao

qual se filia, por igual, Hersch Lauterpacht, aduz que a validade de um pronunciamento de

uma corte interna nestas situações é puramente temporária. O Estado prejudicado mantém-

se autorizado pelo Direito Internacional comum a exigir a derrogação, ou ao menos, a não

aplicação da lei e a outra nação encontra-se obrigada a satisfazer este dever. Assim, o

procedimento legislativo estatal poderá se submeter a um controle jurídico-internacional.

Ainda, Verdross compreende que o princípio através do qual, no caso de uma

violação ao Direito Internacional, na pessoa ou nos bens de um estrangeiro, a reclamação

jurídico-internacional é viável unicamente se esgotadas as instâncias internas, desvela que

o procedimento jurídico-internacional está por cima do Direito Estadual. Se, então, o litígio

desta natureza se resolve com arrimo em princípios jurídicos, é certa a afirmação de que o

Direito Internacional é sempre e sem exceção superior ao Direito Interno, que a ele,

eventualmente se opõe. A consequência disto está no fato de que o Direito Estatal só

poderá se mover inteiramente livre dentro dos limites estabelecidos pelo Direito

Internacional.

Nessa linha, ante as razões transcritas, somente se amolda, à realidade

jurídica, uma teoria que, reconhecendo precipuamente a possibilidade de conflitos

entre o Direito Internacional e o Direito Nacional, advirta que eles não têm natureza

perpétua, definitiva atingem sua solução na unidade do sistema jurídico. A expressão

monismo moderado com predomínio do Direito Internacional se justifica porque

preserva a distinção entre o Direito Internacional e o Direito Estatal, mas outorga ao

próprio tempo a conexão deles dentro de um sistema jurídico unitário respaldado na

Constituição da Comunidade Jurídica Internacional159.

A diferença que separa, dentro do sistema jurídico em questão, o Direito

Internacional do Direito Interno, em conformidade à lição de Alfred Verdross, se manifesta

nítida e cristalinamente se for visualizada a relação sucessiva entre ambos sob o ponto de

vista de um tribunal estatal e de um tribunal internacional de arbitragem ou de justiça. Se os

158VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 159VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974.

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tribunais estaduais, enquanto órgãos do Direito Estatal, devem aplicar as leis contrárias ao

Direito Internacional, os tribunais supranacionais hão de empregar as normas dele. Para

estes últimos, as leis estaduais, as decisões judiciais e os atos administrativos de um Estado

constituem meros atos, susceptíveis de serem analisados e controlados à luz do Direito

Internacional e, pois, de se verem qualificados de acordo com sua compatibilidade ou

oposição ao Direito Internacional.

A jurisprudência internacional dos séculos XIX e XX promove à unanimidade a

prevalência do Direito Internacional160. A solução de arbitragem a que se chegou no caso

Alabama, no século XIX, englobou este princípio. O Direito Interno é, para o magistrado

internacional, simples fato desprovido de valor normativo. Isto, porém, não quer dizer que o

Direito Internacional ignore totalmente o Direito Interno, sendo que os princípios gerais do

Direito são também suas fontes e este último pode servir de prova para a existência de um

costume internacional.

A Corte Permanente de Justiça Internacional, no julgamento do caso Interesses

Alemães na Alta Silesia Polonesa, que se deu em 25 de maio de 1926161, assentou que,

do ponto de partida do Direito Internacional, e da Corte, seu órgão, leis nacionais são meros

fatos que expressam a vontade e constituem as atividades dos Estados, do mesmo jeito que

decisões judiciais ou atos administrativos.

O Tribunal não é chamado a interpretar a lei polonesa como tal, porém não há

nada que o previna a apreciar a questão de se a Polônia, ao aplicar sua lei interna, estava

agindo em consonância com as obrigações impostas, pela Convenção de Genebra, perante

a Alemanha. Ressalte-se que esta decisão é habitualmente invocada pelos partidários da

teoria dualista como argumento de apoio à sua doutrina. Eles olvidam, no entanto, que a

partir da norma superior, todas as normas inferiores, a ela subordinadas, são somente feitos

aos quais reconhece consequências jurídicas.

O até aqui declinado vale também para as leis constitucionais contrárias ao

Direito Internacional. Nenhum Estado pode esquivar-se do cumprimento de uma obrigação

jurídico-internacional invocando, para tanto, seu Direito Interno. Daí advém que os órgãos

internacionais competentes conservam o poder de impor ao ente estatal, que editou a

legislação em desconformidade com o Direito Internacional, que efetue a sua derrogação

ou, ao menos, não a faça incidir em casos concretos.

160MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 161Case concerning certain german interests in Polish Upper Silesia, Series A, n. 07. Collection of Judgments Publications of the Permanent Court of Justice. Disponível em www.icj-cij.org. Acesso em 05-10-2013.

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O mesmo Estado que detém uma vida interior e outra exterior, avisava

Kaufman162, é o ponto de união entre as ordens jurídicas nacional e internacional. Por este

entendimento, um Estado pode adentrar em responsabilidade internacional ainda quando a

violação do Direito Internacional for efetivada pela Lei Fundamental, Constituição. A decisão

da comissão franco-mexicana no caso George Pinson reforça está afirmação163.

Alfred Verdross164 adverte que certos tratados de arbitragem preveem que o

Tribunal Arbitral, incitado a processar e julgar demanda específica, unicamente terá a

faculdade de certificar a existência de uma desconformidade entre a lei nacional e o Direito

Internacional, condenando, por consequência, o Estado culpado a um ressarcimento. Por

outro lado, os mesmos tratados indicam que, ante a ausência de uma norma limitativa neste

sentido, os tribunais arbitrais assumem igualmente a faculdade de ordenar a derrogação e a

não utilização da lei oposta ao Direito Internacional. O primeiro passo a ser dado pelo

Tribunal Arbitral, então, é o de verificar se há propriamente uma norma jurídico-internacional

e se ela foi efetivamente violada, o que se opera com a aplicação da lei interna lesiva. Antes

deste fenômeno jurídico, entretanto, não existe certeza de se a contrariedade potencial veio

a ser realmente implementada. Se um ato legislativo permite ao Poder Executivo apropriar-

se de bens privados, sem justa indenização, somente caberá uma reclamação diplomática,

por descumprimento de normas internacionais, quando o destinatário fizer uso de ditos

dispositivos nacionais. Se, contudo, a lei, ao invés de autorizar, determinar a ingerência do

Estado sobre bens particulares, a reclamação poderá ser intentada de imediato.

Mais uma vez assinala-se que, segundo o autor em exame, uma precedência da

lei interna frente ao Direito Internacional tem exclusivamente caráter provisório, porque os

Estados guardam a obrigação jurídico-internacional de, em resposta a reclamação do

Estado prejudicado, alterar ou derrogar as normas promulgadas por ele em afronta ao

ordenamento jurídico internacional. Mediante este procedimento, o conflito originário,

temporário e aparente indicado se resolve a favor do Direito Internacional.

A predominância deste acontece na prática, inclusive, lembrando-se que uma lei

contrária a ele atribui ao Estado prejudicado o direito de iniciar um processo de

responsabilização externa e uma norma internacional oposta à norma interna não dá ao

Estado direito semelhante ao presente na situação anterior.

162MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 163Georges Pinson (France) v. United Mexican States – Decision n. 1, October 19, 1928, Pages 1-155, including annexes. Collection of Judgments Publications of the Permanent Court of Justice. Disponível em www.icj-cij.org. Acesso em 17-10-2013. 164VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974.

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No Brasil, Hildebrando Accioly165 demonstra ser lícito sustentar, em sintonia com

a opinião da maioria dos internacionalistas contemporâneos, que o Direito Internacional é

superior ao Estado, possui supremacia frente ao Direito Interno e isto advém de um princípio

elevado de vontade dos Estados. O autor diverge da noção de que o poder do Estado seja

uma delegação do Direito Internacional, mas aceita como incontestável o fato dele constituir

um limite jurídico a este poder. Se é verdade que uma lei interna posterior revoga a lei que

lhe seja anterior e contrária, o mesmo não acontece se a lei anterior representa Direito

Convencional transformado em Direito Interno, pois o Estado deve respeitar as suas

obrigações contratuais e não as pode revogar unilateralmente. Portanto, os tratados e

convenções incorporados ao Direito Interno constroem Direito Especial intocável e

irrevogável pela lei comum nacional.

A Corte Permanente de Justiça Internacional decidiu, no parecer consultivo

proferido em 31 de julho de 1930, que é princípio de Direito Internacional, geralmente

reconhecido, que no relacionamento entre potências contratantes de um tratado, os

dispositivos de uma lei interna não podem prevalecer sobre os do acordo.

A matéria, de acordo com Accioly, se coloca como questão de preservação dos

termos da convivência internacional e há de ser tratada em sua dimensão externa, qual seja,

no diálogo entre os sujeitos de Direito Internacional e não só interna e administrativamente

em cada Estado.

Haroldo Valladão166 desenvolve idêntico raciocínio e asseverou que em face do

monismo jurídico, as normas internacionais prevalecem sobre as normas internas. Aquelas

têm seu próprio método de revogação, a denúncia, devendo ser alteradas exclusivamente

por outra categoria de normas iguais ou superiores, internacionais ou supranacionais, e

nunca pelas inferiores, internas.

Os filiados a este tipo de monismo complementam o catálogo de fontes formais

do Direito Internacional nele somando a lei internacional, que, não raras vezes, se dirige

diretamente aos particulares de um Estado, sem que haja sua transformação em lei interna

(isto aconteceu com diversos acordos da CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do

Aço).

Hans Kelsen167 preconiza que a distinção entre as duas construções monistas –

nacionalista e internacionalista se refere unicamente ao fundamento de validade do Direito

Internacional e não ao seu conteúdo. Na primeira, o Direito Internacional detém por

165ACCIOLY, Hildebrando. et. al. Manual de Direito Internacional Público. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 166ACCIOLY, Hildebrando. et. al. Manual de Direito Internacional Público. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 167KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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fundamento de validade a norma fundamental pressuposta, por meio da qual, a

promulgação da Constituição Histórica exordial do Estado, perfaz o fato gerador do Direito.

Na segunda, o elemento que atribui validade ao Direito Internacional está na norma

fundamental pressuposta e, em virtude dela, o costume dos Estados é o fato produtor do

Direito. Da mesma maneira, o costume dos Estados serve de fato instigador do Direito

Internacional que tenha vigência apenas como parte integrante de uma ordem jurídica

estadual. Nesta hipótese, ele é válido na medida da norma positivamente colocada como ato

de seu reconhecimento, cuja validade, por outro lado, remonta, em última análise, a própria

norma fundamental pressuposta da ordem jurídica estadual.

Pelo fato do Direito Internacional ter igual conteúdo nas duas correntes,

executará, para elas, as mesmas funções. O outrora citado princípio da efetividade impõe o

Direito Internacional o sustentáculo de validade e o domínio de validade das ordens jurídicas

estaduais.

Se o Direito Internacional for considerado parte integrante de uma ordem jurídica

estadual, torna-se imperioso dividi-la em dois sentidos – estrito e amplo. No primeiro, a

ordem jurídica estadual é composta por normas da Constituição do Estado, normas postas

em conformidade com ela e atos oriundos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

No segundo, a ordem jurídica também denota o ponto de partida da construção do Direito

Internacional, pois abarca, além, o Direito Internacional anteriormente reconhecido, ou seja,

normas desenvolvidas através dos costumes dos Estados e de tratados firmados entre

eles.

Eis que o ramo do Direito sob investigação remonta, assim, argumento de

validade da ordem jurídica estadual strictu sensu que não é ponto de início para a sua

construção e da ordem jurídica latu sensu que o é e o tem como componente. Consigne-se

que, nesta segunda hipótese, o Direito Internacional influencia a ordem jurídica strictu

sensu. Por conseguinte, a relação entre as duas faces delineadoras da ordem jurídica em

sentido amplo não é de coordenação, porém de supra-infra-ordenação. A parte que

reproduz o Direito Internacional se localiza acima daquela que representa a ordem jurídica

estadual em sentido estrito. A Teoria Pura do Direito assevera que esta asserção pode ser

exprimida, figurativamente, pela ideia de que o Estado que reconhece o Direito Internacional

submete-se, sem dúvida, a ele.

Com efeito, o princípio da efetividade, segundo a lição em estudo, não é o

último fundamento de validade da ordem jurídica estadual strictu sensu. Tal posição é

ocupada pela sua norma fundamental pressuposta, norma que, por sua vez, à semelhança,

constitui motivo final de validade do Direito Internacional como parte da ordem jurídica

estadual latu sensu. É só entre a ordem jurídica estadual em sentido amplo e o Direito

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Internacional que se apura a relação entre Direito Estadual e Direito Internacional

caracterizada pelo primado da ordem jurídica interna.

A delimitação de uma ordem jurídica estadual resta consumada pelo Direito

Internacional exclusivamente no que se coaduna à parcela dela dita em sentido estrito,

mediante uso, igualmente, do princípio da efetividade. Na verdade, é o delineamento sobre

o qual ora se versa outra incumbência do Direito Internacional.

Sublinhe-se que, a ligação mantida entre a ordem jurídica interna e o Direito

Transnacional, vista sob o ângulo da primeira, se diferencia daquela que seria passível de

apontamento, de acordo com o primado da ordem jurídica internacional, apenas à medida

em que o referido princípio da efetividade não se apresenta o último fundamento de validade

e de delimitação do seu escopo de validade.

A ordem jurídica estadual, aduzida em sua vertente ampla, que abarca o Direito

Internacional reconhecido, é, então, a única titular de soberania, ou seja, é ordem jurídica

suprema acima da qual não vem a ser pressuposta nenhuma outra. No interior dela

encontra-se a ordem jurídica strictu sensu que permanece, esta sim, subordinada à outra

parcela constituinte, a saber, a ordem jurídica internacional. A ordem jurídica estadual em

sentido estrito não se reveste de soberania e, do mesmo modo que suas semelhantes, que

não correspondem ao ponto de partida do Direito Internacional, é segura e exclusivamente

uma ordem jurídico-internacionalmente imediata.

Por ação do Direito Internacional, a ordem jurídica estadual em sentido amplo se

transforma em ordem jurídica universal capaz de englobar as outras ordens jurídicas

estaduais e nelas exercer o poder de delegação legislativa. O resultado atingido é o mesmo

que se alcançaria através do primado da ordem jurídica internacional – a unidade

gnoseológica168 do Direito em vigência. Contudo, no caso da primazia do Direito

Internacional, o ponto de partida da construção é o próprio Direito Internacional, ao passo

que, na hipótese da prevalência da ordem jurídica estadual, a construção é culminada por

qualquer ordem jurídica estadual, cabendo a ressalva pela qual deve ser uma de cada vez.

Somente quando a construção da relação entre Direito Internacional e Direito Estadual

168[...] A Gnoseologia é a parte da Ontognoseologia que trata da validade do conhecimento em função do sujeito cognoscente. [...] Até que ponto o homem pode conhecer com certeza? Como é que o homem pode conhecer? Estes problemas, no entanto, não eram considerados problemas fundamentais, ou melhor, logicamente anteriores aos demais, mas subordinados a outros a que a Filosofia dava maior atenção e que eram os problemas ligados à compreensão do ser, ou melhor, do ser enquanto ser: - o problema do conhecimento pôs-se [...] como problema de natureza metafísica. A Filosofia clássica e a metafísica não desenvolveram, por isso, uma teoria do conhecimento autônoma, e cuidaram de suas questões de maneira secundária, complementar, ou implícita, como decorrência de prévios problemas ontológicos (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2009). A passagem ora citada compõe aprofundado estudo sobre Gnoseologia que contém menção aos principais autores responsáveis pela sua evolução e consolidação, dentre eles Immanuel Kant, René Descartes, Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, Gottfried Wilhelm von Leibniz e Bertrando Spaventa.

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tomar como início a ordem jurídica estadual, é que se haverá de chegar, obrigatoriamente, à

alegação de predominância dela.

Ainda, o conteúdo do Direito Estadual se mantém intocável, tal como o do Direito

Internacional, a partir da edificação da relação de intersecção entre eles. Saliente-se que,

para Hans Kelsen169, estar-se-ia defronte de um abuso das correntes monista nacionalista e

monista internacionalista quando delas são extraídas soluções que apenas poderão ser

adotadas tendo por base ou o Direito Internacional Positivo ou o Direito Estadual Positivo.

Os adeptos da teoria do primado do Direito Internacional defendem que, dentro

deste contexto, o Direito Internacional está supra-ordenado ao Direito Estadual, ocupando o

posto de ordem jurídica mais elevada. Em consequência, na eventualidade de conflito entre

os dois, o Direito Internacional desfruta de superioridade, prevalência diante do Direito

Estadual, incutindo a anulação das regras deste que contradigam aquele.

A Teoria Pura do Direito acredita configurar-se grande equívoco, asseverar-se

que, ante o caráter de ordem jurídica mais elevada, conferido ao Direito Internacional,

existiria conflitos entre este o Direito Interno. Não deve ocorrer um conflito na espécie,

porque uma norma do Direito Estadual não pode ser nula, mas sim e somente anulável. A

anulabilidade dela se opera em função da contradição com o Direito Internacional

(Völkerrechtswidrigkeit)170 e se ele ou o Direito Estadual organizar um processo específico e

que conduza à almejada anulação. Entretanto, o procedimento requerido não foi previsto até

agora pelo Direito Internacional. É seguro, porém, averbar que o fato de o Direito das

Gentes ser idealizado como localizando-se acima do Direito Estadual não autoriza justificar

a ausência de uma norma particular que realmente institua o processo necessário.

A superioridade do Direito Internacional permite, segundo Hans Kelsen, avalizar

que a soberania do Estado é fundamentalmente limitada e, por isto, há a estabilização de

uma sociedade mundial eficaz. O primado sobre o qual ora se versa desenvolve papel

decisivo na ideologia política do pacifismo. Perceba-se que a soberania do Estado, que

resta vergastada pelo Direito Internacional, diferencia-se absolutamente da soberania do

Estado que se queda limitada por aquele ramo do Direito. A primeira significa autoridade

jurídica suprema e a segunda liberdade estatal de ação, atuação. A restrição desta última se

dá de igual maneira quer seja o Direito Internacional ordem jurídica supra-estadual, quer

seja ele componente da ordem jurídica estadual. A existência de uma comunidade

internacional eficaz é viável mediante utilização das duas construções.

O autor austríaco em evidência afirma também que da máxima de que o Direito

Internacional apenas vale por força de seu reconhecimento pelo Estado extrai-se que ele é

169KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 170KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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soberano e não está obrigatoriamente sujeito aos tratados que assinar. Não se compatibiliza

com sua natureza, obviamente, a sua submissão a decisões de um tribunal internacional

com jurisdição inafastável e vinculante, mesmo que este órgão e o processo por ele

codificado venham previstos em pacto celebrado pelo Estado. A supremacia do Direito

Interno e a perpetuação da soberania auxiliariam na ideologia imperialista.

No entanto, continua o integrante da Escola de Viena, uma vez que a ordem

nacional reconheceu o Direito Internacional, vale, no que se refere a ela, o mesmo que se

ele vigorasse como ordem jurídica supra-estatal. Logo, utiliza-se a regra do Direito

Internacional, segundo a qual os Estados ficam atrelados aos tratados por eles realizados,

qualquer que seja o seu conteúdo. Não merece prosperar, assim, o argumento de que certo

conteúdo deve ser excluído de determinada norma do acordo internacional, pois

inconciliável com a natureza do Estado participante e sua soberania. Ao contrário, são

plenamente harmônicos o fato de a soberania do Estado não ser limitada por qualquer

Direito Internacional disposto acima dele e a situação de que o Estado, em função daquela,

reconhece o Direito Internacional e o recepciona como parcela da ordem jurídica interna,

restringindo, ele próprio, sua liberdade de ação e convocando para si o ônus de adimplir

obrigações estabelecidas pelo Direito Internacional em geral e pelos tratados por ele

finalizados.

A elucidação do ponto até o qual o governo poderá ou deverá limitar a liberdade

de ação do Estado, mediante tratados internacionais, é questão política, não dependendo,

pois, do primado do Direito Internacional ou da supremacia do Direito Nacional.

Em tempo, Rebecca M. M. Wallace171 sustenta, diferenciando monistas e

dualistas, que: os primeiros concebem o Direito como uma unidade e as normas

internacionais e nacionais partes integrantes de um mesmo ordenamento jurídico; na

situação de conflito entre elas, a maior parcela dos monistas aduz que o Direito

Internacional deve predominar; os segundos visualizam no Direito Interno e no Direito

Internacional duas ordens independentes entre si; os dois sistemas, sob este ponto de vista,

regulamentam distintas matérias – o Direito Internacional disciplina as relações de Estados

soberanos, enquanto o Direito Interno rege os assuntos internos dos Estados, por exemplo,

o relacionamento do Poder Executivo com os indivíduos e o comportamento entre cidadãos;

os dualistas consagram que os dois sistemas são mutuamente excludentes e não

preservam nenhum ponto de contato ou interferência um no outro; o Direito Internacional só

é aplicado ao Estado se ele expressamente incorporou os dispositivos externos ao seu

Direito Externo.

171PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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E, André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros172 esclarecem que, diante da

existência de duas ordens jurídicas, uma internacional e outra estadual, ou se entende que

elas são independentes entre si e, pois, precisam de normas específicas sobre a sua

relação recíproca (dualismo ou pluralismo) ou se atesta, ao invés, que o Direito constituiu

uma unidade da qual ambas são simples manifestações, restando a validade das normas

interna e internacional condicionada a uma fonte a elas comum (monismo). A construção

monista se subdivide, conforme der preferência à norma interna ou à norma internacional,

em monismo com primado do Direito Interno ou monismo com primazia do Direito

Internacional. Repete-se que para os dualistas, a norma interna vale independentemente da

regra internacional, mas a norma internacional vige, quando for recebida pelo ordenamento

jurídico nacional, ou seja, depois de transformada em lei interna. A simples ratificação não é

capaz de fomentar esta recepção.

Hans Kelsen173 elucida que a antítese entre as correntes dualista e monista pode

ser comparada à divergência das teses acerca do universo formuladas por Ptolomeu

(Geocentrismo) e Copérnico (Heliocentrismo). Se, para uma das concepções o Estado é o

centro do Direito Mundial, na visão de Ptolomeu, igualmente, a Terra é o centro ao redor do

qual o Sol gira. Se, para a outra teoria, o Direito Internacional é o centro do Direito Mundial,

da mesma forma, segundo Copérnico, o Sol é o centro ao redor do qual a Terra gira. O

contraste entre as duas ideologias astronômicas do universo é somente entre dois diferentes

sistemas de referências. Esta verdade é empregada às duas doutrinas concernentes à

relação entre Direito Interno e Direito Internacional. Logo, a oposição entre elas recai na

distinção entre os dois citados ramos do Direito. Um deles está baseado na ordem jurídica

de um Estado específico e outro encontra esteio na ordem jurídica internacional. Os dois

sistemas se mostram corretos e justificáveis. Aquele que prega a ideia de soberania do

Estado escolherá a primazia da ordem jurídica nacional, ao passo que o que valoriza o

conceito de organização jurídica do mundo se decidirá pelo predomínio do Direito

Internacional.

Arnaldo Süssekind174, também buscando delinear as teorias em análise, ensina

que no monismo não há independência, mas interdependência entre a ordem jurídica

internacional e a nacional, motivo pelo qual a ratificação de um tratado por um Estado

significa a introdução de suas normas ao ordenamento e sistema jurídico interno. No

dualismo, porém, as duas ordens jurídicas, internacional e interna, são autônomas e não há

confusão, mistura entre elas. A ratificação do tratado traduz o compromisso de legislar

172PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 173KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 174SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. São Paulo: Ltr, 1983.

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consoante a avença firmada, sob pena de responsabilidade do Estado no âmbito

internacional. A complementação ou modificação da legislação nacional demanda um ato

formal por parte do Poder Legislativo estatal.

A norma pacta sunt servanda175, utilizada quando do desenvolvimento do

pensamento de Hans Kelsen, guarda por fundamento jurídico o ato soberano do Estado de

obrigar-se através de um pacto internacional, salientado-se que o contexto mundial exige

uma maior união de países nos planos internacional e regional.

2.3 O Direito Internacional e o Direito Interno – correntes doutrinárias

alternativas ao Dualismo e Monismo

O dualismo e o monismo repercutiram no nascimento de outras variadas teorias

que almejaram conciliar as duas teses e vieram a ser designadas conciliadoras.

Nesse diapasão, ganham proeminência certos autores espanhóis que

patrocinam a independência entre as duas ordens jurídicas, interna e internacional, mas

evidenciam que elas estão sob a coordenação do Direito Natural. Trata-se da instituição do

primado do Direito Natural. É a corrente encabeçada por Antonio de Luna, Adolfo Miaja de la

Muela, Mariano Aguilar Navarro e Antonio Truyol y Serra. O último autor acentuava que a

solução para a questão examinada só é localizada através de um equilíbrio harmônico entre

o Estado e a Comunidade Internacional. A responsabilização do Estado por edição de

norma contrária ao Direito Internacional se legitima, ainda que a norma interna seja

obrigatória para os órgãos e cidadãos estatais. Das normas internacionais emanam efeitos

jurídicos na ordem interna independentemente de qualquer ato nacional de transformação,

bastando, porém, uma recepção geral pelo Poder Legislativo pátrio.

Não se olvide também o pensamento de Gustav Adolf Walz, que exalta um

pluralismo com subordinação parcial. Para ele, o Direito Internacional se destina aos

Estados ou entidades análogas, não interferindo no Direito Interno, pois as duas ordens

jurídicas são independentes. Há duas espécies de Direito Internacional – (1) Direito

Internacional originário, real Direito Internacional, o qual guarda autoridade imediata sobre

os Estados e outras entidades análogas, estando a responsabilidade coletiva relacionada a

ele e (2) Direito Internacional derivado, que possui validade interna em razão de uma norma

estatal e cujo conteúdo alinha-se às coletividades e aos indivíduos.

A regra é a de que o Direito Internacional Originário não deve ser aplicado pelos

tribunais nacionais, ao passo que o Direito Internacional Derivado é empregado por

autoridades e tribunais nacionais à semelhança do Direito Interno. Esta subcategoria serviria

175PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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de elo entre o Direito Internacional e o Direito Interno, estando visível a ligação do

entendimento narrado com o monismo e o dualismo. Adolf Walz suscitava uma autonomia

mantida pelas duas ordens, porém autorizava que uma parte do Direito Interno estivesse

submetida ao Direito Internacional, sendo exemplo disto o instituto da responsabilidade

internacional. O entendimento ora apresentando não gozou de aceitação na doutrina,

destacando-se que há quem preceitue ser ele carecedor de razão de ser e de respaldo na

prática internacional.

De outra banda, na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)

surgiu teoria que abandonou o monismo caracterizado pelo primado do Direito Interno

sustentando que ele nega o Direito Internacional e é incompatível com a doutrina da

coexistência pacífica. Mironov demonstra, à semelhança de Korovine e da Academia

Soviética de Ciência, ambos citados e analisados em linhas anteriores, que o Direito

Internacional e o Direito Interno possuem igual valor e estão unidos por um elo indivisível,

porém um tratado revoga a lei interna anterior e a lei interna posterior retira a voz de um

acordo anterior. A unidade de conduta da URSS, de acordo com Mironov, impede a

formulação de conflitos entre as duas ordens jurídicas.

Os estudiosos recentes, dentre eles Celso D. de Albuquerque Mello176, criticam

referido autor, pois (1) normas costumeiras, sendo geral são obrigatórias

independentemente do consentimento do Estado, ao menos as já em vigência quando do

aparecimento do Estado dentro da sociedade internacional, (2) o elo indivisível é a

superioridade do Direito Internacional e (3) tal unidade de conduta se revela impossível em

Estados em que haja uma separação efetiva dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Celso D. de Albuquerque Mello177, citando ensinamento de Klaus Stern,

preconiza que as teorias atualmente são moderadas. Ele elenca três modelos de inserção

do Direito Internacional no Direito Interno, a saber – (1) teoria da transformação na qual o

Direito Internacional necessita ser convertido em Direito Interno (Constituição dos Estados

Unidos da América); (2) teoria da execução que exige um ato intraestatal; a norma

internacional não é comutada, continuando a constituir Direito Internacional e, por último, (3)

teoria da incorporação ou da adaptação que confere validade imediata, no Direito Interno, ao

Direito Internacional; os órgãos estatais efetuam atos meramente declaratórios.

176MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 177MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

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2.4 O Direito Internacional e o Direito Interno nas Constituições – Estudo

Comparado

É sabido e resabido que, a primeira norma constitucional a conceber o Direito

Internacional enquanto componente do Direito Interno e a contemplar indicadores de que ele

detém superioridade, supremacia ante a ordem jurídica nacional, compunha o artigo 4º, da

Constituição de Weimar (1919), que cristalizava que as regras universalmente reconhecidas

de Direito Internacional eram elementos obrigatórios e vinculantes do Direito Imperial

Alemão178. Originariamente, o texto do dispositivo, de acordo com a ata da terceira sessão

da Comissão Constituinte, datada de 03 de março de 1919, dizia que, para as relações entre

o Império Alemão e os Estados Estrangeiros, vigiam os tratados e convênios internacionais,

as regras reconhecidas de Direito Internacional geralmente aceitas e, se o Império

ingressasse na Sociedade de Nações, as disposições do ato que a regulava.

Alfred Verdross179 salienta que a fórmula escolhida pela Constituição de Weimar

oferecia um risco, pois poderia dar a falsa sensação de que a validade externa do Direito

Internacional dependeria de tal Magna Carta. O ramo do Direito em evidência vigeria, então,

apenas para aqueles Estados que houvessem reconhecido suas normas. Mas, é viável

também seguramente entender mencionada escolha legislativa como um sinal de que a

Constituição sedimentou a supremacia do Direito Internacional ao se submeter à sua

ordenação.

A recepção de uma lei por um regramento ou decisão judicial não significa uma

delegação daquela, mas sim o fato de que eles dois a invocam e se colocam sob sua

autoridade. Quando uma Constituição reconhece o Direito Internacional, isto quer dizer, por

igual, que ela se reporta e se sujeita a ele.

O artigo 9º, (1) da Constituição Austríaca de 1920, mantido pelas alterações

constitucionais que entraram em vigor, respectivamente, em setembro de 2013 e janeiro de

2014, elucida, à semelhança do artigo 4º, da Carta Magna Weimariana de 1919, que as

regras universalmente reconhecidas de Direito Internacional valem como parte integrante do

Direito Federal180 181.

178Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechts gelten als bindende Bestandteile des deutchen Reichrechts. Die Verfassung des Deutschen Reiches. Disponível em www.documentarchiv.de. Acesso em 19-10-2013. A tradução inglesa da Constituição do Império Alemão está armazenada em http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php#First Chapter. Acesso em 19-10-2013. 179VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 180Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechtes gelten als Bestandteile des Bundesrechtes. Bundes-Verfassungsgestz – Stand 1. September 2013. Disponível em www.bka.gv.at. Acesso em 23-10-2013. 181Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechtes gelten als Bestandteile des Bundesrechtes. Bundes-Verfassungsgestz – Stand 1. Jänner 2014. Disponível em www.bka.gv.at. Acesso em 23-10-2013.

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E, o Preâmbulo da Lei Maior Francesa de 27 de outubro de 1946, mantido pela

Carta de 04 de outubro de 1958, que a sucedeu, e atualizada pela Revisão Constitucional

de 23 de julho de 2008, esclarece que a República, fiel às suas tradições, está em

conformidade com as normas de Direito Internacional Público. Ela não empreenderá guerras

objetivando conquista e jamais empregará suas forças contra a liberdade de algum povo182.

Da mesma maneira, o artigo 10 da Constituição Italiana de 01 de fevereiro de

1948 aduz que o ordenamento jurídico do país se amolda às normas de Direito Internacional

universalmente reconhecidas183.

A interpretação de que as normas constitucionais, ao admitirem o Direito

Internacional, estão se curvando a ele, se mostra um tanto supérflua, pois a validade dele,

na comunidade formada pelos Estados, depende unicamente da Constituição de dita

sociedade e não da Lei Maior deste ou de outro Estado. Em contrapartida, as Cartas

Estatais podem e devem conter normas sobre a validade interna do Direito Internacional, ou

seja, regras acerca da execução das normas jurídico-internacionais dentro de um Estado. O

ramo do Direito em estudo demanda do signatário do tratado o cumprimento de suas

obrigações, sem, contudo, disciplinar a modalidade de adimplemento delas. É daí que se

permite, então, que as Constituições Estatais regulem a incidência, na prática, da normativa

internacional, o que dá origem a dois sistemas diferentes.

O primeiro se embasa na ideia de que toda norma jurídico-internacional, vista em

particular, para ser aplicada por tribunais e pelos órgãos administrativos, deve se tornar

efetiva através de lei ou regulamento. O procedimento ora noticiado é designado

transformação do Direito Internacional em Direito Interno. Na realidade, não ocorre

transformação, mas início de execução de uma norma superior pela norma inferior. Este

fenômeno é necessário, porque a maior parte das normas jurídico-internacionais não criam

órgãos cuja tarefa é a utilização da norma alienígena, porém confiam a sua execução aos

Estados. A esta característica deve-se acrescentar que o conteúdo da norma comunitária é

invariavelmente impreciso, equívoco, o que torne imperioso que o Estado reserve ao seu

Poder Central, mediante legislação interna, a atividade de determiná-lo, não o entregando

ao arbítrio de cada tribunal seu ou autoridade administrativa.

O modelo acima, denominado por Alfred Verdross de sistema de execução

interna individual do Direito Internacional Público, ganhou guarida no período histórico

do Absolutismo e, após, nas modernas ditaduras.

182La République française, fidèle à ses traditions, se conforme aux règles du droit public international. Elle n'entreprendra aucune guerre dans des vues de conquête et n'emploiera jamais ses forces contre la liberté d'aucun peuple. Disponível em www.conseil-constitutionnel.fr. Acesso em 19-10-2013. 183L'ordinamento giuridico italiano si conforma alle norme del diritto internazionale generalmente riconosciute. Disponível em www.governo.it/Governo/Costituzione/principi.html. Acesso em 20-10-2013.

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Ao contrário, o segundo sistema, que obteve força e aceitação na época das

monarquias constitucionais e foi beneficiado pela independência dos tribunais, recebeu o

título de sistema de execução interna geral das normas jurídico-internacionais

universalmente aceitas. Este atribuía aos órgãos jurisdicionais o poder de aplicar normas

de Direito Internacional comum sem ter de esperar sua execução por uma lei do Estado.

William Blackstone (Commentaries on the Law of England – Comentários às Leis da

Inglaterra) aduz, no século XVIII, que em Estados Monárquicos, a Lei das Nações – o Direito

das Gentes - naquilo que contradiz ou não é previsto pelo Direito Nacional, é imposto pelo

Poder Real: porém, desde que o Poder Real não pode, na Inglaterra, introduzir uma nova lei

ou suspender a execução da antiga, a Lei das Nações é adotada e tida como Direito

Interno184.

Não é exclusivamente, destaque-se, no âmbito jurídico anglo-saxão, que há

emprego imediato, pelos tribunais nacionais, do Direito Internacional. Ele acontece

frequentemente no continente europeu. O Supremo Tribunal Imperial Alemão fazia, desde

muito, incidir diretamente vários princípios de Direito Internacional que nunca tinham sofrido

transformação em lei alemã.

Em função da existência da teoria pregando a separação e autonomia entre o

Direito Internacional e o Direito Interno, o Ministro do Interior da Alemanha, Hugo Preuss,

introduziu, no Projeto da Constituição de Weimar de 1919, a disposição colacionada

pregressamente (Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechts gelten als bindende

Bestandteile des deutschen Reichrechts), justamente almejando garantir a aplicação direta e

interna do Direito Internacional Público. A Comissão Constituinte, responsável pela

elaboração desta Carta, interpretou, inicialmente, mal a proposta formalizada e, em uma

primeira análise, acentuou unicamente a validade externa do Direito Internacional Público.

Depois de ser avisada por Alfred Verdross sobre o equívoco cometido, referido

órgão não só aceitou a sugestão governamental, mas também declarou, através de seu

presidente, Conrad (Konrad) Haussmann, que desejava a validade interna e externa do

Direito Internacional Público. A intenção do Poder Constituinte Alemão, ao editar o artigo 4º,

da Constituição de Weimar, não era a de conferir primazia ao Direito Interno, mas tornar

viável imediatamente a incidência das normas de Direito Internacional Público na esfera

estadual. O dispositivo em comento, bem como o artigo 9º, da Constituição Federal da

Áustria não chegam a configurar efetivamente uma inovação, no entanto retratam uma

184In arbitrary states this law, wherever it contradicts or is not provided for by the municipal law of the country, is enforced by the royal power: but since in England no royal power can introduce a new law, or suspend the execution of the old, therefore the law of nations […] is here adopted in it's full extent by the common law, and is held to be a part of the law of the land. Disponível em http://avalon.law.yale.edu/18th_century/blackstone_bk4ch5.asp. Acesso em 20-10-2013. A obra de William Blackstone está armazenada na íntegra também em www.lonang.com/exlibris/blackstone/bla-405.htm. Acesso em 20-10-2013.

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codificação de princípio que anteriormente se havia elaborado nos julgamentos dos tribunais

nacionais e independentes.

A doutrina recomenda185, todavia, que o princípio da aplicabilidade imediata do

Direito Internacional Público pelo Poder Judiciário Interno, não o impede de aplicar a norma

internacional ainda que se oponha à norma estatal. É correto que os tribunais têm o dever

de interpretar todos os institutos jurídicos nacionais à luz do Direito Internacional Público,

porém se este ato de hermenêutica não atingir o afastamento da contradição, os

magistrados estaduais precisarão garantir incidência prefacialmente à lei interna.

Em tempo, da mesma maneira se aduz a nível doutrinário186 que, ao serem

recepcionadas como Direito Interno, as normas internacionais são, em verdade,

equiparadas a ele, assumindo, pois, o mesmo nível hierárquico que suas próprias

disposições normativas. Isto em nada afeta ou prejudica as conclusões expostas acima,

principalmente, as relativas à submissão da ordem jurídica interna à ordem jurídica externa,

efeito típico da recepção, como Direito Nacional, das normas de Direito Internacional.

Somente quer simbolizar, para os que sustentam citada corrente, que uma norma jurídico-

internacional pode ser revogada internamente por uma norma legal que lhe seja posterior (é

o uso do princípio comum, tradicional de solução de antinomias aparentes lex posterior

derogat legi priori).

O artigo 25187, da Constituição Federal Alemã, Lei Fundamental de Bonn, de 25

de maio de 1949, na linha do artigo 67188, da Constituição do Estado de Hessen, datada de

01 de dezembro de 1946, impede o emprego da máxima supra e assenta que as regras

gerais do Direito Internacional Público são parte integrante do Direito Federal, sobrepondo-

se às leis e constituindo fonte direta de direitos e obrigações para os habitantes do território

federal.

Hans D. Jarass189, refletindo acerca do dispositivo indicado, compreende que o

Direito Internacional Público abarca, de um lado, a totalidade de regras sobre o

185VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 186VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 187Die allgemeinen Regeln des Völkerrechtes sind Bestandteil des Bundesrechtes. Sie gehen den Gesetzen vor und erzeugen Rechte und Pflichten unmittelbar für die Bewohner des Bundesgebietes (Nomosgesetze – Öffentlichesrecht. 19 Auflage. Baden Baden: Nomosverlaggesellschaft, 2010). 188Die Regeln des Völkerrechts sind bindende Bestandteile des Landesrechts, ohne daß es ihrer ausdrücklichen Umformung in Landesrecht bedarf. Kein Gesetz ist gültig, das mit solchen Regeln oder mit einem Staatsvertrag in Widerspruch steht (Disponível em www.rv.hessenrecht.hessen.de. Acesso em 23-10-2013). Em português - As normas de Direito Público são componentes vinculantes do Direito Nacional, sem a necessidade de sua transformação explícita em Direito Nacional. Nenhuma regra, que seja contrária a estas normas ou a um tratado internacional, é válida. 189Darunter ist einerseits die Gesamtheit der Regeln über die Beziehung zwischen Staaten und anderen Völkerrechtssubjekten ins. Internationalen Organisationen (in eingeschränktem Umfang auch von Individuen) und anderseits das interne Recht zu verstehen (Herdegen MD 14) (JARASS, Hans;

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relacionamento entre os Estados e outros sujeitos de Direito Internacional Público,

especialmente organizações internacionais, ou, em um sentido limitado, também indivíduos,

e, por outro, o próprio Direito Interno delas.

Quanto à validade nacional e aplicação do Direito Internacional Público, o autor

alemão, assevera, na esteira do julgado BVerfGE 111, 307/318, proferido em 14/10/2004

pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, que o Direito Internacional Público e o

Direito Nacional constroem, segundo a maioria doutrinária e jurisprudencial, em sintonia com

a teoria dualista, e diversamente da corrente monista, duas esferas distintas do Direito190.

A validade interna do Direito Internacional Público depende de um ato estatal

que a autorize. O Tribunal Constitucional fala reiteradas vezes acerca da necessidade de

uma Instrução de Aplicação do Direito Internacional Público, o que conduz à predominante

Teoria da Execução para utilização dele como Direito Estatal. Em contrapartida, pela Teoria

da Transformação, a norma de Direito Internacional Público é convertida, através de um ato

de atribuição de validade, em Direito Interno. As duas abordagens são entendidas

restritivamente e levam a resultados convergentes. A Teoria da Execução acarreta, do

ponto de vista dogmático, uma atuação mais justa e pautada na observação, quando da

interpretação dos textos normativos envolvidos, dos princípios do Direito Internacional

Público. O Tribunal Constitucional Alemão vem se inclinando hoje à aceitação desta

fórmula191.

Ademais, Hans D. Jarass aduz conter o artigo 25 da Constituição Federal da

Alemanha, para as normas gerais, universais de Direito Internacional Público, uma Instrução

de Aplicação, ou, especificamente, menção à técnica da transformação (comando comum

de utilização), o que leva à validade da norma internacional no âmbito interno. Os outros

dispositivos de Direito Internacional Público que não se enquadram na definição trazida pelo

artigo em questão demandam, ao contrário, um procedimento de aplicação independente.

PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012). 190Völkerrecht und nationales Recht bilden nach ganz hM entspr. der dualistischen und entgegen der monistischen Sicht zwei unterschiedliche Rechtskreise (etwa BVerfGE 111, 307/318) (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012). 191Die innerstaatliche Geltung des Völkerrechts hängt davon ab, ob ein inerstaatlicher Akt dies anordnet […]. Das BVerfGE spricht insoweit regelmässig von Rechtsanwendungsbefehl […]. Dieser Befehl führt entspr. der überwiegend vertretenen Vollzugstheorie zur Anwendung des Völkerrechts als solsches im Inland […]. Demgegenüber wird nach der Transformationstheorie das Völkerrecht durch die Geltungsanordnung in innerstaatliches Recht umgewandelt [...]. Die beiden Ansätze werden überwiegend restriktiv verstanden und führen dann im Wesentlichen zu übereinstimmenden Ergebnissen […]. Die Vollzugstheorie ist aber dogmatisch leistungsfähiger, etwa hinsichtig der Beachtung völkerrechtlicher Prinzipien bei der Auslegung […]. Auch das BVerfG dürfte heute diese Theorie zuneigen […] (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012).

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No domínio do artigo 59, parágrafo 2º, 1ª parte192, é exigida uma regulamentação mediante

Lei Federal. Apesar da apontada Instrução de Aplicação do Direito Internacional Público,

uma prescrição dele às autoridades e tribunais nacionais não é aplicável, por si só,

imediatamente, na hipótese dela mesma estabelecer que a sua incidência pressupõe a

edição de atos, leis, nacionais ou que o Direito Nacional requer uma concretização193.

A doutrina alemã194 preconiza que sob a expressão regras gerais de Direito

Internacional Público são imaginados preceitos que valem universalmente, gozam, pois, de

reconhecimento por uma predominante maioria de Estados. É crucial a verificação do

aproveitamento, entre os Estados, das decisões dos Tribunais Internacionais. Em geral o

artigo 25 incide relativamente às normas de Direito Internacional Público que vinculem a

Alemanha. Normalmente compreende o artigo constitucional o Direito Internacional Público

obrigatório. À semelhança, a cláusula em destaque vige, outrossim, para as normas

universais de Direito das Gentes editadas posteriormente à promulgação da Constituição

Federal de 1949.

O Direito dos Tratados padece, declara Hans D. Jarass, segundo o artigo 25, da

Constituição Alemã, à exceção de suas normas universalmente aceitas, de falta de

aplicação geral, também na hipótese do acordo ter sido assinado pela maioria dos Estados.

No que diz respeito à recepção, à Instrução de Aplicação e à Regra da Transformação das

outras normas de Direito Internacional Público, não gerais ou universais, o artigo 59,

parágrafo 2º, da Carta Alemã, é lei especial (lex specialis).

O Jus Gentium pode conter, sem dúvida, regras de Direito Consuetudinário às

quais o artigo 25 se impõe. A condição para isto é que o regramento em discussão seja

considerado Direito Convencional e, igualmente, Direito Consuetudinário. De mais a mais,

no caso de conflito, o Direito Internacional Público avança, como regulamento especial,

192Verträge, welche die politischen Beziehungen des Bundes regeln oder sich auf Gegenstände der Bundesgesetzgebung beziehen, bedürfen der Zustimmung oder der Mitwirkung der jeweils für die Bundesgesetzgebung zuständigen Körperschaften in der Form eines Bundesgesetzes [..] (Nomosgesetze – Öffentlichesrecht. 19 Auflage. Baden Baden: Nomosverlaggesellschaft, 2010). Em português - Os tratados que regulem as relações políticas da Federação ou envolvam matérias da legislação federal, requerem a aprovação ou a intervenção dos respectivos órgãos competentes de legislação federal, sob a forma de uma lei federal (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em www.brasil.diplo.de. Acesso em 29/102013). 193Für den allgemeinen Regeln des Völkerrechts enthält Art. 25 den Vollzugsbefehl bzw. die

Transformation, den generellen Rechtsanwendungsbefehl (BVerfGE 46, 342/363), der zu innerstaatlichen Geltung führt. Das sonstige Völkerrecht bedarf dagegen eines eigneständiges Rechtsanwendungsbefehls. Im Bereich des Art. 59 Abs.2 S1ist eine bundesgestzliche Regelung notwendig […]. Trotz Rechtsanwendungsbefehl, ist eine völkerrechtliche Vorschrift von Behörden un Gerichten nicht (unmittelbar) anwendbar bzw. nicht unmittelbar vollzugsfähig (nicht self-executing), wenn bereits die völkerechtliche Norm deutlich werden lässt, dass ihre Anwendung den Erlass weiterer Akte (etwa nationaler Gesetze) vorausetzt oder nationales Recht […] eine Konkretisierung erfordert […] (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012). 194JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012.

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perante o Direito Costumeiro, contanto que este não seja classificado como Direito

Internacional Público obrigatório.

Às normas universalmente reconhecidas de Direito das Gentes são

acrescentadas, quase sempre, regras de Direito Consuetudinário, que remontam, por sua

vez, a uma suficiente prática entre Estados, ou seja, a uma duradoura e uniforme atuação

sedimentada na participação deles eivada de confiança e representatividade. Por trás

disto encontra-se a concepção de que se deve negociar dentro dos mandamentos,

permissões ou necessidades do Direito Internacional.

A compatibilidade ou não de certa norma com o Direito Consuetudinário, bem

como o fato de se ele se trata de um princípio jurídico ou não, são deliberações do Direito

Internacional Público. A investigação da prática estatal dependente do ajuste dos órgãos

competentes até onde a sua conduta for considerada vinculada diretamente ao ramo do

Direito em apreço. É de se atribuir, conforme anteriormente anunciado, aliás, especial

deferência às decisões dos Tribunais Internacionais. Se mostra decisivo o contexto atual e

não aquele de 1949. Estará compreendido sozinho o Direito Costumeiro universalmente

válido e não, portanto, o Direito Consuetudinário regional.

Os princípios de Direito Internacional Público, universalmente aceitos, se

enquadram no artigo 25. Em razão disto são endereçados princípios jurídicos que se

encontram em conformidade com a ordem legal interna e influenciam, contagiam o trânsito

relacional entre Estados. Eles assumem natureza suplementar, especialmente auxiliando

nas atividades de interpretação e preenchimento de lacunas195.

Na esteira da decisão da Corte Permanente de Justiça Internacional, datada de

03 de março de 1928, no caso das Reclamações Pecuniárias dos Ferroviários de Dantzig

(incorporados ao serviço público polonês pelo Beamtenabkommen – Acordo de Oficiais),

examinada às fls. XX, § 2º, deste trabalho, e do artigo 25, da Constituição Federal da

Alemanha de 1949, agora em discussão, atesta a doutrina que as regras universais de

Direito Internacional Público produzem diretamente direitos subjetivos e deveres válidos aos

cidadãos estatais, na medida em que a norma internacional assim preveja direta ou

indiretamente. Adiciona-se a isto o requisito da prescrição, instituído pelas doutrina e

jurisprudência alemãs, através do qual o Direito Federal, há de prescrever, à igualdade,

estes deveres.

195Die allgemein anerkannten Rechtsgrundsätze des Volkerechts fallen unter Art. 25 (BVerfGE 96,

68/86; 109, 38/53; 117, 141/149; 118, 124/134; Streinz SA 35, Koenig MKS 23; a.A. Schweitzer 265). Damit sind Rechtsprinzipien angesprochen, die übereinstimmend in den innerstaatlichen Rechtsordnung zu finden und auf den zwischenstaatlichen Verkehr übertragbar sind (Pernice DR 22; Hobe FH 25). Sie haben ergänzenden Charackter, insb. für die Ausegung und Lückenfüllung […] (JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar.

München: C.H. Beck, 2012).

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No cenário aduzido, teoriza Hans Jarass196, os deveres internacionalmente

cristalizados são também diretamente aplicáveis. O artigo 25, 2ª parte, ao garantir, para os

habitantes do território nacional (Bewohner des Bundesgebietes), a titularidade de direitos e

deveres, está, na realidade, fazendo menção a todas as pessoas naturais e jurídicas que se

guardam residência no país.

O Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao julgar os processos n. 2BvR

2660/06 e 2 BvR n. 487/07, na data de 13/08/2013, ambos versando sobre o direito à

indenização das vítimas de um ataque da OTAN, em 30/05/1999, à cidade sérvia de

Varvarin, assenta que o artigo 3º197, do IV Pacto de Haia, não constrói fundamentalmente

qualquer pretensão individual a compensações, mas positiva apenas os princípios

universais internacionais acerca do dever de responsabilização entre os Estados

contratantes. Esta pretensão à reparação de danos impera unicamente dentro das relações

internacionais mantidas pelos Estados afetados e se diferencia da pretensão primária das

pessoas envolvidas à observância das proibições do Direito Internacional Humanitário. A

história de formação da norma sob enfoque mostra, muito embora, que ela se dirige à

proteção dos indivíduos e, portanto, se presta a tutelar, indiretamente, direitos individuais.

Daí não advém que o artigo 3º sirva de fundamento a uma pretensão reflexa, internacional,

à indenização e reparação, oponível pelos cidadãos atingidos contra certo Estado.

Com efeito, o artigo 100, parágrafo 2º198, da Constituição Federal da Alemanha,

impõe que o Tribunal inferior solicite decisão do Tribunal Constitucional Federal, na hipótese

de surgirem dúvidas num litígio, acerca de se uma norma do Direito Internacional Público é

parte integrante do Direito Federal e gera, então, diretamente, direitos e deveres para o

indivíduo (artigo 25).

A Corte Constitucional Alemã pode negar a existência de uma norma jurídico-

internacional. No caso do Estado afetado pela decisão afirmar que tal regra, ao contrário,

existe, a indignação deve ser solucionada juridicamente mediante um procedimento

196JARASS, Hans; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für Bundesrepublik Deutschland - Kommentar. München: C.H. Beck, 2012 197(1) Art. 3 des IV. Haager Abkommens vermittelt grundsätzlich keinen individuellen Entschädigungsanspruch, sondern positiviert nur den allgemeinen völkerrechtlichen Grundsatz [...] einer Haftungsverpflichtung zwischen den Vertragsparteien; dieser Schadensersatzanspruch besteht nur in dem Völkerrechtsverhältnis zwischen den betroffenen Staaten und unterscheidet sich von dem Primäranspruch der betroffenen Personen auf Einhaltung der Verbote des humanitären Völkerrechts [...]. Zwar zeigt die Entstehungsgeschichte der Norm, dass sie zum Schutz des Einzelnen bestimmt ist und damit mittelbar auch dem Schutz individueller Rechte dienen soll. Daraus folgt jedoch nicht, dass Art. 3 des IV. Haager Abkommens als Grundlage eines unmittelbaren, originär völkerrechtlichen Schadensersatz- und Entschädigungsanspruchs des betroffenen Individuums gegen den Staat in Betracht käme [...]. Disponível em www. www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/. Acesso em 17/11/2013). 198Ist in einem Rechtsstreite zweifelhaft, ob eine Regel des Völkerrechtes Bestandteil des Bundesrechtes ist und ob sie unmittelbar Rechte und Pflichten für den Einzelnen erzeugt (Artikel 25), so hat das Gericht die Entscheidung des Bundesverfassungsgerichtes einzuholen (Nomosgesetze – Öffentlichesrecht. 19 Auflage. Baden Baden: Nomosverlaggesellschaft, 2010).

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internacional iniciado para esta finalidade. Alfred Verdross199 ensinava que o Direito Estatal

não conseguia instituir definitivamente a predominância do Direito Internacional Público

porque não lhe era facultado afastar a possibilidade de conflitos entre os Tribunais

Supremos Estaduais e as instâncias internacionais de decisão.

Em linha parecida com a do artigo 25, da Constituição Federal da Alemanha de

1949 é identificado o artigo 55200, da Constituição Francesa de 1958 que defende possuírem

os tratados ou acordos ratificados ou aprovados regularmente, desde suas publicações,

uma autoridade superior àquela das leis, com ressalva, para cada acordo ou tratado, de sua

aplicação pela outra parte.

Thomas Buergenthal201 salienta que, apesar da redação do artigo 55 ter sido

clara no sentido de que, no caso de conflitos normativos entre a norma internacional e a

regra interna, anterior ou posterior, prevalece a primeira, a Corte de Justiça Francesa levou

quase três décadas, a partir da adoção da Constituição de 1958, para reconhecer a

supremacia dos tratados internacionais em face à legislação nacional, bem como a

possibilidade do Poder Judiciário Interno recusar aplicação à legislação posterior em

dissintonia.

Note-se que a Constituição Americana de 1787, no artigo VI, § 2º202, aduz que

ela e as Leis dos Estados Unidos, que devem ser editadas em virtude dela, assim como os

tratados celebrados, ou que serão organizados, sob a autoridade dos Estados Unidos,

devem ser a Lei Suprema do País, e todos os juízes de cada Estado Federado estarão,

assim, obrigados, ficando sem efeito as disposições em contrário, na Constituição ou nas

Leis de qualquer Estado Federado.

O artigo 15, n. 4203, da Constituição Russa de 1993, seguindo o caminho dos

artigos constitucionais citados acima, estipula que, os princípios e normas universalmente

199VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público. Traduccíon de Antonio Truyol y Serra.Edición Española. Madrid: Biblioteca Juridica Aguilar, 1974. 200Les traités ou accords régulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application par l'autre partie (Disponível em www.conseil-etat.fr/fr/presentation-des-grands-arrets/27-octobre-1995. Acesso em 10/11/2013). 201MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 202This Constitution, and the Laws of the United States which shall be made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made, under the Authority of the United States, shall be the supreme Law of the Land; and the Judges in every State shall be bound thereby, any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Contrary notwithstanding (Disponível em http://constitutioncenter.org/constitution/the-articles/article-vi-debts-supremacy-oaths. Acesso em 10/11/2013). 203Die allgemein anerkannten Prinzipien und Normen des Völkerrechts und die völkerrechtlichen Verträge der Rußländischen Föderation sind Bestandteil ihres Rechtssystems. Legt ein völkerrechtlicher Vertrag der Rußländischen Föderation andere Regeln fest als die gesetzlich vorgesehenen, so werden die Regeln des völkerrechtlichen Vertrages angewandt (Disponível em www.constitution.ru/de/index.htm. Acesso em 10/11/2013).

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reconhecidos bem como os tratados de Direito Internacional Público dos quais participe a

Federação Russa, são parte integrante de seu ordenamento jurídico. Se o tratado

internacional previr algo em contrariedade às normas internas, as regras dele serão

aplicadas.

Adicione-se que a Constituição da Bulgária de 1991, no artigo 5º (4)204 dispõe

que quaisquer instrumentos ratificados pelo procedimento constitucionalmente

esquematizado, promulgados ou colocados em vigor pela República da Bulgária são

considerados parte da legislação doméstica interna. Eles substituirão toda a legislação

nacional que prescreve divergentemente.

Em tempo, o artigo 28, § 1º205, da Constituição da Grécia de 1975, após a

revisão de 27 de maio de 2008, estatui que as normas de Direito Internacional

universalmente reconhecidas, bem como as convenções internacionais depois de sua

ratificação e entrada em vigência, segundo as suas respectivas condições, devem ser parte

integrante do Direito Grego e prevalecerão sobre qualquer previsão legal divergente. As

normas de Direito Internacional e de Convenções Internacionais serão aplicáveis aos

estrangeiros apenas sob a condição de reciprocidade.

E, o artigo 3º, itens 3 e 4206, da Constituição do Principado de Andorra de 1993,

assegura que os princípios de Direito Público Internacional, universalmente reconhecidos,

são incorporados ao seu sistema legal. Os tratados e acordos passam a ser eficazes no

ordenamento jurídico doméstico com a sua publicação no Boletim Oficial do Principado de

Andorra e não podem ser emendados ou revogados pelo Direito Interno.

Na América Latina, têm-se os artigos 137207, 141208 e 142209, da Constituição do

Paraguai, que disciplinam, respectivamente, (1) ser a Constituição a Lei Suprema da

204Any international instruments which have been ratified by the constitutionally established procedure, promulgated, and come into force with respect to the Republic of Bulgaria, shall be considered part of the domestic legislation of the country. They shall supersede any domestic legislation stipulating otherwise (Disponível em www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21362-21363-1-PB.htm. Acesso em 10/11/2013). 205The generally recognised rules of international law, as well as international conventions as of the time they are ratified by statute and become operative according to their respective conditions, shall be an integral part of domestic Greek law and shall prevail over any contrary provision of the law. The rules of international law and of international conventions shall be applicable to aliens only under the condition of reciprocity (Disponível em www. hellenicparliament.gr/UserFiles/f3c70a23-7696-49db-9148-f24dce6a27c8/001-156%20aggliko.pdf. Acesso em 11/11/2013). 2063. The universally recognized principles of international public law are incorporated into the legal system of Andorra. 4. The treaties and international agreements take effect in the legal system from the moment of their publication in the Butlletí Oficial del Principat d'Andorra and cannot be amended or repealed by law (Disponível em www.gov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21376-21377-1-PB.htm#Butlletí Oficial del Principat d'Andorra. Acesso em 11/11/2013). 207La ley suprema de la República es la Constitución. Esta, los tratados, convenios y acuerdos internacionales aprobados y ratificados, las leyes dictadas por el Congreso y otras disposiciones jurídicas de inferior jerarquía, sancionadas en consecuencia, integran el derecho positivo nacional en el orden de prelación enunciado (Disponível em www.icrc.org/ihl-nat. Acesso em 10/11/2013).

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105

República; ela, os tratados, convênios e acordos internacionais aprovados e ratificados, as

leis ditadas pelo Congresso e outras disposições de hierarquia inferior, sancionadas em

consequência, compõem o Direito Positivo Nacional, na ordem de preferência enunciada; (2)

os tratados internacionais validamente celebrados, aprovados pelo Congresso, e cujos

instrumentos de ratificação remidos ou depositados, formam parte do ordenamento legal

interno com o status que assegura o artigo 137 e (3) os tratados internacionais de direitos

humanos não poderão ser denunciados senão pelos procedimentos que vigem para a

emenda à Constituição.

Valério de Oliveira Mazzuoli210 preleciona sobre esses dois últimos dispositivos

constitucionais que, uma vez que os tratados, convênios e acordos internacionais, na

hierarquia das leis paraguaias, precedem, dentro da ordem de preferência organizada pela

Magna Carta, as normas infraconstitucionais aprovadas pelo Poder Legislativo, é possível

concluir que eles estão em posição de superioridade no ordenamento interno daquele país,

disto advindo que as demais normas do sistema jurídico paraguaio, delas se excepcionando

as constitucionais, preservam obrigatória adequação ao conteúdo dos textos normativos

internacionais. Ressalte-se que os tratados de direitos humanos são equiparados à

Constituição, detêm status de norma constitucional, pois, o artigo 142, já verificado, impede

a sua denúncia salvo se pelo mesmo procedimento disponível para emendas à Lei Maior.

Ademais, a prevalência destes artigos relativamente às normas internas, importa

que na hipótese de conflito entre tratados e leis internas, os Tribunais domésticos hão de

conferir predominância às normas convencionais internacionais.

Além da Constituição do Paraguai, até setembro de 2008, a Constituição do

Equador de 1998, no artigo 163211, indicava que as normas contidas nos tratados e

convênios internacionais, desde que promulgadas no Registro Oficial, integravam o

ordenamento jurídico da República e prevaleciam sobre leis e outras normas de hierarquia

inferior.

208Los tratados internacionales validamente celebrados, aprobados por ley del Congreso, y cuyos instrumentos de ratificación fueran canjeados o depositados, forman parte del ordenamiento legal interno con la jerarquía que determina el Artículo 137 (Disponível em www.icrc.org/ihl-nat. Acesso em 10/11/2013). 209Los tratados internacionales relativos a los derechos humanos no podrán ser denunciados sino por los procedimientos que rigen para la enmienda de esta Constitución (Disponível em www.icrc.org/ihl-nat. Acesso em 10/11/2013). 210MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 211Las normas contenidas en los tratados y convenios internacionales, una vez promulgados en el Registro Oficial, formarán parte del ordenamiento jurídico de la República y prevalecerán sobre leys y otras normas de menor jerarquia (Disponível em www.asambleanacional.gob.ec. Acesso em 11/11/2013).

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106

Eis que sobreveio, em tal país, a aprovação, no apontado mês, de nova Lei

Maior, a qual, nos artigos 84212 e 417213 passou a consagrar que (1) a Assembleia Nacional

e todo órgão com poder normativo terá a obrigação de adequar, formal e materialmente, as

leis e outras normas jurídicas aos direitos previstos na Constituição e nos tratados

internacionais e aos direitos necessários à garantia da dignidade do ser humano e das

comunidades e povos nacionais; (2) em nenhum caso, a reforma da Constituição, as leis, as

demais normas jurídicas ou os atos do Poder Público atentarão contra os direitos

reconhecidos pela Constituição; (3) os tratados internacionais se sujeitarão ao estabelecido

na Magna Carta; (4) na hipótese de tratados e outros instrumentos internacionais sobre

direitos humanos serão aplicados os princípios pró ser humano, de não restrição de direitos,

de aplicação direta e de cláusula aberta, elencados na Constituição.

É de se perceber também que o artigo 144214, da Constituição de El Salvador, de

1983, afirma que os tratados internacionais celebrados pelo país com outros Estados ou

organismos internacionais constituem leis da República ao entrar em vigência conforme as

disposições deles ou da Constituição. Mas, a lei não poderá alterar ou derrogar o avençado

em um tratado em vigência para El Salvador. No caso de conflito entre o pacto e a lei,

prevalecerá o tratado.

Em acréscimo, dentro do rol de Constituições que possuem cláusulas de adoção

das regras do Direito Internacional pelo Direito Interno com o predomínio do primeiro, insere-

se a Constituição da Guatemala de 1985, que no artigo 46215, explicita o princípio geral de

que, em matéria de Direitos Humanos, os tratados e convenções aceitos e ratificados pela

Guatemala detém preferência perante o Direito Interno.

212La Asamblea Nacional y todo órgano con potestad normativa tendrá la obligación de adecuar, formal y materialmente, las leyes y demás normas jurídicas a los derechos previstos en la Constitución y lós tratados internacionales, y los que sean necesarios para garantizar la dignidad del ser humano o de las comunidades, pueblos y nacionalidades. En ningún caso, la reforma de la Constitución, las leyes, otras normas jurídicas ni los actos del poder público atentarán contra los derechos que reconoce la Constitución (Disponível em www.asambleanacional.gob.ec. Acesso em 11/11/2013). 213Los tratados internacionales ratificados por el Ecuador se sujetarán a lo establecido en la Constitución. En el caso de los tratados y otros instrumentos internacionales de derechos humanos se aplicarán lós principios pro ser humano, de no restricción de derechos, de aplicabilidad directa y de cláusula abierta establecidos en la Constitución (Disponível em www.asambleanacional.gob.ec. Acesso em 11/11/2013). 214Los tratados internacionales celebrados por El Salvador con otros estados o con organismos internacionales, constituyen leyes de la República al entrar en vigencia, conforme a las disposiciones del mismo tratado y de esta Constitución. La ley no podrá modificar o derogar lo acordado en un tratado vigente para El Salvador. En caso de conflicto entre el tratado y la ley, prevalecerá el tratado (Disponível em www.csj.gob.sv/constitu/images/pdf/con_vige.pdf. Acesso em 11/11/2013). 215Preeminencia del Derecho Internacional. Se establece el principio general de que en materia de derechos humanos, los tratados y convenciones aceptados y ratificados por Guatemala, tienen preeminencia sobre el derecho interno (Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/. Acesso em 11/11/2013).

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À semelhança, o artigo 75, item 22216, da Constituição da Argentina de 1994,

define, similarmente, que os tratados e concordatas tem hierarquia superior à das leis. Veja-

se que este artigo declara, logo em seguida, guardarem hierarquia constitucional, nas

condições de suas vigências: (1) a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem; (2) a Declaração Universal de Direitos Humanos; (3) a Convenção Americana

sobre Direitos Humanos; (4) o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, (5) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e seu Protocolo Facultativo;

(6) a Convenção sobre Prevenção e Sanção ao Delito de Genocídio; (7) a Convenção

Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; (8) a

Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; (9) a

Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes e (10)

a Convenção sobre os Direitos da Criança. Estas normativas não derrogam artigos da

primeira parte da Constituição e são entendidas complementares aos direitos e garantias

por ela reconhecidos.

Da mesma maneira, o artigo 23217, da Constituição da Venezuela de 2000

consigna que os tratados, pactos e convenções relativos a direitos humanos, subscritos e

ratificados pelo país, têm hierarquia constitucional e prevalecem na ordem interna, na

medida em que contenham normas sobre gozo e exercício mais favoráveis às erigidas pela

Constituição e nas leis da República e são de aplicação imediata e direta pelos tribunais e

demais órgãos do Poder Público.

De par com estas Leis Maiores está também o artigo 133218, da Constituição do

México de 1917, reformado em 18/01/1934, que consolida serem a Constituição, as leis do

216Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y La Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas lãs Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos (Disponível em www.presidencia.gob.ar/images/stories/constitucion-nacional-argentina.pdf. Acesso em 15/11/2013). 217Los tratados, pactos y convenciones relativos a derechos humanos, suscritos y ratificados por Venezuela, tienen jerarquía constitucional y prevalecen en el orden interno, en la medida en que contengan normas sobre su goce y ejercicio más favorables a las establecidas por esta Constitución y en las leyes de la República, y son de aplicación inmediata y directa por los tribunales y demás órganos del Poder Público (Disponível em www. www.tsj.gov.ve/legislacion/constitucion1999.htm Acesso em 16/11/2013). 218Esta Constitución, las leyes del Congreso de la Unión que emanen de ella y todos los Tratados que estén de acuerdo con la misma, celebrados y que se celebren por el Presidente de la República, con aprobación del Senado, serán la Ley Suprema de toda la Unión. Los jueces de cada Estado se arreglarán a dicha Constitución, leyes y tratados, a pesar de las disposiciones en contrario que pueda

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Congresso da União, que dela emanam, e todos os tratados que estejam de acordo com

ela, celebrados e que possam ser celebrados pelo Presidente da República, com aprovação

do Senado, a Lei Suprema de toda a União. Os juízes de cada Estado se sujeitam a dita

Constituição, apesar das disposições em contrário que possam haver nas Constituições ou

leis dos Estados.

Anote-se que há Leis Fundamentais que trilham caminho distinto e apresentam

receptividade ainda maior às normas internacionais. A Constituição da Holanda de 1956, por

exemplo, nos artigos 60, item 3219, e 63220, declarava que o Poder Judiciário não podia

avaliar a constitucionalidade dos acordos internacionais e, sendo necessário ao

desenvolvimento do Direito Internacional, era permitida a conclusão de um tratado contrário

a ela, derrogatório de seu próprio texto, desde que aprovado por maioria de 2/3 dos

Estados-Gerais.

Posteriormente, o artigo 93221, da Constituição Holandesa de 1983, mantido pela

nova Lei Maior de 2008 daquele país, evidencia que as disposições dos tratados e decisões

de organizações internacionais, cujo conteúdo pode atingir qualquer cidadão, tem força

vinculante depois de publicadas.

Nesta linha, o artigo 94222, da Constituição da Holanda de 1983, preservado pela

Lei Maior de 2008, sintetiza que as normas legais em vigor no reino não serão aplicáveis se

incompatíveis com disposições de tratados obrigatórias para as pessoas

indiscriminadamente ou com decisões de organizações internacionais.

Por outro lado, algumas Cartas Constitucionais contém dispositivos de admissão

das normas de Direito Internacional pelo Direito Interno que, contudo, não conferem

preferência as regras de nenhuma das duas ordens jurídicas.

haber en las Constituciones o leyes de los Estados (Disponível em www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf. Acesso em 16/11/2014). 219De rechter treedt niet in beoordeling van de grondwettigheid van overeenkomsten (Disponível em www.denederlandsgrondwet.nl Acesso em 12/11/2013). 220Indien de ontwikkeling van de internationale rechtsorde zulks vordert kan in een overeenkomst worden afgeweken van de bepalingen van de Grondwet. In zodanig geval kan de goedkeuring slechts uitdrukkelijk worden verleend; de Kamers der Staten-Generaal kunnen het ontwerp van een daartoe strekkende wet niet aannemen dan met twee derden der uitgebrachte stemmen (Disponível em www.denederlandsgrondwet.nl Acesso em 12/11/2013). 221Bepalingen van verdragen en van besluiten van volkenrechtelijke organisaties, die naar haar inhoud een ieder kunnen verbinden, hebben verbindende kracht nadat zij zijn bekendgemaakt (Disponível em www.denederlandsgrondwet.nl Acesso em 12/11/2013). 222Binnen het Koninkrijk geldende wettelijke voorschriften vinden geen toepassing, indien deze toepassing niet verenigbaar is met een ieder verbindende bepalingen van verdragen en van besluiten van volkenrechtelijke organisaties (Disponível em www.denederlandsgrondwet.nl Acesso em 12/11/2013).

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A Constituição da Estônia de 1992 alude, no § (artigo) 3º223, que os princípios e

as normas de Direito Internacional, universalmente aceitos, são parte inseparável do

Sistema Jurídico Estoniano. Há na doutrina224 quem sustente que, na situação de choque

entre as normas gerais de Direito Internacional e o Direito Interno Estoniano, deve-se

empregar a regra, outrora gizada, lei posterior revoga a anterior que seja com ela

incompatível.

Neste campo encontra-se, igualmente, a Constituição da Espanha de 1978 que,

no artigo 96, n. 1225, pressupõe que os tratados internacionais validamente celebrados, uma

vez publicados oficialmente na Espanha, formam parte do ordenamento interno. Suas

disposições somente poderão ser derrogadas, modificadas ou suspensas da maneira

idealizada nos tratados ou de acordo com as normas gerais de Direito Internacional.

É de se frisar, entretanto, que o seu artigo 10, n. 2226, excepciona este

mandamento, no que diz respeito aos tratados de proteção dos direitos humanos e assevera

que as normas relacionadas aos direitos fundamentais e às liberdades reconhecidas pela

Constituição se interpretam em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos e os tratados e acordos internacionais sobre as referidas matérias, ratificados pela

Espanha.

As normas de Direito Internacional são recebidas, igualmente, no ordenamento

jurídico português, por meio do artigo 8º, da Constituição da República, que preceitua (1)

serem elas e os princípios de Direito Internacional geral ou comum parte do Direito Nacional;

(2) vigorarem, na ordem interna, as regras dipostas em convenções internacionais,

regularmente ratificadas ou aprovadas, após a publicação oficial e enquanto vincularem

internacionalmente Portugal e (3) terem as normas,oriundas dos órgãos competentes das

organizações internacionais, vigência direta no âmbito doméstico, desde que isto se

encontre disciplinado nos tratados constitutivos.

Em relação às normativas internacionais sobre direitos humanos, existe

dispositivo específico na Lei Maior Portuguesa (artigo 16, n. 1), já citado anteriormente, o

223Generally recognised principles and rules of international law are an inseparable part of the Estonian legal system (Disponível em www.legaltext.ee/en/andmebaas/ava.asp?m=022 Acesso em 13/11/2013). 224MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 225Los tratados internacionales válidamente celebrados, una vez publicados oficialmente en España, formarán parte del ordenamiento interno. Sus disposiciones sólo podrán ser derogadas, modificadas o suspendidas en la forma prevista en los propios tratados o de acuerdo con las normas generales del Derecho internacional (Disponível em www.congreso.es/consti/constitucion/indice/index.htm. Acesso em 13/11/2013). 226Las normas relativas alos derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución reconoce se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España (Disponível em www.congreso.es/consti/constitucion/indice/index.htm. Acesso em 13/11/2013).

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qual atribui o o primado do Direito Internacional frente o Direito Interno ao afirmar que os

direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaiquer outros constantes

das leis e das regras utilizáveis de Direito Internacional.

José Joaquim Gomes Canotilho227 preleciona que, no que tange o Direito

Internacional Geral ou Comum, ou seja, o Direito organizado pelas normas de Direito

Consuetudinário e princípios gerais de Direito, universais às nações civilizadas, a

Constituição de Portugal cristalizou o mandamento de que as normas e os princípios de

Direito Internacional Geral fazem parte do Direito Nacional. Trata-se de fórmula oriunda do

projeto da Constituição de Weimar e de um modo geral interpretada como almejando

significar que o Direito Internacional faz parte do Direito Interno. Ela equivale, na verdade, à

velha fórmula de William Blackstone – International Law is part of the law of the Land (o

Direito Internacional é parte do Direito do País), também apresentada em outra ocasião

neste trabalho.

O autor lusitano reporta, de igual modo, que independentemente dos problemas

que a fórmula adotada pode suscitar na esfera das relações entre o Direito Internacional e o

Direito Interno (monismo ou dualismo e primado do Direito Interno ou do Direito

Internacional), parece poder-se atestar o fato da Constituição ter consagrado a doutrina da

recepção automática das normas do Direito Internacional Geral, daí decorrendo que estas

normas são diretamente aplicáveis pelos tribunais e outras autoridades cuja atribuição é

subsumir o Direito ao caso concreto. Prescindindo de qualquer transformação em lei ou

outro ato do Direito Interno, as normas do Direito Internacional Comum entram em vigor no

Direito Nacional simultaneamente à sua aquisição de vigência na ordem jurídica

internacional.

Agora, em relação ao Direito Internacional particular228, isto é, o Direito

Convencional, constante de tratados ou acordos dos quais participe o Estado, a Constituição

Portuguesa aderiu à tese da recepção automática, condicionada, porém, a eficácia interna à

publicação oficial do instrumento. Dúvidas poderão ser arguidas em função da Lei Maior

versar sobre normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou

aprovadas, se a ratificação e a aprovação forem visualizadas como atos internos

introduzidos no processo de criação do Direito Internacional, transformadores da norma de

Direito Internacional em regra de Direito Interno. Mas, como os requisitos constitucionais de

ratificação e aprovação são de validade do pacto, é viável conceber que a ideia do Poder

Constituinte Português foi a de adotar a vigência das normas internacionais presentes em

tratados ou acordos enquanto tais e não como normas internas.

227CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008. 228CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008.

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Ao lado das Constituições Espanhola e Portuguesa coloca-se a Constituição

Política do Peru de 1993 que precisa, no artigo 55229, serem os tratados celebrados pelo

Estado e em vigor, parte do Direito Nacional.

Quanto aos tratados de tutela dos direitos humanos, a Lei Maior Peruana

disciplina no artigo 3º230 e na seção quarta231 das Disposições Finais e Transitórias que (1) a

enumeração dos direitos estabelecidos neste capítulo não exclui os demais que a

Constituição garanta, nem outros de natureza análoga ou que se fundamentem na

dignidade do homem, ou nos princípios de soberania do povo, do Estado Democrático de

Direito e na forma republicana de governo e (2) as normas relativas aos direitos e liberdades

que a Constituição reconhece se interpretam em conformidade com a Declaração Universal

de Direitos Humanos e com os tratados e acordos internacionais sobre as mesmas matérias

ratificados pelo Peru.

É de se salientar, somente a título de comparação, o artigo 101232, da Carta

Magna do Peru de 1979, o qual expressava integrarem os tratados internacionais assinados

pelo país com outros Estados, o Direito Nacional e, prevalecer, na situação de conflito entre

o acordo e a lei, o primeiro.

O Tribunal Constitucional do Peru, no acórdão que julgou os processos Exp. n.

0025-2005-PI/TC e 0026-2005-PI/TC233, definiu que (1) os tratados internacionais sobre

direitos humanos, dos quais seja parte o Estado Peruano, integram o ordenamento jurídico;

(2) conforme o artigo 55, da Constituição, os tratados celebrados pelo Estado e em vigor

229Los tratados celebrados por el Estado y en vigor forman parte del derecho nacional (Disponível em www. tc.gob.pe/constitucion.pdf. Acesso em 15/11/2013). 230La enumeración de los derechos establecidos en este capítulo no excluye los demás que La Constitución garantiza, ni otros de naturaleza análoga o que se fundan en la dignidad Del hombre, o en los principios de soberanía del pueblo, del Estado democrático de derecho y de la forma republicana de gobierno (Disponível em www. tc.gob.pe/constitucion.pdf. Acesso em 15/11/2013). 231Las normas relativas a los derechos y a las libertades que la Constitución reconoce se interpretan de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y con lós tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por el Perú (Disponível em www. tc.gob.pe/constitucion.pdf. Acesso em 15/11/2013). 232Los tratados internacionales celebrados por el Peru con otros Estados, forman parte del derecho nacional. En caso de conflicto entre el tratado y la ley, prevalece el primero (Disponível em www.congreso.gob.pe/comisiones/1999/simplificacion/const/1979.htm. Acesso em 15/11/2013). 233§1.1 Tratados internacionales sobre derechos humanos y su rango constitucional. 25. Los tratados internacionales sobre derechos humanos de los que el Estado peruano es parte integran el ordenamiento jurídico. En efecto, conforme al artículo 55º de la Constitución, los “tratados celebrados por el Estado y en vigor forman parte del derecho nacional.” En tal sentido, el derecho internacional de los derechos humanos forma parte de nuestro ordenamiento jurídico y, por tal razón, este Tribunal ha afirmado que los tratados que lo conforman y a los que pertenece el Estado peruano, “son Derecho válido, eficaz y, en consecuencia, inmediatamente aplicable al interior del Estado”233[12]. Esto significa en un plano más concreto que los derechos humanos enunciados en los tratados que conforman nuestro ordenamiento vinculan a los poderes públicos y, dentro de ellos, ciertamente, al legislador. 26. Los tratados internacionales sobre derechos humanos no sólo conforman nuestro ordenamiento sino que, además, detentan rango constitucional. El Tribunal Constitucional ya ha afirmado al respecto que dentro de las “normas con rango constitucional” se encuentran los Tratados de derechos humanos (Disponível em www.tc.gob.pe/jurisprudencia/2006/00025-2005-AI%2000026-2005-AI.html. Acesso em 16/11/2013).

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formam parte do Direito Nacional; (3) neste sentido, o Direito Internacional dos Direitos

Humanos é parte do ordenamento jurídico e, por esta razão, a Corte tem afirmado que os

pactos que o compõem e que contem com a participação do Estado Peruano, são Direito

válido, eficaz e, por consequência, imediatamente aplicáveis no interior do Estado, o que

significa, num plano mais concreto, que os direitos humanos abrangidos nos tratados que

configuram o sistema jurídico, vinculam os Poderes Públicos e, dentro deles, certamente, o

Poder Legislativo; (4) os tratados internacionais sobre direitos humanos não só dão forma

ao ordenamento, mas, resguardam nível constitucional; (5) o Tribunal Constitucional já

decidiu que dentre as normas de natureza constitucional se inserem as dos tratados

internacionais de direitos humanos.

Na Ásia, a Constituição do Japão de 1947234, enuncia, no artigo 98, que a

Constituição é a Lei Suprema da Nação e nenhuma outra lei, portaria, decreto imperial ou

outro ato do governo, ora, contrários às provisões desta, deverão ter força jurídica ou

validade. Os tratados firmados pelo Japão e leis estabelecidas das nações devem ser

fielmente observados.

E, o artigo 6º, item 1235, da Constituição da Coréia do Sul de 1948 sedimenta que

os tratados, regularmente concluídos e promulgados sob a Constituição, e as regras

universalmente aceitas de Direito Internacional, devem produzir os mesmos efeitos que as

leis domésticas da República da Coréia.

O estudo desenvolvido supra deixa evidente que há muitos Estados cujas

Constituições abarcam normas bem definidas sobre o problema das relações entre Direito

Internacional e Direito Interno. Nele deve ser introduzida, no entanto, a informação de que

existem, ao contrário, também Constituições que não contém quaisquer menções a este

respeito. Os países ora referidos não têm Cartas Magnas escritas (Inglaterra e Israel) ou

elas quedam simplesmente omissas acerca do tema. Merecem ser elencadas, nesta última

hipótese, as Constituições Belga de 1831, do Império Alemão de 1871, Suíça de 1874 e

Francesa de 1875.

A Constituição Brasileira de 1988 não reúne cláusulas de aceitação do Direito

Internacional pelo Direito Nacional da mesma envergadura que outras Leis Supremas,

tendo-se aqui por paradigma a Lei Maior da Alemanha de 1949, suficientemente examinada.

234This Constitution shall be the supreme law of the nation and no law, ordinance, imperial rescript or other act of government, or part thereof, contrary to the provisions hereof, shall have legal force or validity. The treaties concluded by Japan and established laws shall be faithfully observed (Disponível em www.kantei.go.jp/foreign/constitution_and_government_of_japan/constitution_e.html. Acesso em 16/11/2013). 235Treaties duly concluded and promulgated under the Constitution and the generally recognized rules of international law shall have the same effects as the domestic laws of the Republic of Korea (Disponível em ccourt.go.kr/home/att_file/download/Constitution_of_the_Republic_of_Korea.pdf. Acesso em 16/11/2013).

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No entanto, verifica-se uma única exceção no texto constitucional pátrio que se

encontra no artigo 5º, § 2º, cláusula de abertura típica do ordenamento jurídico nacional

a direitos fundamentais outros estipulados em tratados internacionais de direitos

humanos (capítulo 01 da corrente dissertação). Eles ingressam, vale destacar, no

sistema jurídico brasileiro, segundo indicação expressa da Constituição, com o status de

normas materialmente constitucionais, vindo a alcançar o valor normativo de normas, além

de materiais, formalmente constitucionais, se submetidos ao rito do artigo 5º, § 3º.

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114

Capítulo 3 - Natureza Jurídica dos Tratados Internacionais de

Direitos Humanos - Doutrina e Supremo Tribunal Federal Brasileiro

3.1 – Notas Iniciais

Após o exame do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, enquanto

verdadeira cláusula de abertura típica do sistema jurídico brasileiro a direitos fundamentais

estabelecidos em tratados internacionais de direitos humanos, bem como da indiscutível

contribuição do princípio da dignidade da pessoa humana para um conceito de direito

materialmente fundamental, além das teses doutrinárias acerca do relacionamento entre

Direito Internacional e Direito Interno (Dualismo e Monismo) e de seu assento nos variados

textos constitucionais da América Latina, América do Norte, Europa e Ásia, é obrigatória a

análise das quatro correntes principais, identificadas dentro da doutrina e da jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal, acerca da natureza jurídica ou status normativo dos tratados

internacionais de direitos humanos.

A edição do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, lembra Gilmar

Ferreira Mendes236, deu início a uma desafiadora discussão doutrinária e jurisprudencial,

verificada, igualmente, no âmbito do Direito Comparado, sobre o valor normativo dos

tratados e convenções internacionais de direitos humanos, que pode ser sistematizada em

quatro correntes, dentre elas: (a) vertente que atesta natureza supraconstitucional dos

tratados e convenções em matéria de direitos humanos, (b) entendimento que confirma

caráter constitucional a esses diplomas alienígenas, (c) tendência que atribui natureza de lei

ordinária a essas avenças internacionais e (d) posicionamento que reconhece natureza de

norma supralegal a documentos internacionais acerca de direitos humanos.

3.2 – Da Supraconstitucionalidade dos Tratados Internacionais de Direitos

Humanos

A primeira tese orienta que as avenças internacionais de direitos humanos

detêm status superior às normas constitucionais, em virtude da sobreposição da ordem

interna ante a externa. Há uma supremacia supranacional, de viés jurídico, normativo,

coativo e imperativo, que corresponderia ao normativismo supranacional.

No Supremo Tribunal Federal há julgados antigos, que não envolvem

exatamente estes tipos de tratados, mas são no sentido de que os dispositivos de Direito

236MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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Internacional guardam total primazia frente as regras de Direito Interno. A título de exemplo

citam-se o acórdão em Habeas Corpus n. 24.637, de 25/07/1932, e acórdão de 23/07/1952,

ambos elaborados pelo Ministro Laudo de Camargo237. Igualmente é lícito invocar o voto do

Ministro Orozimbo Nonato, na Apelação Cível n. 8.332/RS, de 07/06/1944238, segundo o

qual o Estado, vinculado por um tratado, não pode se valer de nenhuma lei que o contrarie.

Até que seja feita a denúncia não é permitido descumprimento do tratado pelo Estado e a

obrigatoriedade de sua observância traz, por conseqüência, a vinculação do signatário a ele.

Em outras palavras, o Estado pode se desvincular do tratado para o futuro, porém deve

empregar a forma específica da denúncia.

Uadi Lammêgo Bulos239 defende que as Apelações Cíveis n. 7.872/RS e n.

9587/DF, julgadas em 11/10/1943 e 21/08/1951, cujos relatores foram os Ministros

Philadelpho Azevedo e Antônio Carlos Lafayette de Andrada, também compreenderam pela

adoção da fórmula do predomínio dos tratados e convenções internacionais sobre a

legislação estatal.

Neste caminho colacionam-se trechos do acórdão na apontada Apelação Cível

n. 7.872/RS240, in verbis:

"(...) Tarefa interessante é, porém, a de situar esses atos (tratados internacionais) em face do direito interno, especialmente do nosso, ainda que sem o deslinde do problema filosófico da primazia do direito internacional sobre o interno, pretendido pela chamada escola de Viena e por outros repelido (Nuovo Digesto Italiano - Trattati e convenzioni internazionali - vol. 12 pgs. 382 - Gustavo Santiso Galvez - El caso de Belice - Guatemala 1941 fls. 182 e segs. ) ou o exame das teorias, p. ex. de ANZILOTTI e TRIEPEL - dualistas, fazendo girar o direito interno e o internacional em órbitas excêntricas, e monistas, desdobradas por sua vez em nacionalistas e internacionalistas, segundo Verdross e Kelsen, eis que sempre teria de prevalecer o pacta sund servanda a título de axioma ou categoria. (...) (...) Chegamos, assim, ao ponto nevrálgico da questão – a atuação do tratado, como lei interna, no sistema de aplicação do direito no tempo, segundo o equilíbrio de normas, em regra afetadas as mais antigas pelas mais recentes. O Ministro Carlos Maximiliano chegou a considerar o ato internacional de aplicação genérica no espaço, alcançando até súditos de países a ele estranhos, quando tiver a categoria do Código, com o conhecido pelo nome Bustamante (voto in Direito, vol. 8, pgs. 329). Haveria talvez aí um exagero, interessando, antes, examinar, em suas devidas proporções, o problema do tratado no tempo, sendo claro que ele, em princípio, altera as leis anteriores, afastando sua incidência, nos casos especialmente regulados. A dificuldade está, porém, no efeito inverso, último aspecto a que desejávamos atingir - o tratado é revogado por lei ordinárias posteriores, ao menos nas hipóteses em que o seria uma outra lei? A equiparação absoluta entre a lei e o tratado conduziria à resposta afirmativa, mas evidente o desacerto de solução tão simplista, ante o

237VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. 3 ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1971. 238Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 01/02/2014. 239BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 240Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 01/02/2014.

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caráter convencional do tratado, qualquer que seja a categoria atribuída às regras de direito internacional. Em país em que ao Judiciário se veda apreciar a legitimidade de atos do legislativo ou do executivo se poderia preferir tal solução, deixando ao Governo a responsabilidade de ser haver com as potências contratantes que reclamarem contra a indevida e unilateral revogação de um pacto por lei posterior; nunca, porém, na grande maioria das nações em que o sistema constitucional reserva aquele poder, com ou sem limitações. Na América, em geral, tem assim força vinculatória a regra de que um país não pode modificar o tratado, sem o acordo dos demais contratantes ; proclama-o até o art. 10 da Convenção sobre Tratados, assinada na 6a Conferência Americana de Havana, e entre nós promulgada pelo Decreto 18.956, de 22 de outubro de 1929, embora não o havendo feito, até 1938, o Uruguai, também seu signatário. Esse era, aliás, o princípio já codificado por Epitácio Pessoa que estendia ainda a vinculação ao que, perante a equidade, os costumes e os princípios de direito internacional, pudesse ser considerado como tendo estado na intenção dos pactuantes (Código, art. 208); nenhuma das partes se exoneraria e assim isoladamente (art. 210) podendo apenas fazer denúncia, segundo o combinado ou de acordo com a cláusula rebus sic stantibus subentendia, aliás, na ausência de prazo determinado. Clóvis Beviláqua também não se afastou desses princípios universais e eternos, acentuando quão fielmente devem ser executados os tratados, não alteráveis unilateralmente e interpretados segundo a equidade, a boa fé e o próprio sistema dos mesmos (D.T. Público, vol. 2, pgs. 31 e 32). Igualmente Hildebrando Acioli, em seu precioso Tratado de Direito Internacional, acentua os mesmos postulados, ainda quando o tratado se incorpora à lei interna e enseja a formação de direitos subjetivos (vol. 2, § 1.309). É certo que, em caso de dúvida, qualquer limitação de soberania deva ser interpretada restritamente (Acioli, p. cit. § 1.341 n° 13), o que levou Bas Devant, Gastón Jeze e Nicolas Politis a subscreverem parecer favorável à Tchecoslováquia, quanto à desapropriação de latifúndios, ainda que pertencentes a alemães, que invocavam o Tratado de Versalhes (les traités de paix, ontils limité la competence législative de certains états? Paris, 1.927); em contrário, a Alemanha teve de revogar, em homenagem àquele pacto, o art. 61 da Constituição de Weimar que conferia à Áustria o direito de se representar no Reichstag. Sem embargo, a Convenção de Havana já aludida, assentou que os tratados continuarão a produzir seus efeitos, ainda quando se modifique a constituição interna do Estado, salvo caso de impossibilidade, em que serão eles adaptados às novas condições (art. 11). Mas não precisaríamos chegar ao exame desse grave problema da possibilidade, para o Estado, de modificar certa orientação internacional, por exigências da ordem pública, a despeito de prévia limitação contratual. Urge apreciar apenas o caso de modificações indiretas, isto é, trazidas normalmente na órbita interna, sem o propósito específico de alterar a convenção, ou estender a mudança para efeitos externos. Seria exatamente o caso que ora tentamos focalizar de lei ordinária posterior em certo conflito com o Tratado. Diz, por exemplo, Oscar Tenório: 'uma lei posterior não revoga o tratado por ser este especial' (op. cit. pgs. 45). Corrobora-o Acioli: 'os tratados revogam as leis anteriores mas posteriores não prevalecem sobre eles, porque teriam de o respeitar' (op. cit. vol 1 § 30)'. Um caso desses de subsistência de tratado até sua denúncia, a despeito da promulgação, no interregno, de certa lei sobre o mesmo assunto encontra-se no acórdão unânime do Supremo Tribunal Federal de 7 de janeiro de 1.914 (Coelho Rodrigues - Extradição, vol. 3, n° 78); no parecer sobre a carta rogatória n° 89, o atual Procurador-Geral da República também acentuou que contra o acordo internacional não podiam prevalecer nem o

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regimento desta Corte, nem quaisquer normas de direito interno, salvo as consagradas na Constituição (Rev. de Jurisprudência Brasileira, vol. 52, pgs. 17) . Por isso a técnica exata e sincera foi a que adotou a lei de extradição de 1.911, mandando no art. 12 que fossem denunciados todos os tratados vigentes para que ela pudesse vigorar genérica e irrestritivamente, mas antes dessa denúncia, os Tratados não seriam alcançados pela lei, como reconheceu, acabamos de ver, o Supremo Tribunal em 1.914. Essa é a solução geralmente seguida, como se pode ver, do artigo de Ramon Soloziano, publicado na Revista de Derecho Internacional de Habana e transcrito na Rev. de Direito, vol. 128, pg. 3; afora a opinião de Hyde e de alguns julgados contrários, o escritor aponta o sentido da mais expressa corrente, não só prestigiada por decisões americanas, como de tribunais alemães e franceses, e, sobretudo, de vários países do novo continente; também Natálio Chediak, de Cuba, escreveu longo trabalho sobre 'Aplicación de las convenciones internacionales por el derecho nacional - Habana 1.937 - em que chega às mesmas conclusões, e o apresentou ao 2o Congresso de Direito Comparado, recordando a propósito o art. 65 da Constituição espanhola de 1.931, in verbis: 'No podrá dictarse Ley alguna en contradicción con Convenios internacionales, si no hubieran sido previamente denunciados conforme al procedimiento en ellos establecidos'.

Ademais, sublinhe-se que no voto do Relator da Apelação Cível n. 9.587/DF

afirma-se que os tratados internacionais constituem leis especiais e por isso não estão

sujeitos às leis gerais de cada país, porque, visam, geralmente, exatamente, a exclusão

delas. E, o tratado revoga, não há dúvidas, as leis que lhes são anteriores, mas não pode

ser revogado pelas leis posteriores, se estas não se referirem expressamente à revogação

ou se não denunciarem os tratados.

Na doutrina, Gérman J. Bidart Campos241 preconiza que o Direito Internacional

Contratual se situa sobre a Constituição. O que se pretende atualmente é otimizar os

direitos humanos e isto envolve dizer que o constitucionalismo moderno e o

constitucionalismo social se integraram, na esfera do Direito Interno, e agora se veem

acompanhados internacionalmente. Logo, nada há a se objetar à prioridade dos tratados

internacionais de direitos humanos frente à Constituição. É algo que cada Estado tem de

decidir por si só, porém se esta manifestação erige os tratados internacionais de direitos

humanos a uma instância superior à Magna Carta, não ofende, em contrapartida, em tese, o

princípio da supremacia constitucional, pois é conhecido que, desde que se estruturou o

constitucionalismo clássico, se resguarda a pessoa humana e sua convivência política.

Celso D. de Albuquerque Mello242 aceita o predomínio dos tratados

internacionais de direitos humanos em relação às normas constitucionais, que não

preservariam capacidade revogatória das normas internacionais. Até mesmo as Emendas

241CAMPOS, Gérman J. Bidart. Teoría General de los Derechos Humanos. 4 ed. Buenos Aires: Astrea, 2006. 242MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. 1. 15 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

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Constitucionais não poderiam suprimir a legislação internacional celebrada pelo Estado em

matéria de direitos humanos.

Augustín Gordillo243 elucida, à semelhança, que em matéria de direitos humanos

tem-se uma ordem jurídica supranacional e supraconstitucional a ser cumprida, operativa,

direta e imediatamente aplicável igualmente ao ordenamento interno por magistrados e

outros órgãos nacionais do Estado. As características da Constituição, enquanto ordem

jurídica suprema do Direito Interno são aplicáveis como um todo às normas da Convenção,

ordem jurídica maior supranacional.

Gilmar Ferreira Mendes244, em voto proferido no RE n. 466.343-1/SP, elabora

crítica à teoria ora apresentada ao lembrar que ela não é adequada à realidade de Estados

que, como o Brasil, se encontram fundados em sistemas regulados pelo princípio da

prevalência da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. Um entendimento diverso

anularia a viabilidade do controle de constitucionalidade dos tratados internacionais.

Conforme enunciado no RHC n. 79.785/RJ, julgado em 23/03/2000, Relator Ministro

Sepúlveda Pertence, a Constituição não necessitou expressar claramente, à semelhança do

ocorrido com as leis, que está sobreposta aos tratados. A hierarquia é implícita em certos

preceitos cristalinos seus, dentre eles, os que submetem a aprovação e a promulgação dos

pactos ao processo legislativo resumido pela Lei Maior e o que autoriza o controle da

constitucionalidade dos tratados (artigo 102, inciso III, b).

Ainda, esclarece Gilmar Ferreira Mendes, que os Poderes Públicos não se

sujeitam em menor intensidade à Constituição quando agem internacionalmente no

desempenho do poder de celebração de tratados (treaty-making power). Os acordos devem

ser organizados em respeito ao procedimento formal transcrito na Constituição e ao

conteúdo material, especialmente no campo dos direitos e garantias fundamentais.

Da mesma maneira, o argumento de que há uma convergência de valores

supremos, em matéria de direitos humanos, tutelados interna e internacionalmente não

serve para encerrar o problema. A ampliação errônea dos sentidos possíveis da expressão

direitos humanos conduziria em direção a uma produção legislativa alheia ao controle de

compatibilidade com a ordem interna, sedimentando o risco de normatizações camufladas.

Não se esqueça de que, segundo bem aduz a decisão do Ministro sob enfoque,

uma declaração de inconstitucionalidade pode, porém, acarretar repercussões na esfera do

Direito Internacional.

As Cortes Constitucionais de países europeus, contudo, costumam ser

extremamente cautelosas quanto à questão da análise da constitucionalidade dos tratados

243GORDILLO, Agustín. Derechos humanos: doctrina, casos y materiales: parte general. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1990. 244MENDES, Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – Decisões Relevantes em 9 anos de atuação no STF. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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internacionais. Os Tribunais Nacionais têm evitado, mesmo em hipóteses delicadas, como

os casos Maastricht na Alemanha e na Espanha245, atestar a inconstitucionalidade dos atos

legislativos internacionais.

Portanto, neste cenário se faz obrigatória a adoção de um controle prévio, o qual

teria por missão desaconselhar a ratificação de tratado, oferecendo ao Poder Executivo a

opção de renegociação ou de aceitação do pacto mediante reservas.

3.3 – Da Constitucionalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos

Em oposição à corrente da supraconstitucionalidade, Antônio Augusto Cançado

Trindade, Celso Lafer, Flávia Piovesan e Valério de Oliveira Mazzuoli ensinam que os

tratados internacionais de direitos humanos adotam, na ordem positiva interna brasileira,

natureza jurídica de norma constitucional, uma vez que o artigo 5º, § 2º, da Constituição

Federal de 1988 é cláusula aberta à recepção de outros direitos materialmente

fundamentais estipulados em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil

seja parte.

Com efeito, Celso Lafer assevera que a política jurídica exterior tem o respaldo e

o estímulo do artigo 5º, § 2º, que define não excluírem os direitos e garantias expressos na

Magna Carta outros decorrentes dos tratados internacionais subscritos pelo país.

Os pactos sobre direitos humanos assinados pelo Brasil antes da Constituição

Federal de 1988 guardam hierarquia constitucional, pois quedaram recepcionados pelo

dispositivo acima transcrito e outrora examinado nos capítulos 01 e 02 desta dissertação.

Mas não é só. Igualmente a referência que o artigo faz a direitos e garantias oriundos do

regime e dos princípios encampados pela Lei Maior auxilia nesta conclusão, avisando-se

que a menção aos princípios presume, na lição de Celso Lafer, uma expansão axiológica do

Direito na perspectiva ex parte civium (da parte dos cidadãos) dos direitos humanos.

245Aunque aquella supremacía quede en todo caso asegurada por la posibilidad de impugnar (arts. 27.2 c, 31 y 32.1 LOTC) o cuestionar (art. 35 LOTC) la constitucionalidad de los tratados una vez que formen parte del ordenamiento interno, es evidente la perturbación que, para la politica exterior y las relaciones internacionales del Estado, implicaría la eventual declaración de inconstitucionalidad de una norma pactada. Em português - Apesar da supremacia restar assegurada em todo caso pela possibilidade de impugnar (arts. 27.2 c, 31 e 32.1 LOTC) ou questionar (art. 33 LOTC) a constitucionalidade dos tratados, uma vez que são parte do ordenamento jurídico interno, é evidente a perturbação que eventual declaração de inconstitucionalidade da norma pactuada implicaria para a política exterior e relações internacionais do Estado (MENDES, Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – Decisões Relevantes em 9 anos de atuação no STF. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2011). .

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Ao mesmo tempo, os tratados internacionais de direitos humanos a que o Brasil

venha a aderir, após a entrada em vigor da EC n. 45/2004, que introduziu o § 3º ao artigo 5º

da Constituição, para serem recepcionados formalmente como normas constitucionais,

deverão obedecer ao procedimento, caminho, nele previsto.

É verdade que os tratados celebrados pelo país entre a promulgação da

Constituição de 1988 e a entrada em vigor da EC n. 45/2004, a exemplo do Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos; do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais, e Culturais e da Convenção Americana de Direitos Humanos, hão de ser

visualizados como normas materialmente constitucionais, integrando o denominado bloco de

constitucionalidade246247, ou seja, um conjunto normativo que reúne disposições, princípios e

valores que, na espécie, em conformidade com a Constituição de 1988, são materialmente

constitucionais, ainda que se mantenham fora de seu texto escrito. Trata-se da soma do que

se acrescenta à Constituição escrita em razão de valores e princípios nela disciplinados.

O bloco de constitucionalidade confere vigor à força normativa da Constituição e

serve, com certeza, de parâmetro hermenêutico, de hierarquia superior, de integração,

complementação e desenvolvimento do rol de direitos constitucionalmente abarcados.

Flávia Piovesan248 esclarece acerca do quanto acima afirmado que:

(...) Em face de todos os argumentos já expostos, sustenta-se que a hierarquia constitucional já se extrai de interpretação conferida ao próprio art. 5º, § 2º, da Constituição de 1988. Vale dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3º, do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de todos os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados, afirmando tal como o fez o texto argentino que os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional. No entanto, estabelece o § 3º do art. 5º que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição.

246José Joaquim Gomes Canotilho explica que o programa normativo-constitucional não deve ser reduzido de forma positivista ao texto escrito da Constituição. Há de se densificar, em profundidade, as normas e princípios da Constituição, ampliando-se, assim, o denominado bloco de constitucionalidade a regras e princípios não digitados, mas que, sejam reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como meio de encontro e densificação específicos de princípios ou regras constitucionais positivamente delimitadas (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008). 247Os únicos problemas que se podem suscitar dizem respeito aos direitos fundamentais não formalmente constitucionais, isto é, os direitos constantes de leis ordinárias ou convenções internacionais (cfr. art. 16.º). Todavia, ou estes direitos são ainda densificações possíveis e legítimas do âmbito normativo-constitucional de outras normas e, consequentemente, direitos positivo-constitucionalmente plasmado, e nesta hipótese, formam parte do bloco de constitucionalidade, ou são direitos autônomos não-reentrantes nos esquemas normativo-constitucionais e, nessa medida, entrarão no bloco da legalidade, mas não no da constitucionalidade (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008). 248PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do § 3º do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quórum qualificado de três quintos, demandado pelo aludido parágrafo. Reitere-se que, por força do art. 5o, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quórum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quórum qualificado está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a constitucionalização formal dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas, e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela. Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu quórum de aprovação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é parte da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989, estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não haveria qualquer razoabilidade se a este último - um tratado complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro. (...) Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º do art. 5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do direito brasileiro. Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5, § 3º, vem a reconhecer, de modo explícito, a natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse modo, a existência de um regime jurídico misto, que distingue os tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado quórum de três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam a ter status formal de norma constitucional tão somente pelo procedimento de sua aprovação. Vale dizer, com o advento do § 3º do art. 5º surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do § 2º do art. 5o. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do § 3º do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.

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E, em igual sentido, Valério de Oliveira Mazzuoli249 expõe que os tratados

internacionais de direitos humanos possuem, tecnicamente, status de norma constitucional

em razão do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição, porque o fato da Lei Maior não

excluir os direitos humanos provenientes dos tratados quer dizer que ela própria os inclui no

seu catálogo de direitos protegidos, alargando o seu bloco de constitucionalidade e

atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional. Disto se afasta desde o início o

entendimento de que os pactos de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada

do artigo 5º, § 3º se equiparariam hierarquicamente às leis ordinárias federais.

Ademais, o artigo 5º, § 3º não confere às avenças internacionais de direitos

humanos, natureza jurídica de lei ordinária. A afirmação através da qual os tratados

internacionais de direitos humanos aprovados pela maioria qualificada passam a ser

equivalentes às emendas constitucionais não implica que os outros acordos terão valor de

lei ordinária ou lei complementar.

Há de prosperar o entendimento de que o quórum estabelecido no artigo 5º, § 3º

é útil exclusivamente para deferir eficácia formal a estes tratados no ordenamento jurídico

nacional, não tendo o condão de garantir-lhes o nível materialmente constitucional, que eles,

aliais, já possuem em função do artigo 5º, § 2º, da Constituição.

Valério de Oliveira Mazzuoli atesta corretamente que a diferença entre os dois

parágrafos é sutil, mas existente. O artigo 5º, § 2º estatui que os tratados internacionais de

direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte integram o texto

constitucional, detendo, portanto, status de norma constitucional e passando a ampliar o

elenco dos direitos e garantias fundamentais – bloco de constitucionalidade. Em

contrapartida, o artigo 5º, § 3º define que os tratados aprovados de acordo com o

procedimento ali fixado valem como normas equivalentes às Emendas à Constituição.

O ato de avisar que um tratado tem natureza de norma constitucional é o mesmo

que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material, e não formal, da Carta

Magna o que se revela menos amplo que assentar que ele é equivalente à uma Emenda

Constitucional. Isto sim importa em sedimentar que o pacto já compõe formalmente, além de

materialmente, é claro, o texto constitucional.

A reforma realizada pela EC n. 45/2004 pretendeu que os tratados de direitos

humanos preservassem caráter de norma constitucional, nos termos do artigo 5º, § 2º,

sendo permitida a aquisição, por eles, de valor de norma formalmente constitucional, desde

que aprovados pelo regime e quórum do artigo 5º, § 3º.

Na realidade, uma interpretação sistemática da Constituição Federal de 1988,

baseada em princípios constitucionais e internacionais de garantismo jurídico e de tutela à

249MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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dignidade da pessoa humana, revela a conclusão de que os tratados internacionais dos

quais o Brasil seja parte são normas materialmente constitucionais (artigo 5º, § 2º), porém

poderão assumir natureza jurídica de normas formalmente constitucionais (artigo 5º,

parágrafo 3º).

A doutrina, aqui representada por Uadi Lammêgo Bulos e Flávia Piovesan,

discorre que, no Supremo Tribunal Federal, a teoria do status constitucional dos tratados

internacionais sobre direitos humanos restou encampada pelo Ministro Celso de Mello em

voto proferido no julgamento do RE n. 466.343/SP (fls. 1211/1265 do acórdão)250.

Eis que em mencionada decisão há uma grande quantidade de conclusões que,

não se mostram compatíveis entre si; deixam o seu leitor em dúvida acerca de qual a

opinião de seu prolator e pior talvez prejudiquem a missão daquele voto que é deixar

consignado um modo divergente de pensamento em relação à maioria para que, quem

sabe, oportunamente se venha no Supremo Tribunal Federal a corrigir um equívoco e a se

reconhecer definitivamente a natureza jurídica constitucional dos tratados internacionais de

direitos humanos garantida nitidamente pelo artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de

1988.

Dois são os pontos que precisam ser enfocados.

Às fls. 1237/1238 consigna o Ministro Celso de Mello que, depois de muita

reflexão, e, apesar de decisões em contrário proferidas por ele no passado – RTJ n.

174/463-465 e RTJ n. 179/493-496, ele se inclina a acolher a orientação que atribui natureza

constitucional às convenções internacionais de direitos humanos, identificando a ocorrência

de três situações diferentes, interessando a esta dissertação, nesta ocasião, a primeira e a

segunda, a saber: (1) tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil, ou

aos quais o país aderiu em momento anterior ao da promulgação da Constituição de 1988

revestem-se de índole constitucional, porque formalmente recebidas nessa condição pelo §

2º, do artigo 5º, da Lei Maior e (2) tratados internacionais de direitos humanos que venham a

ser assinados, ou aos quais o Brasil adira, em data posterior à Emenda Constitucional n.

45/2004 para se impregnarem de status constitucional deverão obedecer o procedimento e

quórum definido no § 3º, do artigo 5º.

Ora, o voto sub examine adota posicionamento inovador na jurisprudência do

tribunal e absolutamente em proteção de direitos fundamentais, colocando o artigo 5º, § 2º

como cláusula e fundamento de recepção de normas internacionais que versem sobre

direitos humanos, elaboradas antes da promulgação da Constituição Federal de 1988.

250Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 08/02/2014.

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124

Entretanto, disciplina a decisão que, após a entrada em vigor do artigo 5º, § 3º,

os pactos internacionais sobre direitos humanos somente serão normas constitucionais se

internados no Brasil pelo rito ali especificado.

E o artigo 5º, § 2º? E o status de norma materialmente constitucional por ele

deferido a todos os tratados internacionais sobre direitos humanos?251 Não parece que as

duas conclusões acima colacionadas sejam convergentes entre si, pois o artigo 5º, § 2º, na

opinião do Ministro, continua em vigência para receber normas internacionais de direitos

humanos editadas antes da Constituição Federal de 1988, mas sede passagem ao artigo 5º,

§ 3º, e de forma ex nunc, para a frente, deixa de resguardar a natureza constitucional

material às normas internacionais de direitos humanos que venham a ser construídas após

a entrada em vigor da EC n. 45/2004, levando a crer que haveria uma espécie impossível de

revogação sujeita ao humor do juiz, ou seja, que impera ou não a depender do que sente o

magistrado quando de sua decisão.

Além disto, ter-se-á, de acordo com o raciocínio apresentado, situação

anacrônica, pois atingir-se-á o absurdo de um tratado internacional de direitos humanos,

anterior à Constituição Federal de 1988, ser considerado (recepcionado), por força do artigo

5º § 2º, norma constitucional e, ao contrário, um pacto facultativo a ele, posterior à Magna

Carta e à EC n. 45/2004, desde que não se submeta ao rito organizado pelo artigo 5º § 3º,

ser visualizado como lei ordinária, revogável por outra lei editada ulteriormente.

Note-se que o Ministro cita, às fls. 1249, trecho de Substitutivo à PEC n.

96/92252, oferecido pela então Deputada Zulaiê Cobra, Relatora da Comissão Especial de

Reforma do Poder Judiciário, que aparenta justamente ser elemento de reforço à tese de

que os tratados internacionais de direitos humanos são, a partir da edição do artigo 5º, § 2º,

normas materialmente constitucionais.

251Antônio Augusto Cançado Trindade, autor da proposta, na Assembleia Nacional Constituinte, de inclusão do § 2º ao artigo 5º, assim se manifestou: O propósito do disposto nos §§ 1º e 2º, do artigo 5º, da Constituição não é outro que não o de assegurar aplicabilidade direta pelo Poder Judiciário nacional da normativa internacional, alçada a nível constitucional. (...) Desde a promulgação da atual Constituição, a normativa dos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte têm efetivamente nível constitucional e entendimento em contrário requer demonstração. A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação infraconstitucional - tal como ainda seguida por alguns setores em nossa prática judiciária - não só representa um apego sem reflexão a uma tese anacrônica, já abandonada em alguns países, mas também contraria o disposto no artigo (5) 2 da Constituição Federal Brasileira (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Brasília, DF, n. 113-118, p. 88-89,1998). 252(…) Buscando a efetividade da prestação jurisdicional, acolhemos também a sugestão do Ministro Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal, no sentido da outorga explícita de hierarquia constitucional aos tratados internacionais celebrados pelo Brasil, em matéria de direitos humanos, à semelhança do que estabelece a Constituição Argentina (1853) com a reforma de 1994 (art. 75, n. 22), introdução esta no texto constitucional que afastará a discussão em torno do alcance do art. 5º, § 2º (Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 08/02/2014).

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125

Em paralelo, verifica-se às fls. 1255 que o Ministro compreende por irrecusável a

supremacia da Constituição perante todos os tratados internacionais firmados pelo Brasil,

neles incluídos os que versem acerca de direitos humanos, sublinhando-se que, no que

tange a estes últimos, a assertiva só impera se eles acarretarem supressão, modificação

gravosa ou restrição a prerrogativas essenciais ou a liberdades fundamentais legitimadas

pelo texto constitucional.

. Desta feita, segundo a afirmativa do Ministro, os acordos internacionais que

contenham melhores direitos fundamentais e maiores garantias a eles terão claramente

força normativa superior à Constituição, perdendo eficácia o princípio que assegura a sua

supremacia.

Em resumo, a decisão comentada, confere aos tratados internacionais de

direitos humanos valores jurídicos diversificados – (1) pactos anteriores à CF/1988,

celebrados pelo Brasil, são normas constitucionais, pois recepcionados pelo artigo 5º, § 2º;

(2) avenças assinadas após a entrada em vigor da Lei Maior e da EC n. 45/2004 são

normas constitucionais se obedecido o rito de incorporação do artigo 5º, § 3º; (3) acordos

elaborados após a entrada em vigor da Lei Maior e da EC n. 45/2004 são normas

infraconstitucionais, leis ordinárias, se desrespeitado o rito de incorporação do artigo 5º, § 3º

e (4) convenções que instituam outros direitos fundamentais ou maiores garantias a eles

guardam nível hierárquico de norma supraconstitucional.

3.4 – Da Infraconstitucionalidade ou Legalidade Ordinária dos Tratados

Internacionais de Direitos Humanos

Ante o conteúdo desenvolvido supra, acerca do caráter constitucional dos

tratados internacionais de direitos humanos, torna-se totalmente insuficiente e insustentável

a tese da legalidade ordinária dos pactos e convenções internacionais deste tipo.

O Supremo Tribunal Federal empregou a teoria da equiparação entre tratado

internacional e lei nacional no julgamento do RE n. 80.004/SE, ocorrido em 01/06/1977, cujo

Relator para o acórdão foi o Ministro Cunha Peixoto.

Na assentada os magistrados analisaram extensamente a relação entre o Direito

Interno e o Direito Internacional. Embora o Ministro Relator Xavier Albuquerque, aplicando a

jurisprudência anterior, houvesse votado pela primazia dos tratados e convenções

internacionais, a maioria, divergente e acompanhando voto-vista do Ministro Cunha Peixoto,

compreendeu que o ato legislativo internacional (Convenção de Genebra, Lei Uniforme

sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias) poderia ser alterado por lei nacional

posterior, restando sedimentada a ideia de que os conflitos entre duas disposições

normativas, uma de Direito Interno, e outra de Direito Internacional seriam solucionados pela

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velha regra geral de encerramento de antinomias jurídicas num mesmo grau hierárquico –

lex posterior derrogat legi priori.

É obrigatória a ressalva de que a Corte de Justiça compreendeu o termo

derrogat de forma distinta de seu significado usual e, na esteira do voto do Ministro Leitão

de Abreu, defendeu a existência de uma suspensão temporária da lei internacional pela lei

interna posterior, sendo a consequência disto o fato de que a norma internacional retorna à

vigência pela revogação da lei interna revogadora.

Cita-se o excerto da decisão detalhada acima, verbis:

(...) Como autorização dessa natureza, segundo entendo, não figura em nosso direito positivo, pois que a Constituição não atribui ao judiciário competência, seja para negar aplicação a leis que contradigam tratado internacional, seja para anular, no mesmo caso, tais leis, a consequência, que me parece inevitável, é que os tribunais estão obrigados, na falta de titulo jurídico para proceder de outro modo, a aplicar as leis incriminadas de incompatibilidade com tratado. Não se diga que isso equivale a admitir que a lei posterior ao tratado e com ele incompatível reveste eficácia revogatória deste, aplicando-se, assim, para dirimir o conflito, o princípio lex posterior revogat priori. A orientação, que defendo, não chega a esse resultado, pois, fiel à regra de que o tratado possui forma de revogação própria, nega que este seja, em sentido próprio, revogado pela lei. Conquanto não revogado pela lei que o contradiga, a incidência das normas jurídicas constantes do tratado é obstada pela aplicação, que os tribunais são obrigados a fazer, das normas legais com aqueles conflitantes. Logo, a lei posterior, em tal caso, não revoga, em sentido técnico, o tratado, senão que lhe afasta a aplicação. A diferença está em que, se a lei revogasse o tratado, este não voltaria a aplicar-se, na parte revogada, pela revogação pura e simples da lei dita revogatória. Mas como, a meu juízo, a lei não o revoga, mas simplesmente afasta, enquanto em vigor, as normas do tratado com ela incompatíveis, voltará ele a aplicar-se, se revogada a lei que impediu a aplicação das prescrições nele consubstanciadas.

Na data de 22 de novembro de 1995, o Supremo Tribunal Federal apreciou, no

julgamento do HC n. 72.131/RJ253, em que figurou como Relator para o acórdão o Ministro

Moreira Alves, exatamente a questão da relação entre uma convenção sobre direitos

humanos e a norma brasileira. A hipótese envolvia a prisão civil do devedor, depositário

infiel na alienação em garantia, permitida pela lei brasileira, e proibida pelo Pacto San José

da Costa Rica.

253Habeas corpus. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel - Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. - Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. Habeas corpus indeferido, cassada a liminar concedida (Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 13/02/2014)..

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Na sessão apontada ratificou-se o entendimento presente na jurisprudência do

Tribunal, editada antes da Magna Carta de 1988, no sentido de que os diplomas normativos

internacionais se incorporam ao ordenamento jurídico nacional no nível de legislação

ordinária e conflitos legislativos são resolvidos pela regra lex posterior derrogat legi priori. O

resultado atingido consignou que o artigo 7º (7) do Pacto de San José da Costa Rica, sendo

norma geral, não revoga a legislação ordinária especial a exemplo do Decreto-Lei n.

911/1969, que torna equivalentes, relativamente à prisão civil, o devedor-fiduciante e o

depositário infiel.

Uadi Lammêgo Bulos254 declina que o Supremo Tribunal Federal, em votação

majoritária, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence,

entendeu que não havia, sob o panorama constitucional em vigência no Brasil, qualquer

precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais

perante as cláusulas dispostas na Constituição da República, pois a ordem normativa

externa não se sobrepõe, em hipótese alguma, àquilo que enuncia a Lei Fundamental

Brasileira.

A tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais restou reafirmada em

julgados posteriores, a exemplo da Medida Cautelar em ADI n. 1.480/DF255, Relator Ministro

Celso de Mello (04/09/1997); do RE n. 206.482-3/SP, Relator Ministro Maurício Corrêa

(27/05/1998); do HC n. 77.053/SP256, Relator Ministro Maurício Corrêa (04/09/1998); do HC

n. 79.870/SP, Relator Ministro Moreira Alves (20/10/2000); do RHC n. 80.035/SC, Relator

Ministro Celso de Mello (17/08/2001); do HC n. 81.319/GO, Relator Ministro Celso de Mello

(24/04/2002). Ela se preservou firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o

03/12/2008.

254BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 255Paridade Normativa entre atos internacionais e normas infraconstitucionais de Direito Interno - Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes (Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 13/02/2014). 256Habeas Corpus. Prisão Civil de Depositário Infiel. Alienação Fiduciária. Motivo de Força Maior. Apropriação Indébita do bem depositado. 1- A Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII). 2- Os arts. 1º (art. 66 da Lei nº 4.728/65) e 4º do Decreto-lei nº 911/69, definem o devedor alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou credor, em face da natureza do contrato. 3- Comprovado que o bem adquirido por alienação fiduciária em garantia foi objeto de apropriação indébita, configura constrangimento ilegal o decreto de prisão como depositário infiel. 4- Habeas-Corpus deferido (Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 13/02/2014).

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3.5 – Da Supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos

Gilmar Ferreira Mendes assevera, no voto proferido por ele no RE n.

466.343/SP257, que, é de se examinar no contexto atual, no qual se observa uma maior

abertura do Estado Constitucional às ordens jurídicas supranacionais de tutela dos direitos

humanos, se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que então pregava a

equiparação entre tratados internacionais de direitos humanos e lei ordinária, não teria se

tornado totalmente ultrapassada.

E, neste cenário, não se deve deixar de considerar que a sociedade está

inserida em um Estado Constitucional Cooperativo, definido por Peter Häberle como o

Estado que não se apresenta mais voltado para si próprio, porém que se coloca à

disposição e é referencial para outros Estados Constitucionais partícipes de uma

comunidade e no qual recebe destaque o papel dos direitos humanos fundamentais.

Para o autor alemão, embora sob o ponto de vista internacional, a cooperação

entre Estados assuma, reiteradas vezes, apenas a posição de coordenação e mera

organização da coexistência pacífica, ou seja, de especificação dos limites das soberanias

estatais, no Direito Constitucional, o fenômeno direciona a um enfraquecimento das

barreiras entre o interno e o externo, dando origem a uma concepção que permite a

sobreposição do Direito Comunitário ao Direito Nacional.

Gilmar Ferreira Mendes esclarece que é necessário reconhecer os aspectos

sociológico-econômico e ideal moral como os mais evidentes argumentos viabilizadores do

conceito de Estado Constitucional Cooperativo. No que diz respeito ao segundo não é

possível afastar dele o caráter de fórmula mais concreta de que se utiliza o sistema

constitucional, demandando dos atores da vida sociopolítica do Estado atuação positiva em

ordem a garantir a máxima eficácia das normas das Constituições modernas que assegurem

a cooperação internacional harmoniosa, verdadeiro princípio reitor das relações entre os

Estados e a tutela dos direitos humanos, resultado da garantia da dignidade da pessoa

humana.

Segundo o Ministro, a Constituição Federal de 1988 contém disposições que

levam o intérprete a uma realidade normativa diferenciada da concepção clássica do Direito

Internacional Público. Tratam-se de previsões inseridas em artigos do texto constitucional,

que recomendam sua maior abertura ao Direito Internacional ou Direito Supranacional.

A primeira se encontra no artigo 4º, parágrafo único – a Repúbica Federativa do

Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América

Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

257Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 15/02/2014.

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A segunda está justamente no artigo 5º, § 2º, quando ele impõe que os direitos e

garantias expressos na Constituição Brasileira não excluem outros decorrentes do regime e

dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte.

A terceira e a quarta quedaram adicionadas pela EC n. 45/2004 a partir da

introdução dos §§ 3º e 4º ao artigo 5º, os quais disciplinam especificamente que os tratados

e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa

do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros

serão equivalentes às emendas constitucionais e o Brasil se submete à jurisdição do

Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.

Os preceitos normativos elencados se alinham à inclinação do

constitucionalismo mundial de realçar as normas internacionais de tutela do ser humano.

Por efeito tem-se, pois, que as Constituições oferecem meios de concretização de sua

eficácia normativa e devem ser concebidas unicamente sob um enfoque que aproxime o

Direito Constitucional do Direito Internacional.

Gilmar Ferreira Mendes afirma, após estudo fundamentado, que a jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal, anterior ao RE n. 466.343/SP, merece ser atualizada de

maneira crítica.

Com efeito, a tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais de direitos

humanos é anacrônica, mesmo antes da alteração constitucional incutida pela EC n.

45/2004, tendo isto sido corretamente evidenciado por Antônio Augusto Cançado Trindade,

cuja lição é acrescentada no voto sob análise, in verbis:

A disposição do artigo 5° (2) da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja parte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Ademais, por força do artigo 5o (1) da Constituição, têm aplicação imediata. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é determinada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo 60(4) (IV)). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitos humanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Constituição Brasileira vigente. Se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5o da Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno.

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Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a tese clássica - ainda seguida em nossa prática constitucional – da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional. Foi esta a motivação que me levou a propor à Assembleia Nacional Constituinte, na condição de então Consultor jurídico do Itamaraty, na audiência pública de 29 de abril de 1987 da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, a inserção em nossa Constituição Federal - como veio a ocorrer no ano seguinte - da cláusula que hoje é o artigo 5o (2). Minha esperança, na época, era no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992. É esta a interpretação correta do artigo 5° (2) da Constituição Brasileira vigente, que abre um campo amplo e fértil para avanços nesta área, ainda lamentavelmente e em grande parte desperdiçado. Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e devem ser tidos como tais. Se maiores avanços não se têm logrado até o presente neste domínio de proteção, não tem sido em razão de obstáculos jurídicos - que na verdade não existem -, mas antes da falta de compreensão da matéria e da vontade de dar real efetividade àqueles tratados no plano do direito interno.

Ante todo o exposto, Gilmar Ferreira Mendes anota que parece mais consistente

a interpretação que defende a natureza supralegal dos tratados e convenções internacionais

de direitos humanos. As avenças seriam infraconstitucionais, mas, pelo seu caráter especial

em relação aos outros atos normativos internacionais, possuiriam o atributo da

supralegalidade.

Logo, os tratados sobre direitos humanos não afrontariam a supremacia da

Constituição Federal, porém teriam lugar privilegiado reservado no ordenamento jurídico. O

ato de equipará-los à legislação ordinária significaria minimizar o seu valor especial dentro

do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

A teoria da supralegalidade foi sustentada, recorda o Ministro, no voto do

Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, no RHC n. 79.785-RJ258. A decisão acatou o status

258André de Carvalho Ramos atesta que para conciliar a visão majoritária do Supremo Tribunal Federal (com apoio em alguns doutrinadores) de estatura equivalente a mera lei ordinária federal com a visão doutrinária de natureza constitucional dos tratados de direitos humanos, o então Ministro Sepúlveda Pertence, em obiter dictum no Recurso em Habeas Corpus n. 79.785-RJ, sustentou que deveríamos aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes. Essa posição conciliatória de PERTENCE externada em seu voto no ano 2000 (tratados internacionais de direitos humanos ficariam acima das leis e abaixo da Constituição) não logrou

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supralegal dos documentos normativos internacionais sobre direitos humanos, deixando

assentado que os tratados incorporados à ordem jurídica positiva brasileira são normas

infraconstitucionais, porém não equiparadas às leis ordinárias internas.

Os direitos e garantias fundamentais são assim conhecidos uma vez que

elevados ao nível constitucional configuram limitações positivas ou negativas ao conteúdo

das leis futuras e à recepção das editadas anteriormente à Constituição. Portanto, parificar

os pactos internacionais sobre direitos humanos às leis ordinárias, é retirar muito do sentido

útil da inovação do artigo 5º, § 2º, que exprimiu uma abertura importante ao movimento de

internacionalização dos direitos humanos.

A obrigatoriedade de se assegurar efetividade à proteção dos direitos humanos

nos âmbitos interno e internacional requer, lembrando o voto de Gilmar Ferreira Mendes,

uma mudança de compreensão no que se refere ao valor normativo dos tratados

internacionais de direitos humanos na ordem jurídica nacional.

Desta feita, não se apresenta difícil de apontar, tendo por base a natureza

jurídica especial dos pactos internacionais sobre direitos humanos, que a incorporação deles

no ordenamento jurídico brasileiro paralisa a eficácia jurídica de toda lei infraconstitucional

conflitantes com ele.

O status supralegal dos acordos internacionais de direitos humanos paralisa a

eficácia da legislação infraconstitucional editada anterior e mesmo posteriormente a eles e

isto conduz à conclusão alcançada por Gilmar Ferreira Mendes, no voto do RE n.

466.343/SP, de que a menção constitucional à prisão civil do depositário infiel (artigo 5º,

inciso LXVII) não foi revogada pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo

11) e nem pela Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa

Rica (artigo 7º, inciso 7), mas teve sua aplicabilidade afastada em razão da suspensão dos

artigo 1287, do Código Civil de 1916, do Decreto-Lei n. 911/1969 e do artigo 652, do Novel

Código Civil de 2002, Lei n. 10.406/2002.

Adicione-se que a decisão, em sua parte final, relata não haver, desde 1992,

data da adesão brasileira ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à

Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, amparo legal para a aplicação do artigo

5º, inciso LXVII, 2º hipótese.

A corrente ora elucidada conta com o suporte da jurisprudência hodierna do

Supremo Tribunal Federal, sendo que o julgamento do RE n. 466.343/SP e, principalmente,

o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes serviram de marco na superação da tese

inicialmente apoio no STF ate a aposentadoria do Ministro (RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

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antiquada, ultrapassa e certamente anacrônica da equiparação entre tratado internacional

de direitos humanos e leis ordinárias nacionais259.

Em que pese o exposto no parágrafo supra, as decisões da Corte Constitucional

do Brasil devem evoluir ainda mais até atingirem o ponto ideal que será o reconhecimento

do valor normativo materialmente constitucional dos pactos internacionais de direitos

humanos, garantido pelo artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, verdadeira

cláusula de abertura da ordem jurídica interna às normas internacionais que versem sobre

direitos humanos260.

259Na doutrina, Luis Roberto Barroso preleciona que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos têm status diferenciado no ordenamento jurídico interno. Quando internalizados conforme o rito previsto no art. 5º §3º, assumem hierarquia de emenda constitucional, de modo que se sobrepõem à legislação ordinária e constituem parâmetro para o controle de constitucionalidade; quando internalizados conforme o rito ordinário, assumem hierarquia supralegal, acarretando a paralisação da eficácia da legislação interna que a ele se contraponha (BARROSO, Luis Roberto. Constituição e tratados internacionais: alguns aspectos da relação entre Direito Internacional e Direito Interno. In: MARINONI, Luis Guilherme (Coord). Controle de Convencionalidade – Um panorama latino-americano – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2013, p. 179). 260Sérgio Cruz Arenhart é da opinião de que melhor seria concluir que as normas sobre direitos humanos têm, independentemente de sua origem ou do regime de sua aprovação, força constitucional à luz do que prevê o art. 5º, § 2º, da CR, que já autorizava essa orientação. Nos termos do que prevê esse preceito – original do texto constitucional de 1988 – os direitos previstos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Ora, se tais direitos não são excluídos do texto constitucional, é porque a Constituição atual entendeu por incluí-los como garantias fundamentais, de modo que os tratados (e as normas de direitos interno) que tratem de direito humanos (ou, de forma geral, sobre direitos fundamentais) hão de ser entendidos como normas constitucionais. Desse modo, não parece adequada a posição de supralegalidade adotada pelo Supremo Tribunal Federal. De um lado, ao criar elemento intermediário na hierarquia das normas, traz problemas desnecessários e complicadores à própria aplicação desses instrumentos de proteção de direitos humanos, menosprezando seu valor e sua importância para o direito interno e internacional atual. Ademais, parece que a solução empregada pela Suprema Corte desconsidera o preceito contido no art. 5º, § 2º, da CR, ao não oferecer papel útil a essa norma no direito positivo brasileiro (ARENHART, Sérgio Cruz. O Supremo Tribunal Federal e a prisão civil. In: MARINONI, Luis Guilherme (Coord). Controle de Convencionalidade – Um panorama latino-americano – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2013, p. 293).

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133

Capítulo 4 - Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no

Direito Brasileiro

4.1 Notas Inicias

A presente etapa desta dissertação pretende desenvolver o modelo brasileiro de

Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis, matéria que recebeu, no Brasil,

tratamento e forma adequados muito recentemente na obra de igual nome da lavra de

Valério de Oliveira Mazzuoli261, a qual, salienta-se, é produto da Tese de Doutorado em

Direito Internacional de referido autor defendida em 04/11/2008 na Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (UFGRS).

A Teoria do Controle Jurisdicional de Convencionalidade se aplica a todos os

casos em que um tratado internacional de direito humanos for afrontado por uma norma

jurídica interna menos benéfica. Os pactos deste tipo, quer se ocupem de direitos civis e

políticos, quer contemplem direitos econômicos, sociais, culturais, ou ainda, quer prevejam

direitos de grupos e coletividades, a exemplo daqueles sobre meio ambiente, servirão de

paradigma ao processo de produção de leis domésticas e de controle desta atividade.

Em breves palavras, neste capítulo será apreciado o fato de que o atual

esquema brasileiro de controle de normas nacionais demanda que se efetue uma

compatibilização vertical das leis e atos normativos do Poder Publico, utilizando-se como

elementos referenciais a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos em

vigência no Brasil.

Esclareça-se, contudo, que serão revolvidos aqui unicamente detalhes

relacionados aos tratados internacionais de direitos humanos enquanto ferramentas de

controle de leis internas que se mostrem contrárias às suas disposições. Não será

abordado, ao contrário, o tradicional e amplamente meditado controle de constitucionalidade

das leis.

4.2 O Controle Jurisdicional de Convencionalidade Brasileiro e a Teoria da

Dupla Compatibilidade Vertical Material

261MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis. 2 ed. São Paulo: RT, 2011.

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134

Valério de Oliveira Mazzuoli262 afirma, recuperando lições apresentadas supra,

que a EC n. 45/2004, que introduziu o § 3º ao artigo 5º, da Constituição Federal oportunizou

aos tratados internacionais de direitos humanos serem aprovados com um quórum

qualificado, tendo esta disposição normativa a finalidade de que eles passem de um status

materialmente constitucional para a condição de pactos formalmente constitucionais,

equivalentes às Emendas Constitucionais.

Se os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente

constitucionais (artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal) ou material e formalmente

constitucionais (artigo 5º, § 2º e § 3º, da Lei Maior), é correto então sustentar que existe um

controle de convencionalidade das leis, que é o exame da compatibilidade entre as normas

expedidas na esfera nacional e as avenças internacionais de direitos humanos celebradas

pelo Brasil, significando isto que elas podem exercer o papel de paradigma de controle das

normas infraconstitucionais internas.

Apenas a título de curiosidade, os tratados internacionais comuns, que

disciplinam sobre temas diversos dos direitos humanos, igualmente guardam natureza

jurídica de normas superiores às leis domésticas, não sendo revogados por aquelas que

lhes sejam editadas posteriormente e servindo, da mesma maneira, de elemento de controle

da legislação ordinária nacional, controle denominado de supralegalidade e não de

convencionalidade, expressão destinada aos pactos nivelados com as normas

constitucionais.

O primeiro ponto que há de ser verificado é o de que a compatibilidade da lei

com o texto constitucional não mais lhe certifica validade no âmbito do Direito Interno. Em

ordem a que está característica seja conferida, a lei deve estar adequada à Constituição e

aos tratados internacionais de direitos humanos ou comuns dos quais o Brasil participe.

Na hipótese da norma se mostrar em sintonia com o texto constitucional, porém

em desacordo com um pacto internacional, ratificado pelo país, não será considerada válida,

apesar de manter sua vigência. Não se deve falar que a norma é valida, pois o documento

legislativo violou um dos limites verticais materiais erigidos doravante – os tratados

internacionais de direitos humanos ou comuns. Este tipo de incoerência, entre a produção

normativa doméstica e os tratados internacionais em vigência, acarreta a invalidade das

normas jurídicas de Direito Interno.

Hans Kelsen, titular da dogmática positivista clássica, estatuí que uma norma

vigente é válida e o inverso é verdadeiro, norma válida é norma vigente. Em dado trecho de

262MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro. In: MARINONI, Luis Guilherme (Coord). Controle de Convencionalidade – Um panorama latino-americano – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2013, pgs. 04/56.

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seu livro Teoria Pura do Direito faz alusão à expressão uma norma válida (vigente) e em

outra à locução vigência (validade) de uma norma263.

Norberto Bobbio264 esclarece que o positivismo assume uma atitude científica

frente ao Direito, pois, como avisava Austin, ele estuda o Direito tal qual é, não tal qual

deveria ser. O positivismo jurídico consiste no estudo do Direito como fato e não como valor.

Na definição do Direito deve ser afastada toda qualificação que seja construída a partir de

um juízo de valor e que imponha a avaliação do Direito em bom e mau, justo e injusto. O

Direito, objeto da Ciência Jurídica, é aquele que se materializa na realidade histórico-social.

O jusposititivista analisa o Direito real sem questionar se há, ao lado, um Direito ideal

(natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e sem condicionar a

validade do Direito real à sua harmonização com o Direito ideal. Duas observações são

importantes – é Direito Romano para o romanista tudo o que a sociedade romana assim

visualizava, sem fazer interferir um juízo de valor que gize distinções entre Direito justo ou

verdadeiro e Direito injusto ou aparente; a escravidão é, então, instituto jurídico equiparável

a outros, mesmo que dela se possa retirar conotação extremamente negativa.

Este comportamento contrasta o positivismo jurídico e o jusnaturalismo, que

defende ser parte do exame do Direito real a valoração baseando-se no Direito ideal,

adicionando-se na definição de Direito uma qualificação que delineie o Direito segundo um

critério determinado sob a ótica do Direito como deve ser.

263A circunstância de o dever-ser constituir também o sentido objetivo do ato exprime que a conduta a que o ato intencionalmente se dirige é considerada como obrigatória (devida), não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado – e isso muito embora o querer, cujo sentido subjetivo é o dever-ser, tenha deixado faticamente de existir, uma vez que, com a vontade, não desaparece também o sentido, o dever-ser; uma vez que o dever-ser vale mesmo depois de a vontade ter cessado, sim, uma vez que ele vale ainda que o indivíduo cuja conduta, de acordo com o sentido subjetivo do ato de vontade, é obrigatória (devida) nada saiba desse ato e do seu sentido, desde que tal indivíduo é havido como tendo o dever ou o direito de se conduzir de conformidade com aquele dever-ser. Então, e só então, o dever-ser, como dever-ser objetivo, é uma norma válida (vigente), vinculando os destinatários. (...) Com a palavra vigência designamos a existência específica de uma norma. Quando descrevemos o sentido ou o significado de um ato normativo dizemos que, com o ato em questão, uma qualquer conduta humana é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada. Se, como acima propusemos, empregarmos a palavra dever-ser num sentido que abranja todas estas significações, podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser feita. Se designarmos a existência específica da norma como a sua vigência, damos desta forma expressão à maneira particular pela qual a norma – diferentemente do ser dos fatos naturais – nos é dada ou se nos apresenta. A existência de uma norma positiva, a sua vigência, é diferente da existência do ato de vontade de que ela é o sentido subjetivo. A norma pode valer (ser vigente) quando o ato de vontade de que ela constitui o sentido já não existe. Sim, ela só entra mesmo em vigor depois de o ato de vontade, cujo sentido ela constitui, ter deixado de existir (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8 ed. 9. tiragem. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011). 264BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006.

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Norberto Bobbio explana que para desvendar as atitudes antagônicas do

juspositivismo e do jusnaturalismo é apropriado divulgar os dois conceitos de validade e de

valor do Direito.

A validade de uma norma jurídica é a qualidade dela, de acordo com a qual ela

existe na esfera do Direito. Atestar que a norma é válida indica que ela participa de um

ordenamento jurídico real, organizado em uma específica sociedade.

O valor de uma norma jurídica expressa a sua adequação ao Direito ideal. A

norma resume todos os valores fundamentais, que influenciam obrigatoriamente o Direito. O

antônimo de validade é invalidade e o de valor é desvalor ou injustiça. Têm-se dois pares de

termos que espelham dois pares de juízos acerca do Direito elaborados a partir de critérios

reciprocamente independentes.

A corrente jusnaturalista prega que para uma norma ser válida deve ser

valorosa, justa. Nem todo Direito existente é válido. A posição afasta as definições de

validade e valor, reduzindo a primeira ao segundo.

Uma teoria juspositivista extrema modifica o pensamento jusnaturalista. Ela

reconhece os mesmos dois termos, porém reduz o valor à validade, de sorte que uma

norma jurídica é justa pelo motivo único de ser válida, ou seja, se é oriunda de autoridade

legitimada pelo ordenamento jurídico para editar normas. É trabalhoso localizar, dentro do

positivismo, um seguidor desta subdivisão. Provavelmente Thomas Hobbes se mostre um

representante dela, porque aduz que no estado de natureza não há elementos capazes de

operacionalizar a distinção entre justo e injusto, pois eles surgem com a construção do

Estado, se tornando perfeitos apenas por comando do soberano – é justo o que ele ordena

e injusto o que ele veta.

A asserção supra não é típica ou majoritária do, no, positivismo jurídico. Nele,

em contrapartida, é usual diferenciar e separar cristalinamente a validade do valor. É viável

imaginar um Direito válido injusto e um Direito justo, por exemplo, o Direito Natural, que é

inválido. A Ciência Jurídica se contém em formular um juízo de validade do Direito, a

garantir, portanto, a sua existência jurídica. O juízo de valor é afastado do campo da Ciência

Jurídica. A diferença entre juízo de validade e juízo de valor é exclusivamente caso

particular, relativo ao Direito, da distinção entre juízo de fato e juízo de valor265. A frase –

265[...] O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo de fato: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. [...] A Ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser m conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos ou pessoais e consequentemente contrários à exigência de objetividade (BOBBIO,

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Este Direito é valido dirige uma informação aos cidadãos e aos juízes. E, a oração – Este

Direito é justo ou injusto age diretamente sobre as atitudes do cidadão, o instigando a

obedecer ou desobedecer o Direito.

Luigi Ferrajoli266, Luis Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli anunciam que

sob o panorama do Estado Constitucional e Humanista de Direito se opera uma alteração da

doutrina tradicional e nem toda norma jurídica vigente será válida.

O primeiro autor ensina que a definição teórica de direito válido continua sendo

ideologicamente neutra – é válida, ainda que seja injusta, qualquer norma ou preceituação

que esteja em consonância com as regras sobre sua produção. O que existe é que dentre

as normas acerca da elaboração de normas, o Estado Constitucional Moderno de Direito

vem introduzindo diversificados princípios ético-políticos ou de justiça os quais estabelecem

valorações ético-políticas das normas editadas e agem como parâmetros ou critérios de

legitimidade e ilegitimidade não mais externos ou jusnaturalistas, do que internos ou

juspositivistas.

Nos Estados Absolutistas e em vários Estados Modernos Totalitários, as normas

sobre a estruturação de normas, que ocupam o ápice do ordenamento jurídico, restringem-

se a deferir ao Poder Soberano o poder de legislar. Nestes sistemas seria válida a lei injusta

que conferisse ao soberano o poder arbitrário sobre a vida e a morte, do mesmo jeito que

foram válidas as normas acerca dos tribunais especiais, de exceção, para a defesa do

Estado, fundados na Itália ao longo do regime fascista. As normas deste viés são, em

contrapartida, em Estados de Direito que detenham Constituição rígida minimamente

garantista, injustas e inválidas em função da lesão aos princípios constitucionais de direitos

humanos, da igualdade e da estrita legalidade penal.

A singularidade do Estado Constitucional Moderno de Direito encontra-se

especificamente no fato de que as condições de validade delineadas nas leis fundamentais

abarcam requisitos de regularidade formal e requisitos de justiça material. Tais sinais

substanciais de validade, desprezados sem explicação pela maior parte das definições

juspositivistas normativistas ou realistas de direito válido, guardam mais relevância do que

as exclusivamente formais. O maior número de impugnações ou de declarações de

ilegitimidade ou invalidade de uma lei, uma sentença ou um ato administrativo não se

relacionam com defeitos formais (incompetência do órgão que legisla, violações de

procedimento), porém com falhas substanciais. Em uma menor escala, algo igual se dá no

que tange às decisões judiciais e administrativas impugnadas ou reformadas, na maioria das

vezes, pelo seu conteúdo e, num número seleto de casos, em razão de defeitos de forma.

Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006). 266FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4 ed. Tradução de Ana Paula Zomer Sica. et. al. São Paulo: RT, 2013.

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Luigi Ferrajoli admite que a máxima de Ulpiano segundo a qual quod principi

placuit legis habet vigorem (o que agrada ao príncipe possui força de lei) mantém-se como o

primeiro postulado do positivismo jurídico e o princípio fundante do Direito Positivo, embora

com a condição de que por vigência ou existência das normas se deva entender um instituto

claramente distinto da validade e da eficácia.

Portanto, para o autor, vigência é a validade apenas formal das normas

exatamente como advém da regularidade do ato normativo, cingindo ele o uso do termo

validade à validade material das normas promulgadas, ou seja, dos seus significados ou

conteúdos normativos. Será viável dividir a legitimidade jurídica ou interna, afastada da

legitimidade política ou externa, em todas as hipóteses de tipo material, de um lado, em

legitimidade jurídica formal, que se interliga unicamente às formas previstas para as normas

e à vigência das normas editadas e, de outro, em legitimidade jurídica substancial que, a

contrariu sensu, diz respeito aos conteúdos dessas normas, no tanto em que estejam

prescritos ou proibidos por normas sobre sua produção.

Diante disto, quando a ineficácia, de um sistema de normas acerca da produção,

alcançar o ponto de não se respeitarem as condições formais de validade do ato de

produção normativa, dir-se-á que a lei não foi edificada e não está vigente, não existe ou

não integra o ordenamento jurídico sob enfoque. Entretanto, se a ineficácia for perpetrada

somente no descumprimento das condições substanciais de validade da norma editada,

haverá invalidade, ainda que esteja vigente ou exista ou componha o ordenamento jurídico

examinado. As normas vigentes no Estado de Direito poderão ser eficazes ou ineficazes,

válidas ou inválidas, juridicamente legítimas no plano formal, mas não no material267.

Luigi Ferrajoli declara que adentra-se, em seguida, no tema nevrálgico do

problema da legitimação interna (validade), que é afeto à Teoria do Direito, e que se

distancia da justificação externa (justiça), ligada à Filosofia da Justiça.

Nos Estados Absolutistas validade e vigência se confundem, porque neles há

uma única norma acerca da elaboração legislativa, o princípio de mera legalidade quod

principi placuit legis habet vigorem. Ao passo que, nos Estados Modernos de Direito,

municiados de normas sobre produção legiferante que vinculam a validade das leis à

observância das condições substanciais ou de conteúdo, dentre elas os direitos

fundamentais, validade e vigência não coincidem. O Estado de Direito se particulariza por

está divergência, que é resultado da complexidade estrutural de suas normas acerca de

267São por exemplo existentes ou vigentes tanto uma norma constitucional válida mas ineficaz na medida em que seja constantemente não aplicada, como uma lei ordinária em contradição com ela mas aplicada de fato ou em qualquer caso não declarada ainda formalmente inválida. Pelo contrário, resultaria difícil conceber como vigente uma norma inválida, ainda não declarada expressamente como tal, e ineficaz (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4 ed. Tradução de Ana Paula Zomer Sica. et. al. São Paulo: RT, 2013).

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edição de leis. Nele uma norma existe, está vigente ou pertence ao Direito Positivo não

somente se é valida e ineficaz (não aplicada), mas também se é invalida e eficaz, até que se

declare a sua invalidade.

O vocábulo vigência preserva um significado mais amplo do que o de validade e

de eficácia. Não equivale, como a validade e a eficácia, a uma categoria de qualificação

teórica, porém é, segundo Luigi Ferrajoli, categoria metateórica da semântica da Teoria do

Direito que delineia a ocorrência do que se reconhece por norma jurídica, ou seja, a

referência empírica do conceito teórico de norma.

A complexidade estrutural do Estado de Direito, mencionada no parágrafo que

antecede o anterior, vem sendo misteriosamente desconsiderada pelas Teorias

Juspositivistas Contemporâneas Normativistas e Realistas, que misturam a existência das

normas jurídicas com a sua validade e eficácia, cogitando serem válidas normas só vigentes

ou só eficazes ou não supondo como não vigentes normas só inválidas ou ineficazes.

O ato de ignorar o instituto da vigência, distinto da validade e da eficácia, é fruto

de uma pobreza de linguagem teórica e desvenda uma incompreensão da característica do

Estado de Direito que, por sua vez, não sem motivos, se entrelaça com o Estado Jurídico,

de modo que, citando Hans Kelsen, todo Estado é um Estado de Direito, Estado e Direito se

integram e falta sentido na ideia de uma sua autovinculação.

É impressionante, frisa Luigi Ferrajoli, a persistência dos adeptos da tese de

Jeremy Bentham que, mediante utilização de intrincados sofismas, agasalham a tese de não

limitação jurídica do poder soberano. As normas continuam sendo válidas, recordando Hans

Kelsen, até que quedem invalidadas em procedimento determinado pelo ordenamento

jurídico, sendo que este ensinamento não deixa clara a diferença entre invalidação e ab-

rogação268.

Ainda, Herbert Lionel Adolphus Hart (H.L.A. Hart) procura resgatar a

identificação entre existência (vigência) e validade através da interpretação dos limites

legais infligidos à atividade legislativa não como deveres ou proibições, porém como

incompetências, de maneira que uma norma não adequada a eles não existe, quando,

268Maria Helena Diniz orienta que a revogação é gênero, que contém duas espécies: a ab-rogação e a derrogação. A ab-rogação é a supressão total da norma anterior, e a derrogação torna sem efeito uma parte da norma. Logo, se derrogada, a norma não sai de circulação jurídica, pois somente os dispositivos atingidos é que perdem a obrigatoriedade. A revogação pode ser, ainda, expressa ou tácita. Será expressa quando o elaborador da norma declarar a lei velha extinta em todos os seus dispositivos ou apontar os artigos que pretende retirar. Bastante louvável é a revogação expressa, pois a esse respeito, com muita propriedade, pondera Saredo que é evidente que na formação das leis deveria haver cuidado em indicar nitidamente, ao menos tanto quanto possível, quais as leis que se ab-rogam. Seria o melhor meio de evitar antinomias e obscuridades. Será tácita quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular inteiramente a matéria tratada pela anterior. Se a lei nova apenas estabelecer disposições gerais ou especiais, sem conflitar com a antiga, não a revogará (LICC [LIDB], art. 2º, § 2º) (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Vol.1 – Teoria Geral do Direito Civil. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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efetivamente, uma norma semelhante não é nula senão anulável e vigente até que seja

anulada.

Norberto Bobbio, apesar de separar validade formal e validade material, lembra

Ferrajoli, e aceitar que duas normas incompatíveis entre si não podem ser ambas válidas, se

considera obrigado a reconhecer a ab-rogação implícita da lei incompatível com uma norma

hierarquicamente superior, ao invés de se mostrar receptivo à anulação jurisdicional, e, por

efeito direto, a não refletir sobre a existência de normas inválidas que cessam somente com

sua anulação.

A incompreensão reportada acima esconde a divergência entre ser e dever ser

no Direito, que, consoante ensina Luigi Ferrajoli, reflete a distinção entre os diversos níveis

normativos – os superiores, em que são aconselháveis a validade e a invalidade e os

inferiores, nos quais são predicáveis a eficácia e a ineficácia das normas em todas as

hipóteses existentes ou vigentes.

O autor italiano reflete que disto tudo se originam falácias muito próximas às

delineadas pelas doutrinas jusnaturalistas ou ético-legalistas que misturam Direito e Moral

ou ser e dever ser do Direito Positivo no que se refere a valores externos a ele. A falácia

normativista arguida é semelhante à jusnaturalista, partilhando as duas de uma confusão

entre dever ser e ser jurídico. No primeiro caso são vigentes as normas válidas e no

segundo unicamente as normas justas. O engano realista é, no entanto, análogo ao ético-

legalista, mesclando os dois o ser com o dever ser jurídico, sendo que um e outro têm por

vigentes, respectivamente, as normas válidas e justas. Nas duas situações, a exclusão da

divergência entre dever ser e ser no Direito acaba por encobrir a ilegitimidade jurídica dos

ordenamentos jurídicos. A perspectiva normativista se circunscreve a uma apreciação

acrítica do dever ser jurídico, enquanto a ótica realista se limita a acolher, sem traçar

críticas, o ser jurídico, deixando de captar a distância que os separa do dever ser no Direito.

A lição ora em apreço adverte que a mencionada confusão entre validade e

vigência se deve a Hobbes e Bentham no Estado Absoluto do antigo regime, mas não pode

continuar a ser feita no Estado Constitucional de Direito, que é um sistema normativo

complexo que absorve o dever ser na forma de garantias jurídicas. O dever ser incorporado

ao Direito Positivo não se afina nem com a vigência ou existência das normas jurídicas,

muito menos com o dever ser extrajurídico manifestado por princípios de Direito Natural ou

Justiça. É, contudo, lícito sustentar que há compatibilização dele com a validade, que se

origina da concordância entre as normas e os valores previstos por outras normas positivas

superiores a elas.

A conclusão a que se chega é a de que o juízo de validade acerca uma norma

não é apenas juízo de fato acerca dos requisitos formais que a tornam identificável como

quod principi placuit e que, em função disto, legis habet vigorem. Ele configura,

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simultaneamente, um juízo de valor sobre os conteúdos substanciais que transformam em

juridicamente legítimo quod principi placuit. Sendo a legitimação interna uma questão de

Teoria do Direito e a legitimação externa assunto concernente à Filosofia do Direito, não há

empecilhos ao fato de que o elenco de condições da primeira possua lugar por meio de

proposições teóricas, que fazem referência empírica às normas jurídicas positivas, ao passo

que a separação de condições da segunda se dá através de opções políticas de forma

exclusivamente prescritiva.

No tom do exteriorizado acima, é depois de investigada a existência (vigência)

da norma que se procura apreciar a validade para, por último, se indagar sobre sua eficácia,

que está interligada à realidade social que a lei procura regular, transparecendo como meio

de atribuir aos jurisdicionados a confiança de que o Estado demanda atenção às normas,

titularizando, para isto, diversos mecanismos e força. Há a certeza de que s tribunais irão

aplicá-las.

Eis que vigência e eficácia não são contemporâneas, pois existindo a lei,

estando ela em vigência, e sendo válida, compatível com a Constituição e com os tratados

de direitos humanos e comuns em vigor no país, pode ser aplicada pelo Poder Judiciário, o

que não redunda na aquisição por ela de eficácia. Esta não pode ser separada da realidade

social ou da criação de efeitos concretos no campo da vida social. A falta de sintonia entre a

eficácia das leis e as realidades sociais e os valores de uma sociedade acarreta a não

produção de efeitos concretos, a ausência de efetividade da norma e o consecutivo desuso

social.

Em síntese, para a norma ser eficaz haverá de ser válida e para ser válida

precisará igualmente ser vigente. O oposto, porém, não é verdadeiro, consoante imagina o

positivismo clássico que, reitere-se, misturava vigência e validade. A vigência independe da

validade, mas esta se vincula àquela da mesma forma que a eficácia à validade.

Portanto, recordando Valério de Oliveira Mazzuoli269, lei formalmente vigente é a

editada pelo Parlamento em atendimento às regras de processo legislativo, previstas pela

Constituição, que detêm condições de entrar em vigor. Lei válida é a lei vigente em

conformidade com o texto constitucional e com os tratados internacionais de direitos

humanos ou comuns ratificados pelo Poder Executivo, tendo sua autoridade preservada e

resguardada contra qualquer impugnação.

A dupla compatibilidade vertical material (a- Lei Maior e tratados internacionais

de direitos humanos e b – tratados internacionais comuns) atribui com exclusividade

validade à lei nacional que será, pois, vigente, válida e possivelmente eficaz. Na hipótese

269MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro. In: MARINONI, Luis Guilherme (Coord). Controle de Convencionalidade – Um panorama latino-americano – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2013, pgs. 04/56.

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de, submetida a norma a este controle, não ser ela adequada aos tratados internacionais,

ela não terá qualquer validade no âmbito do Direito Interno nacional, devendo ser negada

sua incidência pelo magistrado oficiante em certo processo.

Adicione-se às notas feitas anteriormente que Miguel Reale adverte, sem todavia

se referir aos tratados internacionais comuns, que todas as fontes atuam no quadro de

validade instituído pela Constituição de cada país e agora nos limites autorizados por certos

valores jurídicos transnacionais, universalmente reconhecidos como invariantes jurídico-

axiológicas, a exemplo da Declaração Universal de Direitos do Homem, cabendo agregar

nesta espécie jurídica idealizada por Reale os tratados internacionais de direitos humanos.

E, Luiz Flávio Gomes, é da opinião de que o modelo kelseniano, positivista

legalista, ou clássico, não traça ponderações sobre a real atividade do juiz no Estado

Constitucional e Garantista de Direito, que precisa se apresentar autoridade mantenedora

dos direitos fundamentais. O equívoco metodológico e científico desta teoria nasce do

pensamento do Estado Moderno, da Revolução Francesa, do Código Napoleônico, residindo

neles a confusão entre lei e Direito.

Os direitos existiriam em função do que se situa unicamente na lei, mas o certo é

aceitar que é dela que advém toda a interpretação, que deverá ser conforme a Constituição

e, incluem-se nesta lição, os tratados internacionais de direitos humanos e comuns. Quando

a lei contrariar a Constituição ou o Direito Humanitário Internacional terá de deixar de ser

utilizada em prol da imperiosa incidência das normas e dos princípios constitucionais e

internacionais.

Luiz Flávio Gomes instrui que o positivismo clássico não ultrapassa o plano da

legalidade e da revogação, misturando revogação e invalidade da lei, enunciando uma

presunção de validade de todas as leis vigentes e não albergando a tríplice dimensão

normativa do Direito construída por normas constitucionais, internacionais e

infraconstitucionais. A revogação ocorre no plano formal (vigência e legalidade), requerendo

uma sucessão de leis, ao passo que à declaração de invalidade de uma norma se associa

uma nova estrutura normativa escalonada – Constituição e Tratados Internacionais sobre

Diretos Humanos em nível superior ao das leis ordinárias. O rol de normas acima das leis

infraconstitucionais, ora desenhado, deve contar, em adição, com os tratados internacionais

comuns.

A natureza jurídica constitucional dos tratados internacionais sobre direitos

humanos e o valor normativo supralegal dos pactos comuns, a primeira advogada

veementemente e o segundo somente reflexamente no capítulo 03 desta dissertação,

impõem à edição de normas estatais a obediência, repise-se, a limites formais ou

procedimentais e a duas balizas verticais materiais: (1) a Constituição e os tratados

internacionais de direitos humanos e (2) as avenças internacionais comuns.

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A teoria da dupla compatibilidade material vertical enseja, instrui Valério de

Oliveira Mazzuoli, quatro situações distintas no Direito Interno brasileiro: (1) se a lei em

choque é anterior à Constituição, opera-se a sua não recepção e invalidade da norma daí

em diante; (2) se a lei contrária é posterior à Lei Maior surge uma inconstitucionalidade, que

poderá ser corrigida pela utilização dos controles difuso e concentrado de

constitucionalidade; (3) se a lei anterior desrespeitar um tratado sobre direitos humanos ou

comum será revogada imediatamente (o estudo feito supra permite substituir a expressão

utilizada por invalidada) e (4) se a lei é posterior ao pacto e com ele contrastante, embora às

vezes adequada à Constituição Federal, será inválida, porém vigente, e, pois,

absolutamente ineficaz.

A compatibilidade entre normas ordinárias e a Constituição Federal e normas

infraconstitucionais e os tratados internacionais de direitos humanos ou comuns é

averiguada, respectivamente, através dos controles difuso e concentrado de:

constitucionalidade, convencionalidade e supralegalidade.

4.3 Controle Jurisdicional de Convencionalidade (Difuso e Concentrado) e o

respeito aos tratados internacionais de direitos humanos

A adequação do Direito Nacional às avenças internacionais sobre direitos

humanos das quais o Brasil participe é examinada mediante o denominado controle

jurisdicional de convencionalidade, que é complementar, coadjuvante e anexo ao conhecido

controle de constitucionalidade.

A expressão controle de convencionalidade não é muito empregada no país,

sendo que, na doutrina, Valério de Oliveira Mazzuoli a apreciou e desenvolveu

pioneiramente. A finalidade desta checagem é o ajustamento vertical das normas internas

vigentes com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e nele

em vigor.

Compreende-se que a comparação deva ser efetuada pelos órgãos da justiça

nacional, objetivando-se adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos acordos

internacionais sobre direitos humanos assumidos pelo país e que instituem para ele deveres

no plano internacional os quais produzem efeitos reflexos no Direito Interno.

Os tribunais internos não são os únicos270 que gozam da faculdade de colocar

em prática o controle de convencionalidade, salientando-se que os tribunais internacionais

270Los órganos que ejercen jurisdicción constitucional e interpretan e texto constitucional, Tribunal Constitucional, Corte Suprema de Justicia y Cortes de Apelaciones, deben realizar sus mejores esfuerzos en armonizar el derecho interno con el derecho internacional de los derechos humanos. Asimismo, ellos tienenn el deber de aplicar preferentemente el derecho internacional sobre las normas de derecho interno, ello exige desarrollar um control de convencionalidad sobre los preceptos legales y administrativos em los casos respectivos, como ya ló há sostenido la Corte Internamericana

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estão autorizados a desempenhá-lo por igual, pois eles são organizados por convenções

assinadas entre Estados, nas quais estes manifestam sua aquiescência em, no exercício

total da soberania, adimplir tudo o que for ali decidido, dando seguimento, na esfera do seu

Direito Interno ao conjunto de obrigações aceitas no instrumento formalizado, sob pena de

responsabilidade internacional. A aplicabilidade imediata garantida aos tratados

internacionais de direitos humanos garante a legitimidade da análise judicial das leis e dos

atos normativos.

O Poder Judiciário pratica o controle de convencionaldade independentemente

de autorizações internacionais. Ele terá caráter difuso quando os juízes ou tribunais

domésticos, acompanhando a incorporação dos tratados de direitos humanos ao Direito

Interno, comandarem incidentalmente o trabalho de conformação das leis internas ao

conteúdo das avenças de direitos humanos em vigência no Brasil. As normas nelas contidas

mantêm força paralisante e de invalidação dos outros tipos normativos contrários a elas,

sendo essencial que o magistrado promova a devida coordenação das fontes internacionais

e internas.

Em paralelo, é viável a ocorrência de controle concentrado de convencionalidade

no Supremo Tribunal Federal (STF) nas situações em que os tratados internacionais de

direitos humanos tenham sido aprovados pelo rito do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal

de 1988.

Em resumo, o controle de convencionalidade difuso existe desde a promulgação

da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), mas o controle de convencionalidade

concentrado surgiu com a edição da EC n. 45/2004 (08/12/2004).

A menção à expressão controle de convencionalidade, feita, segundo Valério de

Oliveira Mazzuoli, pela doutrina que o antecedeu, almeja abordar o tema a partir de outro

ângulo, que se relaciona à responsabilidade internacional do Estado por ato do Poder

Legislativo violador das disposições externas de direitos humanos. O controle é então

procedimento para evitar que uma lei, lesiva aos direitos humanos elencados em tratados

internacionais ratificados pelo Estado, seja editada pele Poder Legislativo. Tem-se técnica

legislativa por meio da qual o Poder Legislativo, ante um acordo internacional de direitos

humanos, deixa de adotar uma lei que com ele conflite, impedindo-se, assim, dar causa à

responsabilidade internacional do Estado.

Da mesma maneira, o termo é utilizado para designar a aferição de

compatibilidade entre as normas locais e as normas internacionais levada a efeito não pelo

de Derechos Humanos em el caso Almonacid (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro. In: MARINONI, Luis Guilherme (Coord). Controle de Convencionalidade – Um panorama latino-americano – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Uruguai. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2013, pgs. 04/56). .

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Poder Judiciário Interno, porém pelos mecanismos internacionais, unilaterais ou coletivos,

de identificação acerca do cumprimento pelo Estado de suas obrigações assumidas

internacionalmente.

O significado do controle de convencionalidade, em suma, abarca, na esteira do

pensamento acima colacionado, a verificação de compatibilidade normativa patrocinada

pelas instâncias internacionais, externas, de tutela dos direitos humanos ou as providências

legislativas de adequação das leis em produção, desempenhada pelo Poder Legislativo,

deixando de comparar este controle com aquele de constitucionalidade estruturado no

campo do Direito Interno. Não se trata do controle jurisdicional interno da convencionalidade

das leis no Brasil.

Dentro deste contexto avisa-se que, no mês de julho de 2000, no jornal da

Associação Juízes para Democracia (AJD), restou publicada notícia intitulada Direito ao

duplo grau de jurisdição e o controle de convencionalidade das leis271, que relatava que, em

junho do mesmo ano, o Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE/SP (Procuradoria

Geral do Estado de São Paulo) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)

haviam submetido à análise da Comissão Interamericana de Direito Humanos um

expediente envolvendo o conflito normativo entre os artigos 594272 e 595273 do Código de

Processo Penal e o artigo 8º, (2), h274, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Os requerentes afirmaram que atrelar o processamento do recurso ao prévio

recolhimento do réu ao cárcere revelava-se condição inadmissível em face da garantia

judicial mínima ao duplo grau de jurisdição constante do artigo 8º, (2), h, da Convenção

Americana de Direitos Humanos. O não processamento do apelo pela razão da fuga do réu

implicaria nítida ofensa à normatividade internacional incorporada ao Brasil.

A petição envolveu três argumentos centrais: (1) o Brasil, no livre e amplo

exercício de sua soberania ratificou a Convenção Americana de Direito Humanos sem a

formulação de qualquer reserva sobre a matéria; (2) pelo princípio da boa-fé, cabe ao

271DIREITO ao duplo grau de jurisdição e o controle de convencionalidade das leis. Jornal da Associação Juízes para a Democracia, São Paulo, Associação Juízes para a Democracia, ano 5, n. 21, p. 9, jul./set. 2000. 272O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto (BRASIL. Código Penal, Código de Processo penal e Constituição Federal. Obra coletiva da autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2006). 273Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declara deserta a apelação (BRASIL. Código Penal, Código de Processo penal e Constituição Federal. Obra coletiva da autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2006). 274[…] Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior (BRASIL. Código Penal, Código de Processo penal e Constituição Federal. Obra coletiva da autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2006).

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Estado brasileiro atribuir plena observância aos direitos internacionais nela previstos e (3)

diante do princípio da prevalência da norma mais benéfica, na hipótese de conflito entre a

norma internacional e a norma interna, prevalece sempre a norma mais favorável, estando o

fundamento disto no artigo 29, da própria Convenção Americana. Daqui advém a

obrigatoriedade de dar primazia ao artigo 8º, (2), h, da Convenção Americana em prejuízo

dos artigos 594 e 595 do Código de Processo Penal, porque não compete ao Estado

brasileiro suprimir, limitar ou restringir o alcance dos direitos previstos na Convenção.

O artigo da AJD anuncia que se há de realçar que os instrumentos internacionais

englobam sempre parâmetros mínimos de proteção aos Direitos Humanos, devendo os

Estados-partes tornar a legislação interna ajustada às normativas internacionais mais

protetivas à pessoa humana. No âmbito dos Direitos Humanos é inaugurada a chamada

advocacia voltada ao controle da convencionalidade das leis em benefício da melhor e mais

eficaz tutela da dignidade humana.

Cabe explicar que os artigos 594 e 595 foram revogados oportunamente pelas

Leis n. 11.719/2008 e 12.403/2011.

Guilherme de Souza Nucci275 pronuncia em glosa acerca do artigo 595 que a lei

instituiu uma desistência presumida ao recurso de apelação, se o réu, sabendo que deve

estar recolhido para seu apelo ser conhecido, fugir do local de sua prisão. O Supremo

Tribunal Federal decidiu porém, no HC n. 85.369-SP276, de relatoria da Ministra Cármen

Lúcia (julgamento – 26/03/2009), pela inconstitucionalidade do indigitado dispositivo, além

de declará-lo alterado pela reforma processual penal conduzida pela Lei n. 11.719/ 2008.

Em igual toada, o Superior Tribunal de Justiça, antes do indicado julgamento pelo STF e da

promulgação de citadas leis revogadoras, já havia publicado a Súmula n. 347 que afirma,

pois não cancelada ainda, que o conhecimento do recurso de apelação do réu independe de

sua prisão.

275NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 276Habeas Corpus. Processo Penal. Constitucional. Pena de Deserção. Art. 595 do Código de Processo Penal. Não recepção pela Constituição da República. Obrigatoriedade de Processamento da Apelação. 1. Contraria o direito à ampla defesa a declaração da deserção da apelação em razão do não-recolhimento do condenado à prisão, ou da sua fuga depois de ter apelado. 2. Entendimento consubstanciado pela jurisprudência do Supremo Tribunal no sentido de que é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo (ADI n. 1.976, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 18.5.2007), e pelas alterações produzidas pela Lei n. 11.719/08, que alteraram a interpretação e a aplicação do art. 595 do Código de Processo Penal, pois, além de se revogar expressamente o art. 594 desse diploma legal, alterou-se o seu art. 387, que passou a estabelecer competir ao juiz decidir, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta (parágrafo único do art. 387). 3. Ordem concedida (Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 09/03/2014).

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Com efeito, Fernando da Costa Tourinho Filho277 alude, em lição anterior à

revogação formal do artigo 595, que:

[...] Temos para nós que o art. 595 foi revogado por via oblíqua. A revogação do art. 594 tornou sem efeito o art. 595. É certo que o legislador ordinário pode estabelecer requisitos para que os recursos possam ser processados: adequação, tempestividade, modo de interposição, legitimidade, interesse. Todavia, exigir o recolhimento do réu à prisão para poder apelar ou mesmo declarar deserto o apelo daquele que apelou e fugiu são situações que devem escapar (e realmente escapam) da alçada do legislador ordinário, uma vez que o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8º, n. 2, alínea h, dispõe que toda pessoa acusada tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. E como este Pacto foi promulgado entre nós pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992, e se insere entre os nossos direitos e garantias individuais, ex vi do § 2º do artigo 5º da nossa Carta Política, é de cristalina violência aos direitos do cidadão não poder o réu submeter à apreciação do Tribunal uma sentença condenatória sem antes recolher-se à enxovia.

Note-se que a concepção de controle de convencionalidade adotada por Valério

de Oliveira Mazzuoli possui origem francesa e remonta ao início da década de 1970. O

instituto surgiu originariamente na decisão n. 74-54, de 15 de fevereiro de 1975, na qual o

Conselho Constitucional Francês estabeleceu não ser competente para avaliar a

convencionalidade preventiva das leis, a conformação delas aos tratados internacionais de

direitos humanos ratificados pela França, no caso a Convenção Europeia de Direitos

Humanos de 1950, pelo motivo de não envolver a hipótese um autêntico controle de

constitucionalidade, o único para o qual o Conselho conservaria capacidade para expedir

manifestação278.

André de Carvalho Ramos279, em Teoria Geral dos Direitos Humanos, assinala

que há duas espécies de controle de convencionalidade, internacional e nacional.

A primeira é a atividade de fiscalização dos atos e condutas dos Estados em

contrariedade com seus compromissos internacionais. Atribui-se a órgãos julgadores

independentes, organizados por tratados internacionais, o que impede que os próprios

Estados sejam, simultaneamente, fiscais e fiscalizados. Entre os órgãos de maior destaque

277FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de Processo Penal Comentado (Arts. 394 a 811 e legislação complementar). Vol. 2. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 278Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet preconizam que a orientação do Tribunal de Cassação no caso Administration des douanes c. Sté Cafés Jaques Vabre, julgado em 24/05/1975, no sentido de que as disposições do Direito Comunitário devem prevalecer sobre uma lei francesa ulterior, foi favorecida pela decisão do Conselho de Estado, de 15/01/1975, que negou a apreciação da conformidade entre a lei sobre interrupção voluntária da gravidez e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, impedindo na mesma oportunidade que os tratados integrassem o bloco de constitucionalidade (DINH, Nguyen Quoc. et. al. Direito Internacional Público. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003). 279RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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encontram-se os tribunais internacionais de direitos humanos (Corte Europeia,

Interamericana e Africana), a Corte Internacional de Justiça, os Tribunais de Direito da

Integração (Tribunal de Justiça da União Europeia e Tribunal Permanente de Revisão do

MERCOSUL).

A segunda consiste no estudo da compatibilidade do ordenamento interno às

normas internacionais, desenvolvido por Tribunais internos. Esse controle foi desenhado,

conforme historiado acima, na França em 1975, quando o Conselho Constitucional

sedimentou, que não lhe cabia a análise da adequação de lei ao tratado internacional. Ela

deve ser realizada, entretanto, por juízos ordinários, sob o controle da Corte de Cassação e

do Conselho de Estado.

É importante a advertência de que não há vinculação entre os dois tipos de

controle, não estado o magistrado internacional vinculado à decisão do juiz nacional.

André de Carvalho Ramos pontifica que o controle de convencionalidade

internacional se mostra resultado da ação do intérprete autêntico dos tratados de direitos

humanos, os órgãos internacionais. Um exemplo marcante está no exame, promovido pelo

Supremo Tribunal Federal, da compatibilidade da Lei de Anistia, Lei n. 6.683/1979, com a

Convenção Americana de Direitos Humanos (ADPF n. 153280, Relator Ministro Eros Grau),

280Ementa: [...] 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que

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que não adstringe a Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois ela faz o controle de

convencionalidade autêntico, que pode ou não coincidir com o posicionamento nacional.

Eis o fundamento por meio do qual o autor opta por empregar o termo controle

de convencionalidade exclusivamente para se reportar à verificação de cunho internacional,

produto da ação dos intérpretes autênticos na esfera internacional. Mas, apesar da

preferência, ele elenca algumas diferenças entre os dois tipos de controle.

Em primeiro lugar, a hierarquia do parâmetro de confronto no controle de

convencionalidade internacional é oriunda das escolhas internacionais em alinhamento com

o princípio da primazia do Direito Internacional. O exemplo disto se situa no fato de que o

controle de convencionalidade internacional, conduzido por tribunais internacionais, pode

abranger a produção normativa do Poder Constituinte Originário de um país, lembrando que

o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 815-RS, Ministro Relator Moreira Alves

(28/03/1996) consagrou que ele não tem jurisdição para fiscalizar a validade das normas

aprovadas pelo Poder Constituinte Originário281.

No controle de convencionalidade nacional, a hierarquia do tratado-paradigma é

dependente do Direito Nacional, que estabelece o status das avenças internacionais.

Em segundo lugar, a interpretação do que é ou não adequado ao tratado-

parâmetro não se apresenta igual. Certos tribunais internos se socorrem de normas

estipuladas em acordos internacionais sem sequer apontar a interpretação dada, pelos

órgãos internacionais, aos seus artigos, acarretando conclusões divergentes.

Na opinião de André de Carvalho Ramos282, o controle de convencionalidade

nacional é, em verdade, controle de supralegalidade ou constitucionalidade, de acordo com

o status que a norma internacional venha a adotar. O real controle de convencionalidade de

tratados internacionais é aquele cujo processamento se opera no plano internacional,

ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura (Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 09/03/2014). 281Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Constituição Federal. - A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras e incompossível com o sistema de Constituição rígida. - Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (artigo 102, "caput"), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. - Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação as outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido (Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 11/03/2014). 282RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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porque o controle denominado nacional não preserva sempre os comandos interpretados

das normas paramétricas elencadas nos tratados, o que desvaloriza a noção particular da

prevalência deles.

A utilização da expressão controle de convencionalidade na França, no ano de

1975, para denominar o fenômeno de checagem entre a norma internacional, superior, e a

norma ordinária, se justifica, pois, na época, havia fraqueza inconteste do controle de

convencionalidade internacional. A Comissão Europeia de Direitos Humanos não permitia

acesso direto das vítimas à Corte Europeia de Direitos Humanos; desde o primeiro caso

julgado por este tribunal (Caso Lawless, 1960) até 1998, os processos nele apreciados não

passavam de poucas centenas. O cenário foi alterado depois de uma série de alterações da

Convenção Europeia de Direitos Humanos, especialmente, com a extinção da Comissão e

permissão de acesso direto da vítima à Corte Europeia, conferida pelo Protocolo n. 11.

Apenas em 2009 ao redor de cem mil casos aguardavam julgamento, número que se

equipara ao dos tribunais nacionais.

André de Carvalho Ramos afirma que na sentença expedida contra o Brasil, pela

Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), o

juiz ad hoc sugerido pelo Brasil, Roberto Caldas, asseverou que da mesma forma que aos

tribunais supremos ou constitucionais nacionais recai o dever de efetuar o controle de

constitucionalidade e proferir a última palavra na área limite dos Estados, à Corte

Interamericana de Direitos Humanos concede-se o poder de conduzir o controle de

convencionalidade e elaborar decisões finais quando o tema verse sobre Direitos Humanos.

Isto surge do reconhecimento formal pelo país da competência jurisdicional da Corte por um

Estado.

O autor, embora ateste que o controle de convencionalidade legítimo é o

internacional, explicita que o controle nacional é importante, principalmente se a hierarquia

interna dos acordos internacionais for equivalente à norma constitucional ou norma

supralegal. Mas, a interpretação do conteúdo das normas sempre será um problema aberto

entre os controles judiciais nacionais e o controle de convencionalidade internacional.

A tese defendida por André de Carvalho Ramos é a de que haja interação entre

os controles, viabilizando-se o diálogo e uma fertilização cruzada entre o Direito Interno e o

Direito Internacional, privilegiando-se as interpretações adotadas pelos órgãos

internacionais cuja jurisdição restou reconhecida pelo Brasil.

A favor da existência de um controle de convencionalidade internacional

revisional ou corretivo de omissão, Valério de Oliveira Mazzuoli leciona que o controle de

convencionalidade nacional é o principal e dever ser desempenhado antes de qualquer

manifestação de um tribunal internacional. As Cortes Internacionais verificarão a

harmonização entre uma norma doméstica e uma norma internacional unicamente se o

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Poder Judiciário de origem não o fizer ou caso o tenha realizado insuficientemente. Não se

revela correto dizer que somente o controle internacional seria o verdadeiro, pois este

raciocínio está em nítida contrariedade àquilo que os próprios tribunais internacionais

requerem, ou seja, que os magistrados e tribunais internos confiram a convencionalidade de

suas normas domésticas. A Convenção Americana manifesta sua concordância com um

controle de convencionalidade internacional coadjuvante ou complementar do controle

interno, pois em seu segundo considerando disciplina que a proteção internacional

convencional é coadjuvante ou complementar à disponibilizada pelo Direito Interno dos

Estados americanos.

4.4 Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis, Diálogo das Fontes,

Princípio Pro Homine, Poder Judiciário

A atividade a ser exercida pelos magistrados nacionais, descrita acima, precisa

se fundamentar, recordando Valério de Oliveira Mazzuoli, no denominado diálogo das

fontes, porque para se alcançar a justiça do ato decisório os juízes deverão compreender a

lógica da teoria da dupla compatibilidade vertical material, proporcionando-se, então, uma

melhor solução ao caso concreto.

A técnica aventada foi aceita pelo Ministro Celso de Mello quando da prolação

de seu voto no HC n. 87.525-8/TO283, ocorrida na sessão plenária do Supremo Tribunal

Federal datada de 03/12/2008. Da leitura dele depreende-se que as fontes internas e

internacionais hão de dialogar entre si para que seja resolvida a questão antinômica

existente entre o tratado e a lei doméstica brasileira. Em trecho do texto apura-se que o

diálogo das fontes é ferramenta facilitadora da consagração da primazia hierárquica das

convenções internacionais de direitos humanos em hipóteses de antinomias entre o Direito

Interno e as cláusulas decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos.

Cláudia Lima Marques284 explana acerca do diálogo das fontes, teoria

estruturada por Erik Jayme, que os Direitos Humanos, os direitos fundamentais e

constitucionais, os tratados, as leis e os códigos são fontes normativas que não mais se

excluem ou se revogam mutuamente, porém que interagem uma com as outras e os juízes

são encaminhados a coordenar estas fontes e apurar o que elas têm a acrescentar.

283Ementa: Depositário Infiel - Prisão. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel (Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 15/03/2014). 284MARQUES, Cláudia Lima. O Diálogo das Fontes como Método da nova Teoria Geral do Direito: Um tributo a Erik Jayme. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord). Diálogo das Fontes. Do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: RT, 2012, pgs. 17/66.

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152

A reconstrução da coerência do sistema de direito ou de uma ordem jurídica

nacional não é incumbência fácil em um período temporal moderno em que há

fragmentação, internacionalização, flexibilização de valores e hierarquias, convivência de

paradigmas e métodos, bem como que se caracteriza por extrema complexidade e

pluralismo de fontes, exigindo, pois, muita habilidade e sensibilidade dos juristas.

O sistema jurídico presume a coerência, devendo o Direito evitar a contradição.

O magistrado, defronte de duas fontes normativas, deve buscar coordená-las em um típico

diálogo (Dialog der Quellen). A teoria de Erik Jayme se introduz em uma tradição de visão

sistemática e funcional da ordem jurídica, iniciada por Karl Larenz, Santi Romano, Karl

Engisch, Norberto Bobbio e Theodor Viehweg, que é modernizada por um enfoque

internacional e cultural do Direito, dentro de uma perspectiva mais humanista sobre a

relação entre as normas. É como se os sistemas interno e externo de Phillipe Heck fossem

transportados para uma concepção unitária e coerente do Direito Internacional, ordenado

pelos Direitos Humanos, valores maiores e basilares desta ordem. Nos conflitos entre o

Direito Interno e o Direito Internacional Público, guiam o sistema a valorização dos Direitos

Humanos e o princípio pro homine.

A Teoria do Diálogo das Fontes é um método da nova Teoria Geral do Direito

extremamente útil e pode ser empregada na aplicação de todos os ramos do Direito Privado

e Público, Nacional e Internacional, como instrumento importante na aplicação da lei no

tempo ante o pluralismo normativo pós-moderno, que não foi reduzido no século XXI.

Cláudia Lima Marques285 salienta que a proposta de coordenação das fontes, feita

por Erik Jayme, prevê uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em confronto

em um sistema, que tem por finalidade restabelecer a sua coerência e priorizar os Direitos

Humanos (Leitmotiv – Motivo condutor). Há a mudança de um paradigma, ou seja, da

revogação simples de uma das normas em choque evolui-se para a convivência entre as

normas, ao diálogo das normas em ordem a se atingir a razão delas e a finalidade transcrita

ou inserida em cada uma delas, sob o abrigo da Constituição, de seu sistema de valores e

amplamente dos Direitos Humanos.

O voto do Ministro Celso de Mello, no HC n. 87.585-8/TO, recebe a tese do

diálogo das fontes e da incidência do princípio internacional pro homine, afastando a sua

orientação anterior, exposta em voto no HC n. 77.631/SC, de que os tratados de direitos

humanos possuíam natureza jurídica de lei ordinária. O referido princípio é um dos mais

perceptíveis produtos da pós-modernidade jurídica e revela a fluidez e a dinâmica que hão

de se desenvolver no centro da celeuma envolvendo conflitos normativos. A proposta

285MARQUES, Cláudia Lima. O Diálogo das Fontes como Método da nova Teoria Geral do Direito: Um tributo a Erik Jayme. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord). Diálogo das Fontes. Do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: RT, 2012, pgs. 17/66.

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153

jurídica descrita atribui força jurídica expansiva aos Direitos Humanos, lhes permitindo

permanecer à disposição do Direito como instrumento de disseminação da paz, que é valor

anterior às normas jurídicas que o contemplam e, pois, mais amplo que elas.

André de Carvalho Ramos286 sedimenta que toda a exegese do Direito

Internacional dos Direitos Humanos, instituída pela jurisprudência internacional, guarda

como ponto nuclear o princípio de interpretação pro homine, o qual faz surgir a necessidade

de que a interpretação normativa seja efetuada sempre em benefício da tutela garantida aos

indivíduos.

O princípio em estudo advém do regime objetivo dos tratados internacionais de

direitos humanos, que originou uma real ordem pública internacional, consolidando deveres

em prol da proteção do ser humano. A obrigação internacional de preservação dos Direitos

Humanos não deve ser interpretada restritivamente a favor dos Estados, porém deve o ser

em prol do destinatário da proteção internacional dos Direitos Humanos (indivíduo).

A jurisprudência internacional, avisa André de Carvalho Ramos, elencou

algumas diretrizes hermenêuticas a partir do princípio pro homine.

A primeira demanda que seja desempenhada interpretação sistemática do

conjunto de normas de Direitos Humanos, de maneira a se identificar direitos inerentes,

ainda que implícitos. No julgamento do caso Golder, a Corte Europeia de Direitos Humanos

deixou de aceitar argumento apresentado pelo Reino Unido no sentido da legitimidade da

restrição ao direito de correspondência entre detento e advogado, pois o artigo 6º da

Convenção, ao estabelecer o direito a um julgamento seguindo-se a rule of the law não

previu o direito de acesso, por intermédio de advogado, ao Poder Judiciário. O Tribunal

Internacional aduziu que a interpretação certa deveria considerar o preâmbulo da

Convenção Europeia de Direitos Humanos, seus objeto e finalidade, o que evidenciou o

descumprimento e violação dos direitos do reclamante pelo Reino Unido.

A segunda disciplina que a interpretação das possíveis limitações permitidas aos

direitos e feitas nos próprios tratados internacionais deve ser restritiva. Em parecer

consultivo n. 02, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, observou que as reservas à

Convenção Interamericana precisam ser interpretadas restritivamente, impedindo-se, então,

o enfraquecimento da proteção ao ser humano.

E, a terceira, se refere à utilização da interpretação pro homine no exame de

omissões e lacunas das normas de direitos humanos. A Corte Interamericana de Direitos

Humanos fixou, em decisões tidas por históricas, que a denúncia peruana ao

reconhecimento da jurisdição de tal Tribunal, praticada pelo país em 1999, sob o comando

do Presidente Alberto Fujimori, descerrou ato desprovido de efeitos, porque a Convenção

286RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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Americana de Direitos Humanos, embora omissa quanto à viabilidade e juridicidade de

denúncia ao reconhecimento de jurisdição obrigatória, contém artigo expresso, explícito de

vedação ao retrocesso ou diminuição na proteção conferida e acordada ao indivíduo (artigo

29).

A interpretação empreendida determinou que a denúncia em questão destruía a

tutela garantida ao jurisdicionado peruano, o que maculou o ato de nulidade. A Corte

continuou a adotar este posicionamento nos julgamentos envolvendo o Peru, sendo que

este país, encerrado o Governo Fujimori, reconsiderou sua decisão.

Uma breve nota há de ser incluída, neste momento, sobre o Direito do Trabalho,

que enfrenta desafio semelhante no momento de fazer incidir o princípio da norma mais

favorável, não ao ser humano (pro homine), mas ao ser humano trabalhador. Em que pese a

denominada hierarquia dinâmica do Direito do Trabalho, que leva o seu intérprete ou

aplicador a escolher a norma mais favorável independentemente de sua hierarquia formal, à

margem dos critérios clássicos kelsenianos de hierarquização normativa, fenômeno

apontado e profundamente examinado por Américo Plá Rodrigues287, Guilherme Guimarães

Feliciano288, e Maurício Godinho Delgado289, e que talvez distancie o Direito do Trabalho do

Direito Constitucional Internacional, não cabendo aqui maiores digressões sobre este ponto,

a doutrina trabalhista formulou duas interessantes teorias (acumulação e conglobamento)

que não devem passar in albis, desapercebidas.

A primeira sugere como procedimento de seleção, análise e classificação das

normas comparadas, o fracionamento do conteúdo dos textos normativos, extraindo-se

deles os preceitos e institutos singulares de cada um que se destaquem pelo sentido mais

favorável ao trabalhador, o que causa cisão nos textos normativos colocados em

comparação.

A segunda erige um procedimento de seleção, análise e classificação distinto do

anterior. Os preceitos e institutos não são fracionados; os conjuntos normativos são

apreendidos globalmente, considerados os mesmos universos temáticos, direcionando-se,

pois, após confronto analítico à determinação do conjunto normativo mais favorável. A teoria

propõe um equacionamento do instrumental normativo em razão da matéria versada (ratione

materiae), objetivando-se definir a norma mais favorável sob uma ótica unitária. Trata-se de

um critério sistemático em que se respeita cada regime jurídico em suas totalidade e

globalidade. A escolha da norma mais favorável se opera observando-se o seu sentido no

universo do sistema ao qual se liga, de maneira a não originar, pelo procedimento de

287RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. 1 ed. São Paulo: LTR, 1996. 288FELICIANO, Guilherme Guimarães. Curso Crítico de Direito do Trabalho. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 289DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed. São Paulo: LTR, 2013.

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seleção e cotejo, antinomias normativas entre a solução encontrada no caso concreto e a

linha central do sistema jurídico.

O uso do Diálogo das Fontes e do princípio pro homine, retornando aos tratados

internacionais de direitos humanos, não afasta simultaneamente uma ou outra ordem

jurídica, interna e internacional, porém as complementa, autorizando que a produção do

Direito Nacional se atente para o diálogo entre a Constituição e os tratados internacionais de

direitos humanos, que preservam com ela relação de equivalência.

A Lei Maior não exclui a incidência dos pactos e nem eles impedem a aplicação

dela, mas as normas se integram para obstaculizar a elaboração doméstica e

infraconstitucional de normas que violem os preceitos da Constituição Federal ou dos

tratados internacionais em que o Brasil seja parte. A incompatibilidade do Direito

Infraconstitucional com uma das supernormas enumeradas o invalida integralmente. Isto

autoriza a construção de um Estado Constitucional e Humanista de Direito no qual o Direito

Nacional está adequado à Constituição e aos tratados internacionais de direitos humanos

ratificado pelo Estado, alcançando-se uma ordem jurídica equilibrada cujos princípios e

razão repousam no valor dos Direitos Humanos.

Valério de Oliveira Mazzuoli defende, dentro deste cenário, que quando o texto

constitucional diz, no artigo 102, inciso I, a, ser do Supremo Tribunal Federal a competência

de guardar a Constituição, cabendo-lhe originariamente julgar as ações diretas de

inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais e a ação declaratória

de constitucionalidade de leis ou atos normativos federais, está permitindo que os

colegitimados próprios para o ajuizamento das demandas (artigo 103) proponham estas

medidas sempre que a Constituição ou os acordos internacionais equivalentes às Emendas

à Constituição, nitidamente os tratados internacionais incorporados com quórum qualificado

do artigo 5, § 3º, estiverem sendo lesados por normas infraconstitucionais. Se a Constituição

Federal, por exemplo, se quedar silente sobre direito específico, basta que ele esteja

previsto em tratado de direitos humanos constitucionalizado pelo rito do mencionado

dispositivo para que seja viável o controle concentrado de constitucionalidade.

Não se há de falar em controle concentrado de constitucionalidade, porque o

tratado internacional de direitos humanos paradigma é equivalente à Constituição. Tem-se

controle de convencionalidade das leis, que se materializa através do empréstimo de um

tipo de ação de controle concentrado de constitucionalidade.

O autor afirma que é questão de lógica o fato de a um tratado internacional de

direitos humanos, internado pelo quórum qualificado e com nível hierárquico de emenda à

Constituição, serem garantidos os meios de proteção contra leis infraconstitucionais lesivas.

É cabível a ação direta de inconstitucionalidade para decretar a norma infraconstitucional

inconvencional, a ação declaratória de constitucionalidade para certificar a compatibilidade

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vertical com um tratado internacional de direitos humanos formalmente constitucional e a

arguição de descumprimento de preceito fundamental com o fito de reivindicar o respeito a

um preceito fundamental existente em um tratado internacional de direitos humanos também

formalmente constitucional.

As avenças internacionais de direitos humanos não incorporadas pelo quórum

qualificado, normas materialmente constitucionais são, em contrapartida, parâmetro de

controle difuso, via de exceção ou de defesa, de convencionalidade. Não prospera o

ensinamento de José Afonso da Silva290, portanto, de que as normas infraconstitucionais

que violarem as normas internacionais de direitos humanos, acolhidas mediante o

procedimento do artigo 5º, § 3º, são inconstitucionais e podem ser submetidas ao sistema

de controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, enquanto que os tratados

internacionais de direitos humanos, não recebidos deste modo, adentram o ordenamento

jurídico no nível de lei ordinária, resolvendo-se eventual conflito pelo modo de análise da

relação entre lei especial e lei geral.

Adicione-se ao exposto nas linhas anteriores que é cabível recurso

extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal sempre que a decisão recorrida

contradiga artigos constitucionais ou de tratados de direitos humanos em vigor no Brasil.

Esta tese doutrinária é fruto da interpretação sistemática dos artigos 102, inciso III, a, e 5º, §

2º e 5º, § 3º, os três da Constituição Federal de 1988. Uma vez que o recurso indicado é

ferramenta de controle difuso de constitucionalidade e os direitos e garantias expressos na

Magna Carta não excluem outros oriundos dos tratados dos quais participe o Brasil, se

mostra certa a ampliação da norma contida no artigo 102, inciso III, a, de forma a atingir

referidos tratados, componentes do bloco de constitucionalidade, possuam eles status de

norma materialmente constitucional somente ou sejam eles equivalentes à emenda

constitucional (natureza jurídica de norma material e formalmente constitucional – artigo 5º,

§ 3º).

Em resumo, todos os pactos internacionais que consolidam o corpo normativo

convencional de Direitos Humanos, de que o Estado é parte, devem ser utilizados como

elementos de controle de convencionalidade, salientando-se que (a) tratados de direitos

humanos incorporados mediante votação qualificada são paradigmas de controle

concentrado, além do difuso, obviamente, de convencionalidade e (b) acordos de direitos

humanos que têm valor jurídico de norma materialmente constitucional e, pois equivalentes

às emendas à Constituição, servem de parâmetro exclusivamente de controle difuso de

convencionalidade.

290SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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Por fim, apesar de existir grande esforço doutrinário, conforme visto supra, rumo

à disseminação do conceito e das modalidades de controle de convencionalidade, os

tribunais brasileiros, notadamente o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal

de Justiça (STJ), parecem não ter conferido o valor e a importância devidos a eles, pois

consultas recentes, às suas páginas na internet demonstram a ausência de exame, por tais

Casas de Justiça, da compatibilidade da legislação nacional com o acervo normativo

internacional sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil seja signatário. O julgamento do

RE n. 466.343-SP adequou tímida e cautelosamente a legislação infraconstitucional ao

Pacto de San José da Costa Rica, mas não denominou este exame de controle de

convencionalidade, porque não reconheceu o status de norma materialmente constitucional

ou de norma material e formalmente constitucional, em cristalino desrespeito ao artigo 5º, §

2º, da Constituição Federal de 1988, ao citado pacto de direitos humanos. Ademais, o

julgado também não teve força suficiente para influenciar, fomentar a adoção, pelos

tribunais superiores, de segunda instância e entre juízes, da técnica de estudo das leis

domésticas frente às leis internacionais de direitos humanos de que ora se cuida.

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Conclusão

Em resumo cabe afirmar que a Constituição Federal Brasileira de 1988

disciplinou pioneiramente em âmbito nacional, no artigo 5º, § 2º, que os direitos e garantias

expressos ali não vêm a excluir outros oriundos do regime e dos princípios por ela

empregados, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja

parte.

Lembra-se que o artigo 153, § 36, da Constituição de 1967, com a redação

conferida pela Emenda n. 01/1969, apenas estatuía não ter a especificação de direitos e

garantias naquele texto o poder de afastar outros direitos e garantias decorrentes do regime

e dos princípios por ela adotados.

A regra inserida no artigo 5º, § 2º, da Lei Maior de 1988, embora tenha inovado,

conforme salientado acima, manteve a tradição do direito constitucional republicano iniciada

com a Constituição de 1891291, sob influência da Nona Emenda da Constituição dos Estados

Unidos da América292, e perpetuada nas Cartas Brasileiras supervenientes (1934 – artigo

114; 1937 – artigo 123; 1946 – artigo 144; 1967 – artigo 150, § 36; Emenda n. 1/1969 –

artigo 153, parágrafo XXXVI)293, segundo a qual ao lado do conceito formal de Constituição,

existe um significado material, ou seja, há direitos que em razão de seu conteúdo e

substância, compõem o corpo fundamental da Magna Carta de um Estado, ainda que não

integrem expressamente o catalogo estabelecido pelo Poder Constituinte Originário.

Assim, com fulcro no exposto acima, duas são as espécies de direitos

fundamentais, a saber: (1) direitos formal e materialmente fundamentais e (2) direitos

unicamente materialmente fundamentais, pois não sediados no bojo do texto constitucional.

291Artigo 78, da Constituição de 1891 – A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967). 292The enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people (Disponível em: www.archives.gov. Acesso em 09/03/2013). Este artigo é traduzido do seguinte modo por Pontes de Miranda – a enumeração de alguns direitos na Constituição não pode ser interpretada no sentido de excluir ou enfraquecer outros direitos que tem o povo (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967). 293Artigo 114, da Constituição de 1934 – A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros, resultantes do regime e dos princípios que ela adota; Artigo 123, da Constituição de 1937 – A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado, em nome dela constituído e organizado nesta Constituição; Artigo 144, da Constituição de 1946 – A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota (MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 – t. 4. São Paulo: RT, 1967).

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No tocante à separação de elementos de identificação do conceito material de

direitos fundamentais, a doutrina constitucional portuguesa oferece formulações bastante

interessantes e mais avizinhadas ao Direito Constitucional Nacional. Na verdade, elas são

propaladas em estudo desenvolvido por José Carlos Vieira de Andrade294, o qual, dentre

outros pontos, define direitos fundamentais por seu conteúdo comum alicerçado justamente

no princípio da dignidade da pessoa, também expressamente enunciado no artigo 1º, inciso

III, da Constituição Brasileira de 1988. Este princípio traduz valor unificador de todos os

direitos fundamentais, que são concretizações dele. O mencionado princípio exerce função

legitimadora do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou

previstos em tratados internacionais, deixando, pois, transparecer sua íntima relação com o

artigo 5º, § 2º, da Carta Magna de 1988, que é cláusula de abertura típica do ordenamento

jurídico nacional a direitos fundamentais outros estipulados em tratados internacionais de

direitos humanos.

Ora, a dignidade da pessoa humana é, pois, um valor fundamental que se

converteu em princípio jurídico de estatura constitucional seja por sua positivação em

norma expressa, seja como mandamento jurídico apreendido do sistema. É

simultaneamente justificativa moral e fundamento normativo de direitos fundamentais.

O princípio da dignidade da pessoa humana, na linha de raciocínio exteriorizada

nas anotações supra, deve ser reputado critério basilar na construção de um conceito

material de direitos fundamentais, ostentando, citando Carlos R. Siqueira Castro295, caráter

de elemento proliferador de direitos fundamentais ao longo dos tempos296. Assim,

determinada posição jurídica fora do catálogo constitucional, para ser tida por

equivalente em conteúdo e importância aos direitos fundamentais do rol positivado

precisa, obrigatoriamente, ser reconduzível diretamente e corresponder ao valor

supremo da dignidade da pessoa humana.

Não se olvide, porém que, neste cenário, ganham destaque também, como

referencial hermenêutico, os demais princípios fundamentais. Eles servem de fundamento à

dedução de direitos não escritos, direitos decorrentes, de que trata o artigo 5º, § 2º, da

294ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5 ed. Almedina: Coimbra, 2012. 295CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 296O postulado da dignidade da pessoa humana universalizou-se como um polo de atração para cada vez mais novos e novíssimos direitos refletores do modismo constitucional-democrático. Com isso, abriu-se o receituário dos direitos sublimados na Constituição, que se multiplicaram na razão direta dos conflitos insurgentes no meio social e das exigências insaciáveis de positivação jurídica, na esteira do humanismo ultrapluralista, solidarista e internacionalizado desses tempos. Sob o arrastão do princípio da dignidade da pessoa humana, efetivou-se não apenas a superação da tradicional divisão entre o domínio do Estado e o domínio da sociedade civil, que por sua vez embasara a separação entre o Direito Público e o Direito Privado (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010).

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Constituição Federal de 1988, além de referencial imprescindível ao reconhecimento da

fundamentalidade material dos direitos coletados fora do catálogo, que obviamente devem

manter afinidade com os princípios fundamentais desta Carta.

Lembre-se que a aceitação dos tratados internacionais de direitos humanos

enquanto fonte de direitos materialmente fundamentais, convoca a discussão tradicional

acerca das correntes monistas e dualistas, que procuram justificar o relacionamento entre o

Direito Internacional e o Direito Interno.

Depois do estudo do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, enquanto

verdadeira cláusula de abertura típica do sistema jurídico brasileiro a direitos fundamentais

estabelecidos em tratados internacionais de direitos humanos, bem como da indiscutível

contribuição do princípio da dignidade da pessoa humana para um conceito de direito

materialmente fundamental, além das teses doutrinárias acerca do relacionamento entre

Direito Internacional e Direito Interno (Dualismo e Monismo) e de seu assento nos variados

textos constitucionais da América Latina, América do Norte, Europa e Ásia, afirma-se que

são quatro as correntes principais, identificadas dentro da doutrina e da jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal, sobre a natureza jurídica ou status normativo dos tratados

internacionais de direitos humanos: (a) vertente que atesta natureza supraconstitucional dos

tratados e convenções em matéria de direitos humanos, (b) entendimento que confirma

caráter constitucional a esses diplomas alienígenas, (c) tendência que atribui natureza de lei

ordinária a essas avenças internacionais e (d) posicionamento que reconhece natureza de

norma supralegal a documentos internacionais acerca de direitos humanos.

Entretanto, prevalece atualmente no STF a terceira vertente, embora caibam

contra ela as críticas elencadas acima, bem como se defenda neste trabalho o status

normativo materialmente constitucional aos pactos internacionais sobre direitos humanos,

tendo em vista o preceituado no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988. O artigo 5º,

§ 3º transforma a norma estrangeira em material e formalmente constitucional, recebendo

ela natureza equivalente às emendas constitucionais.

As normas jurídicas domésticas serão válidas unicamente se estiverem em

sintonia com a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos, que

poderão ser exclusivamente materialmente constitucionais ou material e formalmente

constitucionais, sendo lícito averbar que este controle recebe o nome de convencionalidade

e pode ser desempenhado por Tribunais Internos (controle de convencionalidade interno) ou

Tribunais Comunitários (controle de convencionalidade internacional), salientando-se que as

normas internacionais sobre direitos humanos materialmente constitucionais dão ensejo ao

controle de convencionalidade difuso e as normas sobre direitos humanos material e

formalmente constitucionais autorizam os controles difuso e concentrado.

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Por fim, o sistema jurídico presume a coerência, devendo o Direito evitar a

contradição. O magistrado, defronte de duas fontes normativas, deve buscar coordená-las

em um típico diálogo (Dialog de Quellen). A teoria de Erik Jayme se introduz em uma

tradição de visão sistemática e funcional da ordem jurídica, iniciada por Karl Larenz, Santi

Romano, Karl Engisch, Norberto Bobbio e Theodor Viehweg, que é modernizada por um

enfoque internacional e cultural do Direito, dentro de uma perspectiva mais humanista sobre

a relação entre as normas. É como se os sistemas interno e externo de Phillipe Heck fossem

transportados para uma concepção unitária e coerente do Direito Internacional, ordenado

pelos Direitos Humanos, valores maiores e basilares desta ordem. Nos conflitos entre o

Direito Interno e o Direito Internacional Público, guiam o sistema a valorização dos Direitos

Humanos e o princípio pro homine.

A exegese do Direito Internacional dos Direitos Humanos, instituída pela

jurisprudência internacional, guarda como ponto nuclear o princípio de interpretação pro

homine, o qual faz surgir a necessidade de que a interpretação normativa seja efetuada

sempre em benefício da tutela garantida aos indivíduos.

O uso do Diálogo das Fontes e do princípio pro homine não afasta

simultaneamente uma ou outra ordem jurídica, interna e internacional, porém as

complementa, autorizando que a produção do Direito Nacional se atente para o diálogo

entre a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos, que preservam com

ela relação de equivalência.

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Referências Bibliográficas

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