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DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO: CONTRAPONTO ENTRE ESCOLA PÚBLICA E PRIVADA Karina Fideles Filgueiras FaE-UFMG Francisca Izabel Pereira Maciel - FaE-UFMG 1 - Introdução O tema de pesquisa proposto ao programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e inclusão social da Universidade Federal de Minas Gerais – FaE- UFMG é Alfabetização: um contraponto das dificuldades de aprendizagem em uma escola pública e em uma escola particular, cujo objetivo é verificar se a alfabetização, quando acontece antes do 1° ciclo, tal como ocorre em algumas escolas privadas, pode gerar dificuldades de aprendizagem; e, por outro lado, se as dificuldades de aprendizagem são a causa da alfabetização após o 1° ciclo, tal como ainda ocorre em algumas escolas públicas. A pesquisa se delineou como um estudo de caso com abordagem etnográfica e comparativa, na qual privilegiei a observação nas salas de aula durante a primeira etapa do ano letivo, o que correspondeu, na escola pública, de 10 de fevereiro a 20 de maio de 2003; e na escola privada, de 04 de fevereiro a 31 de maio de 2003. Deter-me-ei em alguns dados coletados na tentativa de mapear as ações/atividades do corpo docente, em ambas escolas, quanto ao diagnóstico e encaminhamento das crianças com dificuldades de aprendizagem na alfabetização. 2 – Alfabetização e Letramento Para evitar ambigüidade, é relevante, neste momento, estabelecer as devidas diferenças entre Letramento e Alfabetização. A alfabetização é a ação da aquisição do código da escrita e da leitura, a codificação através da escrita e decodificação através da leitura, em suma, alfabetizar-se é aprender a ler e a escrever. Soares em seu artigo “As muitas facetas da alfabetização” discorre sobre a natureza e a complexidade do processo de alfabetização e afirma que a “alfabetização (...) é um conjunto de habilidades, o que a caracteriza como um fenômeno de natureza complexa, multifacetado. (...) Essas facetas referem-se, fundamentalmente, às perspectivas psicológica, psicolingüística, sociolingüística e propriamente lingüística do processo.” (Soares, 1985:21). O conceito de Letramento, tão bem definido por Soares como sendo “o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever”; “o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter- se apropriado da escrita”. (Soares, 2002:18), permite uma reflexão sobre o emprego dos conceitos alfabetização e letramento no ambiente escolar. O letramento compreende os usos sociais das práticas de leitura e escrita. Tratam-se de processos distintos, embora possam e devam caminhar simultaneamente. Segundo entendimento de Soares (2002): “a questão é alfabetizar letrando, ensinar a criança a ler e escrever por meio das práticas sociais de leitura e escrita”. A autora mencionada alerta para a perda da especificidade no conceito de alfabetização e ressalta que: “O que é importante mesmo são as práticas sociais de leitura e escrita, é o indivíduo praticar a leitura e a escrita, mas não pode praticar se não domina a tecnologia, que é fundamental (...).É preciso dominar o código, adquirir o código, e é uma tecnologia complicada, não é uma tecnologia que se aprende por

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DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO: CONTRAPONTO ENTRE ESCOLA PÚBLICA E PRIVADA

Karina Fideles Filgueiras FaE-UFMGFrancisca Izabel Pereira Maciel - FaE-UFMG

1 - IntroduçãoO tema de pesquisa proposto ao programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e

inclusão social da Universidade Federal de Minas Gerais – FaE-UFMG é Alfabetização: um contraponto das dificuldades de aprendizagem em uma escola pública e em uma escola particular, cujo objetivo é verificar se a alfabetização, quando acontece antes do 1° ciclo, tal como ocorre em algumas escolas privadas, pode gerar dificuldades de aprendizagem; e, por outro lado, se as dificuldades de aprendizagem são a causa da alfabetização após o 1° ciclo, tal como ainda ocorre em algumas escolas públicas.

A pesquisa se delineou como um estudo de caso com abordagem etnográfica e comparativa, na qual privilegiei a observação nas salas de aula durante a primeira etapa do ano letivo, o que correspondeu, na escola pública, de 10 de fevereiro a 20 de maio de 2003; e na escola privada, de 04 de fevereiro a 31 de maio de 2003.

Deter-me-ei em alguns dados coletados na tentativa de mapear as ações/atividades do corpo docente, em ambas escolas, quanto ao diagnóstico e encaminhamento das crianças com dificuldades de aprendizagem na alfabetização.

2 – Alfabetização e Letramento Para evitar ambigüidade, é relevante, neste momento, estabelecer as devidas diferenças entre

Letramento e Alfabetização. A alfabetização é a ação da aquisição do código da escrita e da leitura, a codificação através da

escrita e decodificação através da leitura, em suma, alfabetizar-se é aprender a ler e a escrever. Soares em seu artigo “As muitas facetas da alfabetização” discorre sobre a natureza e a

complexidade do processo de alfabetização e afirma que a “alfabetização (...) é um conjunto de habilidades, o que a caracteriza como um fenômeno de natureza complexa, multifacetado. (...) Essas facetas referem-se, fundamentalmente, às perspectivas psicológica, psicolingüística, sociolingüística e propriamente lingüística do processo.” (Soares, 1985:21).

O conceito de Letramento, tão bem definido por Soares como sendo “o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever”; “o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita”. (Soares, 2002:18), permite uma reflexão sobre o emprego dos conceitos alfabetização e letramento no ambiente escolar. O letramento compreende os usos sociais das práticas de leitura e escrita.

Tratam-se de processos distintos, embora possam e devam caminhar simultaneamente. Segundo entendimento de Soares (2002): “a questão é alfabetizar letrando, ensinar a criança a ler e escrever por meio das práticas sociais de leitura e escrita”. A autora mencionada alerta para a perda da especificidade no conceito de alfabetização e ressalta que:

“O que é importante mesmo são as práticas sociais de leitura e escrita, é o indivíduo praticar a leitura e a escrita, mas não pode praticar se não domina a tecnologia, que é fundamental (...).É preciso dominar o código, adquirir o código, e é uma tecnologia complicada, não é uma tecnologia que se aprende por acaso, não basta o ambiente ser letrado. São as correspondências fonema-grafema, relação do sistema alfabético com o sistema fonológico, do sistema ortográfico com o sistema fonológico, as hipóteses que a criança vai levantando, as hipóteses que tem que ser derrubadas; processo complexo que não pode ficar perdido no conceito de que as práticas sociais de leitura e de escrita, num ambiente letrado dado à criança, esse código irá ser construído”. (Soares, 2002)

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Ambientes letrados são considerados aqueles que possibilitam o uso das práticas de leitura e escrita em contextos sociais; ou seja, práticas sociais de leitura e de escrita. Para que ocorra a aprendizagem por parte dos alunos, é preciso mais que um ambiente letrado, é necessário que eles, alunos, adquiram o código escrito. A alfabetização, especificamente dita, pode ocorrer em um ambiente letrado, embora esse ambiente não garanta, por si só, a aquisição da escrita e da leitura. É preciso instrumentalizar as crianças, eis que, se não houver ferramentas e materiais, torna-se impossível construir a partir do vazio.

Em pesquisas realizadas por Green (1983), Gumperz (1992), Cook-Gumperz & Gumperz (1992), Castanheira, Crawford, Dixon & Green (2001), o conceito de letramento adotado no contexto escolar é visto de forma mais interativa através da linguagem. O uso das práticas sociais da leitura e da escrita são trabalhadas juntamente com a aquisição do código escrito, mas, além de se alfabetizar letrando, percebeu-se que a

“aprendizagem escolar do letramento precisava ser vista como parte das experiências de socialização pela linguagem por meio das quais as crianças aprendem um conjunto complexo de habilidades cognitivas e lingüísticas que se iniciam com os primeiros movimentos para a linguagem e fala”. (Castanheira apud Cook-Gumpers and Gumpers, 1992).

Cada grupo1 constrói e reconstrói seus letramentos. É impossível afirmar uma homogeneidade em salas de aula de uma mesma série ou de uma mesma escola. Como nos aponta Erickson: “(...) de uma sala para outra, há diferenças sutis na organização da interação entre os vários participantes e na organização da interação deles com os materiais educacionais” (Erickson, 2001:11).

Sendo assim, o letramento pode ser considerado como “um processo dinâmico, em que o significado de ação letrada é continuamente construído e re-construído por indivíduos quando esses se tornam membros de um determinado grupo social (...)” (Castanheira, 2001).

Ou seja, o letramento é constituído em cada grupo especificamente estabelecido localmente. É um fenômeno socialmente construído que é definido e redefinido na situação, dentro e através de diferentes grupos sociais incluindo grupos de leitura, famílias, salas de aula, escolas, comunidades e grupos profissionais. O que é considerado como letramento em um grupo é visível nas ações escolhidas pelos membros do grupo para que eles se orientem; o que consideram responsabilidade de cada um, que aceitam ou recusam como respostas dos outros e como se engajam com, interpretam e constroem o texto. As ações do dia-a-dia constituem práticas de letramento como um processo situado, logo, as práticas de letramento são desenvolvidas conforme o coletivo se desenvolve e servem os propósitos e objetivos tanto do coletivo como do “individual-dentro-do-coletivo”. (Castanheira et all, 2001).

3– ContextualizandoSegundo Erickson (1981), contextos não são simplesmente pensamentos dados em uma

situação física e nem em combinações de pessoas, mas são constituídos pelo o que as pessoas estão fazendo, onde e quando fazem.

A pesquisa vem se desenvolvendo em variados contextos: duas escolas – uma pública e outra privada, ambas na região sul de Belo Horizonte; focalizo uma sala dentre as quatro que trabalham com a alfabetização no turno vespertino, na escola privada; uma sala de recuperação para alunos com dificuldades de aprendizagem no 3° ano do Ciclo Básico2, na escola pública, que é um ambiente diferente da sala de aula, dentro de própria escola.

Sendo assim, é importante considerar, no contexto da escola pública, a sala de recuperação, quem são os alunos encaminhados a ela? Quais são os critérios adotados para encaminhar os alunos com dificuldades de aprendizagem para a recuperação? Como esse contexto é construído pelos

1 Consideramos aqui, grupo no contexto escolar, ou seja, as salas de aula.2 No estado de Minas Gerais, as escolas tiveram liberdade de escolha para a divisão e organização das séries em ciclos, sendo possível variar as denominações de uma escola para a outra. Na escola referida, a nomenclatura Ciclo Básico, refere-se às três primeiras séries do ensino fundamental, ou seja, 1ª, 2ª e 3ª séries.

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membros que o constituem? E ainda, como o contexto das duas salas de aula do 3° ano do Ciclo Básico influencia para a formação da classe de recuperação? E, na escola privada, como o contexto da sala de alfabetização constitui uma divisão dos membros que possuem dificuldades de aprendizagem? E como o contexto se constitui a partir das interações entre professor e alunos que apresentam ou não dificuldades de aprendizagem?

3.1 - A Escola PúblicaA escola foi fundada em 1902, completando seu centenário no ano de 2002. É uma escola

localizada num bairro da zona sul da cidade de Belo Horizonte.O sistema de ensino é organizado, nesta escola, em Ciclos subdivididos em Ciclo Básico, que

comporta crianças de 7 , 8 e 9 anos para o 1°, 2° e 3° anos do ciclo respectivamente; crianças de 10, 11 e 12 anos para os respectivos 1°, 2° e 3° anos do Ciclo Intermediário e crianças de 14 e 15 anos para o 1° e 2° anos do Ciclo Avançado; além do Ensino Médio – 1°, 2° e 3° anos.

Enfatizo o Ciclo Básico no qual estão inseridas as classes de 3° ano que são o foco de meu olhar porque na escola pública referida, o critério para admissão e distribuição dos alunos nas classes é feito com base na faixa etária. Só poderá haver retenção de aluno no último ano de cada ciclo. Nos demais anos, os alunos são aprovados em Progressão Continuada.

“Na década de 80, diversos Estados implantaram o Ciclo Básico de Alfabetização – CBA (...), acrescentando a essa proposta, outras medidas administrativas e pedagógicas” (Mainardes, 2001:35). O CBA teve como principal objetivo “eliminar a reprovação ao final da 1ª série, ampliando o período de alfabetização e assegurando a continuidade desse processo”.(Mainardes, 2001:45).

A proposta dos ciclos, entre outras medidas, trouxe a lume a necessidade de se repensar o papel da escola. Entre essas medidas está o estímulo da participação dos pais no processo de escolarização dos filhos. Nesse sentido, a escola passa a ser uma instituição que educa em parceria com os pais permitindo maior participação dos mesmos no que diz respeito ao desenvolvimento do aluno. Por sua vez, os professores devem ser capacitados e estar sempre atualizados, pois trabalham com turmas heterogêneas, o que implica na mudança de estratégias pedagógicas e, principalmente, na forma de avaliar os alunos. Respeita-se mais o ritmo do aluno pois, se tem como um dos princípios possibilitar maior permanência dos alunos na escola e, conseqüentemente, diminuir a evasão escolar.3

3.2 - A Escola ParticularEsta escola completou seu cinqüentenário em 2000. Também localizada na região sul de Belo

Horizonte, possui uma clientela com um poder sócio-econômico privilegiado.A organização da escolaridade é seriada, ou seja, trabalha-se com séries, desde crianças de 4

anos no 1° período da Educação Infantil, até jovens de 17/18 anos no 3° ano do Ensino Médio integrando o curso preparatório para o vestibular. A escola é particular mas mantém frentes de trabalhos sociais, como auxílio a creches, Educação de Jovens e Adultos – EJA, programas com menores abandonados, asilos dentre outros.

É comum nessa escola, como em algumas escolas particulares, as crianças, no 2° período da Educação Infantil, identificar letras e números, e em alguns casos, ler palavras que contenham sílabas simples; não lhes é exigida a leitura de palavras que contenham sílabas travadas (ex.: pr, cr, pl, cl, etc.). As sílabas simples têm que estar dominadas na leitura e na escrita no 2° período da pré-escola4.

Aos 6 anos, no 3° período, a criança deve ser alfabetizada. Via de regra, as crianças que cursam o 3° período devem ler e escrever, até meados do mês de abril, o que corresponde ao fim do 1° trimestre, como está divido o ano letivo atualmente.

3 Para saber mais sobre a implantação dos Ciclos, ver Creso, Franco. Avaliação, Ciclos e Promoção na Educação. São Paulo, SP:Artmed editora, 2001. 4 Denominação dada à série que abarca as crianças de 5 anos.

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Entendo então, que o processo de alfabetização é iniciado na Educação Infantil, que consiste dos 1°, 2° e 3° períodos, com crianças de 4, 5 e 6 anos respectivamente; porém, mais incisivamente, esse processo é realmente valorizado e cobrado nos dois últimos períodos.

4 – Os processos de diagnóstico e encaminhamento dos alunos com dificuldades deaprendizagem

4.1 – Na Escola Pública A escola pública na qual me inseri para coletar de dados, como já citado anteriormente, tem

como critério de avaliação somente reter as crianças que estão cursando o último ano de cada ciclo. O foco da pesquisa então recai sobre as três classes de 3° ano do Ciclo Básico existentes na escola, perfazendo um total de 92 alunos, sendo em média, 30 alunos por classe.

Nessas classes, a divisão dos alunos se deu, primeiramente, de acordo com a matrícula por idade: crianças de 9 anos ou que completarão 9 anos até o mês de abril. Após o início do ano letivo, as crianças foram submetidas a uma avaliação de leitura, denominada pelas professoras como “tomar leitura”5, atividade que consistiu em pedir que as crianças lessem um “texto básico”, segundo a avaliação das professoras, texto esse da primeira lição do livro didático de português adotado no 3° ano.

Os alunos foram agrupados por competências de leitura, ou seja, os que possuíam uma “leitura fluente”, na percepção das professoras, juntamente com a supervisora, foram agrupados em uma sala e os demais foram divididos entre as outras duas classes.

A partir desse momento, as professoras, com seus respectivos alunos, começaram o trabalho de conteúdos pedagógicos relativos ao 3° ano do ciclo básico, tendo como referência as determinações dos Parâmetros Curriculares Nacional – PCN.

Após um mês de aula, foi reiniciado o funcionamento de uma sala de recuperação cujo objetivo inicial era de trabalhar com todas as crianças, do Ciclo Básico, que apresentassem dificuldades em acompanhar os conteúdos escolares propostos para cada ano.

As crianças que compunham esta sala eram as mesmas que participaram do “reforço” no ano anterior, porém, neste ano, por determinação da supervisora pedagógica, só poderiam freqüentar a sala de recuperação aquelas que estavam no 3° ano do Ciclo Básico e que, segundo diagnóstico das professoras, não sabiam ler, pois o objetivo era evitar a reprovação.

O critério para encaminhar as crianças para esta sala continuou sendo o mesmo que dividiu as turmas no início do ano letivo: “tomar leitura”.

É interessante notar que apenas duas, dentre as três professoras, encaminharam crianças para a sala de recuperação, inclusive crianças da sala 1, considerada como sendo a melhor turma.

Inicialmente, as crianças participavam das atividades na sala recuperação até o momento do recreio, e posteriormente voltavam para suas salas de origem. O intuito era de que elas não perdessem seus laços afetivos e continuassem o processo de socialização com o grupo já determinado desde o início do ano letivo e, com isso, participariam das atividades propostas pela professora de sua respectiva turma de 3° ano do Ciclo Básico.

Após um mês de trabalho nesta sala de recuperação, a professora recuperadora e as professoras do 3° ano, juntamente com a supervisora, decidiram reagrupar os alunos, dividindo-os de acordo com suas necessidades pedagógicas: um primeiro grupo com os alunos que ainda não estavam alfabetizados, que sequer reconheciam as letras do alfabeto, e um segundo grupo com aqueles que já eram capazes de ler textos simples mas não eram capazes de executar tarefas propostas pela professora do 3° ano do Ciclo Básico.

Sendo assim, do início da aula até o horário do recreio, o que correspondia o período de 13h às 1530h, estariam na sala de recuperação os alunos do primeiro grupo, os “não-alfabetizados”; após o recreio, de 16h às 17:30h, o primeiro grupo retornaria para a sala de origem e viriam para a sala de recuperação os alunos do segundo grupo, os “alfabetizados” que não acompanham o 3° ano.

Esse remanejamento, em que a proposta de trabalho é modificada para melhor atender às crianças segundo suas necessidades, teve duração de apenas duas semanas porque se iniciou uma paralisação dos professores estaduais e, posteriormente, uma redução no horário de trabalho até o momento do recreio.

5 Todos os termos entre aspas (“ “), neste tópico, são termos utilizados pelas professoras.

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Tentou-se uma reformulação dos horários, onde cada grupo permanecia na sala de recuperação por apenas meia hora, o que tornou o trabalho mais moroso e menos produtivo.

Na avaliação das professoras do 3° ano do Ciclo Básico, a sala de recuperação foi uma boa estratégia para recuperar os alunos com defasagem, porém a estruturação não foi adequada. Uma professora sugeriu que as crianças fizessem parte desta sala em horário extra-curricular, outra sugeriu que as crianças com dificuldades de aprendizagem, sendo ou não alfabetizadas, permanecessem, todo o tempo escolar diário, na sala de recuperação, alegando que as crianças não eram produtivas quando retornaram à sala de aula de origem, não conseguindo acompanhar os conteúdos pedagógicos propostos.

4.2 – Na escola privadaNessa escola, o critério para a distribuição dos alunos entre as classes de alfabetização é

diferenciado para alunos novatos e veteranos. Os veteranos são indicados por suas professoras de 2° período para as futuras classes de 3° período, classes de alfabetização. E os novatos, após passarem pelo mini-vestibular ou teste de seleção, são encaminhados para as salas que mais se identificam com as professoras de acordo com as necessidades do aluno.

A classe que me foi determinada para a observação é uma classe de alfabetização cuja professora é tida como uma das mais experientes professoras alfabetizadoras da escola. As crianças que necessitam trabalhar a timidez, baixa auto-estima, socialização e outras questões emocionais, são encaminhadas a ela.

A proposta de diagnosticar as crianças com dificuldades de aprendizagem era bem determinada e sistematizada porque apresentava atividades estruturadas pela equipe pedagógica escolar e foi aplicada em todas as classes de alfabetização, seguindo a mesma seqüência organizacional e cronológica.

Logo, na segunda semana de aula, a professora aplicou atividades de sondagem: escrita de palavras em forma de listas de materiais escolares e de uma parlenda que havia sido trabalhada em sala de aula.

Com esses resultados, a professora dividiu a turma de 27 alunos em 6 grupos tendo como referência o nível conceitual, ou seja, o nível de escrita, seguindo a proposta de Emília Ferreiro: nível silábico-sonoro, silábico-alfabético e alfabético. Como a professora afirmou, agrupou os alunos por “competências”; dividiu-os por “habilidades”, aproximando os alunos com dificuldades de aprendizagem.

No entanto, essa iniciativa da professora não foi suficiente para a coordenação escolar, que não considerou a formalidade da atividade e solicitou às professoras que elaborassem, em conjunto, uma atividade diagnóstica que também foi aplicada na segunda semana de aula. Foram atividades que buscavam avaliar a escrita de palavras já conhecidas pelas crianças, como por exemplo o seu nome e idade, nome de alguns colegas, leitura de frases, cópia, nível estrutural de desenho, além do reconhecimento e grafia dos numerais de 1 a 30.

Tendo como referência esta atividade diagnóstica e as atividades de sondagem, a professora, assim como todas as outras, produziu um gráfico que permitiu dar um panorama da classe envolvendo os seguintes critérios: a construção de grupo (hábitos, socialização e autonomia); a escrita (preensão no lápis, traçado, cópia e nível conceitual); o desenvolvimento psicomotor (organização espacial, colorido, desenho); o raciocínio lógico-matemático (campo numérico, reconhecimento de números, traçados dos números); a linguagem oral (interação social – ouvir/falar, concentração, participação na roda).

Esse novo diagnóstico não alterou o agrupamento já determinado pela professora anteriormente.

Vencido o primeiro mês de aula, a coordenação escolar sugeriu uma nova atividade diagnóstica, desta vez, a prova aplicada no exame de seleção, que foi uma das últimas atividades do período anterior, 2° período. Um dos objetivos dessa atividade diagnóstica era comparar o desempenho das crianças do ano passado, além de verificar se o nível das crianças está condizente com o que está sendo exigido no exame de seleção.

Após todas essas atividades, iniciado o terceiro mês do ano letivo, todas as crianças que fazem parte das quatro classes de alfabetização no período vespertino, foram agrupadas em Oficinas de Leitura e Escrita de acordo com o nível conceitual. Essas oficinas aconteceram as terças e quintas-feiras, quando as crianças de todas as turmas se deslocavam para a sala determinada: uma das professoras

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ficou encarregada de trabalhar as crianças com nível conceitual pré-silábico e silábico-sonoro, a professora da classe a qual eu observava ficou responsável pelos alunos silábicos-alfabéticos e as outras duas professoras dividiram os alunos que apresentavam o nível alfabético.

Um dia antes do início das oficinas, foi aplicada uma atividade diagnóstica que consistia de um ditado de palavras de objetos da sala de aula. O objetivo desta atividade foi obter um parâmetro de avaliação sobre os futuros resultados das oficinas.

Além das avaliações pedagógicas feitas até o momento, avaliou-se também as características e necessidades de um atendimento fonoaudiológico (faz parte da equipe pedagógica escolar uma fonoaudióloga).

Depois da primeira experiência com as oficinas, a professora decidiu por manter um aluno, que havia indicado para a oficina dos pré-silábico e silábicos-sonoros, na oficina dos silábicos-alfabéticos ministrada por ela própria.

Antes do fim do mês, optou-se pela extinção das oficinas, alegando-se não rendimento das crianças, ou seja, as professoras juntamente com a supervisora fizeram uma avaliação e perceberam que as oficinas não estavam sendo produtivas, principalmente àqueles alunos considerados com dificuldades de aprendizagem, a dizer, os pre´-silábicos e silábicos-sonoros, pois, no 3° período deveriam estar alfabéticos.

Ao final do mês de maio, encerrou-se a primeira etapa do ano letivo com um plantão, no qual a professora se colocou à disposição dos pais para que eles pudessem avaliar, juntamente com a escola, o desenvolvimento de seus filhos no período.

Ainda como parte dos encaminhamentos dos alunos com dificuldades de aprendizagem, foram solicitadas reuniões com os respectivos pais para que a família, juntamente com a escola, pudesse colaborar para o crescimento e desenvolvimento dos alunos.

5 – Semelhanças e diferenças nos processos de diagnóstico e encaminhamento dos alunos com dificuldades de aprendizagem

O foco da pesquisa está no processo de alfabetização tendo como referência o 1° ciclo da escola pública. Observei, durante a primeira etapa do ano letivo, uma classe de 3° período da escola particular, o que configura a alfabetização acontecendo anterior ao 1° ciclo e, na escola pública, duas classes do 3° ano do ciclo básico, o que me permitiu verificar o processo de alfabetização acontecendo posteriormente ao 1° ano do Ciclo Básico.

Com a apresentação das escolas e a descrição dos diagnósticos e encaminhamentos dados aos alunos com dificuldades de aprendizagem na alfabetização, percebe-se que existem diferenças e semelhanças que são significantes e merecem ser apontadas.

O sistema de organização da escolarização difere em vários aspectos, em uma escola, a pública, a divisão é em ciclos; na outra, particular, a organização é através de séries.

A preocupação com o processo de alfabetização está presente desde o 1° período na escola privada, fato que não acontece na escola pública por dois motivos. O primeiro é que a escolarização pública se inicia no pré-escolar, série correspondente ao 3° período na escola privada; e outro fator é que na escola pública pesquisada é inexistente essa classe. A maioria das crianças teve seu primeiro contato escolar ingressando no 1° ano do Ciclo Básico.

Os critérios utilizados para os diagnósticos de crianças com dificuldades de aprendizagem variam: na escola pública é dada maior ênfase na habilidade de leitura, enquanto na escola privada, a ênfase é na escrita.

Embora as maiores diferenças estejam nos processos diagnósticos entre a escola pública e privada, constata-se uma semelhança nos encaminhamento: a criação de salas de reforço, seja ela a sala de recuperação na escola pública, ou as oficinas de leitura e escrita na escola privada.

A visão do ano ou série como um todo também pode ser apontada como uma semelhança em ambas escolas. Tanto em relação às três classes de 3° ano do Ciclo Básico quanto as quatro salas de alfabetização do turno vespertino, foram feitas tentativas de agrupamentos de todos os alunos do ano ou série, aproximando-os pelas dificuldades.

6 – Considerações finais

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Ao apresentar as escolas e descrever as ações/atividades dos professores/escola de diagnóstico e encaminhamento dos alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem na alfabetização pode-se argumentar que embora as estratégias de diagnósticos difiram de uma escola para outra, os encaminhamentos são semelhantes e, em ambos casos, parecem não terem sido suficientes para solucionar o problema da dificuldade de aprendizagem na alfabetização até o final da primeira etapa do ano letivo. Seja na sala de recuperação ou nas oficinas de leitura e escrita, o que pude assistir foi uma segregação dos alunos com dificuldades de aprendizagem, o que parece não ter sido produtivo, segundo a avaliação das próprias professoras em conjunto com suas respectivas supervisoras.

Sabendo-se que as intenções são de aperfeiçoar o sistema de ensino e de torná-lo cada vez mais acessível, percebe-se que não são apenas características sociais, culturais, econômicas e cognitivas que determinam o fracasso ou o sucesso dos alunos, mas também a interação entre professores e alunos, alunos e alunos na sala de aula, local onde as diferenças convivem e, a partir delas, as práticas de letramento e alfabetização tornam-se compartilhadas.

Não basta apenas alfabetizar e tão somente letrar, é a conjugação dessas duas práticas na interação que tornam o processo ensino/aprendizagem mais produtivo e prazeroso.

Diante de tais colocações e dos dados coletados apresentados, levanto a seguinte questão: uma das possíveis causas das dificuldades de aprendizagem na alfabetização deriva da (con)fusão estabelecidas entre os conceitos de alfabetização e letramento, o que dificulta o ensinamento e conseqüentemente, a aprendizagem?

7 – Referências Bibliográficas

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