desenvolvimento e civilizacao

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    DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAÇÃO

    HOMENAGEM A CELSO FURTADO

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    UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

     Reitor 

    Ruy Garcia Marques

    Vice-reitora

    Maria Georgina Muniz Washington

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO

    ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Conselho Editorial

    Bernardo Esteves

    Erick Felinto

    Glaucio Marafon

    Italo Moriconi (presidente)

    Jane RussoMaria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro

    Ivo Barbieri (membro honorário)

    Lucia Bastos (membro honorário)

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    Rio de Janeiro2016

    THEOTONIO DOS SANTOS

    DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAÇÃO

    HOMENAGEM A CELSO FURTADO

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    Copyright   2016, Theotonio dos Santos.Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicaçãoou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

    EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua São Francisco Xavier, 524 – MaracanãCEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 2334-0720 / 2334-0721www.eduerj.uerj.br [email protected] 

     Editor Executivo  Glaucio MarafonCoordenadora Administrativa Elisete Cantuária

     Apoio Administrativo  Roberto LeviCoordenadora Editorial   Silvia Nóbrega

     Assistente Editorial Thiago BrazCoordenadora de Produção  Rosania Rolins

     Assistente de Produção Mauro SiqueiraSupervisor de Revisão Elmar Aquino

     Revisão  Magda Frediani Martins  Maria Filomena Jardim DinizCapa Thiago Netto

     Projeto e Diagramação Emilio Biscardi

    S237 Santos, Theotonio dos, 1937-  Desenvolvimento e civilização : homenagem a Celso

    Furtado / Theotonio dos Santos. - Rio de Janeiro : EdUERJ,2016.

      562 p.

      ISBN 978-85-7511-384-4

      1. Desenvolvimento social. 2. Ciência e civilização.  3. Desenvolvimento econômico - Aspectos sociais. I. Título.

      II. Título: Homenagem a Celso Furtado.

    CDU 316.42/.43

    CATALOGAÇÃO NA FONTE

    UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

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    Sumário

    PRÓLOGO .....................................................................................................................................................9PREFÁCIO ..................................................................................................................................................13

    INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................17

    1. Uma homenagem a Celso Furtado ....................................................................................................172. Civilização e Desenvolvimento...........................................................................................................263. Desenvolvimento e Civilização ...........................................................................................................58

    PRIMEIRA PARTE: A RECONSTRUÇÃO DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO

    I. TESES SOBRE A HERANÇA NEOLIBERAL............................................................................731. Introdução ................................................................................................................................................732. Primeira tese ............................................................................................................................................763. Segunda tese ............................................................................................................................................794. Terceira tese ..............................................................................................................................................805. Quarta tese ...............................................................................................................................................836. Quinta tese ...............................................................................................................................................857. Sexta tese ...................................................................................................................................................878. Sétima tese ................................................................................................................................................94

    9. Oitava tese ..............................................................................................................................................10010. Nona tese .............................................................................................................................................10311. Décima tese .........................................................................................................................................10512. Décima primeira tese ........................................................................................................................110

    II. A TEORIA DA DEPENDÊNCIA E A DESCOBERTA DOSISTEMA-MUNDO ..............................................................................................................................113

    1. Introdução: as origens .........................................................................................................................1132. A teoria da dependência e a descoberta do sistema-mundo .....................................................117

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    3. As estruturas internas e a dependência ...........................................................................................1244. As corporações multinacionais..........................................................................................................1285. A ampliação do enfoque .....................................................................................................................1336. Elementos do sistema econômico mundial ...................................................................................1357. Sistema mundial e o processo civilizatório ....................................................................................1438. Um apêndice bibliográfico.................................................................................................................149

    III. A RECONSTRUÇÃO DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO ...............................153

    1. Introdução ..............................................................................................................................................1532. Uma breve digressão comprobatória da força do “modelo” que empregamos .....................1573. Retornando da digressão ....................................................................................................................1614. Desenvolvimento e economia mundial ..........................................................................................1655. Neodesenvolvimentismo ....................................................................................................................1726. Por que não crescemos? ......................................................................................................................1757. Desenvolvimento e abertura econômica  ........................................................................................1778. O Consenso de Washington em debate .........................................................................................1799. A nova etapa do capitalismo de Estado ..........................................................................................18610. O que fazer com tanto dinheiro? ...................................................................................................18911. O avanço do capitalismo de Estado ..............................................................................................193

    IV. GLOBALIZAÇÃO, INOVAÇÃO E CRESCIMENTO: GEOPOLÍTICA EINTEGRAÇÃO ........................................................................................................................................199

    1. Introdução ..............................................................................................................................................1992. O período da Revolução Científico-Técnica ................................................................................2013. Tecnologia, concentração econômica e capitalismo de Estado ................................................2044. A destruição criadora: inovação e ciclos econômicos ..................................................................2195. Inovação, transformações tecnológicas e a força de trabalho: visão econômica  ..................2246. Inovação, transformações tecnológicas e desemprego: visão política  .....................................2297. Crescimento econômico, comércio exterior e livre comércio ...................................................2338. Integração e geopolítica ......................................................................................................................2379. O exemplo do Mercosul .....................................................................................................................239

    10. Conclusões ...........................................................................................................................................242

    SEGUNDA PARTE: DESENVOLVIMENTO E GEOPOLÍTICA 

    V. UNIPOLARIDADE OU HEGEMONIA COMPARTILHADA ........................................249

    1. Em busca de um esquema interpretativo .......................................................................................2502. Os casos brasileiro e francês de luta pela redução da jornada de trabalho ............................2563. A procura de um novo centro hegemônico e de uma “Nova Ordem Mundial”  .................261

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    4. A hegemonia compartilhada dos Estados Unidos .......................................................................2645. Japão: do poder exclusivo no Pacífico à expansão no continente asiático .............................2686. A integração europeia, o Leste Europeu e o papel da Alemanha unificada  ..........................2717. A União Soviética: um “cachorro morto”? ....................................................................................2748. O Terceiro Mundo ainda existe? ......................................................................................................2809. É necessário e possível governar um mundo tão complexo e contraditório? .......................286

    VI. A GLOBALIZAÇÃO, O FUTURO DO CAPITALISMO E DASPOTÊNCIAS EMERGENTES............................................................................................................301

    1. As potências emergentes e o futuro do capitalismo ....................................................................3012. Crise ideológica e a opinião pública mundial ...............................................................................3053. A questão da hegemonia .....................................................................................................................310

    4. Desenvolvimento e economia mundial ..........................................................................................3125. As novas relações Sul-Sul ....................................................................................................................3146. O renascer do Terceiro Mundo .........................................................................................................3167. Os BRICAS ...........................................................................................................................................3188. Ainda sobre os BRICAS .....................................................................................................................3209. Grupo dos Sete, dos Oito, dos Treze ou dos 20+? .......................................................................323

    VII. A EMERGÊNCIA DA CHINA NA ECONOMIA MUNDIAL .....................................327

    1. Introdução: questões teóricas ............................................................................................................327

    2. Reflexões sobre a China ......................................................................................................................3313. A crise asiática e a economia mundial ............................................................................................3384. Perspectivas da economia asiática depois da crise ........................................................................3415. A crise asiática e a consolidação das exportações chinesas .........................................................3446. O consenso de Pequim .......................................................................................................................346

    VIII. A AMÉRICA LATINA NA ENCRUZILHADA  .................................................................349

    1. Desenvolvimento e integração ..........................................................................................................3492. Bolívar ou Monroe uma vez mais? ...................................................................................................3563. Efeitos diplomáticos mais gerais .......................................................................................................3604. A crise Argentina e o esgotamento das políticas neoliberais .....................................................3655. As encruzilhadas diante das crises do neoliberalismo .................................................................3696. A crise chega à América Latina .........................................................................................................3747. Estudo de caso: a contabilidade da dívida brasileira ...................................................................3778. Graves decisões ......................................................................................................................................3839. Mercosul: um projeto histórico ........................................................................................................38610. Ainda existe América Latina? ..........................................................................................................38911. Mudanças à vista ................................................................................................................................393

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    TERCEIRA PARTE: DIREITOS HUMANOS, DIREITO DOS POVOS E A PAZMUNDIAL

    IX. DIREITOS HUMANOS, DIREITOS DOS POVOS E A PAZ MUNDIAL  ...............409

    1. O combate pacífico pela sobrevivência  ..........................................................................................4092. Os direitos humanos e o direito dos povos na busca pela paz mundial.................................4213. O direito dos povos e sua repercussão ............................................................................................4274. O pós-guerra e os desafios do amanhã  ...........................................................................................430

     X. HIPÓTESES SOBRE A ECONOMIA MUNDIAL, A GUERRA E A PAZ ..................437

    1. Introdução: natureza e política .........................................................................................................4372. Iniciando o novo milênio ...................................................................................................................443

    3. O plano militar.....................................................................................................................................

    4474. O crepúsculo do neoliberalismo .......................................................................................................4505. Tragédia e razão .....................................................................................................................................4546. Guerra e informação ............................................................................................................................459

    QUARTA PARTE: CRISE, DESENVOLVIMENTO, NOVOS SUJEITOS SOCIAIS ECIVILIZAÇÃO PLANETÁRIA 

     XI. CRISE ESTRUTURAL E CRISE CONJUNTURAL NO CAPITALISMOCONTEMPORÂNEO ...........................................................................................................................467

    1. Crise estrutural e longa duração .......................................................................................................4672. Os mecanismos de adaptação gerados pelas contradições internas do

    sistema são sempre precários .............................................................................................................4703. A trilogia sobre o capitalismo contemporâneo, a crise e a teoria social .................................4774. Da crise estrutural à crise da conjuntura 2008-2012 .................................................................487

     XII. A EMERGÊNCIA DE UM PROGRAMA ALTERNATIVO DOSMOVIMENTOS SOCIAIS ..................................................................................................................519

    1. As origens: da influência anarquista à Terceira Internacional...................................................5192. O populismo e as lutas nacional-democráticas ............................................................................5253. A autonomia dos movimentos sociais e as novas formas de resistência  .................................5314. A globalização das lutas sociais .........................................................................................................535

    CONCLUSÕES ........................................................................................................................................539

    REFERÊNCIAS .........................................................................................................................................545

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    Prólogo

    É um Tratado, no bom significado da velha expressão; destina-se a figurar emtodas as bibliotecas de ciências sociais com o destaque de uma verdadeira referênciadentro do grande tema universal do Desenvolvimento.

    Theotonio dos Santos, um dos mais brilhantes economistas brasileiros de suageração, com uma extensa e qualificada obra de trânsito internacional, tratou o desen-volvimento como nenhum outro estudioso o tinha apresentado até agora, como equi-valência de um processo de civilização, um processo que tem direção e que compreendea evolução da humanidade como um todo. Com um detalhamento histórico e analíticomaior dos aspectos econômicos – eis que é economista consagrado – Theotonio avançana apresentação de todas as outras dimensões do desenvolvimento até abrir a perspec-

    tiva fascinante que desemboca no que chama de Civilização Planetária.Desenvolvimento é um conceito dos meados do século passado, que surgiu com

    um significado estritamente econômico (era desenvolvimento econômico), ligado aocrescimento da produtividade das economias e ao consequente aumento das rendas edos produtos nacionais, e evoluiu posteriormente com a consideração de outras im-portantes dimensões de natureza social, cultural e política, até encontrar os derradeiroscondicionamentos de natureza ambiental. Theotonio trata de tudo isto no seu livro, etranscende todos esses aspectos numa abrangência maior, de natureza histórica, que éa do processo de evolução da própria humanidade, que aponta para um estágio mais

    elevado, já visível para ele, que chama de Civilização Planetária.O conceito de civilização, forjado nas luzes do século XVIII, é repassado em todoum extenso capítulo logo no início do livro, com o foco no Ocidente e na sua expansãopara a América Latina, que é analisada depois em outro capítulo como enfrentandohoje uma encruzilhada decisiva. Assim também, com o mesmo cuidado, e com o mes-mo foco ocidental, é tratada, em seguida, a Teoria do Desenvolvimento. Ressalta emtoda esta detalhada revisão histórica uma consequência, óbvia, mas não comumentemencionada, do processo de desenvolvimento na sua etapa atual da aceleração tecnoló-

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    10 Desenvolvimento e civilização: homenagem a Celso Furtado

    gica, uma consequência que constituirá, a seu juízo, a transformação principal a ocorrerproximamente, que é a redução da jornada de trabalho, que multiplicará os postos deemprego e dará aos assalariados em geral o precioso tempo adicional para o aperfeiçoa-

    mento cultural e espiritual da humanidade.É importante remarcar a relevância que Theotonio atribui a esse desdobramentonecessário do processo de desenvolvimento: necessário sob o ponto de vista ético, poisque a ciência é patrimônio da humanidade e não pode moralmente ter seus resultadosprodutivos apropriados pelo capital; e necessário sob a perspectiva da sobrevivênciadesta humanidade, torturada pelo flagelo do desemprego e ameaçada pelo crescimentoda produção e do desgaste ambiental em ritmo frenético e irracional, exigido por essemesmo capital.

    Este futuro desaguar de todo o processo passado em revista constituirá uma novaetapa histórica de paz e de entendimento mundial pela razão. Perceptível já pela fina

    sensibilidade do autor, esta nova História verá a realização deste “potencial colossal deuma humanidade unida pela cooperação entre os povos”.

    Logo adiante, Theotonio confirma sua visão grandiosa:

    Como vimos, o mundo está se transformando drasticamente. Estamos na fronteira de

    uma nova era econômica, social, política e cultural. O que define esta nova era é, essen-

    cialmente, a criação de uma dimensão global da vida, que é o ponto de partida para uma

    Civilização Planetária.

    Trata-se de um conceito “baseado na ideia de convergência de civilizações e cul-turas em direção a um convívio plural num sistema planetário único”. Eis o núcleofundamental, denso e brilhante da obra de Theotonio dos Santos.

    Evidentemente, há uma consistente e animosa crença na humanidade, que oautor afirma sem nenhum receio de expor alguma dose de inocência que os cientistaspositivistas rejeitam com esgares. Todavia, na visão filosófica construtivista, mais avan-çada e democrática, esta ousadia é uma qualidade primordial na deflagração do diálogoverdadeiramente igualitário que faz emergir a razão comunicativa de Habermas, capazde sustentar a Civilização Planetária de Theotonio.

    Esta crença firme na humanidade retrata-se plenamente na terceira parte do livro,

    aquela que trata dos direitos humanos, dos direitos dos povos e da paz mundial. É nessedesfecho mais elevado que Theotonio fala do velho e do novo na evolução humana. Ovelho é a falta de controle da razão sobre a produção, a distribuição e os acontecimentospolíticos; o velho é a guerra, a falsa modernidade dos avanços tecnológicos sobre os apa-ratos bélicos, a guerra nas estrelas. O novo é a Paz, o entendimento democrático para agovernança mundial (ONU) que caracterizará a Civilização Planetária.

    Qualquer um que tenha vivência e sensibilidade política verá os traços firmes dosocialismo nos contornos desta Civilização Planetária que Theotonio afirma “plura-

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    11Prólogo

    lista, democrática e igualitária [...] capaz de assegurar uma justiça social de forte basecoletiva, apoiada nos direitos humanos e no direito dos povos, na paz e no respeito àsoberania nacional”.

     A ciência nunca é tão “neutra” como a tradição positivista quer que seja, e o cien-tista Theotonio dos Santos é, antes de tudo, um ser moral, marcado pela ética políticaque, necessariamente, demanda o socialismo.

    O livro que, como disse, é um Tratado, tece ainda comentários percucientes so-bre a evolução próxima da política mundial, aponta mudanças substanciais no quadrodas hegemonias globais e prevê participações mais relevantes dos chamados BRICSnesta hegemonia, especialmente da China com sua economia dirigida, e até de conti-nentes inteiros antes relegados à submissão, como a América do Sul e a África, numrenascer mais consistente do Terceiro Mundo.

    Desenvolvimento e civilização é um alentado conjunto de estudos e proposições

    que encontra evidente inspiração no pensamento do nosso maior pensador dos últi-mos tempos, Celso Furtado, homenageado explicitamente pelo autor. Será referência,certamente, em toda a bibliografia sobre desenvolvimento, ao lado da obra do seuinspirador; uma referência cheia de conteúdo ético e científico, conteúdo também aus-picioso, anunciador de tempos de grandes realizações da humanidade, que preencherãoo milênio recém-inaugurado. Pode-se dizer mais: será referência obrigatória na hipó-tese, que ele prevê com muitos argumentos, de sobrevivência da humanidade dentrodessa Civilização Planetária; porquanto na outra hipótese, a do comando irracional docapital, em que não se pode acreditar, não haveria nem referências nem sobrevivência.

    Roberto Saturnino Braga 

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    Prefácio

    Em 1988, por ocasião do Congresso da Associação Internacional de Estudossobre a Paz (IPRA, sigla em inglês), realizado no Brasil, Cristovam Buarque, entãoreitor da Universidade de Brasília, dedicou um número da revista Humanidades 1 aotema da Paz. Nesse número especial, publiquei um artigo sobre o combate pacífico pelasobrevivência, no qual situava a questão da paz no contexto da luta por uma civilizaçãoplanetária. Nele, eu afirmava:

     A questão da paz passa a ser, em consequência, a primeira e máxima questão do nosso

    tempo, a que determina todas as demais. Com ela, elabora-se um conjunto de temas que

    começa pelas possibilidades e necessidades de criação de uma civilização planetária, como

    marco comum dessa nova era de convivência mundial inevitável. Que características teráesta civilização? Ela não pode ser concebida à maneira da Ilustração: como uma supres-

    são das civilizações anteriores. Esta vontade imperialista, que se refletia na concepção de

    razão da Ilustração, teve que ceder lugar nos nossos dias a uma concepção mais dialética

    do Universo imposta pela emergência do Terceiro Mundo, suas culturas e tradições mile-

    nárias, suas matrizes civilizacionais alternativas.

     A civilização planetária será pluralista, tolerante e múltipla ou não será! (Dos Santos,

    Theotonio, 1988, p. 57).

    Eu não era o único a me sensibilizar por essas tendências objetivas e subjetivasdo processo histórico que levariam a choques e incompreensões que transformaram osúltimos vinte anos do século XX num caldeirão de confusões ideológicas sob o domíniode um pensamento reacionário, que tentava fazer regressar a humanidade ao século

    1 Ver Theotonio dos Santos, “O combate pacífico pela sobrevivência”, Humanidades, n. 18, ano V, pp. 54-62,1988.

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    14 Desenvolvimento e civilização: homenagem a Celso Furtado

     XVIII. Fomos muitos os que resistimos, mas não conseguimos um espaço nos meios decomunicação que refletisse esse esforço crítico e analítico.

    O livro que ora apresento aos leitores reflete muito dessa firmeza crítica que, fi-

    nalmente, pode ser compreendida no momento atual, quando o pensamento humanocomeça a romper essa casca de falsidades e de posturas confusas e pragmáticas. Por essarazão, quis dedicar este livro a um pensador do Brasil, da Europa, dos Estados Unidose da França e do chamado Terceiro Mundo que soube manter esse espírito crítico eproduzir novos conhecimentos que nos permitissem avançar apesar das condições tãodesfavoráveis. Celso Furtado foi, seguramente, um dos mais eminentes defensores dosprincípios éticos que tanto faltaram àqueles que terminaram capitulando diante daofensiva reacionária. Manter uma postura científica sem concessões nesses anos era,sem dúvida, uma qualidade fundamental. Salve Celso Furtado!

    Neste prólogo, quero assinalar que os intelectuais comprometidos com o rigor

    teórico e a profundidade analítica não foram tanto uma minoria ínfima. Seu “desapa-recimento” dos meios de comunicação simplesmente revela que fomos, sim, objetode uma exclusão contra a qual se lutou bravamente, utilizando todos os meios, emparticular, os novos instrumentos virtuais que se encontravam ainda abertos. Queroregistrar entre esses lutadores a figura de meu querido amigo Darcy Ribeiro, que conse-guiu romper em parte esse ostracismo. Mas, sinto-me na necessidade de nomear tantosoutros amigos e companheiros desaparecidos em pleno processo produtivo, como RuyMauro Marini (vítima de um boicote sistemático no Brasil), Milton Santos, Herbert deSouza (Betinho), Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Andre Gunder Frank, Giovanni

     Arrighi, Eric Hobsbawn, Guerreiro Ramos, Paulo Freire, Anouar Abdel-Malek, Mi-roslav Pekujlic, Álvaro Vieira Pinto, Pedro Paz, Agustín Cueva, Ernest Mandel, KivaMaidanik, Paul Sweezy, Harry Magdoff, Lelio Basso, Adolfo Sánchez Vasquez, José Al-bertino Rodrigues, Perseu Abramo, Armando Córdova, José Luis Ceceña, Pedro Vus-covic, René Zavaleta Mercado, Antonio Garcia, Enzo Faletto, René Dreyfuss, MazaZavala, Gerard de Bernis, José Agustín Silva Michelena, Gregorio Selser, Clodomiro Almeida, Fernando Carmona, Francisco Mieres, Tomás Vasconi, Óscar Pino-Santos,Gonzalo Arroyo, Manuel Maldonado-Denis, Leopoldo Zea, Otto Kreye, José NiloTavares, Fernando Fajnzylber, e tantos outros de que me falha a memória.

    Não devemos deixar de assinalar que grande parte do grupo de intelectuais que

    sustentou esse esforço teórico e analítico está ainda viva e em pleno processo de pro-dução, enquanto os processos políticos apontam para um encontro cada vez mais fértilentre a teoria e a prática. Ambos passam por renovações extremamente significativasque nos induziram à preparação deste livro. Ao chegar ao final deste esforço, sintoainda um vazio profundo. Faltam muitos aspectos a serem estudados e cobertos quetenho que deixar para trabalhos posteriores. Espero, contudo, que os avanços que logreiregistrar até agora possam ajudar a realizar novos passos teóricos e analíticos, além denovas práticas sociopolíticas. A tendência de que o ponto de vista solidário, emancipa-

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    15Prefácio

    tório e socialista esteja ganhando mais apoio a cada dia que passa, enquanto as fantasiasconsumistas e hedonistas que a ideologia burguesa semeou provocam decepções cadavez maiores, nos ajuda a manter as linhas básicas de nossos esforços teóricos e práticos.

    No decorrer da leitura deste livro, os leitores que resistam a este esforço talvezse sintam recompensados, mas, seguramente, sentirão também o quanto falta para quenos sintamos satisfeitos. Mas talvez esta seja a atitude correta. A postura dialética quenos inspira sugere que sempre será assim...

    Devo agradecer muito particularmente a Carlos Alberto Serrano Ferreira por suaassessoria editorial que, em alguns momentos, chegou a constituir uma contribuiçãosubstancial para o livro. Agradeço também com muito carinho o apoio institucionaldo Centro Internacional Celso Furtado através de Rosa Furtado d’Aguiar e de Pedro deSouza, que se esforçaram em viabilizar a finalização deste trabalho. Como vimos, a ela-boração do mesmo faz parte de um esforço coletivo de mais de uma geração de cientistas

    sociais que entregaram suas vidas a esta tarefa tão vital, mas tão complexa e esgotante.Os cursos, os seminários, os congressos, os grupos de leitura, os trabalhos de pes-

    quisa, individuais ou coletivos, as assembleias, os debates políticos, os enfrentamentosabertos ou clandestinos, as confrontações com as forças da repressão, as aproximaçõescom as possibilidades de políticas concretas de transformação social são todas as formasmúltiplas que assume o processo de conhecimento, esta acumulação de saberes queajuda a humanidade a distinguir-se das outras espécies animais e colocar-se esta tarefacolossal de ser a construtora racional de seu próprio destino.

    Rio de Janeiro, 23 de novembro de 2012.

    Nota: Entreguei este livro no final de 2012 ao Centro Internacional Celso Furtado epropus uma discussão do mesmo antes de sua publicação. As observações e as discussões quegerou, passando inclusive por um debate com meus alunos do Programa de Pós-Graduaçãode Políticas Públicas da UERJ (PPFH), ao qual me dediquei, a partir de abril de 2013, comoProfessor Visitante, atrasaram a sua publicação. Incorporei grande parte das sugestões que mechegaram e, apesar de ainda não estar satisfeito, coloco o livro para publicação.

    Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2014.

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    Introdução

    1 – UMA HOMENAGEM A CELSO FURTADO

     A maior parte dos estudos sobre desenvolvimento concentrou-se nos aspectoseconômicos, isto é, no aumento da produtividade, da renda, particularmente da renda

     per capita , do emprego etc. Claro que a aparente exclusão da problemática cultural nãodeixava de supor, contudo, uma ideia central: a emergência econômica da Europa,continuada pelos EUA, se explicava, em grande parte, por características próprias doque se chamava “Civilização Cristã Ocidental”. Por mais volta que se dê neste assunto,persiste esta pretensão de apresentar a experiência histórica desses países como um mo-delo abstrato na direção do qual evolui a humanidade.

    Muitas foram as modalidades de questionamento desta postura ideológica apre-sentada como um modelo de cientificidade. Contudo, depois da Segunda GuerraMundial, ficou cada vez mais difícil ignorar a existência de um sistema mundial desi-gual e combinado, tendo por centro, desde o final dessa guerra, a potência dos EUA,que pretendia dar continuidade a essas “conquistas” alcançadas pela modernidade, con-sideradas insuperáveis.

     As revoluções coloniais que se afirmaram no pós Segunda Guerra Mundial comofruto do debilitamento da Europa, destruída em grande parte pelo conflito, foram mi-nando esta interpretação da História: a libertação da Índia em 1947; a vitória do Exér-cito Vermelho na China, em 1949; o fracasso da guerra contra a Coreia, reconhecidoem 1953; a independência da Indonésia (declarada em 1945 e reconhecida em 1949);

    o fracasso, em 1954, da tentativa ocidental francesa de destruir o governo vietcongueeleito de Ho Chi Minh (1945), seguido pela derrota da invasão norte-americana paramanter o Vietnã do Sul (1973), apesar da enorme mobilização militar realizada poraquele país; o surgimento das forças armadas nacionalistas e do pan-arabismo socialistaBa’ath. Tudo isto representava a emergência da vida econômica, política, social e cultu-ral de poderosos Estados nacionais herdeiros de fortes tradições culturais e civilizatórias.

    É assim que, em 1955, a Conferência de Bandung consagra a reivindicaçãoafro-asiática de um não alinhamento dessas novas potências com a divisão do mun-

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    do imposta pelos EUA e pela Inglaterra entre a “Civilização Cristã Ocidental” e o“Totalitarismo Ateu Soviético”. Apesar de algumas vacilações de certas tendências dopensamento socialista marxista em reconhecer a importância histórica, econômica, po-

    lítica, social, civilizacional e até mesmo epistemológica dessa tomada de posição, aforça dos acontecimentos históricos obrigou a um aprofundamento da crítica marxistae socialista da modernidade.

     A revolução histórica conduzida pela burguesia europeia contra as estruturasfeudais não podia ser identificada necessariamente como um modelo a ser seguidopelo resto da humanidade. As incursões de Marx e Engels na questão colonial jáindicavam que aí não se reproduzia o processo europeu, mas, pelo contrário, a situ-ação colonial era já um produto do processo de expansão capitalista mundial e nãopodia ser apresentada como uma realidade pré-capitalista. A teoria do imperialismode Lênin, Bukharin e outras contribuições importantes para um enfoque integral

    da expansão do capitalismo como economia e política mundial já indicavam queeste modo de produção se expandia sob formas diferenciadas em todo o planeta. Arebeldia dos povos conquistados pela força não poderia ser, portanto, um fenômenosecundário. Ela obrigava a repensar o processo de modernização como um fenômenodiversificado, que dependia da posição das várias unidades nacionais, regionais oumesmo locais dentro da economia e política mundiais.

    É assim que, a partir do chamamento de Bandung, inicia-se uma crítica cada vezmais radical à pretensão de organizar o mundo à imagem e semelhança das formaçõessociais imperialistas. Durante os anos 1950 e 1960 vai se configurando um embate

    econômico, social, político e cultural planetário. Na década de 1970, emerge com todaa força a luta contra os resultados da exploração do mundo segundo os princípios capi-talistas da plena realização da acumulação indefinida do capital.

     As organizações internacionais criadas para gerir o complexo processo que seapresentava ao final da Segunda Guerra Mundial, sob a hegemonia norte-americana– imposta, inclusive, a uma Europa profundamente debilitada – se veem na necessida-de de refletir, de alguma forma, a existência desse vasto mundo ignorado pela ordemeconômica e política do pós-guerra. A aparição de um novo sujeito histórico, que re-presentava a maior parte da população do mundo e as civilizações mais antigas, queacumularam conhecimentos de grande valor civilizatório, era um fenômeno novo de

    impacto colossal.Os defensores da superioridade radical da civilização ocidental, de maneira pre-

    potente, consideravam tais conhecimentos totalmente ultrapassados e subestimavam apossibilidade e a probabilidade de que esses novos sujeitos da economia, da política e dacultura mundial pudessem organizar estruturas estatais relativamente independentes,capazes de alcançar resultados fundamentais. Eles ignoravam, também, o quanto essesnovos poderes poderiam questionar os projetos do centro do sistema mundial, e até queponto eles colocavam definitivamente em xeque a ordem mundial existente. É assim

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    que o debate sobre o desenvolvimento e o estudo da problemática do desenvolvimentocomeça a ser questionado na sua formulação original, tal como foi realizada desde ocentro do sistema.

    São muitas as manifestações de crítica a essa sobrevalorização e até divinização, sepodemos dizê-lo assim, do mundo euro-americano. Abre-se, então, uma crescente dis-cussão sobre as construções ideológicas e culturais que sustentavam essa realidade emdeterioração. O pensamento social brasileiro demonstrou uma capacidade crescentede criticar a submissão ideológica da nossa classe dominante à condição de produtorade matérias-primas e de produtos agrícolas para uma economia mundial em processosrevolucionários de expansão e transformação.

    Não é aqui o lugar para fazer um histórico detalhado desse processo crítico, quetem dimensões complexas e diversificadas. Porém, nos cabe chamar a atenção para aexistência do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1955, no mesmo

    momento da afirmação afro-asiática expressada na Conferência de Bandung. O ISEBtraduzia para a situação brasileira avanços teóricos e conceituais que ocorriam no planointernacional. Entre eles, estava a atividade da Comissão Econômica para a AméricaLatina (CEPAL) que, desde 1949, depois de contrariar a pretensão norte-americanade que uma comissão regional das Nações Unidas teria que ser pan-americana e nãolatino-americana, também vai aprofundar o reconhecimento da especificidade da expe-riência econômica desta região diante de uma ordem econômica mundial consagrada àreprodução de um sistema onde claramente se definia um centro e uma periferia. Seudiretor, Raúl Prebish, já apontava para a necessidade de uma crítica a alguns teoremas

    centrais do pensamento econômico, organizado em torno da ortodoxia neoclássica.Celso Furtado participou intensamente desse debate, além de haver integrado,em seu universo teórico, três heranças que tendiam a ser convergentes nesse processocrítico: os estudos históricos da Escola dos Annales foram conhecidos amplamente porele durante seu período de estudos doutorais na França; segundo, o marxismo, que, nopós-guerra, inundava os campos mais críticos das ciências sociais; e, em terceiro, o key-nesianismo, que consagrava as políticas “liberais” do New Deal  como as bases de umaproposta de economia de bem-estar na Europa e em outras partes do mundo.

     A recuperação econômica do pós-guerra criava a ilusão de uma incorporação dasclasses subordinadas e dos povos colonizados num processo geral de democracia, refor-

    mas sociais e crescimento econômico. O alerta da CEPAL, os estudos do próprio Celsosobre a maldição do petróleo na Venezuela e vários esforços teóricos e empíricos, queforam realizados ou incorporados pela CEPAL indicavam a existência de problemasmais complexos para a realização dessa promessa idealizada sobre os benefícios necessa-riamente decorrentes da expansão mundial da civilização industrial.

     A dificuldade de sustentar as mudanças desenhadas pelas propostas fantasiosasdas “ciências sociais” ocidentais e de seus seguidores, dentro das sociedades caracteri-zadas pela dependência, deu origem a uma intervenção crescente do centro do sistema

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    nas zonas periféricas. A percepção militar do confronto mundial entre “civilizações” esistemas sociais e políticos distintos levou aos processos político-militares guiados peladoutrina da contrainsurreição. Estes se transformaram numa sucessão de golpes de Es-

    tado, a partir da década de 1960, que demonstravam e faziam compreender os limitesdo consenso surgido depois da Segunda Guerra Mundial.O golpe de Estado de 1964, no Brasil, lançou uma geração de pensadores brasi-

    leiros e latino-americanos na busca de explicação das dinâmicas socioeconômicas, po-líticas e culturais que conduziam a essas fórmulas de autoritarismo, que se expandiampara várias regiões do mundo, mas, em particular, para a América Latina. Não deixa deser positivo ver o desabrochar de uma consciência crítica cada vez mais ampla, cada vezmais complexa, a partir dessa experiência dramática, porém, enriquecedora.

    Por sua formação, Celso Furtado foi um dos que mais se sensibilizaram por essaproblemática; aproveitou sua experiência nos EUA, na Universidade de Yale, que lhe

    permitiu penetrar mais profundamente na complexidade do processo de diferenciaçãoentre a experiência histórica norte-americana e a latino-americana, do século XIX paracá. Ao mesmo tempo, o conhecimento mais direto do funcionamento e da expansãodas corporações multinacionais o conduziu a uma perspectiva nova, que se dirigia a umenfoque baseado no papel central da economia mundial, vista já como referência fun-damental para as políticas econômicas das nações a ela subordinadas. Ele incorporoumesmo o conceito de capitalismo dependente como uma formação social específica.

     A presença de Celso no Chile da Democracia Cristã, suas palestras no Institutode Estudos Internacionais, recém-criado pela Universidade do Chile, lhe possibilita-

    ram analisar aquela que representava a proposta mais avançada e exemplar da USAID(United States Agency for International Development) e do projeto de Aliança para oProgresso. Essa análise permitiu-lhe compreender, na prática, os limites daquela pro-posta. Foi exatamente a compreensão desses limites pelo povo chileno que conduziu àformação da Unidade Popular. O Chile havia se convertido num caldeirão de experiên-cias frustradas de toda a América Latina e na ponta de lança do desenvolvimento de umpensamento crítico, que colocava em xeque a potência ideológica colossal articuladapelos EUA, que buscavam herdar a vitória contra o nazismo (e ocultavam o papel fun-damental da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), transformadaem inimiga principal). Naqueles anos, foram muitos os trabalhos produzidos, os quais

    busco resumir no capítulo segundo do presente livro. Eles continuam exercendo umagrande atração, sobretudo com o fracasso da proposta do “pensamento único” neolibe-ral, que eu analiso no primeiro capítulo.

    Cabe aqui destacar as várias iniciativas que vão se desenvolvendo internacio-nalmente para canalizar esse processo intelectual, político e cultural que se desdobradurante as décadas de 1970 e 1980. O meu encontro com Celso no Chile – quando elecontribuía com os seminários do Instituto de Relações Internacionais da Universidadedo Chile, e eu dirigia as pesquisas no Centro de Estudos Socioeconômicos da mesma

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    21Introdução

    universidade – permitiu que muitos pontos de vista comuns se afinassem. Na década de1970, estivemos também juntos na criação da Associação Internacional de Economis-tas do Terceiro Mundo, cujo primeiro congresso se realizou na Argélia, em fevereiro de

    1976. Naquele momento, Celso buscava analisar criticamente as reuniões Norte-Sule a tentativa de criar a Nova Ordem Econômica Internacional, sem levar até o fim anecessidade de reformas estruturais.2 Esta Associação reconhecia a especificidade dofenômeno da dependência e buscava desenvolver um pensamento econômico capaz dearticular o ponto de vista e os interesses do chamado Terceiro Mundo.

    Raúl Prebish já reconhecia essa problemática quando propunha a criação daConferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD),no começo da década de 1960.3 E, depois, ao mesmo tempo, desenvolve-se a aliança dosEstados pós-coloniais com os Estados mais progressistas da América Latina, que vai darorigem à organização formal do Movimento dos Países Não Alinhados, sendo a Asso-

    ciação de Economistas do Terceiro Mundo um think tank  para esse novo movimento. A Universidade das Nações Unidas (UNU) foi criada em dezembro de 19734 e,

    sob a inspiração de seu vice-reitor Kinhide Mushakoji, iniciou um conjunto de estudossobre a economia e a política mundiais, e o processo de transformação global que estavaem marcha. Coube a Anouar Abdel-Malek dirigir o projeto da UNU sobre “Alternati-vas para o Desenvolvimento Sociocultural num Mundo em Transição”. A reconstruçãoda teoria do desenvolvimento estava em marcha, e as experiências políticas mais pro-gressistas começavam a apresentar como viável essa reconstrução em novas bases, comoveremos no capítulo 3. Ao mesmo tempo, a problemática da globalização, do papel

    da inovação e da possível retomada do crescimento em novas bases impulsionou umavanço mais profundo na crítica aos limites da ciência econômica, temas que tratamos,em parte, no capítulo 4 deste livro.

    Celso Furtado foi chamado a participar desse programa como membro ativo deseu conselho científico, com o qual também tive o prazer de colaborar. Em 1984, ogrande sociólogo mexicano, Pablo González Casanova, foi encarregado de coordenara segunda reunião do projeto sobre criatividade cultural endógena, que se realizou noInstituto de Investigaciones Sociales da Universidade Nacional Autônoma do México.Segundo Abdel-Malek,

    2 Ver Celso Furtado, “El nuevo orden económico mundial” e Alvaro Briones e Theotonio dos Santos, “Lacoyuntura internacional y sus efectos en América Latina”, ambos publicados em Investigación Económi-ca , n.1, nova época, Revista da Faculdade de Economia da Universidade Nacional Autónoma do México(UNAM), México, DF, jan.-mar. 1977. Nessa mesma revista, há uma série de documentos sobre o PrimeiroCongresso de Economistas do Terceiro Mundo. Nessa época, Celso Furtado publica sua crítica à teoria dodesenvolvimento: O mito do desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

    3  A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) foi fundada em 1964,com o objetivo de colaborar na promoção do desenvolvimento e da integração econômica dos países emdesenvolvimento. A criação do Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), por iniciativa do governomexicano, foi outro passo importante nessa direção.

    4 O início das discussões em torno à sua constituição se deu já em 1969.

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     A filosofia de nosso projeto, já amplamente exposta em documentos, mostra que seuimpulso básico é ajudar a recolocar a problemática do desenvolvimento humano esocial, e suas visões e posições, diferentes e convergentes, de grande importância nacivilização e na cultura. Estas visões e posições se obtêm em nosso mundo no mo-mento de sua transformação global, da emergência de uma nova ordem internacional(Abdel-Malek, A., 1984, p. XIV).5 

     A contribuição de Celso Furtado para o volume Cultura y creación cultural en América Latina  é o ponto de partida para a total incorporação de suas reflexões nocampo do grande processo crítico contra o eurocentrismo e contra o economicismo queprevaleceu nas ciências sociais até muito recentemente.6 Esta problemática é recolhida,em grande parte, no capítulo oitavo deste livro, que trata sobre a América Latina naencruzilhada. O sexto e o sétimo capítulos aprofundam a crítica ao eurocentrismo pela

    análise das situações concretas por que passa a globalização, a qual começa a reelabo-rar-se mais radicalmente em função da emergência da China e da Ásia na economiamundial.

    Celso colocava-se, assim, numa posição de vanguarda na nova fase do pensa-mento latino-americano, iniciada com a teoria da dependência e articulada, posterior-mente, no grande movimento de ideias sobre o sistema mundial. Ao apresentar essedebate, o vice-reitor da UNU, Kinhide Mushakoji, reconhecia essa posição de vanguar-da latino-americana ao justificar a realização do Encontro sobre a Cultura e a CriaçãoIntelectual na América Latina:

     A contribuição dos intelectuais latino-americanos é de especial importância devido a sua

    condição de vanguarda dos intelectuais do Terceiro Mundo. Eles atuam num lugar histó-

    rico-geográfico próximo ao Ocidente e ao mundo noratlântico, e os afeta diretamente a

    estrutura centro-periferia e a necessidade de superar e transcender o modelo noratlântico

    (Mushakoji, K., 1984, p. XII-XIII).7

    5 Extraído de Anouar Abdel-Malek, “Cultura y creación intelectual”. Cultura y creación intelectual en América

    Latina , coord. Pablo González Casanova. México, DF; Madrid; Buenos Aires e Bogotá: Siglo XXI / Institu-to de Investigaciones Sociales de la UNAM / UNU, 1984. pp. XIV-XVII. Citação da página XIV.

    6 Ver Celso Furtado, “Creatividad cultural y desarrollo dependiente”, na obra citada na nota anterior, pp. 122-9. Uma versão posterior foi incorporada no artigo “Quem somos?”, no livro de Rosa Freire d’Aguiar Furtado(org.), Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura , Rio de Janeiro: Contraponto; Centro InternacionalCelso Furtado, 2012, pp. 29-41, como as primeiras ref lexões de Celso Furtado sobre a relação cultura e de-senvolvimento. Na mesma ocasião, eu publicava, no livro organizado por Pablo González Casanova, o artigo“Cultura y Dependencia en América Latina: algunos apuntes metodológicos e históricos”, pp. 159-68.

    7 Extraído de Kinhide Mushakoji, “Sobre la creación intelectual”. Cultura y creación intelectual en América La-tina , coord. Pablo González Casanova. México, DF; Madrid; Buenos Aires e Bogotá: Siglo XXI / Institutode Investigaciones Sociales de la UNAM / UNU, 1984. pp. XII-XIII. Citação da página XIII.

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    23Introdução

    Não foi sem razão, portanto, que Celso Furtado foi apontado, por duas vezes,para reitor da Universidade das Nações Unidas. Indicação que, infelizmente, não pôdese efetivar durante a ditadura militar. O conteúdo internacional das reflexões de Celso

    foi recolhido pela UNESCO quando o convidou para participar como membro daComissão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento.Em novembro de 1991, a Conferência Geral da UNESCO aprovou uma resolu-

    ção que requeria ao seu diretor-geral, em cooperação com o secretário-geral da ONU,estabelecer uma Comissão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, que foi consti-tuída em dezembro de 1992. Ela foi criada nos marcos de uma mudança de concepçãosobre o desenvolvimento, que já vinha se processando no sistema das Nações Unidas,com particular referência no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(mas não só) e que pensava numa concepção mais ampla e menos economicista, centra-da nos aspectos humanos, nos direitos e na qualidade de vida das populações. Tratamos

    mais amplamente desta temática nos capítulos nove e dez deste livro. É o estabeleci-mento do conceito de desenvolvimento humano, em que, segundo Federico Mayor,

     A Cultura estava implicada nesta noção, mas não estava explicitamente. Foi, noentanto, cada vez mais evocada por vários grupos distintos: a Comissão Brandt, aComissão Sul, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e aComissão sobre Governança Global (Mayor, F., 1995).

     A criação da comissão objetivava exatamente o estabelecimento efetivo da relação

    entre cultura e desenvolvimento:Construir perspectivas culturais em estratégias mais amplas de desenvolvimento,bem como uma agenda prática mais efetiva, tinham que ser os próximos passos norepensar do desenvolvimento. Este é o desafio formidável que a nossa Comissão tevede enfrentar (Mayor, F., 1995).8

    Esse caráter da Comissão como o momento de um processo maior de transfor-mação reflexiva fica ainda mais demonstrado por ela ser parte de uma iniciativa maisampla da UNESCO, a Década Mundial para o Desenvolvimento Cultural  (1988-1997),

    em que os países-membros eram instados “a refletir, adotar políticas e empreender ati-vidades para assegurar o desenvolvimento integrado de suas sociedades”.9 

    Para a presidência da Comissão foi apontado Javier Pérez de Cuéllar, ex-secretá-rio-geral das Nações Unidas, diplomata peruano, ex-embaixador na Suíça, na URSS e

    8 Essas citações de Federico Mayor foram extraídas do “President’s Foreward”, do relatório da World Com-mission on Culture and Development, Our Creative Diversity: Report of the World Commission on Cultureand Development , Paris: UNESCO, 1995.

    9 Informação extraída do portal da UNESCO (www.unesco.org).

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    na Venezuela, e membro do Institut de France (Academia de Moral e Ciência Política).Compuseram a Comissão intelectuais de diversas áreas, como economistas, antropólo-gos, cientistas políticos, romancistas e poetas, bem como detentores de prêmios Nobel,

    como o da Paz e o de Química. Foi uma comissão de alto nível e de grande representa-tividade, tanto intelectual e cultural, como geográfica.Como produto de seu trabalho, resultado de várias reuniões e de um diálogo in-

    telectual mundial, foi publicado, em 1995, o informe Our Creative Diversity ,10 do qualparticipou muito intensamente Celso Furtado, incorporando, além de suas reflexõesteóricas e históricas, a sua experiência como ministro da Cultura no Brasil.

    Esse informe produziu efeitos no debate internacional, tais como, dez anos de-pois, a solidificação dessa concepção da importância da cultura para o desenvolvimentoe da inter-relação profunda dessas duas dimensões na Convenção da UNESCO sobre aProteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que, na letra (f) de seu

    primeiro artigo, coloca, como um dos objetivos da mesma, “reafirmar a importância dovínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para paísesem desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e interna-cional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo”.

    Uma das consequências diretas do trabalho dessa comissão foi também a publi-cação dos World Culture Reports .11 

     Apesar de a contribuição de Celso não ter sido individualizada no texto, por suacondição de membro do conselho da pesquisa, seu artigo publicado na Folha de SãoPaulo, em 3 de novembro de 1995, sobre “Cultura e Desenvolvimento”, refere-se ao

    papel da Comissão. Ele finaliza o texto ressaltando a sua importância:

    Em síntese, a nossa Civilização somente sobreviverá se lograr aprofundar os vínculosde solidariedade entre povos e culturas, num sistema de convivência internacionalcada vez menos tutelado e mais participativo (Furtado, C., 1995).12

    Naquele momento, Celso Furtado já tinha passado pelo cargo de ministro daCultura, entre 1986-1988, o que lhe permitiu colocar essa problemática teórica nocampo das políticas públicas. Nesta homenagem, gostaria de assinalar a interação en-

    10 Citado na nota 8.11 Saíram edições em castelhano dos mesmos. Ver: UNESCO, Informe Mundial sobre la Cultura: cultura, crea-

    tividad y mercados , Madrid: UNESCO / Acento / Fundación Santa María, 1999; e Informe Mundial sobre laCultura: diversidad cultural, conflicto y pluralismo, Madrid: UNESCO / Mundi-Prensa, 2001. Os relatóriosforam disponibilizados quase em sua integralidade, em versão on-line, pelo Centro Regional de Investiga-ciones Multidisciplinarias (CRIM) da UNAM, estando o de 1999 disponível em: e o de 2001, disponível em: .

    12 Extraído de Celso Furtado, “Cultura e Desenvolvimento”, do livro de Rosa Freire d’Aguiar Furtado (org.),Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura , Rio de Janeiro: Contraponto; Centro Internacional CelsoFurtado, 2012, pp. 113-6. Citação da página 116.

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    tre essa experiência política de Celso e a figura de Darcy Ribeiro como secretário deCultura do Estado do Rio de Janeiro. Ambos destacaram os limites impostos ao de-senvolvimento cultural pela oligarquia dominante dos países capitalistas dependentes,

    particularmente no Brasil, diante da impressionante criatividade popular.Então, a colaboração nossa com Celso Furtado nos aproximou cada vez mais, eele teve um papel muito importante na consolidação da Cátedra e Rede em EconomiaGlobal e Desenvolvimento Sustentável (REGGEN), sob minha direção, que foi criadaem 1997 pela UNESCO e pela UNU, a partir de um encontro realizado em Helsinki,Finlândia, em 1996. Em 2000, a REGGEN colaborou muito diretamente com a orga-nização do encontro internacional coordenado por Francisco López Segrera e DanielFilmus sobre “América Latina 2020 – cenários, alternativas e estratégias”, ocorrido noRio de Janeiro. Nessa oportunidade, Celso pronunciou umas palavras de abertura que,além de chamar à retomada do crescimento econômico, terminava com o seguinte

    parágrafo:

    O processo de globalização interrompeu esse avanço na conquista da autonomia na to-

    mada de decisões estratégicas. Se submergirmos na dolarização, estaremos regredindo ao

    estatuto semicolonial. Com efeito, se prosseguirmos no caminho que estamos trilhando

    desde 1994, buscando a saída fácil do crescente endividamento externo e o do setor pú-

    blico interno, o Passivo Brasil a que fizemos referência terá crescido ao final do próximo

    decênio absorvendo a totalidade da riqueza nacional. O sonho de construir um país

    tropical capaz de influir no destino da humanidade ter-se-á desvanecido (Furtado, C., in

    Segrera, F. L. e Filmus, D. (coord.), 2000, pp. 21-3).13

     

    Esta temática está tratada neste livro, em grande parte, nos capítulos 11 e 12.Em 2003, realizamos talvez o mais importante encontro organizado pela REGGEN.

    Celso Furtado outra vez abriu nosso encontro, quando suas advertências, expressas na suaintervenção anteriormente citada, já estavam em plena concretização. Elas continuavamfundamentais, claras e decisivas. Assim termina ele sua saudação:

     Agora, que fazer? As portas para as saídas falsas estão fechadas. Liquidar o pouco que resta

    do patrimônio nacional? Apelar novamente para a inflação, forma insidiosa de punir a

    população pobre? Já não resta dúvida de que, para sair do impasse atual que o obriga aconcentrar a renda a fim de satisfazer a sempre crescente propensão ao consumo do seg-

    mento de privilegiados, o Brasil terá de se submeter a importantes reformas estruturais

    que exigirão persistência de propósitos e apoio de amplo movimento de opinião pública.

     A reconstrução estrutural requerida é obra que exige esforço persistente de mais de uma

    13 Extraído de Celso Furtado, “Brasil: para retomar o crescimento”, do livro de Francisco López Segrera e Da-niel Filmus (coord.), América Latina 2020: cenários, alternativas e estratégias , São Paulo: Viramundo, 2000,pp. 21-3. Citação da página 23.

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    geração. São problemas que se acumulam desde a época colonial e em parte resultam da

    dimensão continental do país. Todos estão conscientes de que as relações internacionais

    tendem a sofrer modificações de grande monta, e o Brasil terá de enfrentá-las antes que o

    quadro internacional restrinja ainda mais nossa capacidade de exercer a soberania. Os de-

    bates que terão lugar neste seminário certamente nos ajudarão a encontrar o caminho de

    saída nessa difícil conjuntura. Aos organizadores deste seminário, iniciativa do meu velho

    companheiro de lutas, Theotonio dos Santos, meus calorosos agradecimentos (Furtado,

    C., in Dos Santos, Theotonio (coord.) et al., 2005, pp. 23-5).14 

    Nesse encontro, que contou com uma centena de importantes pensadores detodo o mundo e uma assistência de cerca de seiscentos ouvintes, lançamos a candidatu-ra de Celso Furtado para Prêmio Nobel de Economia, com uma enorme repercussão.Em seguida, apresentei esta candidatura para o Encontro Internacional sobre Globa-

    lização e Desenvolvimento, organizado pela Associação de Economistas da AméricaLatina (AEAL) e realizado em Cuba naquele mesmo ano, com a aprovação unânime deum auditório de cerca de 500 economistas de todo o mundo. Por mais que seu nomefosse aceito e recomendado por grandes figuras do pensamento econômico contempo-râneo, os jurados do Prêmio Nobel de Economia não atenderam ao clamor. Com rarasexceções, eles continuam premiando o economicismo conservador e uma “ciência”econômica totalmente separada das ciências sociais.

    Vemos, assim, que a presente obra deve muito à colaboração com este grandeeconomista brasileiro, de expressão universal. Estou seguro de que Celso Furtado – se

    vivo ainda – estaria de acordo com grande parte das teses defendidas neste livro. É ne-cessário preitear sua enorme contribuição para o mesmo.

    2 – CIVILIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

    O conceito de civilização surge como tal no século XVIII. É, inclusive, um ver-bete da Enciclopédia  dos iluministas. A ideia de civilização associava-se, então, à cons-tituição de uma sociedade civil dos cidadãos, que se diferenciava das formas políticasanteriores e gerava uma organização social específica, que pretendia corresponder auma moral mais adequada à natureza humana. Nesse momento, consagra-se a ideia

    do indivíduo como fundador da sociedade e como criador de produtos, frutos de seutrabalho. Pode-se compreender, portanto, como a economia política clássica chegou ànoção de valor. Ela refletia o grande passo que representava a busca de compreensãodos avanços sociais trazidos pelo aumento colossal de produtividade, que foi possí-

    14 Extraído de Celso Furtado, “Prefácio: O desafio brasileiro”, do livro de Theotonio dos Santos (coord.),Carlos Eduardo Martins, Fernando Sá e Mónica Bruckmann (orgs.), Globalização e integração das Américas ,volume 4 da coleção Hegemonia e Contra-hegemonia , Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola,2005, pp. 23-5. Citação da página 25.

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    27Introdução

    vel alcançar como consequência, basicamente, do desenvolvimento das manufaturas e,posteriormente, da Revolução Industrial. Logo, era natural que, no norte da Europa,particularmente na Inglaterra, onde se concentrava esta revolução, se gerasse uma pre-

    monição de que o grande desenvolvimento das forças produtivas, que se consolidavanessas regiões, e das formas sociais que se associavam a esse processo produzisse a ideiade um estágio superior da sociedade humana, que se caracterizaria por gerar uma formasocial associada, cada vez mais, ao conceito de civilização.

    Durante o século XIX, foi-se depurando essa ideia. Saint Simon nos fala de umasociedade industrial que corresponderia ao futuro da humanidade. Comte, seu dis-cípulo, vai sistematizar essa noção de uma nova sociedade com a ideia de progresso. Associava-se, assim, certa concepção de sociedade ao processo evolutivo apoiado noconhecimento científico e nas formas de produção modernas, que se manifestavam naRevolução Industrial. Hegel, inclusive, tinha, na Fenomenologia do espírito,15 mostrado

    o caráter necessário dessa evolução da humanidade na direção de uma sociedade livreapoiada na introdução e na generalização da industrialização, do uso da razão e da açãoeconômica organizada e sistematizada. No final do século XIX, a visão neopositivistade inspiração kantiana vai resgatar essa nova noção de progresso como um roteiro ne-cessário e como um produto do desenvolvimento da capacidade cultural humana. Aestrutura da percepção assegurava ao ser humano um pleno desenvolvimento da suadiferenciação do reino animal. Era lógico, portanto, que aquelas sociedades que desen-volveram essa especificidade do humano se transformassem numa espécie de modelopara todas as outras. Tudo indicava que a humanidade chegava, como o havia concebi-

    do Hegel, ao “fim da História”.Marx e Engels buscaram compreender esta especificidade do humano, não comoum dado da natureza humana, mas, sim, como resultado da acumulação e da evolução daconsciência humana, embutida nas sucessivas formas de relações sociais que promovemhistoricamente este pleno desenvolvimento da humanidade. Em consequência, Marx eEngels desenvolvem um método dialético que lhes permite encontrar a universalidadedo concreto, isto é, o elemento mais abstrato de formações sociais historicamente dadas.É assim que Marx se propõe a realizar a crítica da economia política, ao identificarna proposta teórica do liberalismo e da economia política clássica uma tentativa detransformar as leis de funcionamento de um concreto histórico em leis gerais da

    sociedade humana em abstrato. A crítica da economia política era, assim, a crítica da tentativa da ideologia bur-

    guesa de transformar a sociedade e as relações econômicas capitalistas numa forma idealda sociedade humana. Esse esforço teórico de Marx permitia encontrar novas formasde organização social, que emergiam da própria evolução da sociedade capitalista eserviam de fundamento para a ação política das classes sociais geradas pelas relações

    15 Ver Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do espírito, Petrópolis: Vozes, 2007, 4. ed.

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    capitalistas de produção. Surgiam assim, dentro do avanço da revolução industrial,as novas relações sociais, particularmente as classes sociais que se identificavam como avanço dessas novas bases materiais. A conjunção dessas classes sociais realizava-se

    num processo de luta que, de um lado, alterava o modo de funcionamento da própriaeconomia e sociedade capitalista e, de outro lado, colocava as condições e possibilidadesde uma sociedade superior.

    O fenômeno da evolução não terminava com a sociedade capitalista existente,mas, pelo contrário, apontava para uma transformação histórica permanente da huma-nidade e do ser humano como indivíduo. O marxismo convertia-se num movimentosocial que articulava uma visão do mundo, um método de análise e síntese, e umaestrutura de organização política, que pareciam se materializar no fenômeno impres-sionante da emergência do movimento socialista internacional, na Comuna de Paris,na Primeira e na Segunda Internacionais.

    O pensamento comprometido com a ordem social, política e moral que brotavae se ampliava com a expansão material da sociedade burguesa exigia uma resposta te-órica, conceitual, mais sofisticada. Os teóricos burgueses de ponta, de vanguarda, nãotinham mais por tarefa criticar as sociedades pré-capitalistas e sim defender o carátereterno e absoluto da sociedade existente.

    Não deixa de ser impressionante ver o esforço teórico de um Max Weber, de umDurkheim, de uma economia política austríaca, para transformar em conhecimentocientífico a abstração das relações capitalistas de produção e do liberalismo, não comoum fenômeno histórico concreto e particular e sim como a formação social e política

    em si. Tratava-se de transformar a sociedade existente na expressão mais avançada daeconomia e da política em geral. A materialização dessas formas sociais abstratas seriaa forma final de organização da sociedade humana. Eis, aí, a origem da relação apa-rentemente harmoniosa entre o surgimento e a sistematização das ciências sociais e aafirmação histórica do modo de produção capitalista.

    Se tomarmos em consideração que a formação do modo de produção capita-lista historicamente se faz por meio de um sistema de relações econômicas, sociais epolíticas em escala mundial, é uma hipótese bastante arbitrária pretender que os pro-cessos que se deram nas regiões que ocuparam um papel central na criação do sistemaeconômico mundial moderno correspondam a uma forma final e superior da história

    humana. A partir disto é que vamos fazer uma síntese das principais tentativas deapresentar a história humana neste contexto teórico conceitual, pois, no começo doséculo XX, o sistema mundial capitalista apresenta o fenômeno da Primeira Guer-ra Mundial. Como explicar que a sociedade perfeita tenha levado a humanidade àdestruição mútua? Era necessário encontrar as razões da guerra não na competiçãointercapitalista, mas sim no “nacionalismo”, por exemplo, ou em elementos psicoló-gicos intrínsecos a toda sociedade.

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    Vemos, assim, as várias contribuições teóricas como tentativas importantes debuscar essas causas independentemente das relações de produção próprias desse modode produção. Tratava-se de buscar os mecanismos pelos quais alguns povos se liberaram

    das limitações impostas ao pleno funcionamento da natureza humana, permitindo quese impusessem historicamente as relações econômicas “naturais” que cabia à ciênciaeconômica descobrir. Tratou-se de afirmar, de um lado, com Oswald Spengler, que adecadência era uma parte necessária do próprio processo civilizatório. Ela não se expli-cava por razões econômicas, mas, sim, por limites culturais. Tese que Spengler defendeno seu livro  A decadência do Ocidente.16 Por outro lado, Pitirim A. Sorokin,17 dianteda ameaça que representa a Revolução Russa para essa ordem social “perfeita”, vai nosconduzir a uma tentativa de transformar num fenômeno biológico o surgimento, ocrescimento, a afirmação, o auge e a decadência das civilizações.

    Estamos, assim, diante de uma crítica ao otimismo histórico do liberalismo, que

    entrava em erosão diante das evidências históricas em que vivia a sociedade burguesa. Já no final da Primeira Guerra vamos assistir a um dos esforços mais importantes paratentar reconstruir o quadro e o tecido da visão liberal.

    Desde uma postura que poderíamos chamar de esquerda, nós nos deparamoscom o gigantesco esforço de H. G. Wells para encontrar uma razão positiva orientandoa evolução da humanidade. Seu livro The Outline of History: Being a plain history oflife and mankind,18 publicado originalmente em 1920 e revisado em 1932, impõe-seconsiderações metodológicas e ideológicas. Diante da evidência da parcialidade do seupróprio enfoque, H. G. Wells tenta corrigi-lo, em parte. Segundo ele:

    De início o autor pretendeu apenas uma revisão geral da unidade europeia, uma espécie

    de sumário da ascensão e queda do sistema romano, da obstinada sobrevivência da ideia

    de Império na Europa e dos vários projetos para a unificação da Cristandade que haviam

    sido propostos em diferentes ocasiões (Wells, H. G., 1942, p. 4).

    Contudo, a evidência dos fatos históricos o obriga a dar um passo adiante:

    Mas depressa [o autor] verificou não haver nenhum real começo em Roma, ou na Judeia,

    e ser impossível confinar a história ao mundo ocidental. Este não era senão o último

    ato de muito maior drama. Os seus estudos o levaram, por um lado, até os primórdiosarianos nas florestas e planícies da Europa e da Ásia ocidental, e, por outro lado, até os

    16 Em português, há: Oswald Spengler, A decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da história univer-sal , Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982.

    17 Ver Piritim A. Sorokin, Social and Cultural Dynamics , Nova York; Cincinnati; Chicago; Boston; Atlanta;Dallas; São Francisco: American Book Company, 1937. 4 v. O último volume é de 1941.

    18 Há uma edição em português: H. G. Wells, História Universal , São Paulo; Rio de Janeiro; Recife e Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942. 3 v. As citações se referirão a esta edição.

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    primeiros passos da civilização no Egito, na Mesopotâmia e nas terras agora submersas da

    bacia do Mediterrâneo onde, parece, viveu e prosperou outrora uma população humana

    primordial (Wells, H. G., 1942, p. 4).

    O autor busca suprir a falta de informação e conhecimento histórico da sua época,mas compreende claramente as intervenções arbitrárias realizadas pelo pensamento preten-samente universal e científico a favor do reconhecimento do papel histórico excepcionale definitivo que a Europa apresentava: “Começou a compreender quanto os historiadoreseuropeus haviam, drasticamente, diminuído a participação das culturas dos planaltos cen-trais da Ásia, da Pérsia, da Índia e da China no drama da humanidade” (p. 4).

    Ele reconhecia então, nessa operação de ocultação histórica, um conteúdo deintervenção na problemática do seu próprio tempo. Compreendendo o fenômeno quemais tarde Fernand Braudel chamaria de longa duração, ele afirmava:

    Começou a ver, mais e mais claramente, como ainda se achava vivo, em nossas vidas

    e instituições, esse remoto passado, e como é pouco o que podemos compreender dos

    problemas políticos, religiosos ou sociais de hoje, se não compreendermos os primeiros

    estágios da associação humana. E como compreender esses primeiros estágios, sem algum

    conhecimento das origens humanas? (Wells, H. G., 1942, p. 4).

    É significativo ver como seu livro, que teve uma divulgação excepcional, nãoconseguiu também superar esses limites. Ele centra sua análise histórica no mundoantigo na Europa, no Mediterrâneo e seu vale, e analisa as primeiras civilizações comoexperiências separadas, envolvendo os cultivadores nômades primitivos transformadosem camponeses, artesãos, religiosos e militares a partir da revolução agrícola que Gor-don Childe19 tomou como elemento central da transformação das forças produtivas edos regimes sociais que se tornaram possíveis e complexos a partir dela.

    Ele nos chama ao estudo dos sumerianos, do império de Sargão I, de Hamurabi,dos assírios, dos caldeus, do Egito, da Índia e da China. Vemos, como elementos co-muns dessas primeiras civilizações, não somente o domínio da natureza com a produçãoagrícola como o desenvolvimento de um pensamento primitivo, de uma diferenciaçãoracial e linguística, os povos marítimos e os povos comerciantes, a escrita, a astrologia.

     Assistimos à emergência da gesta de Alexandre, o Grande, que ele não pode deixar deconsiderar como o augúrio do império mundial. O esforço de H. G. Wells, por maisque aspirasse a um enfoque universal, manteve, no fundo, a ideia de predestinação daEuropa em converter-se em líder do processo civilizatório mundial.

    19 Ver Gordon Childe, O homem faz-se a si próprio: o progresso da humanidade desde as suas origens até o fim doImpério Romano, Lisboa: Cosmos, 1947. Tradução feita por Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges deMacedo do livro, originalmente publicado em inglês, Man makes himself  , Londres: Watts, 1936.

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     Arnold Toynbee oferece-nos um esforço colossal no seu Um estudo da História ,20 publicado originalmente em 1972 como uma síntese atualizada dos doze volumes quepublicara de 1927 a 1939, às vésperas, portanto, da Segunda Guerra Mundial. Nessa

    versão mais repousada, vinte e sete anos após a Segunda Guerra Mundial, Toynbeetenta dar um fundamento teórico mais complexo do que aquele que adotou no seuesforço inicial.

    Na primeira parte, ao tentar uma morfologia da história, Toynbee nos coloca:

    Começo meu trabalho buscando uma unidade de estudo histórico que seja de certo

    modo independente e, portanto, mais ou menos inteligível, isoladamente, em relação

    ao resto da história. Rejeito o hábito contemporâneo de estudar a história em termos de

    estados nacionais; estes parecem ser fragmentos de algo maior: uma civilização. Visto que

    o homem necessita classificar a informação antes de a interpretar, tal unidade de maior

    amplitude se me afigura menos deturpadora do que uma de menor espectro. Após definirminha unidade de trabalho, ao observar as sociedades pré-civilizadas, procuro estabelecer

    um “modelo” para a história das civilizações, tomando como rumo os cursos das his-

    tórias helênica, chinesa e judaica. Ao combinar seus principais aspectos, proponho um

    modelo composto que, aparentemente, é aplicável às histórias da maioria das civilizações

    que conhecemos. Concluo por elaborar uma lista das civilizações, passadas e presentes

    (Toynbee, A. J., 1987, p. 15).

    O esforço de Toynbee é realmente muito impressionante, sobretudo na medida

    em que ele busca encontrar os elementos que compõem essas civilizações, distinguindo,inclusive, as sociedades de transição e buscando um estudo comparativo das civiliza-ções. Vê-se, contudo, certo limite de enfoque ao tomar os modelos helênico, chinês e judaico como centrais. De fato, ao terminar sua morfologia, ele apresenta uma tábuade civilizações desenvolvidas e civilizações abortadas.

    Outra vez seu esforço teórico se vê limitado não só pela perspectiva históricaeurocêntrica, como também pela falta de estudos empíricos suficientes, sobretudo so-bre as regiões do mundo que não fazem parte do imaginário eurocêntrico. Entre ascivilizações independentes, não há dúvida de que ele só as pode encontrar dos anos100-200 a.C. para cá. É clara, por exemplo, sua ideia de que a civilização andina não

    teria relação com outras. Como veremos posteriormente, o mundo andino já estavaarticulado numa região relativamente grande em torno do sítio arqueológico de Caral,desde 3.000 a.C.

    Existe, portanto, um vazio tanto arqueológico como histórico e teórico que nosimpede de explicar o verdadeiro papel das Américas no processo de desenvolvimento

    20 Ver: Arnold Joseph Toynbee, Um estudo da História , Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo:Martins Fontes, 1987.

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    32 Desenvolvimento e civilização: homenagem a Celso Furtado

    das civilizações. Talvez pudéssemos colocar entre parênteses todo o esforço interpreta-tivo desenvolvido nos últimos duzentos anos, a partir, sobretudo, dos centros acadêmi-cos ocidentais, para reconstruir uma verdadeira história das civilizações. A partir dessa

    operação de parênteses, imitando a versão Guerreiro Ramos da redução filosófica deHusserl, por meio de uma redução sociológica,21 que reordene essas experiências his-tóricas a partir de hipóteses mais amplas que permitam desenhar um panorama novodessa epopeia humana.

    Não é o objetivo deste trabalho realizar esta tarefa, que exige uma equipe oumesmo várias equipes muito amplas. Talvez seja já tempo de refazer a história dascivilizações, sem desprezar, evidentemente, os esforços anteriores de compreensão dahistória humana. É interessante considerar que Toynbee, em sua versão mais ampla emais moderna, já se sentia na obrigação de resistir ao enfoque eurocêntrico, mas não énada claro que ele tenha conseguido superar esta limitação.22 

    É interessante notar o impacto do esforço de Toynbee num Japão que estavarecém recuperando sua força histórica diante da civilização ocidental, particularmen-te, do seu centro norte-americano, que lhe impôs uma derrota definitiva na SegundaGuerra Mundial. Umesao Tadao, diretor do Museu de Osaka, escreve, na década de1970, um conjunto de trabalhos que busca responder ao esforço de Toynbee. Em seulivro O Japão na Era Planetária,23 traduzido ao francês por René Siffert, e publicado emParis em 1983, ele tenta apresentar uma concepção ecológica das civilizações, que co-meça por criticar a divisão entre Ocidente e Oriente e, particularmente, por identificaro Japão com a cultura oriental. Sua argumentação o conduz a uma afirmação bastante

    inquietante. Ele coloca:

     A velha concepção evolutiva da História via a evolução como uma progressão em linha

    reta sobre uma rota única na qual passe o que passe todo o mundo atingirá, cedo ou

    tarde, o mesmo objetivo. As diferenças no estado atual são consideradas como simples

    diferenças de níveis de desenvolvimento sobre a via do objetivo final. A verdadeira evo-

    lução dos seres viventes não tem, evidentemente, nada a ver com isso, mas o enfoque

    evolutivo adaptado à história da humanidade chegou a esta maneira de ver simplista. Se

    admitir-se o ponto de vista ecológico, por outro lado, muitas vias se oferecem segundo

    21 Ver: Alberto Guerreiro Ramos, A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica , Rio de Janeiro:ISEB, 1958. Há uma edição mais recente, de 1996, publicada pela editora da UFRJ.

    22 A cada dia, é maior o número de acadêmicos europeus e norte-americanos que aceitam a ideia de que háuma visão eurocêntrica, particularmente no que respeita ao conceito de uma civilização ocidental. Pode-ríamos citar Niall Ferguson como um exitoso expositor dessa autocrítica limitada. Recomendamos, comoum exemplo bastante amplo desse enfoque, o seu livro Civilización: Occidente y el resto, Barcelona: RandomHouse Mondadori, 2012. Nesse livro, pode-se encontrar uma bibliografia bastante completa dos autoresligados a essa corrente. Outro esforço que pode chamar a atenção seria a obra de Norbert Elias, O processocivilizador , Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 2 v.

    23 Ver Umesao Tadao, Le Japon à l’ère planètaire , Paris: Publications Orientalistes de France, 1983. As citaçõesseguintes são dessa obra.

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    os casos, não é, pois, surpreendente que nas primeiras e segundas zonas [do mundo euro-

    -asiático, distinguidas por ele] cada sociedade desenvolveu seu modo de vida próprio

    (Tadao, Umesao, 1983, p. 22).

    Ele insiste no caso japonês e afirma:

    Todo discurso sobre a cultura japonesa que não integra estes fatos [que dão a especificida-

    de do caso japonês] na sua reflexão é uma falta de sentido pura e simples. De outro lado,

    não se pode conceber toda a transformação na direção de um progresso da civilização.

    Pois, a civilização é nosso ponto de apoio, nossa tradição, que nós devemos de toda ma-

    neira preservar (Tadao, Umesao, 1983, p.14).

    Desta maneira, chega-se a uma negação totalmente radical da visão eurocêntrica

    que pretende estabelecer um modelo civilizatório, inclusive a partir de especificidadesda cultura europeia. Ele continua:

    Isto não tem nada a ver com o fato que o Japão seja um país de capitalismo de alto nível.

    Nem todo país capitalista atinge forçosamente um alto nível de civilização e é impossível

    afirmar que nenhum país de alto nível de civilização tal como o Japão não se tornará

     jamais um país socialista (Tadao, Umesao, 1983, p. 14).

    E ele amplia, então, sua observação histórica:

    Para tomar as coisas concretamente, contudo, é forçoso constatar que no mundo antigoos países que conseguiram criar uma situação de fato parecida, qualquer que seja o seu

    regime, são ainda menos numerosos. Não existem aqueles que pareceram haver se apro-

    ximado dessa condição, mas somente o Japão e alguns países da Europa Ocidental, que

    se encontram na outra extremidade do continente se transformaram na sua globalidade

    co