desenho, imaginário e percepção em arquitetura

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DESENHO , IMAGINÁRIO E PERCEPÇÃO EM ARQUITETURA bhakta krpa luís antonio jorge (orientador) trabalho final de graduação são paulo, f auusp, 2012

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Trabalho final de graduação, fauusp, 2012

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Page 1: Desenho, imaginário e percepção em arquitetura

d e s e n h o , i m a g i n á r i o e p e r c e p ç ã o e m a r q u i t e t u r a

bhakta krpa

luís antonio jorge (orientador)trabalho final de graduação

são paulo, fauusp, 2012

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“A palavra não escrita, encontra antes de procurar”Paul Valéry

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prólogo: sobre os desenhos . . . . . . . . . . . . . . 06introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 as atmosferas em Peter Zumthor . . . . . . . . . . . 242 mundo percebido em Merleau-Ponty . . . . . . . . 463 desenho e percepção em Pedro Janeiro . . . . . . . 66 4 representação em Arlindo Machado . . . . . . . . 765 analogia e pensamento icônico em Paul Valéry . . . 1006 montagem em Eisenstein . . . . . . . . . . . . 126considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . 140referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . 154

[página seguinte] café na residência de estudantes, fotografia de Hans Baumgartner, Zurique, 1935.

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prólogo: sobre os desenhos.

Os desenhos apresentados aqui, são um exercício de sín-tese, sobre algumas questões que tem me acompanhado, desde que me deparo, como estudante de arquitetura, na condição daquele que pensa o espaço e, da mesma forma, daquele que busca atribuir sentido ao próprio fazer arquitetônico.

Poderia chamar estes desenhos de imagens-sequência, mas este termo não seria suficientemente preciso, pois nem todos desenhos configuram uma relação de sequên-cia, que evoque sucessão. Talvez imagens-múltiplas seja mais preciso, mas daí a coisa se concentraria demais na-quilo que está fixado no papel, e isso também não cor-responderia às minhas intenções.

O interesse deste exercício está, em primeiro lugar, no não-fixado, no intervalo, na passagem, no discurso que se vislumbra entre uma imagem e outra — montagens. Como no cinema, nos haicais, nos ideogramas, nas colagens de Hockney. Uma operação fundada na combinação entre duas imagens, da qual surgiria uma outra, mental.

Se a uma determinada imagem, isolada, atribuímos um significado e a temos como autônoma, encerrada neste significado, quando a combinamos, ou a colidimos, com uma segunda imagem, é estabelecida uma espécie de ten-são, na qual o significado inicial se refaz e a autonomia da imagem se perde. De duas imagens que se combinam, desta cópula, surge uma outra imagem, interior àquele que presencia o choque.

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Esta outra imagem, permanece imagem sem forma, pois é mesmo anterior à forma, algo como uma latência, na qual aquilo que é resultado do desenho, nosso objeto, permanece em suspenso.

Foi, portanto, a partir desta estrutura imagística que produzi estes desenhos, nos quais procuro investigar uma espécie de qualidade arquitetônica. Não da qualidade de algum edifício específico que visitei ou que pretenda projetar, mas de aspectos próprios das experiências per-ceptivas e de suas representações — na música, na poesia, no cinema, no desenho, na pintura, nas maquetes, nos cortes e plantas —, cada qual, segundo suas especificida-des, revelando aspectos únicos do mundo sensível.

Pressuponho com isso, que as representações podem oferecer uma experiência emocional e cognitiva tão signi-ficativa quanto a própria vivência arquitetônica, embora completamente distinta desta.

Logo, apesar de desenhar o espaço, não se trata em nenhum momento de ser signo de um projeto arquite-tônico, de fazer ver uma arquitetura em seu conjunto ou em parte. Antes disto, estes desenhos-montagem, estas imagens-latência são uma investigação sobre o significado da arquitetura, ou seja, mais concentrado no que ela re-presenta do que no invólucro deste significado.

Trata-se, portanto, de um procedimento mais próxi-mo da subjetividade e da síntese do que da objetividade e da análise —, um operar imaginativo, heurístico, criativo do desenho associado ao fazer arquitetônico, como algo simultâneo a este fazer, mas que também o antecede.

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Concluindo, em linhas gerais, são desenhos que se detém sobre a qualidade arquitetônica, as atmosferas — qua-lidades subjetivas, mais atreladas a experiência humana da arquitetura, do que propriamente a ideia do edifício

— trabalhados sobre uma estrutura fundada na combi-nação, onde uma imagem expande, reafirma, contradiz, reorienta ou completa o significado da outra, de tal modo que o espaço da imagem readquire duração, dimensão, forma e direção, pelo resultado mental desta combinação, pelo não-desenhado.

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introdução

A princípio, este trabalho foi se formando segundo as questões que encontrei lendo um texto do arquiteto Juhani Pallasma1, e que depois ecoaram em um outro texto, de um outro arquiteto, Peter Zumthor2.

Estas questões, em síntese, correspondem ao enten-dimento do que constitui verdadeiramente a experiência espacial arquitetônica e em como se pode operar com suas representações, vinculado aos processos de descober-ta, intuição e invenção que constituem prática projetual.

Trata-se, como vi nestes autores, de uma orientação que se opõe ao caráter predominantemente formalista e objetivo da arquitetura — com o qual sempre me vi diante, pela minha própria prática projetual enquanto estudante —, em detrimento dos aspectos multidimen-sionais, multisensoriais e subjetivos que compreendem nossa percepção do mundo3.

O significado das coisas, como veremos mais adiante, não está contido nas coisas em si, mas na consciência do sujeito que passa pela experiência pessoal, sendo sempre um ato genuíno de introspecção. A força emocional está

1 Pallasmaa, Juhani. A Geometria do Sentimento: um olhar sobre a fenomenologia

da arquitetura, Helsinki, 2009.

2 Zumthor, Peter. Atmosferas. Editorial Gustavo Gili, Barcelona: 2006.

3 Segundo Pallasma “Cometemos o erro de pensar e julgar o edifício como uma composição formal, e já não entendemos como um símbolo ou entendemos a outra realidade que está por trás do símbolo” (Pallasmaa, 2008, p. 483).

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portanto, nas imagens transmitidas pelas coisas e não nas coisas mesmas.

Daí que é especialmente compreensível que Zumthor inicie suas considerações sobre o que é para a ele a qua-lidade arquitetônica, sobre o que ele persegue enquanto arquiteto, com uma série de imagens — visuais, sonoras e escritas — e não necessariamente com obras de arqui-tetura4. Pallasmaa, por sua vez, menciona que haveria nas arquiteturas representadas em outros campos das artes, um material fecundo para o entendimento fenome-nológico da arquitetura, pois, nestes campos, ela aparece como pura observação daquele que experimenta, já que as regras e convenções da prática arquitetônica não estão atuando sobre o modo de representá-la, ou seja, a per-cepção do edifício prevalece sobre seus aspectos formais e funcionais.

Assim sendo, ambos detectam que a dita qualidade arquitetônica5, não é exclusiva do domínio da arquitetura e que, portanto, podemos encontrar esta mesma qualidade

4 “Pergunto-me: posso eu, como arquitecto, projetar estas atmosferas, esta densidade, este ambiente? E em caso afirmativo, como? (Zumthor, 2009, p. 18)

5 “A qualidade arquitetônica — para mim — não significa aparecer nos guias arquitectônicos ou na história da arquitectura, ou ser publicado, etc. Qualidade arquitectônica só pode significar ser tocado por uma obra. Mas porque diabo me tocam estas obras? E como projetar tal coisa? Como posso projetar algo como o espaço desta fotografia —é um ícone pessoal, nunca vi este edifício, acho que já não existe, e, no entanto, adoro vê-lo. Como se pode projectar coisas assim, que tem uma presença tão bela e natural que me toca sempre de novo.” (Zumthor, 2009, p. 10)

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na literatura, no cinema, na fotografia, na pintura. É este entendimento sobre arquitetura que pretendo

considerar ao longo do meu trabalho para, ao modo de Zumthor, constituir minhas próprias imagens, arquiteturas e atmosferas. Buscar uma ligação autêntica com a experi-ência arquitetônica, com a linguagem da arquitetura, e não só com as propriedades físicas da construção.

Desta primeira ideia frouxa de uma fenomenologia da arquitetura, cheguei aos textos de Merleau-Ponty6 (1908-1961), que indicam caminhos para a compreensão de um puro olhar, e de como se dá a relação entre percepção e conhecimento, entre o sujeito e o mundo sensível. Já em Pedro Janeiro7, as questões próprias da fenomenologia e do desenho estão entrelaçadas em um processo no qual percepção e criação se alimentam mutuamente. Estes três autores — Zumthor, Merleau-Ponty e Pedro Janeiro, formam um primeiro núcleo de interesse, voltado à per-cepção e às qualidades próprias desta experiência, que são o objeto dos desenhos que tenho produzido.

A partir daí me deterei em segundo núcleo de temas, mais ligados à estrutura pela qual pretendo operar. Assim, primeiro farei menção a algumas passagens presentes em Arlindo Machado8, que, no seu desmonte da concepção

6 Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

7 Janeiro, P. A. A Imagem Por-Escrita: Desenho e Comunicação Visual entre a

Arquitetura e a Fenomenologia. São Paulo: fauusp, 2012.

8 Machado, A. A Ilusão Especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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de representação como espelho da realidade, confere àquele--que-representa, um fazer que, não desconsiderando as par-ticularidades dos meios que refratam a imagem, indica possibilidades de lidar com as representações segundo a opacidade das mesmas.

Em seguida, a oposição entre um pensamento objetivo e lógico e um subjetivo e analógico será desenvolvida a partir do texto de Paul Valéry acerca do método leonardiano, fun-dado no não-verbal, no icônico, e considerando Leonardo da Vinci um verdadeiro filósofo, cujo pensamento ope-raria através das imagens. Décio Pignatari aproximará estas questões de alguns princípios da semiótica peirciana, onde o pensamento icônico, analógico, adquire a dimensão que Valéry indicava.

Por último, no texto de Eisenstein, as noções de conflito e discurso interior, relacionarão processos muito próximos do chamado pensamento icônico, reconhecen-do esta característica na poesia e na escrita orientais, e interpretando-a junto às questões próprias do cinema, pelas relações entre as unidades mínimas da montagem — o plano cinematográfico, na chamada montagem intelectual.

As leituras destes textos seguirão acompanhadas dos desenhos que fiz, reproduzidos página à página, sempre à direita, sem correspondência intencional com o texto, mas seguindo como duas linhas de mesmo vetor.

Os desenhos aparecerão sempre em mais de um qua-dro (como os fotogramas no cinema), pois minha intenção é explorar as relações de sequência, simultaneidade, ana-logia, diferença, síntese, duração, permanência, passagem,

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exclusão, mudança, movimento. Muitas destas relações são próprias das linguagens que consideram o tempo em sua feitura. Pretendi, a partir disso, estabelecer vínculos com alguns procedimentos próprios do cinema.

Por essa razão, menciono aqui alguns desses artistas e cineastas, que são referências para este trabalho, so-bretudo pelas atmosferas, que tão bem souberam criar: Maya Deren (1917-1961), Yasujiro Ozu (1929-1962), Sergei Paradjanov (1924-1990), Michelangelo Antonioni (1912-2007), Andrei Tarkovski (1932-1986), Alexander Sokurov (1951-), Werner Herzog (1942-), Béla Tarr (1955-), Bill Viola (1951-) e Wim Wenders (1945-) entre os cineastas.

Dos pintores, fotógrafos e desenhistas — Andrea Mantegna (1431-1506), Vittore Carpaccio (1465-1526), Giovanni-Battista Piranesi (1720-1778), Gentile Bellini (1429-1507), Leonardo Da Vinci (1452–1519), Rembrandt van Rijn (1606-1669), Albrecht Dürer (1471-1528), Pieter Brueghel (1525-1569), Edward Hopper (1882-1967), Giorgio de Chirico (1888-1978), André Kertész (1894-1985), Bill Brandt (1904-1983), Lourenço Mutarelli (1967-), Robert Crumb (1943-), Lorenzo Mattotti (1954-), David Mazzucchelli (1960-) e Chris Ware (1967-).

Para concluir, uma última observação — não preten-do, com o texto que seguirá, costurar uma teoria coesa onde todos os autores tenham o seu lugar definido dentro de um processo lógico e encadeado, que explique total-mente minhas intenções com os desenhos. Antes disso, poderia dizer que este trabalho tem se constituído pelo

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meu encontro com textos diversos, com problemas e pro-fundidades diversas. Digamos que há mais um princípio de similaridade do que de contiguidade regendo a organização dos tópicos. Me pergunto se as dúvidas pessoais de Peter Zumthor resistem diante da densidade do pensamento de Merleau-Ponty. Ao menos, um desejo é comum a to-dos os textos que compõe este trabalho — todos partem de um mesmo interesse pelo conhecimento bruto, pelo contato direto com as coisas, seja refletindo sobre a expe-riência arquitetônica, sobre a própria percepção, sobre o desenho enquanto percepção, sobre a representação além da convenção objetiva e naturalista e, finalmente, pelo pensamento além da linguagem verbal, um pensamento que opera através de imagens.

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1 As atmosferas em Peter Zumthor

Sigo, portanto, com o que li em Atmosferas. Retomemos aqui o subtítulo do texto de Zumthor: espaços arquitetôni-cos — as coisas ao meu redor. O sentido primeiro de atmosfe-ra está ligado ao ambiente, ou disposição do espaço, e tem relação com uma ideia de corpo no mundo, da percepção do sujeito sobre e entre as coisas9.

Relacionar à noção de um corpo no mundo, não res-tringe o sentido de atmosfera a uma experimentação do mundo real, material em oposição a um mundo represen-tado, virtual. Quando Zumthor questiona — “porque diabos me tocam essas obras? E como posso projetar tal coisa?”10 —, ele constrói esta dúvida sobre uma fotografia, sobre o quanto uma determinada imagem o tocou e em como ele adora reiteradamente olhar para essa imagem, embora nunca tenha conhecido o espaço representado na fotografia em questão.

Ele fala de ícone pessoal, uma imagem que ele carrega consigo, imagem que antecede seus projetos e que trans-borda neles, se faz presente, na forma de qualidade arqui-tetônica. Zumthor, diante desta constatação questiona: o que é no fundo a qualidade arquitetônica? O que é isto que

9 “A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional, isto é, a per-cepção que funciona de forma instintiva e que o ser humano possui para sobreviver. [...] Existe algo em nós que comunica imediatamente conos-co. Compreensão imediata, ligação emocional imediata, recusa imediata.” (Zumthor, 2009, p. 10)

10 (Zumthor, 2009, p. 10)

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se comunica com nossas emoções, que desvia de todo pensamento linear, lógico, para nos atingir de imediato, como música?

Ele então esboça uma resposta através de imagens, só que imagens (d)escritas. Se ele usou a fotografia e a música para explicar o que é a qualidade arquitetônica, ele segue nesta aproximação pelo texto, mas um texto icônico. Segue o trecho todo: “É Quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado, uma praça ao sol, uma arcada longa, alta e bonita ao sol. A praça — frente de casas, igreja, mo-numentos — como panorama à minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade de certas pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos, conversas próximas, passos na praça, pedra, pássaros, um leve murmúrio da multidão, sem carros, sem barulhos de motores, de vez em quando ruídos de obra ao longe. Os feriados a começar já torna-ram os passos das pessoas mais lentos, imagino. Duas freiras — isto é realidade não imaginação —, duas freiras cruzam a praça gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente ao vento, cada uma traz um saco de plástico. A temperatura agradavelmente fresca, com calor. Estou sentado na arcada, num sofá estofado em verde mate, a figura de bronze no alto pedestal está de costas para mim e olha como eu para a igreja de duas torres. As duas torres da igreja tem cúpulas diferentes, que em baixo começam de forma igual e que ao subir se individualizam. Uma é mais alta e tem uma coroa doura-

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da à volta do topo. Em breve, B. virá ter comigo, cruzando a praça na diagonal”11

Zumthor tenta identificar nestas imagens, aquilo que lhe tocou e nota que eliminando uma das coisas (ruí-dos, formas, cores, pessoas, sentimentos, expectativas) o conjunto todo se desfaz, no que ele constata: “Isto tudo existe apenas dentro de mim”12, e não nas coisas mesmas. Sendo assim, como devolver ao mundo uma experiência de mesma força?

Refletindo sobre seu trabalho, sobre os procedimen-tos de um fazer artesanal na tarefa de criar atmosferas, o aprofundamento destas questões nos é apresentado em breves capítulos e, como ele mesmo coloca, de forma bas-tante pessoal13, como observação de si mesmo no fazer. São elencados os seguintes temas: o corpo da arquitetura; a consonância dos materiais; o som do espaço; a temperatura do espaço; as coisas que me rodeiam; entre a serenidade e a sedu-ção; a tensão entre interior e exterior; degraus da intimidade; a luz sobre as coisas. Passemos a eles:

O corpo da arquitetura. Trata-se da própria presença material de uma arquitetura, e como são organizadas, enquanto coisas do mundo, para criar um determinado espaço14.

11 (Zumthor, 2009, p. 14-16)

12 (Zumthor, 2009, p. 16)

13 “É evidente que as respostas são muito pessoais, mas não tenho outras. São muito sensíveis, individuais, provavelmente são mesmo sensibilidades pessoais que me levam a fazer as coisas desta forma”. (Zumthor, 2009, p. 20)

14 “O que considero o primeiro e maior segredo da arquitectura, é que

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A consonância dos materiais. Seria ver como as coisas reagem umas com as outras, uma sensibilidade para a presença e massa dos materiais e em como eles soam em conjunto ou irradiam. Como dosar as quantidades de um material ou outro15, escolher entre o macio e duro, claro e escuro, liso e áspero, brilhante e fosco, colocando-os de forma concreta, primeiro mentalmente, depois na realidade16.

O som do espaço. Seriam os edifícios funcionando como um grande instrumento musical, que interfere nos sons de acordo com sua forma, material e a maneira como estão fixos. O som no espaço não seria objeto de muita atenção, no entanto, todos conseguimos imaginar os passos em uma sala grande, os ruídos de uma estação de trem. Os ruídos da infância, as lembranças da mãe a trabalhar na cozinha — a carga emocional do som liga-se à memória17.

consegue juntar as coisas do mundo, os materiais do mundo e criar este espaço. [...] Porque para mim é como uma anatomia. Tal como nós temos o nosso corpo com uma anatomia e coisas que não se vêem, uma pele... etc. Assim funciona a também a arquitectura e assim tento pensá-la.” (Zumthor, 2009, p. 22)

15 “Existe uma proximidade crítica entre os materiais que depende dos próprios materiais e do seu peso. Ao conciliar materiais numa obra existe um ponto em que estão demasiado afastados e outro em que estão dema-siado próximos, e outro ainda em que estão mortos..” (Zumthor, 2009, p. 25)

16 (Zumthor, 2009, p. 24)

17 “Há edifícios que tem um som maravilhoso e que me dizem: estou em boas mãos, não estou sozinho. Provavelmente é ainda a imagem da minha mãe de que não consigo me livrar e de que no fundo não quero me livrar” (Zumthor, 2009, p. 32)

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Para aquele que projeta seria imaginar o edifício a partir dos sons que ele amplia, ressoa ou abafa, em situações singulares18 e também no silêncio19, no que ele tem calmo.

A temperatura do espaço. Cada edifício teria uma certa temperatura, que segundo seus materiais, troca mais ou menos calor com o nosso corpo. Seria algo como o desempenho conseguido com o Pavilhão da Suiça em Hanover — esse ambiente mantém-se fresco como em uma floresta quando há calor, e quando faz frio do lado de fora, o edifício permanece mais aquecido em seu in-terior. Este controle está próximo do temperar20 de um instrumento musical, o ajuste dos desvios de uma de-terminada escala.

As coisas que me rodeiam. Relaciona-se aos pormenores, às coisas que preenchem um determinado espaço — objetos pessoais, móveis, livros, instrumentos. É a própria beleza destes objetos que revelaria muito do caráter de um lu-

18 “Como soa realmente o edifício quando o percorremos? E quando fala-mos um com os outros, como deve soar? E quando ao domingo converso com três bons amigos no salão? (Zumthor, 2009, p. 32)

19 “Acho muito bonito construir edifício e pensá-lo a partir do silêncio. Ou seja, fazê-lo calmo, o que é difícil, porque o nosso mundo é tão barulhento.” (Zumthor, 2009, p. 30)

20 “Ao falar disto ocorre-me a palavra temperar. É semelhante a temperar pianos, ou seja, encontrar o ambiente certo. No sentido literal e figurativo. Quer dizer que a temperatura é física e provavelmente também psíquica. O que vejo, o que sinto, o que toco, ... mesmo com os pés.” (Zumthor, 2009, p. 34)

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gar21, pois os vemos habitados. Para aquele que projeta, seria como imaginar seus edifícios sendo ocupados, ou seja, habitar estes edifícios.

Entre a serenidade e a sedução. Relaciona-se à ideia de que a arquitetura é também uma arte temporal e de que a experimentação de um edifício se dá pelo movimento. Em como trabalhar os polos de tensão capazes de seduzir, ou conduzir, àquele que experimenta o espaço — por exem-plo, se o corredor de um hospital é algo que conduz, nas Termas, desejou-se criar um certo vaguear livre, um deixar andar que ao invés de conduzir, seduz22. Trata-se assim da dosagem entre introduzir orientação, largar, dar liberdade, seduzir, introduzir calma. Pensar a experiência arquitetô-nica como um evento, uma ação no espaço e no tempo23.

21 “Acontece-me sempre que entro em edifícios, nas salas de alguém, ami-gos, conhecidos ou pessoas que não conheço, ficar impressionado com as coisas que eles têm no seu espaço de habitar ou de trabalhar. E, às vezes, não sei se conhecem esta sensação, constato uma forte relação, e amor, e cuidado, onde algo conjuga.” (Zumthor, 2009, p. 40)

22 “Espaços - aqui estou, eles começam a reter-me espacialmente, não estou de passagem. Estou bem aqui, mas neste momento ao virar a esquina, há algo que desperta a minha atenção, a luz que entra de certa maneira, e eu passo descontraidamente. Tenho de dizer que isto é um de meus maio-res prazeres: não ser conduzido, mas deambular — drifting. Sim? E assim me encontro numa viagem de descoberta. Conduzir, seduzir. Largar, dar liberdade.” (Zumthor, 2009, pp. 42-44)

23 “Ou os cinemas, onde aprendo muito nesta relação. É natural. Os ca-meramans e os realizadores trabalham nesta construção de sequências. É também o que tento fazer em meus edifícios” (Zumthor, 2009, p. 44)

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A tensão entre interior e exterior. Quando se cria um edifício, passa a existir um exterior e um interior, um dentro e um fora, dos quais se desenrola o jogo entre o indivíduo e o público, entre a privacidade e o público24. A fachada mostra um tanto do edifício, mas não tudo, pois certas coisas são de caráter intimo e por isso permanecem preserva-das em seu interior. Estas relações aparecem em Rear Window (Alfred Hitchcock, 1954) e Early Sunday Morning, de Hopper, onde toda atmosfera é determinada pela ja-nela25, de dentro para fora e fora para dentro. Trabalhar sobre este entendimento a respeito do que queremos ver, revelar, tornar público.

Graus da intimidade. Tem relação com o tamanho, a di-mensão e a massa das coisas. A amplitude, a proximidade e a distância26, desde os menores elementos (maçanetas, dobradiças), até a relação entre o sujeito e o interior de

24 (Zumthor, 2009, p. 46)

25 “Estar dentro e estar fora. Fantástico. E isto implica outras coisas igual-mente fantásticas: soleiras, passagens, pequenos refúgios, passagens imper-ceptíveis entre interior e exterior, uma sensibilidade incrível para o lugar, uma sensibilidade incrível para a concentração repentina, quando este invólucro está de repente à nossa volta e nos reúne e segura, quer sejamos muitos ou apenas uma pessoa.” (Zumthor, 2009, p. 48)

26 “Conhecem aquela porta alta estreita onde toda a gente fica bem? Conhecem esta porta mais larga, sem interesse, deselegante? Conhecem os portais grandes e intimidadores, onde só quem os abre fica bem e or-gulhoso? Ou seja, o tamanho, a massa e o peso das coisas. A porta fina e a porta grossa. O muro grosso e o muro fino.” (Zumthor, 2009, p. 50)

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um espaço, se ele intimida o sujeito ou o faz sentir enal-tecido, abrigado. Imaginar-se em um teatro de 50 mil lugares ou em um arranha-céu com 5 mil pessoas, em uma casa. Todos estes graus de intimidade.

A luz sobre as coisas. É imaginar como e onde estarão as luzes e as sombras e como elas reagirão sobre a forma e os materiais27 que constituem as coisas. Também imaginar como essa luz reage ao longo do dia, a luz da manhã tem outra cor, temperatura que a do meio-dia, e, mais que tudo, distingue-se da luz artificial. Os materiais refletem a luz cada qual de um jeito, por isso é preciso ter conheci-mento sobre como os materiais refletem e saber afiná-los.

Por fim, Zumthor ainda cita alguns outros temas, além dos nove iniciais, que o motivam a produzir arqui-tetura, são eles: a arquitetura como espaço envolvente; har-monia; a forma bonita;

A arquitetura como espaço envolvente. É a maneira como o edifício se relaciona com o espaço que o envolve, como ele se integra ou não com seu redor. Imaginar o edifício como parte integrante de um espaço que já está lá e do cotidiano das pessoas28.

27 “Uma das ideias favoritas é a seguinte: pensar o edifício primeiro como uma massa de sombra e a seguir, como num processo de escavação, colo-car luzes e deixar a luminosidade infiltrar-se. A segunda ideia preferida é colocar os materiais e superfícies, propositadamente à luz e observar como refletem.” (Zumthor, 2009, p. 58)

28 “Faz-me feliz imaginar que este edifício será talvez recordado por al-

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Harmonia. É o encontro do lugar, a utilização e forma, constituindo um todo. Não é uma relação entre formas (no sentido compositivo), pois arquitetura é feita para nós a utilizarmos29 e a forma deriva portanto de sua utiliza-ção. Quando isto é visível, as coisas encontram-se em harmonia.

A forma bonita. Trata-se da qualidade própria da forma, que é a beleza. O trabalho pode estar acertado em todos os outros aspectos, mas não ser bonito. Quando está for-ma não toca, então deve ser retomado todo o projeto. Em outras artes, é reconhecível quando algo encontra a sua forma, seja na literatura, na pintura, e pode-se aprender com elas.

Como visões muito pessoais, o próprio Zumthor abre estes seus temas a questionamentos e complementações. Procurei manter estas ideias comigo enquanto produzia os desenhos. Retomando o texto, que já havia lido ante-riormente, vejo que assimilei-o entre minhas intenções enquanto desenhei, sem deixar de acrescentar minhas próprias visões.

As ideias que percorremos através deste texto indicam, mesmo que de forma bastante preliminar, uma proximi-dade com questões próprias de um entendimento feno-menológico do mundo — como a reflexão a respeito de

guém daqui a 35, 30 anos. Talvez porque aí beijou o seu primeiro amor. O porquê, não tem importância.” (Zumthor, 2009, p. 64-66)

29 (Zumthor, 2009, p. 68)

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um contato direto com as coisas, de uma primeira impres-são30, e da própria intenção em produzir uma arquitetura derivada da percepção, no seu sentido multidimensional e multisensorial, no qual o homem é o centro gerador das experiências. Como Merleau-Ponty apontou: “Que outra coisa o pintor ou o poeta poderia expressar senão seu encontro com o mundo?”31.

Também aparecem, no texto de Zumthor, questões que relacionam a arquitetura com outros meios capazes de dar forma (sonora, visual) às qualidades arquitetônicas, criando as chamadas atmosferas. Trataremos disto mais adiante, ao falar das possibilidades do desenho e das re-presentações como um todo, e de um tipo de pensamento mais ligado à imagem, do que à palavra.

Antes, porém, aprofundemos um pouco mais as ques-tões a respeito do espaço percebido, amparados pelo pen-samento do filósofo Merleau-Ponty.

30 “Uma denominação para isto é atmosfera. Todos nós a conhecemos, vemos uma pessoa e temos uma primeira impressão. Eu aprendi: não con-fies nisto, tens de dar uma oportunidade a esta pessoa. Agora estou um pouco mais velho e tenho de dizer que voltei para a primeira impressão” (Zumthor, P., 2009, p. 10)

31 (Merleau-Ponty, M. in Pallasmaa, J., 2011, p. 13)

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2 Mundo percebido em Merleau-Ponty

As interpretações a respeito do espaço e de sua natureza são por si só tão complexas que qualquer tentativa de síntese se mostraria insuficiente. Uma perspectiva destas teorias não poderia ser feita sem que fossem consideradas, além do domínio fenomenológico, suas interpretações pelo ponto de vista físico, geométrico, ontológico, gno-siológico, psicológico e metafísico.

No entanto, estas interpretações não serão objetos deste trabalho, já que adoto uma orientação mais restri-ta, voltada predominantemente à experiência humana do espaço, ou seja, à compreensão do homem e do mundo a partir da descrição dos fenômenos vividos, orientação correspondente ao pensamento de Merleau-Ponty, do qual me aproximarei pelos texto Fenomenologia da per-cepção (1945).

A concepção fenomenológica surge em um contex-to no qual predominava uma forte tendência positivista, orientada sobretudo por critérios de objetividade cientí-fica em contraposição a uma análise subjetiva e humana, tida como não científica. Acreditava-se que as ciências seriam capazes de explicar a realidade, sem considerar o horizonte humano, deixando de lado assim a intencio-nalidade32 que gera e move os fenômenos. Haveria assim

32 Intencionalidade refere-se a qualquer ato humano a um outro objeto, como das ideias ou representações às coisas pensadas ou representadas, de um ato de vontade sobre as coisas. Merleau-Ponty menciona que a fenomenologia de Husserl distingue dois tipos de intencionalidade: a inten-

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um descolamento entre o mundo da ciência e o mundo da vida.

Em resposta a esta oposição, a concepção fenomeno-lógica propõe, antes de mais nada, uma volta às próprias coisas, tal como elas se apresentam a nós, atendo-se por-tanto mais à descrição dos fenômenos do que à explicação destes. Pois, a explicação, a análise, implicam interferir no fenômeno através de nossas categorias lógicas, produzin-do assim uma relação artificial e sempre de segunda ordem com o mundo. A experiência “não provém de meus an-tecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta”33, de tal modo que o ho-mem não seria o produto que a biologia, a sociologia ou psicologia reconhecem, mas, sim, a fonte absoluta de todo saber, pois todo conhecimento é uma expressão segunda sobre a experiência do mundo vivido. Assim, “retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação a qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente.”34

cionalidade de ato, que é a de nossos juízos e vontades; a intencionalidade operante, que é “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem, mais claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata” (Merleau-Ponty, 2006, p. 16). Trata-se assim da própria abertura ao mundo pela percepção carnal, corporal.

33 (Merleau-Ponty, 2006, p. 03)

34 (Merleau-Ponty, 2006, p. 04)

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Trata-se assim, de uma intenção em reencontrar o con-tato ingênuo com o mundo, sem negar a realidade exte-rior. Isso significa evitar a distinção entre o papel atuante do sujeito-que-conhece e a influência do mundo conhecido. A consciência é sempre consciência de alguma coisa e o mundo é sempre objeto para uma consciência, de tal modo, o mundo é ao mesmo tempo fenômeno e meio de realização da consciência.

O real é, portanto, aquilo mesmo que é revelado à consciência, não como uma aparência ilusória, mas per-cebido tal como ele é. “O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis”35, está ali muito antes de nossa análise reflexiva sobre ele, ao passo que quando nossa reflexão insere-se sobre o irrefletido, modifica a própria estrutura da consciência, não podendo ignorar-se a si mesma como acontecimento. Justamente por isso que o real não deve ser construído ou constituído pela análise reflexiva, mas descrito, de tal modo que não seja colocado fora do jogo.

O homem, antes de mais nada, é um ser-no-mundo. Por isso, não se pode compreender a experiência humana unicamente pela consciência, tampouco unicamente pelo mundo, evitando assim a oposição entre um sujeito puro e um objeto puro.

Contudo, Merleau-Ponty sugere que o mundo perce-bido só pode ser assimilado pela consciência quando esta

35 (Merleau-Ponty, 2006, p. 06)

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realiza um recuo, “para ver brotar as transcendências, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para fazê-los aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e paradoxal”36, é necessário por-tanto que nossa familiaridade com o mundo seja anulada enquanto o percebemos, no entanto, sem colocar sujeito e objeto em contraponto.

A percepção é o nosso acesso a verdade. “O mundo é não aquilo que penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo”37. Pelo corpo que nossa consci-ência percebe e experimenta o mundo38. O corpo está lançado no mundo e em relação ativa com ele, “está no

36 (Merleau-Ponty, 2006, p. 10)

37 (Merleau-Ponty, 2006, p. 10)

38 O vínculo entre o conhecimento e corpo colocado por Merleau-Ponty questiona a interpretação de duas concepções clássicas sobre esta rela-ção, o empirismo e o intelectualismo. Para o empirismo, a consciência é um receptáculo passivo do mundo exterior, que vai sendo aos poucos sendo preenchido pelos dados da percepção. Para o intelectualismo, é possível obter a verdade do objeto através da consciência, pois a percepção seria res-ponsável por enganos sobre a realidade, como miragens ou distorções. Para o filósofo não se trata nem de uma visão em que a consciência é muito pobre e passiva, tampouco trata-se de uma visão em que consciência é auto-suficiente e ativa ao ponto de resolver as contradições originadas da percepção. Para Merleau-ponty, “o empirismo não vê que precisamos saber o que procuramos, sem o que não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos, sem o que, novamente, não o procuraríamos” (Merleau-Ponty, 2006, p. 56). Consciência e corpo funcionam portanto através de uma completa interdependência.

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mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”39. O mundo, sem a presença do sujeito, não adquire forma

— não há dentro ou fora, direção, dimensão, espessura. O sujeito que percebe não contempla o mundo de

longe, mas está totalmente nele, enraizado. O sujeito percebe e é percebido. Para que o sujeito possa perceber é necessário que um objeto esteja parcialmente visível. O percebido não nos é revelado em sua totalidade, mas parcialmente, caso contrário não seria objeto mas ideia. Vemos somente três lados de um cubo, mas para consci-ência temos sua totalidade. A ideia corresponde aos seis lados do cubo mas a percepção corresponde a um ponto de vista singular, de inesgotáveis ponto de vista possíveis. O mundo sensível é por isso inesgotável, “[…] vejo a casa vizinha sob um certo ângulo, ela seria vista de outra ma-neira da margem direita do Sena, de outra maneira do interior, de outra maneira ainda de um avião; a casa ela mesma não é nenhuma dessas aparições, ela é, como dizia Leibniz, o geometral dessas perspectivas e de todas as perspectivas possíveis, quer dizer, o termo sem perspec-tivas do qual se podem derivá-las todas, ela é a casa vista de lugar algum”40. Não somos capazes de imaginar um objeto sem a nossa presença, assim a casa vista de lugar nenhum é inconcebível, pois ao imaginarmos a casa já

39 (Merleau-Ponty, 1999, p. 273)

40 (Merleau-Ponty, 2006, p. 103)

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nos tornamos presentes a essa representação. Pois bem, se um objeto só existe enquanto há um

sujeito para percebê-lo, também só conseguimos pensá--lo porque em algum momento tivemos uma experiên-cia dele. Por meio dos horizontes visamos todas as ou-tras faces do objeto parcialmente sensível. O horizonte é o que “assegura a identidade do objeto no decorrer da exploração”41. Há assim uma estrutura entre objeto-

-horizonte, no qual todos os objetos se desvelam e se dissimulam formando um sistema, onde o objeto visível é também espelho de todos as outras coisas coexistentes, segundo a face que se volta a ele. Reformulando a citação anterior “a casa ela mesma não é a casa vista de lugar algum, mas a casa vista de todos os lugares. O objeto aca-bado é translúcido, ele está penetrado de todos os lados por uma infinidade atual de olhares que se entrecruzam em sua profundeza e não deixam nada escondido”42. O sujeito fenomenal é também espacial, pois encontra-se situado e orientado. A espacialidade43, como vimos, não é

41 (Merleau-Ponty, 2006, p. 105)

42 (Merleau-Ponty, 2006, pp. 105-106).

43 “Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty distingue o espaço existencial, antropológico ou vivido, que é também o espaço da noite ou o espaço do mito, e o espaço “natural” ou o espaço claro da percepção, que se torna, por idealização geométrica, o espaço “verdadeiro, único e objetivo”. Cada um é para o outro fundante e fundado. O espaço existencial funda o espaço “natural” e o espaço “verdadeiro, único e objetivo”, no sentido em que o primeiro é “a espacialidade geral em que o espaço claro e os objetos observáveis estão incrustados”. Inversamente, porém, O espaço

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uma condição autônoma ao corpo fenomenal — se tenho uma profundidade diante de mim, para um observador orientado perpendicularmente a mim, esta profundidade será uma largura.

Do mesmo modo que podemos compreender o ob-jeto como pluriforme e multidimensional, as relações temporais também se situam em um determinado lu-gar. Assim como vemos um objeto por um determinado ponto de vista, este ponto de vista corresponde a um certo instante de nossa duração e portanto correspon-derá a momentos distintos da duração de cada um dos sujeitos que reconhecem o objeto. A percepção se dá na duração, onde conservamos e apreendemos no presente a experiência precedente44. Assim, o olhar humano, que

“verdadeiro, único e objetivo” — o espaço idealizado pela geometria — é o fundamento racional do espaço existencial numa teleologia do sentido, e o espaço “natural” da percepção é a trama permanente do espaço existencial.” (Dupond, 2010, p. 22)

44 “Trata-se de compreender como, por sua própria vida e sem trazer em um inconsciente mítico materiais complementares, a consciência pode, com o tempo, alterar a estrutura de suas paisagens — como, em cada ins-tante, sua experiência antiga lhe está presente sob a forma de um horizonte que ela pode reabrir, se o toma como tema de conhecimento, em um ato de rememoração, mas que também pode deixar ‘à margem’, e que agora fornece imediatamente ao percebido uma atmosfera e uma significação presentes. Um campo sempre à disposição da consciência e que, por essa razão, circunda e envolve todas as suas percepções, uma atmosfera, um horizonte ou, se se quiser, “montagens” dadas que lhe atribuem uma si-tuação temporal, tal é a presença do passado que torna possíveis os atos distintos de percepção e de rememoração.” (Merleau-Ponty, 2006, pp. 47-48)

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só pode ver uma face do objeto, o qual, para ser enten-dido como um absoluto, precisa admitir uma infinidade de vistas diferentes condensadas em uma coexistência,

“só pode ser confrontado com as visões precedentes ou com as dos outros homens por intermédio do tempo e da linguagem.”45

No entanto, mesmo concebendo esta imagem do objeto como uma “série concordante e indefinida de vi-sões sobre o objeto”, esta síntese não opera além de sua circunvizinhança imediata, de tal modo que “ela não é mais feita de objetos ou recordações ainda discerníveis, é um horizonte anônimo que não pode mais fornecer testemunho preciso, deixa o objeto inacabado e aberto, como ele é, com efeito, na experiência perceptiva”.46

Se desconsiderarmos o perspectivismo de nossa expe-riência, iremos tratar os objetos como uma relação entre objetos, onde nosso corpo também seria um entre eles. Tomaremos, assim, o corpo como um modo do espaço objetivo, onde as coisas tem existência autônoma, inde-pendentes de uma percepção “Não me ocupo mais de meu corpo, nem do tempo, nem do mundo, tais como os vivo no saber antepredicativo, na comunicação interior que tenho com eles. Só falo de meu corpo em ideia, do universo em ideia, da ideia de espaço e da ideia de tempo. Forma-se assim um pensamento “objetivo” (no sentido de Kierkegaard) — o do senso comum, o da ciência —,

45 (Merleau-Ponty, 2006, pp. 107)

46 (Merleau-Ponty, 2006, pp. 107)

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que finalmente nos faz perder contato com a experiência perceptiva da qual todavia ele é o resultado e a consequên-cia natural”47. Descolando o mundo de nossa experiência voltamos à ideia, camada intelectual que encobre nossa origem perceptiva. A reflexão deve por isso voltar-se a si mesma para encontrar o pré-reflexivo, a percepção bruta, e “[…] como a gênese do corpo objetivo é apenas um momento na constituição do objeto, o corpo, retirando-se do mundo objetivo, arrastará os fios intencionais que o ligam ao seu ambiente e finalmente nos revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido.” 48

A verdadeira filosofia, seria assim, reaprender a ver o mundo — para isso fenomenologia que, “enquanto revelação do mundo, repousa sobre si mesma”49, ope-ra tomando a consciência perceptiva como a fundante de todo conhecimento50, não como revelação de uma verdade pré-existente, mas como a própria realização de uma verdade.

47 (Merleau-Ponty, 2006, pp. 110)

48 (Merleau-Ponty, 2006, pp. 110)

49 (Merleau-Ponty, 2006, p. 20)

50 “A racionalidade não é um problema, não existe detrás dela, uma incóg-nita que tenhamos de determinar dedutivamente ou provar indutivamente a partir dela: nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações. O mundo e a razão não representam proble-mas; digamos, se se quiser, que eles são misteriosos, mas este mistério os define, não poderia tratar-se de dissipá-lo por alguma “solução”, ele está para aquém das soluções.” (Merleau-Ponty, 2006, pp. 19-20)

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Estas passagens do pensamento de Merleau-Ponty, permitem a aproximação com algumas ideias latentes no texto de Zumthor, como exercício pessoal de reflexão sobre a consciência perceptiva e cognitiva.

Zumthor fala de uma atmosfera, fala de uma primei-ra impressão, algo se comunica imediatamente conos-co — “compreensão imediata, ligação imediata, recusa imediata”51. Ou seja, ele busca uma relação direta com o mundo percebido, mas reconhece adiante que a percep-ção não se dá sem um entrelaçamento com sua memória, suas emoções, sua subjetividade, colocando a noção de atmosfera dentro uma estrutura onde o homem constitui o centro de toda experiência — “E o que me tocou para além disso? A minha disposição, os meus sentimentos, a minha expectativa na altura que estive ali sentado. E vem me à cabeça esta famosa frase inglesa que me remete à Platão: ‘Beauty is in the eye of beholder.’ Isto é, tudo existe apenas dentro de mim”52.

No texto sobre o qual esta reflexão é feita, em que Zumthor descreve uma experiência perceptiva, a frase que abre seu texto — sou eu, estou ali, situa 0 sujeito no centro da experiência e sugere relações de passagem do sujeito com o mundo sensível, uma da percepção para a representação interior, como conhecimento, e outra de sua interioridade para uma representação exterior, no caso, verbal.

51 (Zumthor, 2009, p. 13)

52 (Zumthor, 2009, p. 17)

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A representação pelo desenho teria um outro tipo de relação com o fenômeno, um tipo de entrelaçamento, mas não desprovido de tensão, entre a percepção, sujeito e objeto. Vejamos a seguir, de forma breve, o que pude identificar entre alguns escritos de Pedro Janeiro, como sendo o papel do desenho frente às interpretações da fenomenologia.

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3 Desenho e percepção em Pedro Janeiro

Não encontrei em Fenomenologia da Percepção menção ex-pressa ao desenho e às representações, mas sim em Pedro Janeiro, que revela, a partir de Merleau-Ponty e Husserl, uma possibilidade bastante provocadora, onde o dese-nho corresponderia à forma mais pura de intencionalidade fenomenológica. O desenho seria sempre um desenho do fenômeno e nunca da coisa-em-si, já que todo conheci-mento é construído sobre a experiência53.

Pois bem, mesmo considerando que todo desenho é feito sobre o fenômeno, para àquele que faz, a chave entre intenção de se desenhar o fenômeno ou a coisa, nem sem-pre está colocada. O sujeito que desenha o corte de um edifício pretende desenhar qual fenômeno e qual realidade?

O corte pode revelar uma qualidade arquitetônica que não percebemos nem pela própria experiência. Mesmo assim, não seria o conjunto planta, corte, elevação quase sempre orientado para representar o espaço de forma objetiva, precisa e impessoal? Porque não buscar uma representação oposta a essa — imprecisa, subjetiva e pessoal.

Como Janeiro diz, o fenômeno é “objeto de intuição ou de conhecimento imediato, ao mesmo tempo que manifestação da essência”54. Esta interpretação se opõe ao

53 “É sempre sobre o fenômeno que construímos o conhecimento , é sempre sobre aquilo-que-aparece-à-consciência que construímos o conhe-cimento. É isso que eu desenho quando desenho: desenho o fenômeno.” ( Janeiro, 2011, p. 76)

54 ( Janeiro, 2011, p. 76)

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pensamento de Kant — se este considera o fenômeno, o objeto da experiência, caracterizando-se por uma forma e uma matéria, um objeto decorrente de uma intuição empírica —, por sua vez, na concepção fenomenológica,

“são as próprias coisas que se nos revelam, e o sujeito, ‘fonte de sentido e de intencionalidade’, entendido como aquele para (ou, em) quem essas coisas se revelam”55, num movimento de retorno a originalidade das coisas a partir da intuição imediata56.

Por isso, o desenho tanto como ato, como quanto produto, é a representação que construímos sobre aquilo que apreendemos do objeto, daquilo que nos afeta, e não do objeto. Só experimentamos o mundo enquanto evidência e é sobre estas evidencias que construímos co-nhecimento57, de tal modo que não existe outra realidade

55 ( Janeiro, 2011, p. 76)

56 “O projeto fenomenológico ‘possibilita a reconciliação do objetivismo e do subjetivismo, do saber abstrato e da vida concreta’, e consiste, assim, nesse esforço no sentido de deixar desvendar-se, a partir da intuição ime-diata, da experiência concreta, o mundo situado aquém da ciência, ou, por outras palavras, um mundo situado aquém do objetivismo, que lançou o mundo ocidental na ‘formalização lógico-matemática’ e na ‘matematização do conhecimento’, defendendo que a visão da essencialidade das coisas, no fenômeno, é possível graças a um retorno à originalidade dessas mesmas coisas”. ( Janeiro, 2011, p. 77-78)

57 “Elas são, aquilo que são para mim, em relação comigo, enquanto entidades que se manifestam em mim num determinado momento e não,

‘contra a transcendência do em-si kantiano como produto duma filosofia do entendimento, para a qual a presença do objeto não é mais do que simples aparência duma realidade escondida’.” ( Janeiro, 2011, p. 78)

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de coisas além da aparência. Aquele que desenha, repre-senta aquilo que experimenta, inscreve esta realidade em si enquanto transcende. O desenho é, então, uma abertura para o mundo, assim como o corpo é abertura do mundo sensível para a consciência.

A consciência é sempre consciência de alguma coisa, assim como o desenho é sempre desenho de alguma coi-sa, ao passo que os objetos, sempre são objetos para a consciência (ou para o desenho).

A consciência desenhadora, nunca coincide com ela mes-ma, pois é uma transcendência pura — ao desenhar, consta-to, na relação com o objeto desenhado, que partilhamos de uma presença mútua no agora, e, desta consciência de nossa presença, que o sujeito constitui a consciência de si próprio. Esta coexistência é simultânea a uma ou-tra detecção: se existimos mutuamente, só não somos a mesma coisa, pois há uma separação. Eu aqui, o objeto lá. Eu não possuo esse objeto, não partilhamos a mesma carne. Manifesta-se a certeza de que há uma distância entre o eu e o objeto. Temos estabelecida uma relação espacial elementar.

A consciência dessa distância e coexistência que per-mite ao sujeito distinguir os polos da relação entre sujeito e objeto, e apercebesse então de seu corpo58 (o campo

58 “É a partir da consciência dessa distância, determinada pelas nossas posições no espaço, que o sujeito pode ajuizar aquilo-que-se-manifesta. Ou, melhor e por outras palavras, é, simultaneamente, ao reconhecer essa distância que pode distinguir os lugares, os polos dessa relação: o lugar de onde vê e o lugar da coisa vista. Portanto, o sujeito reconhece: o eu que

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das minhas capacidades perceptivas). Notemos, que essa mesma consciência que separa o eu que estou aqui das coi-sas que estão lá, de uma exterioridade e uma interioridade, desmonta-se pela intencionalidade no ato da percepção (que é o entrelaçamento com o mundo), “traz ao Eu o Mundo, compaginando-os numa mesma imagem”59.

Se aquele que desenha, o faz sobre as evidências do mundo, ao desenhá-las, as constitui enquanto coisas. Nisto, o desenho, simultaneamente ao ato de marcar uma superfície, ao seu produto, é uma abertura e uma entrega ao mundo60, que representa as evidências e devolve-as ao mundo como mais uma coisa (para uma outro).

está sempre aqui e, é desde aqui, o objeto que lá pode estar (o lugar onde a coisa se pode manifestar) . O eu que está sempre aqui é o corpo, ‘é o campo onde se localizam os meus poderes perceptivos’, é onde (ou, a partir do qual) as coisas se manifestam, é onde as coisas podem haver. No fundo, o corpo é o lugar absoluto onde ‘a aparência é realidade, [onde] o ser da consciência é manifestar-se’”. ( Janeiro, 2011, p. 84)

59 ( Janeiro, 2011, p. 82)

60 “O desenho, que começa sempre antes do instante em que aquilo-que--produz-marcas marca uma superfície (e quando digo que começa ‘antes’, esse ‘antes’ pode ser o segundo anterior ou a vida inteira), é sempre, em simultâneo’ uma abertura e uma entrega ao mundo: ele é uma abertura porque ele aponta e diz ‘isto é aqui comigo enquanto eu digo está’ e, em simultâneo, nesse ‘dizer’ estou-eu(-entregue-ao-visto) na produção de uma imagem que me pode, pelo menos para mim, substituir para sempre (pelo menos enquanto eu viver). Ele também é uma abertura em sentido estrito, já que ele abre uma profundidade na superfície opaca. Ele é também uma verdadeira entrega porque quem-desenha oferece-o (o desenho que dese-nha) ao mundo como mais uma sua coisa, deixando-se nele através dela: testemunho da Vida.” ( Janeiro, 2011, p. 85)

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Para concluir, se Pedro Janeiro atribui sentido ao ato de desenhar enquanto transcendência pura, abertura para mundo, só me resta, enquanto arquiteto, querer desenhar do mundo não sua realidade concreta, mas a qualidade espacial que percebemos de nossa relação com a arquitetura

— os significados subjetivos, emocionais e estéticos de um determinado espaço.

Por isso, o ato de desenhar não pode ser reduzido ao entendimento de registro do mundo (como se operásse-mos ao modo de um sismógrafo), mas como uma tradu-ção de um dado interior para o mundo exterior. Talvez possamos considerar o desenho como um reencontro daquele-que-desenha com uma intuição, algo que nunca se formou completamente, e que se modifica durante todo o ato de desenhar.

Além disso, quem cria imagens, seja pelo desenho, fo-tografia ou cinema, opera sempre por meio de uma série de escolhas, transferindo para a imagem, características que pouco têm de objetivas ou imparciais na sua intenção de se representar fielmente a realidade.

Veremos adiante, como a ideia de representação as-sente na proximidade com a realidade visível, resultaram em um modo frágil de operar as imagens.

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4 Representação em Arlindo Machado

Em A Ilusão Especular, Arlindo Machado realiza uma reflexão sobre como tem predominado, no campo das representações, o entendimento de uma evolução dos meios expressivos, desde o Renascimento até os dias de hoje, aspirando um modo de representar cada vez mais próximo da realidade visual.

Neste contexto, tem sido atribuída à fotografia um papel singular como instrumento objetivo de representa-ção, ou seja, neutro, automático e livre das codificações pessoais de um artista, como um espelho da realidade. No entanto, esta interpretação só é possível se desconside-rarmos os processos de refração61 obtidos pelos meios decodificadores, no caso, a perspectiva, o recorte, o en-quadramento, o campo focal, a profundidade de campo, a sensibilidade do negativo e todos os demais elementos constitutivos do código fotográfico.

É, mais especificamente, sobre esta interpretação a res-peito do código representativo que a crítica de Machado se detém — o referente não deve ser tomado unicamente como uma miragem da representação fotográfica62, pois

61 “Só um domínio eficiente do código que opera em cada sistema nos re-concilia com o referente e nos permite ver com clareza a dialética do reflexo e da refração operando sobre as formas simbólicas”. (Machado, 1984, p. 159).

62 “O referente comparece na fotografia nas mesmas condições que em qualquer outro sistema de representação: como um objeto do qual se deve aproximar por um détour, perfurando a sua ordem fantasmática mais ime-diata, desconstruindo-o sem tréguas, através do conhecimento crítico dos

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não podem existir sistemas significantes neutros nem ino-centes — por isso a necessidade de realizar um desmonte do código representativo, através dos meios que o refratam, até que seja possível reencontrar o referente.

Se a fotografia vem sendo desenvolvida e aperfeiço-ada como produtora de imagem figurativa, destituída de códigos particulares, esta neutralidade em reproduzir a realidade exterior, tida como algo inerente à fotografia, é, antes de mais nada, reflexo de uma mimetização das convenções de representação perspécticas estabelecidas desde o Renascimento.

Estas convenções são fundadas em uma estratégia, in-troduzida nos sistemas pictóricos ocidentais, de mobilizar todos os recursos disponíveis para obter uma imagem que fosse o analogon mais perfeito e exato da realidade visível63. Mais do que uma analogia, a imagem figurativa buscou uma homologia, identidade perfeita entre o signo e o designado, onde os mecanismos do código devem permanecer mascarados64.

processos de refração que o distorcem, que o ocultam, que o anulam”. (Machado, 1984, p. 156)

63 “Não se tratava apenas – isso é o mais importante – de buscar recursos para representar o “real”, no sentido de que todo e qualquer sistema de sig-nos busca de alguma forma se referir a algo “real”: a estratégia introduzida pela perspectiva renascentista visava suprimir – ou pelo menos reprimir – a própria representação, na medida em que esse analogon buscado deveria ter espessura e densidade suficientes para se fazer passar pelo próprio “real”. (Machado, 1984, p. 27)

64 “O que esse efeito de ‘realidade’ almeja, no mesmo momento em que

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Se aceita a concepção de que a fotografia fornece uma evidência — que não se confunde com o seu código parti-cular de operação —, quando do surgimento da fotografia acreditava-se ter eliminado a mediação humana em um modelo mecânico e impessoal de representação. Ora, a camera obscura é conhecida desde o Renascimento, no entanto, não havia modo de fixar as imagens deste apa-rato, a não ser através da mão humana, pelo desenho e a pintura. Desde então, já era possível observar que o sistema perspéctico e a imagem vislumbrada na camera obscura não possuíam uma correspondência completa65 — antes da invenção da objetiva, no século xvi, as imagens das cameras obscuras exibiam curvaturas nos extremos da imagem, o que foi corrigido com o uso destas lentes, mas não sem adquirir outras deformações, associadas ao foco, sendo que até os dias hoje os fotógrafos aplicam diversos procedimentos de correção nas imagens fotográficas.

Deste modo, a adoção da perspectiva artificialis como meio de representação objetiva e fiel da realidade, fun-dado nas leis científicas da geometria euclidiana, é mais

sofistica o seu aparato técnico de representação, é esconder o trabalho de inversão e de mutação operado pelo código, o que quer dizer: censurar, aos olhos do receptor, os mecanismos ideológicos dos quais esse efeito é fruto e máscara ao mesmo tempo”. (Machado, 1984, p. 28)

65 “Ela era produzida automaticamente pela camera obscura e a imagem por ela codificada mostrava-se inteiramente focada, mas com sérios proble-mas de definição, além de exibir uma curvatura nas partes mais afastadas do centro, conforme se pode constatar ainda hoje nas câmeras artesanais de ‘buraco de agulha’” (Machado, 1984, p. 32)

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uma convenção de representação66 do que um sistema definitivo correspondente ao mecanismo óptico humano.

Sempre houveram outros sistemas de representação — a perspectiva angular, na Idade Média, em que cada objeto possuía a sua própria projeção perspéctica, descartando a adoção de um ponto de fuga único, de modo a evidenciar o que mais interessava em cada objeto; a perspectiva in-versa, também na Idade Média, em que os objetos que es-tavam no primeiro plano eram reduzidos em relação aos que se colocavam no fundo, correspondendo ao ponto de vista de quem está mais distante no quadro; a perspectiva axonométrica, utilizada, por exemplo, na pintura oriental, em que as linhas não convergentes e de um ponto de vista elevado correspondiam ao de um observador no infinito, onde as medidas são mais facilmente compreendidas; a perspectiva curvilínea, na qual se projeta o espaço tridi-mensional sobre uma curva e não sobre um plano.

Contudo, nenhuma destas organizações perspécti-cas, incluindo a central, corresponde totalmente à nossa experiência visual. A própria ideia de pirâmide visual pressupõe uma condição artificial, de um ponto de vista

66 “A perspectiva linear – de modo algum a única fórmula conhecida no Quattrocento – não é um sistema racional melhor adaptado que outro à estrutura do espírito humano; não corresponde a um progresso absoluto da humanidade na busca de uma representação sempre mais adequada do mundo exterior sobre a tela fixa de duas dimensões; é apenas um dos aspectos de um modo de expressão convencional, fundado sobre um cer-to estado das técnicas e da ordem social do mundo em dado momento” (Francastel in Machado, 1984, p. 64).

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único, ciclópico, quando na realidade o homem percebe a tridimensionalidade pela divergência dos campos visu-ais correspondentes às visões do olho esquerdo e direito. Além disso, pelo movimento dos olhos não construiría-mos um campo visual plano, mas esférico. Nossa visão quase sempre trabalha em movimento, pois apenas uma porção mínima do campo visual é captada com nitidez67, procurando localizar os objetos com os olhos, descreven-do movimentos de arco que resultam em uma projeção esférica côncava do campo visual.

As deformações resultantes da planificação da pro-jeção tridimensional são, então, temperadas, através de procedimentos sobre três caracteres interdependentes desta fissura na estrutura de continuidade da imagem perspéctica: as condições de iluminação, o foco e a composição.

A iluminação pode ser usada como um elemento de mascaramento das deformações e anomalias perspécti-cas. Desta necessidade de ocultamento que teria surgido o chiarouscuro, de tal modo que as zonas problemáticas, como as extremidades do quadro, fossem ocultos por trevas. Em Rembrandt, muitas vezes o espaço perspéc-tico é completamente reduzido a um espaço compos-to, construído por alguns elementos pontuados entre o breu, de tal modo que o espaço absoluto e contínuo do Renascimento é rompido.

67 “[…] desenvolvimentos posteriores da investigação da percepção ocu-lar mostraram que a visão nítida de um olho normal não ultrapassa dois graus, de forma que a superfície abrangida por ele representa apenas treze milésimos do campo englobado pelo ângulo ótico”. (Machado, 1984, p. 67)

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O enfoque constitui também uma quebra na continui-dade do espaço, pois dentro do ideal de objetividade, a estrutura perspéctica da fotografia deveria ser equivalen-te a uma construção integral do espaço longitudinal da cena68, mascarando a expressividade do foco.

A composição convencionalmente tida como correta, seria aquela em que os objetos fotografados estão dispos-tos de modo a marcar os planos escalonados que fazem perceber a profundidade perspéctica, reforçando o plano de fuga, a organização centralizada. Uma composição que não trabalhe a favor da identificação da convergência das linhas de fuga, como nos Claustros de Piranesi, romperia com esta plena hegemonia do olhar do sujeito.

Pela adequação da produção de imagens à perspectiva central, o mundo nos é dado como algo absoluto e total, com todos objetos unificados pelas linhas convergentes da perspectiva, nenhum deles possuindo autonomia es-trutural só existindo para evidenciar a “ordem racional e científica e o espaço passa a ser criação da inteligência do artista-geômetra”69.

Além disso, há uma incontornável contradição entre experimentar a realidade, que é fato temporal, e sua fi-xação na imagem. Se na pintura registra-se um instan-

68 “Sempre que o ponto de atenção do olho|sujeito (zona focada) privilegia o ponto para onde converge toda a cena, o desfoque não chega a aparecer como aquilo que é: quebra da continuidade do espaço, desmaterialização dos corpos, dissolução da imagem figurativa numa mancha amorfa, que é bem o contrário de uma representação ‘objetiva’”. (Machado, 1984, p. 118)

69 (Machado, 1984, p. 71)

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te ideal, pleno de sentido e intenção, o momento captado pela fotografia é destituído do controle absoluto sobre o objeto fotografado, assim que o obturador da câmera é aberto. A fotografia pretende capturar o momento decisivo, através de uma intervenção sobre o modelo ou mesmo pela acuidade do fotógrafo em identificar este momento. Embora o acaso, em um certo sentido, reforce o caráter de realidade e objetividade da imagem fotográfica, a pró-pria ideia de instante é incompatível com a apreensão da realidade, que se dá no tempo — as fotos sequenciadas de Eadweard Muybridge (1830-1904) operam sobre uma dissolução da duração em instantes, para que o even-to possa ser capturado sem acidentes, ideia que se aplica também às imagens sequenciais que constituem o fluxo motovisual do cinema70.

Esta incompatibilidade não impediu que o cinema, por seu evidente caráter temporal, fosse tido como um estágio supostamente mais próximo da realidade do que a pintura e a fotografia.

Lembremos, contudo, que mesmo imagens estáticas e bidimensionais podem operar sobre o tempo, porém,

70 “[...] pois se o que ele [o cinema] faz é congelar instantes, mesmo que bastante próximos, o movimento é o que se dá entre esses instantes con-gelados, isso justamente que o cinema não mostra. Daí porque a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato, uniforme e impes-soal [...]. No limite o cinema propõe a ideia absurda de que o movimento possa ser constituído de instantes estáticos ”(Machado in Parente, 1993, p. 101). Poderia-se, contudo, relativizar esta argumentação, já que o olho não distingue entre o movimento percebido e aparente.

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do mesmo modo que o cinema, nunca como espelho. Se tomarmos a duração como uma quarta dimensão a agir sobre a imagem, como a co-presença de todos as posições que um corpo em movimento ocupa no espaço em um determinado período de tempo, temos, na fotografia um efeito obtido através da exposição prolongada além do instante, capturando um intervalo. Neste tipo de imagem, o movimento se fixa em uma espécie de borrão, como foi explorado pelos pintores futuristas Giácomo Balla (1871-1958) e Carlo Carrá (1881-1966) em suas obras, criando uma espécie de anamorfose cronotópica71.

Outro modo de inscrever o tempo na imagem é através da técnica dos agregados, desenvolvida por David Hockney (1937-), que se fundamenta em método cubista de com-posição, ou reconstrução, da imagem por fragmentos tomados de pontos de vista distintos, resultando em uma imagem fissurada e que busca analogia com a visão múltipla de um olho em movimento ou mesmo, para retomarmos Merleau-Ponty, o próprio paradoxo de um geometral dos infinitos pontos de vista necessários para se apreender um determinado objeto em sua completude.

Apesar destes exemplos, dentro da lógica de favore-cer uma representação próxima do modelo figurativo renascentista, mesmo a inscrição do tempo na imagem fotográfica foi preterida, por um registro do instante, mais que isso, do instante chamado de pregnante.

Além da problemática própria da perspectiva e da

71 (Machado in Parente, 1993)

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duração, este ocultamento dos meios de refração ocorre ainda em outras esferas do código de representação.

A imagem fotográfica, “seja qual for o referente que a motiva, é sempre um retângulo que recorta o visível”72, separando o que é relevante, e deve ser valorizado, do que deve ser descartado. Estas escolhas e organizações da imagem constituem por si só a eliminação da ideia de impessoalidade73, não são gratuitas, mas ao contrário ideologicamente orientadas. Para garantir a homologia da imagem fotográfica esta ideologia é mascarada, as-sim como os procedimentos materiais da fotografia74 — o plano da fotografia deve parecer uma janela transparente para a realidade fotografada e seus espaços não seriam limitados, ou interrompidos pelas bordas do quadro, pois, o espaço infinito da construção perspéctica avança além do suporte plano da imagem nos dois sentidos de sua

72 (Machado, 1984, p. 76)

73 “Eisenstein já afirmou mais de uma vez que a visão figurativa é sempre uma visão “em primeiro plano” [...], porque tanto o pintor como o fotó-grafo precisam sempre efetuar uma escolha, para recortar na continuidade do mundo o campo significante que lhes interessa. Toda visão pictórica, mesmo a mais “realista” ou a mais ingênua, é sempre um processo classifi-catório, que joga nas trevas da invisibilidade extra-quadro tudo aquilo que não convém aos interesses da enunciação e que, inversamente, traz à luz da cena o detalhe que se quer privilegiar”. (Machado, 1984, p. 76)

74 “A impressão de infinitude produzida pela perspectiva logra apagar a marca ideológica imprimida pelo recorte do quadro, ou mais exatamente: ocultar o fato de ser toda cena uma construção e uma seleção, intencio-nalmente arquitetadas por um enunciador, em determinadas relações de produção, com vistas a um fim determinado”. (Machado, 1984, p. 86)

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profundidade, um “que se afunda para dentro da tridi-mensionalidade ilusória do quadro, como que perfuran-do o suporte material e, de outro lado, o espaço que se supõe atravessar as bordas do quadro, saltando para fora e ocupando o lugar do observador”75.

Assim como o recorte é carregado de uma intenção velada, o ângulo de tomada constitui uma escolha da mes-ma natureza — se a perspectiva é estruturada em razão de um observador único, a posição deste em relação ao espaço fotografado pressupõe uma hierarquia de valores que coloca em primeiro plano, centralmente ou em foco determinados objetos, enquanto outros são colocados perifericamente, desfocados ou em segundo plano.

O enquadramento frontal, por exemplo, tem uso do-minante e tampouco é tido como uma escolha deliberada, mas somente um modo objetivo de registrar a realidade. Já quando o enquadramento é feito de modo oblíquo, de-formando a estrutura perspéctica, suas incongruências são reveladas e seus procedimentos materiais são percebidos.

A tradição ocidental de representação, instaurada des-de o Renascimento, induz o observador a tomar por ver-dadeira a imagem que, ao fazer uso da perspectiva central, coloca-o no lugar do autor sem fazê-lo ciente de que este olhar é dirigido e fixo, que nada tem de real e nada tem com o modo pelo qual percebemos o mundo sensível. Na fotografia essa convenção é reafirmada, no sentido de que toda correção fotográfica age em função de corresponder

75 (Machado, 1984, p. 83)

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com o modelo que privilegiaria este pretenso efeito espe-cular. Desta maneira, os meios codificadores convertem a informação luminosa que penetra na lente em fatos de cultura, em signos ideológicos76.

Em síntese, a crítica de Machado demonstra como, no entendimento de uma representação objetiva e ignorando a interferência dos meios codificadores, a imagem tende para a fetichização do referente. Trabalhar sobre a elasti-cidade destes meios, evidenciando-os, ao invés de procurar ocultá-los, é uma possibilidade de operar sobre as repre-sentações além desta fetichização. Isto serve tanto para a fotografia, como para qualquer tipo de representação.

Vimos que a equivalência entre imagem e referente é sujeita a uma incontornável contradição. Mesmo assim, é usual que se tome a imagem pela coisa, sobretudo em se tratando da fotografia. Por isso, é significativo voltarmos ao exemplo apresentado por Zumthor, seu ícone pessoal, a fotografia com o qual eu abro meu caderno. Nela, não é o lugar, mas a própria imagem, em toda sua opacidade, que seduz o arquiteto.

Demonstrada toda fragilidade da noção de representa-ção como espelho da realidade, pela interferência dos meios

76 “Porque os dados luminosos do objeto ou do ser fotografado estão sendo trabalhados pelo código, é preciso investigar esse código até reen-contrar o referente. Abstrair ou ignorar esse trabalho significa fatalmente transformar o referente em fetiche. [...] Só um domínio eficiente do código que opera em cada sistema nos reconcilia com o referente e nos permite ver com clareza a dialética do reflexo e da refração operando sobre as formas simbólicas” (Machado in Parente, 1993, pp. 158-159)

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codificadores da imagem, e também, pela ideia de que a própria percepção não pode abarcar a coisa em sua com-pletude, como vimos com Merleau-Ponty, perguntemos: senão é como um substituto das coisas, então para que serve a imagem e, enquanto arquiteto, como operar com elas?

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5 Analogia e pensamento icônico em Paul Valéry

Se o estudo de Machado concentra-se sobre fotografia e pintura, na arquitetura, o que seria o operar objetivamente ou subjetivamente suas representações? De que represen-tação falamos ao tratar de arquitetura?

Como obra construída, a arquitetura é uma represen-tação, um signo de algo. Existe uma representação poste-rior à obra arquitetônica e que pretende comunicar algo dela. No canteiro, convencionalmente, a representação é uma tábua, deve funcionar como instrução. No processo de projeto a representação é concorrente à criação, uma se alimentando da outra.

Esta última é a que mais se aproxima do tipo de ope-ração que orienta este trabalho, mas um pouco mais pro-fundamente, falemos ainda das imagens que antecedem a concepção do projeto.

Tomemos o código planta/corte/elevação/perspec-tiva, como a convenção admitida hoje no fazer arquite-tônico. Mais ainda, lembremos de como, nas últimas dé-cadas, as pranchetas de desenho tem desaparecido dos escritórios de arquitetura, dando lugar aos computadores, à concepção digital e algorítmica do fazer, assente no en-tendimento de que a representação e a materialização do edifício devem aproximar-se tanto quanto for possível77 (e

77 “Se, por exemplo, desenhar é entendido de modo puramente técnico, então resulta num funcionalismo pragmático ou em fórmulas matemáticas. Se desenhar é exclusivamente uma expressão de experiências psicológicas, então só contam valores emocionais e transforma-se num substituto reli-

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para este propósito o desenho assistido por computador é infinitamente preciso).

O modelo eletrônico tende a operar em razão de um realismo fotográfico (lembremos aqui da crítica de Machado a esta concepção), reduzindo os aspectos de incerteza en-tre representação e materialização — justamente este es-paço em aberto, no qual ocorre a apropriação, a atribuição de sentido, a invenção típica do fazer —, de tal modo que

“a realidade parece tentar imitar a simulação”78.Voltemos à imagem que abre este estudo, o ícone pes-

soal de Zumthor — Café na casa de estudantes. Zumthor não fala de um lugar, ele fala da imagem. Que conjunto de planta e corte conteria a qualidade arquitetônica presente nesta imagem? Como projetar “estas atmosferas, esta den-sidade, este ambiente?”79.

Ele conta ter ampliado numa folha e pendurado na parede do ateliê as seguintes palavras sobre Stravinsky, re-tiradas de um dicionário de música — “escala diatônica ra-dical, escala rítmica poderosa e diferenciada, evidência da linha melódica, clareza e rudeza de harmonias, um radiar

gioso, Se, contudo, a realidade física é entendida e conceptualizada como uma analogia à nossa imaginação dessa realidade, então perseguimos um conceito morfológico de desenho, transformando-o num fenómeno que, como todos os verdadeiros conceitos, pode ser expandido ou condensado; esses conceitos podem ser entendidos como polaridades contraditórias ou complementares, existindo como conceitos puros em si próprios, como obras de arte”. (Ungers, C. M. in Bandeira, P., 2011, p. 134)

78 (Bandeira, 2011, p. 17)

79 (Zumthor, 2009, p. 19)

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cortante de tonalidades, por fim a simplicidade e trans-parência do tecido musical e a solidez da construção”80. O musicólogo está falando de música, ao arquiteto, fala de atmosferas.

Passemos a outro exemplo, Eduardo Souto de Moura (1952-). Seu Atlas de parede81 nos apresenta um escritório forrado de imagens: recortes de revistas, postais, foto-cópias, fotografias de obras, imagens rasgadas de um jornal, croquis, envelopes, maços de cigarro, todos sem uma hierarquia aparente. Estas imagens fazem parte do modo como o arquiteto opera, convertendo “imagens, vindas de sua memória e das suas coisas em arquitectu-ra. Referências visuais e literárias constroem um Neufert mental, criando correspondências durante o processo de desenho”82.

O arquiteto não teria um caminho preciso e objetivo que o leva de um problema para uma solução (a obra arqui-tetônica), não sendo a arquitetura “resultado garantido de uma processo meramente dedutivo ou inteligente, demonstrado racionalmente a partir do somatório sim-ples entre as partes”83, como pensamento lógico, verbal. As operações projetuais seriam, como demonstrado no Atlas de Parede, constituídas, acima de tudo, pela combi-nação de processos complexos, da errância imaginativa e

80 (Zumthor, P., 2009, pp. 19-20)

81 (Bandeira, P., 2011)

82 (Lopes, D. S. in Bandeira, P. 2011, p. 133)

83 (Bandeira, P. 2011, p. 11)

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de intuições ligadas ao fazer, processos próprios do pensa-mento analógico, icônico. Passemos a tratar deste assunto específico, ligados ao conhecimento e a criação, através das considerações de Paul Valéry sobre o método leonardiano.

Leonardo da Vinci é tido por Valéry como um filóso-fo, não um filósofo habitual, mas de um tipo que pensa iconicamente84, dentro de uma lógica imaginativa, um co-nhecimento que superaria a linguagem85, e mesmo, que se formaria anteriormente à linguagem — “O filósofo não concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteúdo e do conteúdo à forma; que lhe ocorra uma forma antes do sentido que dará a ela, nem que a ideia de uma forma seja igual para ele à ideia que requer uma forma”86.

Se um filósofo, tem como objetivo “a expressão, por meio do discurso, dos resultados de sua meditação”87 de

84 “Eis portanto o que mais maravilhoso me parece em Leonardo, e que o opõe e os une aos filósofos bem mais estranhamente e profundamente do que tudo o que aleguei sobre ele e sobre eles mesmos. Leonardo é pintor: digo que ele tem a pintura por filosofia” (Valéry, P. 1998, p. 233)

85 “Olhemos um pouco mais de perto; examinemos em nós mesmos. Mal nosso pensamento tende a se aprofundar, isto é, a se aproximar de seu objeto, tentando operar sobre as próprias coisas (por mais que seu ato produza coisas), e não mais sobre os signos quaisquer que excitam as ideias superficiais das coisas, mal vivemos esse pensamento, sentimo-lo separar-se de toda linguagem convencional”. (Valéry, P., 1998, p. 241)

86 (Valéry, P., 1998, p. 203)

87 (Valéry, P. 1998, p. 219)

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tal modo que suas ideias sejam plenamente exprimíveis por meio da linguagem. A palavra, que é “meio e fim do filósofo”88, para Leonardo trata-se de um meio menor, tal qual a matemática, um mero instrumento.

Em seus desenhos, Leonardo aspirava o domínio de todas as ciências e técnicas: fisiologia, geometria, dinâmi-ca, geologia, botânica, de modo tal que “a representação de uma batalha pressupõe o estudo dos redemoinhos e das poeiras levantadas”89, as expressões e atitudes em uma pintura manifestassem os movimentos da alma, des-ta forma, a mecânica dos gestos, os sistemas de força da natureza, são observadas, por Leonardo, com a mesma acuidade90. Na sua obra, está sintetizado tudo aquilo que a natureza pode propor ao espírito —“sentia que esse senhor de seus meios, esse possuidor do desenho, das imagens, do cálculo, havia encontrado a atitude central a partir da qual as empresas do conhecimento e as ope-rações da arte são igualmente possíveis; as trocas felizes entre a análise e os atos, singularmente prováveis: pen-samento maravilhosamente excitante”91.

O Leonardo de Valéry é antes de tudo uma invenção, um personagem sobre o qual ele projeta seus pensamen-

88 (Valéry, P. 1998, p. 231)

89 (Valéry, P. 1998, p. 233)

90 “Não é de imprecisas observações e de signos arbitrários que se servia Leonardo. Ou a Gioconda jamais teria sido feita” (Valéry, P. 1998, p. 81)

91 (Valéry, P., 1998, pp. 110-111)

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tos92, e que sintetiza a atitude central de um obra consa-grada ao conhecimento, à criação e às paixões do intelecto. Leonardo buscaria nos seus desenhos as “relações de uma atividade total de um espírito com o modo de fazer que ele adota, quer dizer: com o gênero de obras que lhe dará a mais intensa sensação de sua força, e com as imposições externas que ele aceita”93.

As imagens de Leonardo reconstroem as condições fí-sicas e naturais que constituem o mundo94, as alegrias da construção. Valéry fala de uma construção como luta de pensamentos alternativos95. Escolhe justamente a pala-

92 “Enfim, confesso, não encontrei coisa melhor que atribuir ao desafortu-nado Leonardo minhas próprias agitações, transportando a desordem do meu espírito para a complexidade do seu. Infligi-lhe todos os meus desejos a título de coisas possuídas. Atribuí-lhe muitas das dificuldades que me acossavam naquele tempo, como se ele as houvesse encontrado e superado. Transformei meus embaraços no seu poder suposto. Ousei considerar-me sob seu nome, e utilizar minha pessoa./Isso era falso, mas vivo. No final das contas, não deve um jovem, curioso de mil coisas, parecer bastante com um homem da Renascença?” (Valéry, P., 1998, pp. 173-175).

93 (Valéry, P., 1998, p. 237)

94 “O peso se exerce nele, a luz se propaga nele como aqui; e gradativa-mente a anatomia e a perspectiva foram colocados no primeiro plano dos conhecimentos pictóricos”. (Valéry, P., 1998, p. 79)

95 “[...] em que o mais forte e o mais universal deveria triunfar até mesmo sobre o hábito, até mesmo sobre a novidade, aquele que não avistou na brancura de seu papel uma imagem perturbadora pelo possível e pelo pesar de todos os sinais que não serão escolhidos, nem viu no ar claro uma construção que não está lá, aquele que não foi possuído pela vertigem do distanciamento de um objetivo, pela inquietude dos meios, pela previsão

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vra construção com o propósito indicar, de modo incisivo, a intervenção humana nas coisas dos mundo — o desenho que constrói, ultrapassa o sentido de representar (como imitação), mas inventa, imagina, materializa, videncia,

“[...] desce à profundeza do que pertence a todo o mundo, afasta-se dele e se olha./Atinge os hábitos e as estruturas naturais, trabalha-os por todos os lados, e acontece-lhe ser o único que constrói, enumera, emociona. Deixa de pé igrejas, fortalezas; executa ornamentos cheios de doçura e de grandeza, mil engenhos, e as figurações rigorosas de muitas pesquisas. Abandona os destroços de não sei que grandes jogos”96.

Ao falar de arquitetura, a construção ganha um senti-do mais restrito, pois, neste caso, a imaginação trabalha diretamente sobre o mundo, sujeita às leis mecânicas e físicas que o desenho tão cuidadosamente investiga, e que conduz a considerações particulares, distantes da ideia de imobilidade97, convencionalmente atribuída à

das lentidões e dos desesperos, pelo cálculo das fases progressivas, pelo raciocínio projetado no futuro, designado aí mesmo aquilo que não será preciso raciocinar então, esse não conhece mais, qualquer que seja, aliás, o seu saber, a riqueza e o recurso e a extensão espiritual iluminados pelo fato consciente de construir. E os deuses receberam do espírito humano o dom de criar, porque esse espírito, sendo periódico e abstrato, pode estender o que concebe até aquilo que não concebe mais” (Valéry, P., 1998, p. 69)

96 (Valéry, P., 1998, p. 260)

97 “Ela (a inteligência leonardiana) pode brincar de conceber as sensações futuras do homem que fará um passeio pelo edifício, que se aproximará dele, que aparecerá numa janela, e o que ele irá perceber; de seguir o peso

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arquitetura. Seja arquitetura, pintura, poesia, desenho, filosofia ou ciência, o que interessa a Valéry é o modo como o conhecimento e a criação se relacionam, “[...] no espírito, as imagens visuais predominam. É entre elas que se exerce com mais frequência a faculdade analógica”98.

Ademais, esta analógica, esta lógica imaginativa “é exa-tamente a faculdade de variar as imagens, de combiná-

-las, de fazer que a parte de uma coexista com parte da outra e perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas. E isso torna indescritível o espírito, que é lugar delas. As palavras perdem aí sua virtude. Lá, elas se formam, jorram diante de seus olhos: é ele que nos descreve as palavras. Assim, o homem traz consigo visões, cujo poder faz o seu poder”99.

Assim sendo, no entendimento de Valéry, não é o saber que importa a Leonardo, mas o poder. O saber torna-se na mão de Leonardo um meio para que ele se aproprie do mundo sensível. Esta apropriação, este domínio, acontece

das cumeeiras conduzido ao longo das paredes e das curvas das abóbadas até a fundação; de sentir os esforços contrários dos madeiramentos; de prever as formas da luz livre sobre as telhas, as cornijas, e difusa, aprisio-nada nas salas em que o sol toca o chão. Sentirá e julgará o peso do lintel sobre os suportes, a conveniência do arco, as dificuldades das abóbadas, as cascatas de escadarias vomitadas por seus patamares, e toda a invenção que termina numa massa duradoura, ornamentada, defendida, molhada por vitrais, feita para nossas vidas, para conter nossas palavras e de onde escapam nossas fumaças”. (Valéry, P., 1998, p. 86)

98 (Valéry, P., 1998, p. 37)

99 (Valéry, P., 1998, p. 22)

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através de seus desenhos, nos quais compreender e criar, teoria e prática, correspondem ao mesmo entrelaçado de coisas.

O método vinci-valeryano, é tido por Décio Pignatari, como o primeiro a “chamar a atenção para a necessidade de uma analógica — não apenas uma analogia”100.

As considerações sobre o pensamento de Valéry, são feitas pelo prisma da semiótica, e associam o pensamento analógico à poesia101, que seria mais próxima da música e das artes plásticas do que da literatura, contrapondo assim dois processos de organização ou associação das coisas: “[...] um método, enquanto modelo ou possibilidade de discur-so metodológico, enquanto metalinguagem, é ou pende para o sintagma, para a articulação sintagmática, — e para a prosa. No eixo do paradigma, fica a linguagem-objeto — a poesia, no seu mais amplo sentido, verbal e não-verbal: analogia e similaridade. No método vinci-valeryano, o sintagma busca aproximar-se do paradigma, a prosa da

100 (Pignatari, D., 2005, p. 108)

101 “A poesia em versos é um corpo analógico dentro de um corpo lógico representado pela palavra e suas relações lógico-gramaticais, que obede-cem a um processo linear (causa-efeito, princípio/meio/fim). A poesia concreta, gráfica, sonora, ou gráfico-sonora, rompe com esse sistema. Uma causa não pode ser um efeito, um efeito não pode ser uma causa? Porque não citar logo uma sintaxe analógica [...]? Por que não tratar as palavras como figuras, como imagens que a gente monta no espaço e no tempo?” (Pignatari, D., 2005, p. 13)

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poesia — assim como esta do seu objeto”102. Trata-se, portanto, de um método heurístico, que es-

tabelece nexos em um contínuo aparente de fenômenos, lida direto com o objeto e é simultâneo ao processo de criação103, transpondo para a metalinguagem (linguagem que analisa) os processos de síntese que conduzem à cria-ção, à descoberta, à invenção. Uma metalinguagem que deriva da linguagem-objeto104 (linguagem analisada).

Esta distinção entre um processo verbal/analítico/se-letivo/ lógico e outro icônico/sintético/combinatório/analógico, é, abreviadamente, introduzida na seguinte passagem — “Dois são os processos de associação ou organização das coisas: por contiguidade (proximidade) e por similaridade (semelhança). Esses dois processos for-mam dois eixos: um é o eixo de seleção (por similaridade), chamado de paradigma ou eixo paradigmático; o outro é o eixo de combinação (por contiguidade), chamado sintagma ou eixo sintagmático”105

Um destes processos não exclui totalmente o outro. Para exercer seu poder sobre as coisas, o homem precisa

102 (Pignatari, D., 1979, p. 20)

103 “Pensamento que se aprofunda é pensamento que se aproxima de seu objeto — este é o fundamento do pensamento metodológico de Valéry.” (Pignatari, D., 1979, p. 14)

104 “Curiosa, ou notavelmente, é um método em que o chamado eixo de similaridade, paradigmático, se sobrepõe, se confunde, se projeta sobre o eixo de contiguidade, sintagmático — e que é o processo da função poética da linguagem [...]” (Pignatari, D., 1979, p. 20)

105 (Pignatari, D., 2005, p. 13)

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traduzí-las em números e palavras, fundamentais para o pensamento lógico. Entretanto, certas operações, como medir e comparar, exigem a presença de formas, que são essencialmente de natureza analógica — “O pensamento lógico, tende a dividir as coisas em partes; o pensamen-to analógico a mostrá-las em conjunto, como um todo. O pensamento lógico trabalha com unidades discretas, ou seja, separadas (letras, números); o analógico, com realidades contínuas. O tempo, o espaço, o peso — são realidades contínuas.”106

A lógica discursiva, linear, característica das línguas ocidentais, privilegia a subordinação entre as sentenças, dividindo o discurso em partes. Esta forma de organizar, conhecida como hipotaxe, é reforçada pelo próprio código alfabético escrito (que pela combinação de vinte e poucos sinais forma todo o conjunto de palavras) e pela estrutura predicativa, dominada pelo verbo ser. Se contrapõe à hi-potaxe, uma forma em que as orações são articuladas por coordenação, e elementos com o mesmo grau de impor-tância são justapostos, não havendo predicação, tampouco uma lógica de causa e efeito. Esta forma de articular as orações é conhecida como parataxe, e funda-se sobre um processo analógico, combinatório e tem correspondência com escrita oriental e com a poesia: “A escrita ideogrâ-mica se organiza por parataxe. O ideograma não tem sinônimo. A poesia também não tem. Você não pode dar

106 (Pignatari, D., 2005, p. 53)

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um sinônimo de um poema”107. Pignatari esboçou uma tabela que ilustra bem as re-

lações entre estes dois eixos. Sigamos com esta tabela, em sua forma reduzida, mas com os termos que mais evidentemente se relacionam ao presente trabalho:

signo

similaridade contiguidadeanalógica lógicaícone símbolo

sinsig

nos/

índi

ces/

dic

ente

snão verbal verbalarte ciênciapoesia prosaparataxe hipotaxeOriente Ocidentesimultaneidade linearidadesincronia diacroniaparadigma sintagma

“significante” “significado”forma “conteúdo”síntese análiseinconsciente consciente

interpretante

Na poesia, a palavra é mais próxima do icônico que do verbal, pertencendo ao mesmo eixo (paradigmático):“O pensamento lógico é ‘pensamento verbal’. O pensamen-to analógico é arcaico, inconsciente, intransponível em

107 (Pignatari, D., 2005, p. 50)

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palavras e dificilmente formulável em palavras”108. A escrita oriental também está neste eixo, e não possui

o verbo ser — as coisas são mostradas (como imagens) ou ditas como são (a lógica discursiva). Mas, sim, por um processo próprio da poesia, do haicai, e também do cine-ma, “Os ideogramas correm diante dos olhos do leitor como fotos ou fotogramas de um filme. Isto não ocorre com a escrita ocidental corrente: você precisa primeiro mentalizar as palavras e ligá-las por contiguidade a coisas e fatos — para poder saber o que elas significam” 109.

Não só Pignatari reconheceu uma identidade entre determinados processos que superavam o pensamento lógico-verbal como a poesia, o cinema e a escrita ideo-grâmica. Ainda antes, sem mencionar a teoria semióti-ca, Sergei Eisenstein identificou, em processos próprios desta orientação, características fundamentais para sua concepção de cinema assente na montagem e no conflito.

108 ( Jung, C. G. in Bandeira, P., 2011, p. 135)

109 (Pignatari, D., 2005, p. 51)

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6 Montagem em Eisenstein

Os conceitos vinci-valeryanos sobre uma lógica imaginativa, da constituição de um saber que opera através de imagens, encontram concordância com algumas formulações pro-postas por Eisenstein em dois pequenos textos de A Forma do filme110. Minha intenção ao trabalhar com as séries de duas ou mais imagens é anterior à leitura deste autor. No entanto, tive ampliado meu entendimento sobre este tipo de operação, através de suas considerações sobre a estrutura composicional presente na montagem cinema-tográfica. Passemos a elas.

A combinação dos planos em um filme é tida como montagem. Esta combinação é o que faz o cinema, mas não é exclusiva a ele: no teatro japonês Kabuki, haveria uma espécie de montagem operando pela articulação de elementos cenográficos, sons e atores; na música, onde os experimentos de Debussy (1862-1918) e Scriabin (1872-1915), seriam comparáveis ao que na ótica pode ser feito com o uso de grande-angulares abertas e teleobjetivas fechadas111; na própria literatura, tanto a prosa, com a estrutura imagística composicional presente em Tolstoi112 (1828-1910), como na poesia, de Maiakovsky (1893-1930), mas sobretudo na estrutura dos haicais, onde o poeta utiliza seus versos como planos e monta seu poema pela colisão de unidades de planos;

110 (Eisenstein, S., 2002 pp. 27-48)

111 (Eisenstein, S., 2002, p. 74)

112 (Eisenstein, S., 2002, p. 75)

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Estes processos são fundamentalmente compostos por dois aspectos elementares do cinema — fotofrag-mentos do mundo são capturados, no que chamamos de planos, e depois combinados de diversos modos, a montagem. Esta operação entre o fragmento e suas rela-ções, seria semelhante ao modo como o músico usa uma escala de sons e forma acordes, em como o pintor usa uma escala de tons, e de cores elementares cria todas as outras, em como o escritor usa as palavras para formar sentenças — nestes casos, o fragmento é tão mais estreito e neutro de significado que, quando combinados, perdem os sinais visíveis da combinação, aparecendo como uma unidade. O cinema obtém efeitos análogos, porém sendo o plano “muito menos elaborável de modo independente do que a palavra ou o som”113, tal como no cinema, em que ocorre uma ampliação de processos microscopica-mente inerentes a todas as artes.

A montagem, esta combinação entre dois elementos autônomos, fundamenta-se sobre a noção de conflito, tal como ocorre com a escrita chinesa huei-i, que por meio da fusão de hieróglifos copulativos (descritivos, porém, neutros de conteúdo) gera um ideograma: “a imagem para água e a imagem para um olho significa ‘chorar’; a figura de uma orelha perto do desenho de uma porta = ‘ouvir’; [...] Mas isto é — montagem!”114.

Na definição destes conceitos estaria o ponto de par-

113 (Eisenstein, S., 2002, p. 16)

114 (Eisenstein, S., 2002, p. 36)

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tida para o que Eisenstein chama de montagem intelectual, uma orientação que “procura o laconismo máximo para a representação visual de conceitos abstratos”115. O mes-mo laconismo que ele identifica na estrutura dos haicais, onde os versos, como listas de planos, combinados em três unidades neutras cria um representação de tipo psi-cológico. Um exemplo:

corvo solitário em galho desfolhado,

amanhecer de outono116

A arte pictórica japonesa também trabalharia sobre uma estrutura semelhante à da montagem. Usando como exemplo uma xilogravura de Toshusai Sharaku (séc. xviii), Eisenstein fala de um tipo de representação em que as proporções da figura são propositadamente trabalhadas fora de um naturalismo convencional. O espaço entre os olhos é exagerado, o nariz é quase o dobro de um nariz normal e o queixo não se relaciona com a boca. As propor-ções teriam sido subordinadas à considerações puramente intelectuais, nas quais a expressão psicológica seria dada pela combinação de traços isolados que em sua unidade correspondem a um naturalismo, mas em conjunto, não.

Analogamente, o cinema faz isso com o tempo, mo-dificando a proporção das partes de uma continuidade,

115 (Eisenstein, S., 2002, p. 37)

116 (Bashô in Eisenstein, S., 2002, p. 38)

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desintegrando-o em planos — “de ‘um primeiro plano de mãos se fechando’, ‘planos médios da luta’ e ‘primeiríssi-mo plano de olhos esbugalhados’, [...] Tornando um olho duas vezes maior do que a figura inteira de um homem?! Combinando essas monstruosas incongruências, reuni-mos novamente o evento desintegrado em um todo, mas sob nosso ponto de vista. De acordo com o tratamento dado à nossa relação com o evento.”117

Este modo de operar os planos seria mais natural, no entendimento de Eisenstein, do que a ideia de representar as coisas sempre em suas proporções tidas como reais, sendo este “apenas um tributo à lógica formal ortodoxa. Uma subordinação à ordem inviolável das coisas. [...] O realismo absoluto não é de modo algum a forma correta de percepção. É simplesmente a função de uma determi-nada forma de estrutura social. Como resultado de uma monarquia estatal, uma uniformidade estatal de pensa-mento é implantada.”118

Haveria, assim, uma noção equivocada de naturalismo no cinema, que trabalharia tanto no próprio quadro, reafir-mando sua natureza fotográfica119, como na combinação

117 (Eisenstein, S., 2002, pp. 39-40)

118 (Eisenstein, S., 2002, p. 40)

119 “A fotografia é um sistema de reprodução que fixa eventos reais e elementos da realidade. Essas reproduções, ou fotorreflexos, podem ser combinados de várias maneiras. Tanto como reflexos, quanto pela maneira de suas combinações, elas permitem qualquer grau de distorção - que pode ser tecnicamente inevitável ou deliberadamente calculada. Os resultados variam desde a realidade exata das combinações de experiências visuais

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destes quadros pela montagem privilegiando a continui-dade. Este modo de operar, produziria um conteúdo neu-tro de significado, ao passo que, justamente pelo conflito, a montagem atribuiria novos significados à imagem.

Eisenstein opõe, assim, a velha escola de cinema, que pregaria a ligação dos planos na base do “parafuso a pa-rafuso, tijolo a tijolo...”120. Ou seja, que o plano é um elemento da montagem e a montagem uma reunião des-tes elementos formando uma cadeia, com a disposição dos planos em série de modo a expor uma ideia, no seu sentido narrativo e diacrônico, reduzindo o estranhamento entre uma imagem e outra. Ao contrário, “o segredo da dinâmica do movimento no quadro reside no confronto entre a sensação que se conserva e aquela que nasce”121.

Eisenstein então nos apresenta o que seriam os meios codificadores da montagem, exemplificando alguns tipos de conflito segundo suas dominantes, pois estes aparecem, invariavelmente, como um complexo:

conflito gráfico: relativo às propriedades visuais e bidimen-sionais da imagem;

conflito de planos: obtido pelo jogo entre planos próxi-mos ou afastados, a dimensão que um objeto ocupa

inter-relacionadas, até as alterações totais, composições imprevistas pela natureza, e até mesmo o formalismo abstrato, com remanescentes da re-alidade”. (Eisenstein, S., 2002, p. 16)

120 (Eisenstein, S., 2002, p. 41)

121 (Eisenstein, S., 2002, p. 107)

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no campo;

conflito dos volumes: obtido pelo modo como os corpos se relacionam nas imagens, com ênfase nos cheios;

conflito espacial: obtido pelo modo como os espaços nas imagens se relacionam, com ênfase nos vazios;

conflito de iluminação: obtido pelas zonas escuras e claras da imagem, contrastes e gradações;

conflito de tempo: obtido pelo modo com que uma deter-minada ação ou duração é apresentada;

conflito entre a matéria e a composição: obtido pela distorção espacial por meio da posição da câmera;

conflito entre a matéria e sua natureza espacial: obtido pela distorção óptica por meio da objetiva;

conflito entre o acontecimento e sua natureza temporal: obtido pela câmera lenta e pelo acelerado;

conflito entre todo o complexo óptico e uma esfera totalmente diferente: obtido pela relação entre a imagem e o som.

Assim, a combinação de duas imagens estáticas, po-dem formar uma terceira, mental e dotada de uma di-namização do espaço, um movimento artificialmente produzido e uma duração artificialmente produzida, pois essa dinamização acontece no campo psicológico, ou emocional.

Em um texto posterior122, Eisenstein falará de um ou-tro conceito, e recolocará suas ideias sobre a montagem

122 (Eisenstein in Xavier, 1984 pp. 216-243)

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junto a outros processos — o discurso interior que, em síntese, é um fluxo de pensamentos não formulados em uma construção lógica, mas, dotado de uma estrutura específica, ligada aos procedimentos de criação e com-posição nas artes: “as leis de construção do discurso interior acabam sendo as mesmas leis que servem de base para toda a variedade de leis que regem a construção da forma e a compo-sição das obras de arte. Não há método formal que não seja a imagem sem tirar nem pôr de uma daquelas leis que regem a construção do discurso interior, distinto da lógica do discurso manifesto”123.

Temos assim, um método fundado na imagem, porém, que não se esgota em seu sentido de pensamento visual. Mais do que isso, trata-se de uma imagem sensorial124. Este método, ou forma de pensamento, corresponderia a um tipo sensorial pré-lógico, em oposição a um tipo lógico-

-informativo. Ao invés de narrar o evento ao espectador, este é levado a reagir emocionalmente a este evento. Ou seja, um processo que privilegia a percepção e as emoções em detrimento do uso descritivo e objetivo da imagem.

123 (Eisenstein in Xavier, 1984 pp. 224)

124 “Sabemos que toda criação formal se baseia fundamentalmente num processo de pensamento por imagens sensoriais. O discurso interior acha-se precisamente no estágio da estrutura imagético-sensorial, não tendo ainda alcançado a formulação lógica de que se reveste, antes de vir à tona. Assim como a lógica obedece a toda uma série de leis de construção, é bastante significativo que o discurso interior, esse pensamento sensorial, também ele esteja sujeito a particularidades estruturais e a leis não menos definidas.” (Eisenstein in Xavier, 1984 pp. 224)

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considerações finais

Se entrevejo algum desenlace para este trabalho, ainda assim, é inevitável notar que o corpo de autores que o fundamenta foi mais a consequência de uma deriva do pensamento, do que de uma linha teórica objetiva. Isto não me exime de esboçar os caminhos percorridos neste vaguear de um autor ao outro, e em como as reflexões sobre estes textos encontram correspondência nos dese-nhos que produzi, como coloco a seguir em linhas gerais.

Em Zumthor, vislumbrei o reflexo de um desejo em afastar a prática de projeto das relações puramente fun-cionais e formais, em razão de um entendimento mais atrelado a experiência humana da arquitetura. Das ideias latentes no seu texto, de suas dúvidas a respeito da prática projetual, deste olhar para si em seu modus operandi e no seu exercício de compreensão sobre o que constituiriam para ele as atmosferas, extraí o objeto de meus desenhos — uma qualidade arquitetônica que supera a ideia de edifício para se cristalizar na música, na fotografia, na experiência perceptiva. Por isso entendi que a imagem também rea-liza o que a arquitetura anseia, a compreensão imediata, a ligação emocional, e vi na criação de imagens um poderoso caminho para se fazer arquitetura.

Em Merleau-Ponty, pela intenção em aproximar a minha prática da experiência humana na arquitetura, busquei um entendimento sobre as relações entre a cons-ciência e o mundo, pela percepção. Se reaprender a ver as coisas constituiria a verdadeira filosofia, este reaprendi-

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zado só ocorre ao superarmos a separação entre sujeito e objeto, percepção e pensamento, consciência e mundo. Trata-se de uma crítica tanto à ciência que converte a exis-tência em objeto de conhecimento, submetendo-os à sua linguagem e parâmetros, como a filosofia que transforma a percepção em pensamento sobre a percepção, ignorando o corpo cognoscente como abertura para o mundo e a razão. O que percebemos do mundo é sempre um com-plexo no qual se somam as sensações, a motricidade, o espaço, o tempo, a linguagem, as emoções e o pensamen-to. Acredito que a crítica de Merleau-Ponty vale para um tipo de arquitetura, que converte o espaço em objeto do conhecimento, a linguagem em pura significação e o corpo cognoscente em coisa alguma. De Merleau-Ponty, extraí um anseio em reposicionar o sujeito que perce-be, no centro da produção arquitetônica. Por isso, tento em meus desenhos evitar o protagonismo do edifício, da arquitetura enquanto objeto. Não há um projeto, um corpo completo. Ao invés disso, os desenhos são, em sua maioria, fragmentos deste corpo: cantos de parede, aber-turas, superfícies, pontas, encontros de planos, rasgos de luz. Tento evidenciar, assim, a qualidade espacial no que ela tem de incorpóreo e subjetivo, para além do edifício único, do objeto.

Em Pedro Janeiro, o desenho é entrelaçado à ideia de abertura para o mundo, de um modo que não pude sozinho compreender em Merleau-Ponty. O desenho tra-balharia sempre sobre o fenômeno, já que é a passagem de uma intuição interior, um conhecimento sem forma

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nascido da experiência, para a exterioridade, irrompen-do como coisa no mundo, para si mesmo e para o outro. O desenho, como ato criador, é, então, o encontro do sujeito com aquele que não foi submetido à oposição entre pensamento e percepção, pois é pela expressão criadora que se abre a passagem de um interior para o exterior e do exterior para o interior de si mesmo e do outro, a partir do qual se instaura o movimento mútuo de dar e receber, entre consciência e percepção. Com Pedro Janeiro, a di-mensão criadora do desenho revelou-se para mim mais concordante com as ideias de Merleau-Ponty, do que um possível registro de experiências perceptivas, caminho naturalmente associado aos desenhos de observação, e para o qual este trabalho eventualmente teria seguido.

Em Arlindo Machado, há a indicação de um modo de operar as representações que responde às intenções de se aproximar das qualidades subjetivas da imagem. Se o mundo, meio de nossa experiência e ação, só pode ser conhecido por meio do corpo sensível e sempre de for-ma inacabada, do mesmo modo, as representações, não podem capturar o mundo senão de forma inacabada e sempre submetida aos seus meios codificadores — desde as propriedades do suporte escolhido até, inevitavelmente, a própria subjetividade de quem produz as imagens. A ideia da imagem como espelho, como representação fiel e objetiva do mundo visível é tão inabarcável quanto a ideia de uma percepção sem o sujeito, de um conhecimento que se forma sem a mediação do corpo sensível. Na repre-sentação, essa mediação se concretiza pela subjetividade

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do sujeito, de tal modo que nunca produzimos uma ima-gem objetiva e impessoal do mundo, um analogon perfeito. Assim, a representação, antes de ser uma imagem da rea-lidade, nada mais é do que uma própria imagem do fazer, de como se opera sobre o código de representação. Por isso, novamente, tento evidenciar a qualidade espacial no que ela tem de incorpóreo, concentrando a atenção nas propriedades materiais do desenho, sua opacidade — do operar sobre seus meios codificadores à atenção em não esconder as marcas de sua feitura, no sentido de que, em meus desenhos, as hachuras e o recorte do quadro, fazem presentes a própria caneta e a superfície do papel.

Em Valéry, encontrei a afirmação de um operar por imagens que corresponde a um tipo de pensamento tido como não-verbal ou icônico, uma Analógica. A mesma desconfiança de Merleau-Ponty à ciência e à filosofia, apa-recem em Valéry. A ciência, que submete a existência a seus procedimentos e definições e busca traduzir os fenômenos em números e palavras, fundamentais para o pensamento lógico. A filosofia, que tem por objetivo a constituição de um conhecimento que seja totalmente exprimível por meio do linguagem, torna a palavra meio e fim do filósofo, fazendo do saber um jogo de atribui-ções e destituições de sentido a um vocábulo. O tipo de conhecimento que Valéry nos fala, superaria as incompa-tibilidades entre estes dois domínios e teria na figura de Leonardo o seu maior exemplo, que em seus desenhos, transitava sem dificuldade entre filosofia e ciência, pois operava através desta lógica imaginativa, um conhecimen-

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to além da linguagem, e mesmo, anterior à linguagem, onde as coisas se combinem por suas estruturas. Se a prá-tica projetual é diferente de um pensamento linear que chega racionalmente de a a b, então é neste domínio das coisas do mundo por suas estruturas, neste operar por analogias, que estão as dimensões criativas, inventivas e imaginativas do pensamento.

Da ideia entre saber e poder, de como o conhecer não se distingue do criar, temos uma proposição semelhante àquela encontrada em Pedro Janeiro. O sujeito criador, através do ato de desenhar, estaria produzindo uma aber-tura entre mundo sensível e o conhecimento profundo, um conhecimento anterior à sua próprio formulação. Pensar pelo desenho, tê-lo como instrumento de descoberta e invenção, como abertura para o mundo.

Por último, em Eisenstein, estão presentes duas no-ções de uma lógica imaginativa — uma que é colocada como mecanismo gerador do conflito, ou combinação entre imagens, e outro que fala de um tipo de apreen-são das imagens anterior ao conhecimento. As ideias de Eisenstein oferecem, de certo modo, uma elucidação so-bre as potencialidades dos meios codificadores da imagem fílmica. Se o trabalho de Machado contribui no entendi-mento da imagem única, em Eisenstein há uma propos-ta de organização dos tipos de conflitos entre imagens, que correspondem à estrutura composicional presente na poesia e escrita orientais. Posteriormente, ele fala do discurso interior, de uma lógica para as imagens que cor-responderia à lógica de um pensamento anterior à forma-

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ção de um raciocínio, portanto mais ligado às sensações do que ao conhecimento. Em ambas noções, trata-se de uma associação de imagens que supera o diacronismo e sequencialidade (neutros de significado), em razão da associação das imagens mais concordante com a percep-ção e o pensamento analógico. Da leitura de Eisenstein, pude extrair algumas noções que reorientaram as séries de desenhos para além da mera construção de sequências.

Tentei, com a leitura desses autores e com meus dese-nhos, me aproximar de uma dimensão da prática arquite-tônica que pouco vejo explorada. Falo desta abordagem mais introspectiva, esta identificação com a experiência humana, comum aos outros campos de expressão ar-tística, mas que é largamente preterida pelos aspectos funcionais, tecnológicos e formais da arquitetura, assim como a própria noção de autoria vai se esgotando frente a uma prática cada vez mais condicionada e regulamentada.

Por isso, é tão relevante a apropriação de outros cam-pos de expressão artística quando se trata de pensar e pro-duzir arquitetura. Como vimos, o significado não está nas formas, mas naquilo que é transmitido pelas formas, nas imagens interiores que elas despertam, e é justamente na vitalidade destas imagens que está a atribuição mais impor-tante da arquitetura e de qualquer outro meio expressivo.

Pergunto-me ainda sobre como desdobrar a aproxi-mação, feita por estes desenhos, dos projetos de arquite-tura propriamente ditos. Talvez, possamos preencher este hiato atribuindo aos desenhos um sentido de reconheci-

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mento, ou tateio sobre uma dimensão da arquitetura ainda desconhecida por mim. Além do que, o meio que utilizei é só um dos possíveis a este reconhecimento. Lembremos dos recortes de Souto de Moura, de como ele tomou para si, resignificou, recriou estas imagens, simplesmente porque as retirou de seu contexto e as lançou, pela chave analógi-ca, como parte de sua prática de projeto. Portanto, uma superação das convenções do código, em razão de uma ligação autêntica com a linguagem interna da arquitetura — entendimento que levei adiante na tentativa de constituir minhas próprias imagens, de reconhecer a beleza que se faz presente na estrutura das coisas do mundo.

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agradecimentos

A todos amigos que, direta ou indiretamente, contribuí-ram para que este trabalho germinasse.

Muito especialmente, ao professor Luís Antonio Jorge, pelas orientações sensíveis desde que lhe apresentei a ideia débil que originou este trabalho.

Carinhosamente, aos meus pais e à Andréia.