descartes e modernidade

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Descartes reflexão sobre a modernidade ACTAS DO COLOQUIO INTERNACIONAL (Porto, 111.20 de Norembm de 1996) FUNDAÇ~O ENG. ANTÓNIO DE AiMEIDA

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ACTAS DO COLOQUIO INTERNACIONAL (Porto, 111.20 de Norembm de 1996)

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  • Descartes reflexo sobre a modernidade

    ACTAS DO COLOQUIO INTERNACIONAL (Porto, 111.20 de Norembm de 1996)

    FUNDA~O ENG. ANTNIO DE AiMEIDA

  • MARIA MANUEL ARAJO JORGE Universidade do Porto

    DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORNEA

    H poucos anos atrs, Guina Pasternak atravs duma srie de entrevis- tas a alguns dos mais representativos cientistas e pensadores contemporneos, tentava buscar resposta a uma pergunta que parecia ir-se tomando cada vez mais pertinente:

    Ser preciso queimar Descartes?)) ' Com a chegada da cincia actual e da sua epistemologia ao que alguns

    chamam um ((paradigma da complexidade)), Descartes que nos teria incitado ao ((culto do simples)), apareceria como uma espcie de ((obstculo epistemo- lgico)) que conviria enterrar definitivamente.

    Alguns viram mesmo, nostalgicamente, em toda a revelao da comple- xidade nas cincias, a oportunidade de elas recuperarem um novo estilo de aproximao da natureza, mais qualitativo, mais holista, mais dinmico, redi- mindo-se dos prejuizos e iluses duma estratgia mecanicista de pendor ana- ltico, esttico, reducionista e de que Descartes fora, em parte, um dos men- tores. Estaramos agora, reclamam mesmo alguns filsofos das cincias e divulgadores, diante dum abandono do prprio projecto da cincia modema, tal como vinha a ser desenhado desde Descartes, Galileu e Bacon.

    Quando considero, porm, o rosto mais visvel da cincia contempor- nea, o que apercebo sobretudo um conjunto de prticas fsicas, marcadas pelos tiques tradicionais do mecanicismo, mesmo quando o objecto de estudo e manipulao so fenmenos complexos, de tipo catico ou de ordem emer- gente.

    ' PASTERNAK, G. P. (org. ), Faiit-i1 brler Descarres?, Ed. La Dcouverte, Paris, 1991. Traduo port., Relgio d'gua Editores, Lisboa, 1993.

    i": Br~.~r~ror,c.r, rcflexii sohe ic o>nalfdade. Ac1o.c do Col&1111i Iriiernncimo>iol (Perto. 18-20 de No%urnbm, 1990. Mrnr Joi6 Crniirs-Jose Frrncilco Meinnhos (cwrd.). EdicSo da FundrClo &S. Ariidnio dc Almeidr, Pono, 1998: pp. 267-289.

  • 268 MARIA MANUEL ARAUJO JORGE

    Por isso eu gostava, para avaliar at que ponto Descartes ((est morto ou tem que ser ((queimado)), de centrar a minha reflexo (apesar da ambio do meu titulo) na procura apenas de alguns dos modos e planos em que a complexidade est presente nas cincias, e do seu tipo de operatividade - efectiva ou no - na ultrapassagem do ((espirito mecanicista que a empresa cientifica interiorizou desde o Sc. XVII e ao qual a complexidade frequentemente contraposta.

    Descartes e o ((esprito rnecuttieistu)~

    Embora dificil de circunscrever, at porque h vrios mecanicismos, a forma como Descartes se insere no espirito mecanista que invadia o seu tempo, recobre uma filosofia da natureza que carrega consigo uma filosofia do conhe- cimento cientifico e, simultaneamente, sugere e legitima uma estratkgia cog- nitiva especifica, assim como um particular tipo de racionalidade 2.

    Retirando a alma que Aristteles emprestara aos objectos da fisica e, por ai, todo o insondvel que uma alma envolve, Descartes props que eles e todos os fenmenos da natureza, fossem antes imaginados como figuras e movimentos, imbricaes geomtricas, choques e impulsos sem ((aces dis- tncia, tal como sucede na mecnica.

    Uma causalidade eficiente podia ento, muito melhor que uma finalidade e mcionalidade intencional explicar o seu comportamento.

    Por esta aposta, que Galileu tambm fizera, na existncia duma espcie de ordem racional, geomtrica, no mundo, Descartes funda, ontologicamente, a cincia moderna.

    Feita de partes separveis como as peas duma mquina, a natureza, a matria, como dizia Descartes, aparece como algo de homgeneo, ordenado, sem hierarquias de essncias, nem qualidades ocultas e racionalmente repre- sentvel atravs dum sistema conceptual de leis simples e imutveis.

    O termo ~mecanicismon s pode empregar-se, genericamente, para designar meca- nismos diversos no que tm de comum e a vontade de explicar os fenmenos da natureza apenas pelas leis dos movimentos da matria, que no possui alma ou vida. Ele recobre doutrinas diferentes que, no entanto, tm em comum o objectivo de libertar a explica@o do mundo, das tsicas animistas, qualitativas e finalistas. O mecanicismo cmesiano , ele mesmo, um entre outros e seria errado fazer de Descanes o nico ((fundador da nova con- cepo do mundo. BEAUDE, I., Mecanisme, em Enc. Universalir, corpus 14, Paris, 1994, pp. 781-783. De acordo com LENOBLE, R., Mersenne e! Ia nairsance du nicanisrne, Vrin, Paris, 1943, seria o padre Mersenne e de modo algum Descartes - um solitrio conven- cido das suas certezas - o p610 atractor duma nova filosofia mecanicista no sc. XVII.

  • DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORNEA 269

    Mas se o mundo uma mquina, o homem - pela sua linguagem, pelo seu pensamento e alma (no pelo seu corpo) - bem distinto dele e esta diferena de natureza que legitima a interveno cognitiva e mesmo manipu- ladora sobre esse mundo.

    O dilogo possvel doravante no apenas entre os homens, como quando o segredo do mundo s a Deus pertencia, mas entre o homem e a natureza exterior porque ela, tal como as mquinas da poca, particularmente os relgios, no se apresenta opaca, mas antes exibe de modo quase transpa- rante, o seu mecanismo que uma razo iluminada pela matemtica pode com- preender.

    S necessrio, ento, dizia Descartes, tomar em conta duas coisas: ns que conhecemos e os prprios objectos que devem ser conhecidos)) 3.

    A vontade divina cede lugar ao espirito humano que aposta decidida- mente na possibilidade, graas a esse dualismo ontolgico e epistemolgico, de descodificar um mundo criado por Deus em moldes matemticos, e obe- diente a regularidades que as leis podem exprimir.

    O desafio, doravante, ((procurar a verdade nas cincias)). O mundo, esse grande livro, est a a espera de ser lido pelo conhecimento e conquistado pela aco. E a estratgia est vista: desembaraadas as coisas e os seres de qual- quer sombra de mistrio, trata-se de os reduzir a objectos de cincia, consi- derando-os tal como so visiveis diante de ns e desn~ontando-os, at que exi- bam a natureza geomtrica e mecnica que os define.

    Sendo o todo, tal como numa mquina, o resultado da soma das parce- las, conhecidas as partes resolve-se a complexidade visivel na simplicidade que a suporia, o que incentiva diviso e ao isolamento do contexto. A preo- cupao pela enumerao posterior restituir a coerncia.

    Apesar de nos dar indicaes sobre tudo isto, Descartes coloca-nos diante duma fisica sem equaes)) e duma cosmologia e duma biologia ((fantsti- cas 4.

    Descartes no ter conseguido, como Galileu ou Pascal, explorar o sen- tido moderno da positividade nas cincias:

    Convencido, como tentao normal dos matemticos, que no haver outro meio para encontrar a verdade no mundo seno o recurso a ((razes matemticas)), a importncia que Ihes atribuir no exame das ((matrias fisi- casn e a sua preocupao por uma construo com ((fundamentos certos)), t-lo- conduzido a uma relao sobretudo dedutiva com a experincia, vendo

    DESCARTES, Rgles pour Ia direcrion de I ' Esprir X I I , La Pliade, Gallimard. Paris, p. 75.

    Cf. LECOURT, D., Ren Descartes, savant et philosophe)), em Lu Reclzercl~e, 286 (1996), 76-78.

  • 270 MARIA MANUEL ARAUJO JORGE

    nela mais um meio para confirmar uma verdade j possuida pelo seu esprito do que um veculo para a sua discusso crtica ou para o estabelecimento de novos factos.

    Essa confiana no poder revelador da matemtica e numa certeza sub- jectiva e pessoal , no entanto, um trao presente ao longo da histria das cincias: No consta, por exemplo, que Einstein tivesse ((perdido o sono face a realizao da experincia com que Eddington procurou testar as suas apos- tas fsico-matemticas, tal era a confiana que tinha nos seus clculos.

    Mesmo agindo sobretudo como metafisico e matemtico que sonha o mundo a luz de modelos geomtricos, o convite que Descartes faz ao ver a olho nu, ao ((verificar com os dedos enfim ao conhecer por experincia ' e apesar dos limites estreitos em que concebeu essa experincia - j que para ele os factos verdadeiramente indubitveis eram os do seu pensamento - pe em presena, chama ao palco, os ingredientes necessrios a empresa cientfica moderna e a constituio do mundo em objecto de cincia 6.

    E tudo aquilo que Galileu havia iniroduzido: a preocupao para l da referncia matemtica, pela observao detalhada, pela manipulao experi- mental e pela medida rigorosa - graas ao recurso a novos instrumentos - permitindo assim a cincia operacionalizar-se e adquirir o seu perfil peculiar, tudo isso se legitima, afinal, no interior da nova liberdade de movimentao que o pensamento cartesiano consente '.

    So expresses frequentes no texto de Descartes. Cf., por ex., a V parte do Discr~rso do Mtodo. Para relativizar a importncia que ter o testemunho dos sentidos em Descartes, onde o veredicto cabe, finalmente, a evidncia a prionn, cf., por ex., PHILONENKO, A,, Reler Descartes, Instituto Piaget, Lisboa, 1996.

    E ai a importncia do ingrediente matemtico tal que , de certo modo, ele que permite que Newton, ao abandonar o universo geomtrico de Descartes e ao admitir, de novo, entidades misteriosas como a aforan de atraco, a gravitao, n8o c o m o risco de (ao wntrrio do que T. KunN sugere, na Estrutura das Revol~~es CieniiJicas, para justifi- car a idia de incomensurabilidade e ausncia de progresso na histria das teorias cientifi- as) ~ r e g r s a r a uma situao de tipo pr-cartesiano, a uma fisica de simpatias e qualidades ocultas. E que a matematizao dos modelos fsicos e o calculo controla todo o possvel perigo de ecos animistas ou ocultistas.

    ' Mas no tendo examinado por ordem as suas matrias, no tendo igualmente

  • DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORANEA 271

    Desde ento e mesmo que o mecanicismo tenha sido obrigado a refor- mular a sua concepo do que o mundo e a sua metfora da natureza como mquina (adaptando-se ao novo conhecimento que ia ajudando a construir e a evoluo concreta das prprias mquinas, desde o relgio, a mquina a vapor e mais recentemente ao computador) me5mo ainda que profundas difculda- des se fossem levantando, ao longo do seu percurso, sua confiana na pos- sibilidade de representar o mundo tal qual e obter a certeza, h qualquer coisa da inteno mecanicista, tal como est tambm presente em Descartes, que atravessa a fisica clssica e resiste ao impacto da evoluo da fisica, da biologia e das prprias cincias da complexidade:

    Para l duma profunda vontade de insmio, a ideia de que, apesar de tudo, possvel reagir ao desconforto da condio humana de modo diferente do simblico)) 9, da religio e da magia, pelo esforo, pela vontade de redu- o do aparente mistrio do mundo, pela sua desmontagem numa estrutura compreensivel, expressa em leis fundamentais, apesar da sua complexidade aparente. Leis que conhecidas, permitiro, em princpio, calcular o que se pas- sar em seguida, revelando-se desse modo ((muito teis vida, como dizia Descartes, e perniitindo, ainda hoje, continuar a aspirar - e talvez com maior ambio, numa tecnocincia que h muito perdeu a conteno que a refern- cia teolgica impunha - a sermos no apenas ((como que senhores e pos- suidores da natureza, mas, autnticos senhores e possuidores ...

    A preocupao constante de Descartes com a sade e a sua esperana de, com uma nova medicina, liberta da superstio, poder prolongar a vida,

    Oxford Univ. Press, Oxford, 1989. O fisico Bernard d'Espagnat lembra que , finalmente, pela referncia ao nmero, que a fisica estabelece o real. Mesmo que seja necessrio reco- nhecer a impossibilidade dum ideal einsteiniano de aproxima~o progressiva a uma reali- dade em si, totalmente cognoscivel, admite que, apesar de tudo, as nossas equaes reflectem talvez alguma coisa das grandes estruturas do real. Cf. Les nombres et I'essence des choses)), em La Recherche, 282 (1995), 66-69.

    Para Lavoisier, escreve F. Jacob, o animal analisa-se em termos de mquina. No j de mquina funcionando smente por figura e movimento, mas segundo principios de uma extrema variedade, pois descortinam-se fenmenos elctricos mesmo num msculo de r. O modelo que permite melhor descrever um corpo vivo (ento) o duma mquina a vapor. Com o advento da biologia molecular e como F. Jacob demonstra, j& o computa- dor e a ciberntica que fornecem a metfora adequada compreensso do vivo e da heredi- tenedade como informao e programa. Cf. JACOB, F., La Logique du vivont, Gallimard, 1970, p. 53 e seguintes.

    Retiro esta expresso de Horrois, G., Gilbert Si~nondon et Ia Pliilosophie de Ia Culture Technique, P.U.F., 1996.

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    parece ser, ainda hoje, aquilo que ns, basicamente, continuamos a pedir a cincia: que nos livre da morte)), como costuma dizer Mariano Gago.

    este tipo de desgnio global, este espirito de dinmica emancipadora perfeitamente visivel em Descartes, aliado a uma atitude analtica, de des- montagem das dificuldades, esta confiana na explorao dos recursos da ((divisibilidade pelo pensamento)) e na busca do ((suporte simples)), que informa o projecto e mesmo a prtica a que chamamos cientfica desde o sc. XVII (quer a relao com a experincia se apresente mais dedutiva ou mais indutiva) tentando com ela chegar, hoje, no apenas a compreenso e previ- so, enfim ao dominio operatrio, mas mesmo a ultrapassagem da natureza, em vez da sua mera contemplao.

    Descartes teria, com a sua filosofia, um papel indutor no desenho deste projecto, mesmo fazendo uma fsica que um romance 'O. E como se tivesse intuido alguns dos aspectos chave da nova estratgia cientfica face ao mundo mas no tivesse sido sempre capaz, no terreno, de desenvolver a tctica ade- quada.

    De qualquer modo, o mecanicismo no me aparece apenas como uma viso do mundo ou uma filosofia da natureza, discutivel como qualquer filo- sofia, mas como intimamente ligado sugesto dum espirito particular e duma atitude concreta que o cientista, para o ser, ter que exibir face a qualquer problema ou desafio para conseguir fazer dele um problema de cincia, pro- cedendo sua objectivao.

    'O Este ponto e polmico. Cf., por ex., NAMER, E., Le beau roman de Ia physique carrsienne eI In science exocre de Galile, Vrin, 1979 ou CHAUNU, P.,

  • Posto isto, proponho-me aqui defender apenas e como h pouco anun- ciei, que, apesar do confronto recente com a complexidade, na fisica, na bio- logia, na economia, nas cincias do artificial, etc., o que me parece continuar a ser o motor da prtica cientfica , na generalidade, o esforo de simplifi- cao de sabor mecanicista e at cartesiano, de procura da especificao per- feita, de clculo objectivo do mundo, na reduo, inclusiv, e como Descartes tambm sonhou, a sua unidade legal, ao ponto de, agora, parecer vivel encon- trar a sua equao nica, to concisa que se ajustar mesmo as costas duma T shirt I'.

    Mas como conseguir fazer passar este meu ponto de vista? que, se por um lado, autores como P. Lvy, por ex., falam do desen-

    volvimento dum neo-mecanismo, a volta da exploso do uso do computador e dum ((paradigma do clculo)), o que relanaria um certo ((espirito cartesi- ano 12 , basta lermos fsicos como B. d' Espagnat para ouvirmos proclamar que a mecnica quntica arrasou o mecanicismo e instaurou, opostamente, um pensamento da complexidade.

    Os itens tipicos da ((filosofia mecanicista)) presentes na fisica sero trs, para B. d' Espagnat: (Cf. Fig. 1).

    A oposiyJo entre mecanicismo e complexidade

    1) Descrio de toda a realidade - I) Impossibilidade de reduo por conceitos familiares da realidade quntica a

    conceitos familiares

    2) Anlise; "divisibilidade pelo - Holismo; superao de pensamento" disjunes I

    3) Objectividade "forte" - Objectividade "fraca" Realismo "fsico" Realismo "aberto" e

    iponderado"

    Fig. 1 (B. d'Espagnat, 1994)

    Cf. LEDERMAN, L., The Godparricule, Houghton Mifflin Company, 1993. LBVY, P., La machine Univers, Ed. La Dcouverte, Paris, 1987.

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    Tudo seria discutivel por meio de conceitos familiares Tudo seria divisivel pelo pensamento. A idia duma objectividade forte permitiria a toda a fisica produzir

    enunciados em que o ser humano no estaria presente e que exprimiriam, por isso, a realidade em si. O mecanicismo envolveria assim, pelo seu objecti- vismo e metafsica da representao)), um realismo prximo ou fisico.

    A estes pressupostos a mecnica quntica oporia, situando-se no quadro dum pensamento complexo, e respectivamente: a necessidade de conceitos que superem a viso familiar, um holismo, um pensamento globalizante imposto pelo ((principio de no separabilidade do real)) e uma objectividade fraca, uma rotura com a noo de conhecimento fiel e perfeito do real o que expri- mir a essncia do pensamento complexo. (Este no se reduz, diz d' Espagnat citando E. Morin, a problemtica da ordem e da desordem por flutuaes, envolvendo sobretudo a questo do ((objecto escala humana que a mec- nica quntica claramente coloca 1 3 .

    Para d' Espagnat, a lio essencial que esta cincia nos deixa situa-se exactamente na sua exibio dos limites fundamentais do nosso conhecimento do real e, por isso, ela institui uma problemtica da complexidade, o que nos distanciaria de Descartes, da sua busca do simples e da sua metafisica da representao. Reparem, contudo, num pormenor:

    A complexidade est aqui a ser apreciada, enquanto nova viso do mundo, como a filosofia que, opostamente ao mecanicismo, as cincias, hoje, exigiro. Ora, o problema qu eu coloco se, no plano tcnico e operatrio, a nossa cincia pode abordar cientificamente um problema, doutro modo que no a luz duma estratgia analtica e de simplificao, isto e, ((no complexa)).

    Curisosamente, o prprio d' Espagnat reconhece que, na pratica, os cien- tistas continuam a analisar, a simplificar o mundo para o dominarem terica e experimentalmente, parecendo assim que o mecanicismo que a mecnica quntica arrasa, como ele diz, ser realmente o mecanicismo enquanto inter- pretao filosfica, enquanto viso do mundo e no enquanto atitude intrn- seca, quase instintiva, ao modo de fazer cincia.

    Mesmo como filosofia, no entanto, e tendo em mente os trs itens que d' Espagnat considera, a capacidade da complexidade, como nova filosofia da fisica, para desalojar uma viso no complexa, mecanicista, no nada fcil de estabelecer.

    E lembro, apenas, trs aspectos: o fisico A. Abragam em relao a ques- to da estranheza da mecnica quntica (ao nvel da sua interpretao, no do

    l 3 Cf. ~'ESPAGNAT, B., Olhares sobre o nzotrio, Instituto Piaget, Lisboa, 1994, pp. 177-126. Cf., igualmente, e para se apreciar a ambiguidade que rodeia o conceito de mecanicismo, por ex., SATLER, R., Biophilosophy, Springer Verlag, 1986, pp 21 1- 235.

  • fonnalismo porque este limpido) diz que ela era apenas uma questo de habituao 14 .

    Lembro ainda, que o regresso a um realismo, de tipo einsteiniano, , hoje, uma possibilidade considerada por numerosos fisicos, como M. Gell Mann 1 5 .

    Daqui decome, finalmente, que a questo dos limites do conhecimento, tal como a mecnica quntica a coloca, no parece sequer valorizada, no mesmo sentido, pelos investigadores dos ((fenmenos complexos)).

    Situada ento na filosofia, nesse limbo da mera interpretao, a dificul- dade no apenas constatar o problemtico impacto da complexidade na pr- tica cientfica. Trata-se tambm de apreciar at que ponto, o conjunto de itens que ela envolve como categoria epistemolgica e conceito filosfico e que Morin to bem resumiu (Cf. fig. 2) (viso no mutilante, sem clivagens, do conhecimento cientfico e, por ai, recuperao duma atitude de respeito perante o misterioso, o insondvel, e tentativa de articulao das cincias entre si e com os outros domnios da cultura, em ordem a uma civilizao das idias ... 16) representam realmente a filosofia que a actual tecnocincia, neste caso a fsica, implica ou se eles so antes eco de preocupaes de tipo diverso, ticas, religiosas ou outras.

    Alguns ndices d a categoria epistemolgica d e 'Lcomplexidade'', segundo E. Morin

    Viso no mutilante do conhecimento e do real + Holismo +

    Conscincia dos limites do conhecimento I

    t Respeito pelo misterioso e insondvel +

    Articulao das cincias entre si e com a cultura

    Fig. 2 ctc., etc ...

    l4 ABAGAM, A,, ~Pr&face em aLa physique quantiquen, Pour Ia Science, n." cspe- cial (1995) 5.

    l5 Cf. M m , M. G., La quark e1 le jaguar, Albin Michel, Paris, 1994, cap. 12. l6 Cf., por ex., Monm, E., O problema eyislen1016gico da coinphidade, op. cir.

  • O que se resume afinal a uma pergunta mais geral: o plano filosfico, simblico, sequer determinante na tecnocincia con-

    tempornea? Se , o que controverso, qual o tipo de cumplicidade efectiva entre ele e o plano operatrio, fisico e tecnocientifico?

    possivel ser-se filosfo e simultaneamente sbio, como Descartes o foi?. (O que explicar tantos dos seus enigmas...?)

    Como compreender que uns fsicos digam que a fsica abandonou o mecanicismo e se tomou complexa - o que condena Descartes fogueira - e outros, como Lvy-Leblond, o poupem insistindo que o programa especifico desta cincia escapar complexidade e isso graas matemtica e que pura inflao meditica proclamar que as cincias so hoje mais filosficas e que a alma foi devolvida ao mundo? I7

    Notoriamente no esto a olhar para as cincias sob o mesmo ngulo.

    Niveis querttes e rtiveis frios [Ia produo ciertf~pca

    Para tentar um comeo de resposta e para, antes de mais, explicitar os ngulos sob os quais se podem olhar as cincias, quando a propsito delas se fala em complexidade ou ausncia dela, vou recorrer a uma distino episte- molgica um pouco artificial e que se inspira em Popper, embora tente ultra- passar algumas dificuldades do seu ponto de vista:

    Popper distinguia entre os modos de produo)) dos conhecimentos cientificos e os produtos, que so as teorias e os factos tcnicamente esta- belecidos, perfeitamente objectivados e por onde as cincias procuram demar- car o seu territrio (Cf. Fig. 3). Acrescento, contudo, um outro nivel a que chamo modos de comunicao, divulgao, aplicao da cincia. Quando considero, por ex., as cincias ao nivel dos seus produtos (tericos e tcni- cos) eu estou a olhar para a cincia que se exibe publicamente (depois de ter passado por um processo de escrutinio colectivo) objectivada em compndios, memrias de computador, etc., e em tecnologias. Ai, eu no vejo os cientis- tas a trabalharem, considero apenas teorias e tcnicas que posso discutir como coisas, como objectos diante de mim. Foi para este nivel frio que

    Popper e o positivismo escolheram olhar.

    " Cf. LEVY-LEBLOND, I.-M., Entrevista a Guina Pastem*, em Ser preciso queimar Descartes?, Relgio d' gua, 1991, p. 164.

    Cf. POPPER, K., Objective Knovledge, Oxford Univenity Press, 1979.

  • Diversos "olhares" epistemolgicos sobre as cincias

    Sujeitos

    produo Nivel "quente"

    Objectos

    Nivel "frio" Tericos Tcnicos

    Modos de comunicao/ divulgao1

    Sujeitos "Cincia em aco"

    Nivel "quente"

    Fig. 3

    Ao nvel dos modos de produo)) e tambm de ((aplicao, comunica- o, divulgao, eu j considero os sujeitos concretos, a agitao da sua vida de cientistas, as dificuldades para arranjarem financiamentos, para convence- rem os outros. Vejo o que lem, as suas preocupaes politicas, ticas, reli- giosas.

    Isto envolve olhar, igualmente, para o modo como os cientistas inter- pretam subjectivamente a sua cincia, como comunicam com os seus pares e com o pblico, a retrica poderosa que criam, o modo como lanam os seus produtos no mercado, etc ... E a cincia no seu nivel quente.

    Nestes planos no h alfndegas, nem fronteiras entre os saberes, o que, se no caso da inveno no parece levantar problemas, j no segundo aspecto (divulgao, interpretao) pode exigir mediaes, passaportes nem sempre requisitados ... o que a causa, como veremos, de muitas ilus8es no desenho da imagem actual da cincia.

    Sem dvida que esta independncia dos produtos que o meu esquema sugere, efmera e todo um problema que agora aqui no abordo.

    O certo porm que o esforo das cincias conseguir esta separao pela continua objectivao e discusso crtica dos seus contedos. Foi por

  • 278 MARIA MANUEL ARAJO JORGE

    ai que Popper falou duma epistemologia sem szijeitos de conhecimento)), o que far certo sentido se se olharem esses ((produtos, no como conhecimento mas informao, que ortra coisa. Se esta um recurso para a produo de conhecimento, este exige s ijeitos 19.

    Ora quando comean!os a ver o modo como o sujeito se relaciona com esse mundo de artefactos informacionais que podemos localizar vrias modalidades de explicao na: cincias.

    Modnlirlnrles cle Explicao iras Ciircins

    Se, como G. Hottois ou mesmo H. Atlan virmos na cincia contempo- rnea essencialmente um conjunto de prticas flsicas, operatrias, e por ai recusarmos ou desvalorizarmos uma relao simblica com o seu objecto, a prpria idia de explicao ser dificil de fazer passar 20. Mas mesmo uma cincia circunscrita a objectivos pragmticos, tem necessidade de recorrer a explicaes de tipo operacional. (Cf. Fig. 4).

    (necessidade de intcligibilidade global)

    Sentido

    + "du?O pm cima ,, + I Dimenses do acto (modelos matemticos/

    epistemolgico /aspectos tcnicos)

    $ Tmduao para batro . 1 (necessidade de comunicao/ divulgaoiaplicao) Sentido Metforas

    Fig. 4

    l 9 Desenvolvi este ponto de vista em Biologia, Injornloo e Conhecinienlo, J.N.I.C.T. 1 Fundao C. Gulbenkian, Lisboa, 1995.

    " Cf. Horrois, G., Entre symboles e1 rechnosciences, P.U.F., Paris, 1996, p. 13 e ATLAN, H., e BOUSQUET, C., Questions de vie, Seui: :'ais, 1994, pp. 178-179.

  • DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORANEA 279

    Ento, se o objectivo a procura da causa eficiente, a tentativa de dar resposta a um como?, o esforo explicativo avana apoiado em modelos desantropomorfisados e numa linguagem formalizada, incapaz, por isso, de captar a significao global e o porqu? dum fenmeno. O que com ela se ganha em rigor, eficcia e funcionalidade, perde-se em captao do sentido global. Este ser o tipo de explicao procurada no tal nivel frio, impes- soal, em que as cincias procuram funcionar e que referi atrs.

    Sabemos como foi penoso a fisica(e depois a biologia) aprenderem a cir- cunscreverem-se a este plano de estreita visibilidade. A fisica tentou - ao optar por uma filosofia positivista e operacionalista - contornar assim as difi- culdades de realismo, levantadas pelo problema da medida em microfisica. Ganhou ento em eficcia calculatria mas descartou toda uma srie de aspi- raes de compreenso global, resignando-se a fazer da cincia um dominio exclusivamente operatrio e no uma ontologia. Exigiu ento aos sujeitos que fazem cincia, que nela se movessem apenas como sujeitos epistmicos, operadores cognitivos, e nada mais. Ai, faz-se cincia como cientista e no como filsofo. A fisica distanciou-se ainda mais da alma, a biologia, mais recentemente, da vida e, no seu conjunto, a cincia afastou-se de cada um de ns, enquanto a cultura, estilhaada, se fragmentou.

    A rtecessidade das e.piicaes simblicas

    Ora se h quem se conforme com esta circnnscrio dos poderes de manobra e visibilidade das cincias e exija do sbio o comportamento quase asctico que o operacionalismo positivista lhe apontou, o certo que toda a epistemologia contempornea nos convida a reintroduzir na imagem de cin- cia, a influncia dos tais modos de produoiinterpretao~~ que atrs referi e, desse modo, a presena de sujeitos que, embora se esforem por ser epis- tmicos)), cartesianos, so bem humanos, concretos, com um crebro e uma mente com exigncias, pelo menos em muitos deles, muito mais complexas que as duma pura racionalidade.

    Sob esse olhar, o facto virtual, frio (totalmente desligado do facto actual) aparece, mesmo quando de carcter mais holista, como uma abstra- o invivivel.

    Ora, quando alguns sentem a necessidade de ultrapassar esse plano do objecto, da funcionalidade tecnocientifica, avana-se para o plano interpreta- tivo duma explicao simblica, cuja importncia e legitimidade decisiva para estabelecer o significado da problemtica da complexidade versus meca- nicismo e o seu impacto no destino cultural das cincias.

  • 280 MARIA MANUEL A R ~ U J O JORGE

    Nesta perspectiva explicativa simblica haver vrios aspectos. Eu noto, para j, dois, pelo menos:

    Num sentido mais corrente, a explicao simblica a busca da signifi- cao atravs do esforo em compatibilizar a linguagem cientifica com a lin- guasem natural e o senso comum. Ela imprescindivel quando se trata de comunicar (mesmo com outros centistas), de divulgar, assim como de ensinar. O recurso a metfora ai moeda corrente. Desse modo se tenta favorecer a compreenso pblica da cincia, incrementando uma nova realidade cultural, um ((entreposto)) entre a cincia e a sociedade cada vez mais perceptivel, a que chamo a cincia-cirlttrra. No no sentido de A. Pickering (1992) de cin- cia como cultura mas para a distinguir da ((cincia-cincia)), terreno de espe- cialistas 2 ' .

    O conceito de cincia-czrltzrra procura representar o esforo, bem ou mal conseguido, de traduo ((pura baixo do discurso cientfico, para o nvel de compreenso do senso comum. E o plano em que trabalha o vulgarizador da cincia e o educador em geral, tentando apurar a nossa literacia cientfica, pela explorao dos recursos da linguagem natural, a nica que nos permite falar com todos.

    Mas h outra faceta da explicao simblica, olhada como plenamente suspeita pelo operacionalismo mais rgido e que se prende com a necessidade duma inteligibilidade no puramente local, mas global, a procura dum sentido comum entre o mundo cientfico e os outros saberes.

    Ela fora, ento, a insero num contexto mais abrangente, onde s a determinao completa do objecto satisfaz, onde a ontologia, por isso, se reins- tala. A o desafio que alguns sentiro, o pensar conjuntamente a sua cin- cia com toda a experincia humana concreta, com aquilo que os filsofos cha- mam vivido. Ai a paixo pela inteligibilidade)) mobiliza no apenas a razo como Descartes julgava, mas a prpria afectividade, que no lhe ser alis estranha.

    E neste plano que vemos ento alguns cientistas a fazerem filosofia, a tentarem esse enorme desafio do que chamarei agora uma traduo para cima)) do opemcional para a linguagem da filosofia. (Julgo que em parte porque s olham para aqui que alguns podem definir a cincia como uma mera logoteoria).

    Se, do meu ponto de vista, a legitimidade e interesse de tais extrapola- es inegvel, sob pena de vivermos num estado de ((esquizofrenia)) inte- lectual e cultural, o certo que, quando se tenta simbolizar o produto cien-

    " Cf. PICIERING, A,, Science as pracfice and cullure, Univ. of Chicago Press, 1992 e ARCHER, L., ((Vinte e cinco s6culos de Gentica Molecularn, em Memrias da Acaden~ia das Cincias de Lisboa (Classe de cincias), Tomo XXX, 1989.

  • tifico (terico ou tcnico) o risco de mergulho numa espcie de ((fritadeira ide- olgicacomo diz B. Cyrulnik, real 22. Uma srie de opes discutveis, epis- temolgicas, ontolgicas, antropolgicas ...q ue suportam necessariamente o discurso do intiprete, do tradutor, teriam que ser plenamente explicitadas o que, normalmente no acontece, podendo ser fonte de muitas ambiguidades.

    Ora tendo em conta todas estas grelhas epistemolgicas que gosta- ria de saber se, realmente, com a complexidade, estamos diante dum ((tuming point)), duma bifurcao na investigao cientifica assinalando a passagem duma viso universalista e mecanicista de Descartes e de Newton para a viso holista e dinmica de, por exemplo, um Pri:ogine 23.

    Considerarei primeiro a fisica, depois a biologia:

    Vrios fisicos reconhecem que o estudo sistemtico dos sistemas com- plexos, sendo relativamente recente, representar uma 3." revoluo da fisica, depois da 1." (com Galileu e Newton) e da 2." com a Teoria da Relatividade e a Mecnica Quntica.

    Quando os fisicos deram conta que enormes quantidades de particulas, submetidas unicamente as foras cegas da natureza podiam organizar-se em sistemas cooperativos de actividade e que tal fenmeno se repetia universal- mente, quase julgaram, diz P. Davis, estarem diante dum milagre natural 24.

    A sua atitude, no entanto, como fisicos foi, segundo a tradio da sua cincia, tentar ainda domin-los pela conceptualizao e pelo clculo. Nenhuma descrio analitica simples o conseguia mas um novo instrumento permitia modelizar esses sistemas: os computadores rpidos.

    Para uma fisica que se movia vontade no domnio dos fenmenos line- ares, o mundo parecia-lhe, naturalmente, linear tambm e ordenado. Dar-se conta de que a matria era capaz de se auto-organizar em estruturas coeren- tes, segundo dinmicas no-lineares, levou mesmo alguns, como por ex., I. Prigogine, a considerar que os nossos modelos de inteligibilidade tradicionais, confinados ao plano do simples e do complicado, representavam apenas casos limites)), normalmente idealizaes, no plenamente ilustrativas, por isso, duma natureza afinal ((complexa)). Desde a clebre Nova Aliana)) (1979)

    " Cf. CYRULNIK, B., Le scientifique e1 Ia bassine fituren, em La Recherche, 281, 1995, 76.

    '3 Cf. CAPU, F., enlrevista a Guitta P. Pasternak, Ser preciso queiinar Descartes, op. cir., p. 126.

    24 DAVIS, P., (dir. ), La nouvelle physique, Flammarion, Paris, 1993.

  • 282 MARIA MANUEL ARAJO JORGE

    ao recente Fim das certezas)) (1996), Prigogine tem ento tentado fazer passar a sua aposta de que estamos, agora, diante duma nova racionalidade, o que logo alguns tomaram como sintoma, igualmente, dum novo paradigma, seno mesmo duma autntica metamorfose da cincia =j. Ora o que eu vou procurar uma certa localizao dos planos em que essas eventuais novida- des se situaro.

    Reportando-me a minha grelha de anlise, eu diria que ao nivel da expli- cao operacional, no plano dos produtos tericos e tcnicos, no vejo que os cientistas, inclusiv o prprio Prigogine, tivessem sido obrigados a mudar as regras do jogo cientfico, deixando de analisar, calcular o mundo e de o tentar prever, para o conholar, no vejo que abandonassem enfim o esforo de o simplificar, quando depararam com ((estruturas dissipativas)), ((atractores estranhos)) ou objectos catashtificos. Parece-me que, acima de tudo, o que se conseguiu, foi constituir um novo objecto cientfico, graas a novos mode- los matemticos e instrumentos capazes de o institurem,

    O facto de se ter descoberto que era restritivo e abusivo pensar, um pouco como Descartes, que a natureza trabalha apenas com a simehia ((per- feita)), a ordem, o equilbrio e organizando-se por partes fragmentveis, levou alguns, sem dvida, necessidade de reformularem a sua imaginao meca- nicista da realidade: a melhor metfora da natureza no ser j o montono e previsvel relgio cartesiano, nem sequer a mquina de ivatts, mas a nova mquina de bits, o computador, capaz de aprender e inovar, funcionando com rudo e por isso quase evocando um ser vivo e pensante. Mas nada disso parece ter obrigado as cincias, mesmo as da complexidade, a desistirem dum ideal de simplificao do real, nem to pouco a hansformarem-se, pelo facto da sua viso mais holista, numa espcie de filosofias 26.

    Mesmo no domnio do caos determinista que se sabe, hoje, abrange sis- temas duma enorme diversidade e onde, espantosamente, o detenninismo e imprevisibilidade coincidem (o que ser diferente do indetenninismo peculiar

    ' 5 Cf. PRIGOGINE, I., Lafin des ceriiir,des, Odile Jacob, Paris, 1995. '6 Note-se, por ex., o que escreve Heinz Pagels, a propsilo das ~cincias da com-

    plexidade)): Alguns sistemas complexos (o crebro, a economia mundial) distinguem-se dos simples, pelo facto de serem necessrias muitas variveis qualilalivamente distintas para des- crever o seu comportamento. Mas os cientistas descobriram uma alternativa interessante a todos esses milhares de variveis. Acontece que, em alguns desses sistemas, existe uma sim- plicidade subjacente - s umas quantas variveis so realmente importantes ... Talvez todos estes milhares de variveis sejam s aparentes e, no fundo, as coisas sejam muito simples. Mas at que essa hipottica simplicidade seja descoberta, temos de lidar directamente com a complexidade. Felizmente, graas ao computador, isso possvel. (Dispomos) de novos mtodos de anlise dos ((sistemas complexos)). Em Os sonhos da razo, Gradiva, Lisboa, 1990, pp. 46-47.

  • da situao quntica) os cientistas conseguem associar caracteristicas univer- sais a certas formas de caos. Se este representa um modo de niptura com a cincia preditiva, possivel ainda encontrar-lhe uma certa ordem matemtica subjacente, mesmo que seja sob a forma duma via estreita)) entre acaso puro e determinismo.

    No plano do operacional, o impacto do encontro com a espontaneidade, a criatividade e irreversibilidade de certos comportamentos da natureza causa, num primeiro momento, uma enorme surpresa mas, uma vez detectados, a cincia acabou por procurar apoderar-se tambm do seu mecanismo oculto, procurando, ainda, leis invariantes e uma simplicidade subjacente, e tudo isto graas ao computador.

    Por isso me parece que aquilo que Prigogine escreve para o grande pblico, tentando melhorar a ((cincia - cultura e que se situa j no plano interpretativo das suas explicaes simblicas, ter que ser encarado com grande cautela. As recriaes literrias que faz do operacional ao procurar a sua traduo para cima e para baixo parecem-me, por isso, precipitadas. No fundo, eu diria, que o seu objectivo no relativizar as cincias, mas mos- trar que podemos esperar delas tudo, at uma sabedoria.

    Porque ao mesmo tempo, no explicita, claramente, as dificuldades e opes ontolgicas e epistemolgicas prvias em que se apoia, cria no leitor mais incauto, a impresso de que falei no inicio, de que, graas a complexi- dade, a cincia se tomou, em si mesma uma sabedoria, um saber mais quali- tativo, menos causalista, mais holista e filosfico, obrigando a enterrar Descartes.

    Parece-me, igualmente, que o seu esforo em restaurar as intuies, a inteligibilidade prpria do senso comum(que a mecnica quntica far perder completamente), assim como a sua defesa dum realismo fisico, de tipo eins- teiniano, se aparentam mais com um ponto de vista mecanicista, (tal como, com d'Espagnat, o sumariei atrs), do que com a prpria opo pela comple- xidade, no seu sentido filosfico.

    Por isso, h que ser cauteloso quando se depara com um dos seus lti- mos ttulos, O fim das certezas)), que, longe de traduzir um cepticismo, por- que a cincia se tivesse tomado, subitamente, um domnio incerto, sem rigor, demonshando o falhano do projecto cartesiano e da cincia modema, repre- sentar antes a sua confiana no s na ((certeza das probabilidades)), como no dealbar de espantosas oportunidades para o conhecimento humano, s axora capaz de compreender, positivamente, a criatividade do universo envolvente. Finalmente, no tanto uma cincia com limites(e isto apesar da sua refern- cia questo da escala humana e do carcter conshuido do conhecimento) mas uma cincia poderosa e auto-suficiente que o texto nos devolve.

    Espreitemos agora e, como prometi, o que se passa na biologia.

  • 284 MARIA MANUEL ARAUJO JORGE

    Biologia e corr~plcri~lurle

    Ao contrrio dos fisicos, os bilogos convivem h muito com a com- plexidade e a auto-organizao e a promessa mais interessante que ela trs, nesse domnio, a possibilidade de, num plano positivo e mecanicista em geral e no prolongamento da fisica(clssica) e da qumica, conseguir explicar os aspectos finalizados e especficos do comportamentos vivo, sem cair nas ilu- ses e inoperncia do vitalismo.

    Voltando s minhas grelhas de anlise o que eu vou tentar ver at que ponto a noo de complexidade e auto-organizao se tomou ou no, agora na biologia, um produto susceptvel de um tratamento operacional ou se ela sobrevive a alimentando sobretudo, tal como me parece poder suceder na fsica, os nveis de explicao simblica deixando que a atitude mecanicista perdure no plano operacional.

    Da biologia (10 cristal biologia da c/tama

    H duas dcadas, quando Piaget se encontrou com N. Chomsky, F. Jacob, J. Monod, A. Danchin., J. P. Changeux e tantos outros na abadia de Royaumont para um debate que ficou clebre, era visvel que o paradigma dominante na biologia era ento mecanicista, reducionista e selectivista. A bio- logia oficial lia a vida a partir dum modelo de ordem que a imagem do cristal evocava, na sua regularidade e estabilidade e que a bioqumica e a gen- tica de ento legitimavam. A teoria da informao e a ciberntica empresta- vam-lhe metforas, como a do ((programa gentico)), na poca ainda mais ou menos viveis para perceber a sintese das protenas no genoma bacteriano, embora um certo desconforto fosse j patente 27.

    A termodinmica da vida, a maneira de Prigogine, a vida como ordem a partir da flutuao, os conceitos de auto-organizao e todas as correntes de carcter constnitivista como a de Piaget, holistas e emergentistas, eram ento olhadas com certa desconfiana 28.

    Ora eu julgo que, entretanto, os chamados modelos da vida como chama, como fumo e como equilbrio instvel entre ordem e desordem, ganharam uma muito maior legitimidade terica e operacional, o que demons- tra, alis, o poder heurstico do que, em parte, podiam parecer, na altura, sobretudo, expeculaes.

    " Cf. PIATELLI-PALMARINI, M., (org. ), Thories du langage. Thories de I ' appren- iissage, Seuil, Paris, 1979.

    Dei particular ateno a esta questo na obra, jA citada, Biologia, Infornzao e conheciinenlo e em Da Episremologia 6 Biologia, Instihlto Piaget, 1995.

  • DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORANEA 285

    Ao mesmo tempo, os progressos na construo de novos modelos mate- mticos, novas tcnicas de programao e mquinas mais poderosas (a juntar a melhor compreenso da complexidade do lado da fsica e da cintica qui- mica) vieram dar auto-organizao uma capacidade de fornecer modelos mais adequados e operatrios da complexidade do vivo e da sua filiao coe- rente na fisica e na quimica.

    Ultrapassando as dificuldades que a referncia ciberntica inicial envol- via, por demasiado deteminista, sequencial e rgida, estes novos modelos per- mitem pensar o vivo como auto-organizao, pensando-o ainda como mquina. Os aspectos holistas, emergentistas e dinmicos que pareciam escapar as abor- dagens mecanicistas, remetendo para uma viso no cientfica, porque no controlvel, so hoje, tambm em biologia, um novo objecto, um produto manipulvel conceptual e concretamente, no interior duma racionalidade cau- sal e no propriamente intencional.

    A ~~si inpl i fcno~~

  • 286 MARIA MANUEL ARAUJO JORGE

    A rediioii (10 Irolisnto filosjieo rto plarto operaciortal

    que este holismo ((equacionado)) agora uma necessidade matemtica, cujas leis de emergncia podem ser procuradas. Kauffman acha mesmo pos- svel que este objecto, por agora ainda matemtico e computacional seja, um dia, prticamente realizvel. Isso nos permitiria criar novas formas de vida abrindo uma nova era de poder na biotecnologia. (mesmo aqui repare-se, con- tunamos a sonhar cartesianamente ser como donos e possuidores da natu- reza. . .).

    A inteno calculadora e matematizante, agora com novos instru- mentos e tcticas, a confiana na existncia de leis que, uma vez conhecidas, simplificaro a nossa representao do mundo biolgico permitindo o seu domnio e mesmo ultrapassagem ainda, insisto, o sintoma de que, na pr- tica e no seu objectivo - e para l duma mudana de direco do olhar da parte para o todo emergente - persiste uma inspirao mecanicista nas inves- tigaes sobre a complexidade biolgica. Ainda aqui, uma atitude analtica, no que ela tem de heurstico, que leva Kauffman a ver, com esperana, a extenso das leis da complexidade compreenso dos ecossistemas, dos sis- temas econmicas e culturais.

    A prpria idealizao da vida como mquina(agora a inspirao da met- fora o computador) permanece:

    Ns podemos pensar o sistema gentico como um complexo computa- dor qumico mas que difere do computador familiar que tem um processa- mento em srie, e em que cada aco efectuada sequencialmente. No com- putador genmico, ao contrrio, muitos genes e os seus produtos esto activos ao mesmo tempo. Assim o sistema , de algum modo, um computador qu- mico com um processamento paralelo!)) 31.

    Tudo isto implica e isso que mais quero ressalvar, que este holismo, (esta complexidade), recuperada, matemtica e operacionalmente, j no o holismo filosfico de aroma vitalista. muito mais pobre, est reduzido a equaes no-lineares, perdeu o mistrio, perdeu a alma, no tem sequer nada de mstico, at porque simulvel numa mquina.

    Julgo que poderia ainda prolongar aqui o clebre comentrio de F. Jacob (La logique du vivant, 1970) quando dizia que a biologia no interroga a vida nos laboratrios mas os algoritmos do mundo vivo. Mas essa reduo, esse empobrecimento, essa perda de sentido que faz exactamente com que a complexidade possa ser um objecto cientfico. Por isso, parece Iegtimo insis-

    3' Id., ibid., p. 25

  • tir que, na cincia que praticamos, o plano operacional tem mais a ver com a simplicidade do que com a complexidade)), como, j h anos A. Marques acentuava3', mais ((cartesiano)) que ((prigoginiano ... .

    Concluso

    claro que, apesar de todo este meu esforo para mostrar que olhando de perto para as cincias, o mecanicismo ainda - mesmo diante dum ((para- digman emergente da complexidade - a atitude bsica para constituir o real em objecto de cincia, (o que, de certo modo, poupa Descartes) h muitos outros planos, mas que parecem sobretudo filosficos, em que a sua conde- nao a fogueira, a luz da epistemologia contempornea, pode fazer sentido: excesso de racionalismo, excesso de mtodo, de fundamentos, demasiada ana- lise, androcentrismo, etc, etc. (cf. fig. 5).

    Descartes "est vivo''

    "atilude" opcncional do cientista

    Constituio do real em objecto de cincia

    Neo-mecanicismo

    Simulao computacional da complexidade

    I Clculo do mundo I

    t Busca do "simples"

    Descartes "est morto"

    I racionalismo fundamentos mtodo anlise e teoria dualismo

    Excesso de maquinismo

    I ordem universalismo certeza e ambio androcentrismo ...

    Recusa do projecto modemista

    Fig. 5

    " Cf. MARQUES, A., A antinomia simples - complexo e Novas questes em MORIN, E., O problema epislernolgico da con~pleridade, o p cit., p. 22.

  • 288 MARIA MANUEL ARAUJO JORGE

    O mais radical, porm, ser recusar o prprio projecto do que chama- mos cincia ocidental, de todo o modernismo e das atitudes cognitivas pr- prias da cincia (como procura da objectividade, cepticismo em relao auto- ridade, etc ...). Gerald Holton resumiu tal atitude na ideia de ((anti-cincia)) que, no sendo nova, Ilie parece, hoje, uma ameaa real, j que a viso do mundo pr-cientfica do final do sculo XX se ter tomado uma posio duma minoria, enquanto um pblico, cada vez mais iletrado cientificamente e fascinado pelo irracional continua, paradoxalmente, a votar na tecnocin- cia 33.

    Menos alarmista e, pelo contrrio, congratulando-se com a hibrida e mul- tiforme paisagem cultural contempornea, Stephen Toulmin sada o esprito ps-cartesiano que nela se instalou: tal como na poca efervescente do Renascimento, ns estaramos a voltar a valores que, entretanto, havamos dei- xado para trs: a tolerncia pela incerteza, pela ambiguidade, pela diversidade. Estaramos, agora, diante dum movimento de reintegrao do homem com a natureza, ao lado dum respeito por Eros e pelas emoaes, numa decidida renncia dos fundamentalismos filosficos e da ansiedade duma procura da certeza com que Descartes contaminou a cultura moderna 34.

    Ento, Descartes est morto? Nem por isso, parece pensar Toulmin: que tudo isto estar ao nosso

    alcance, sem que este banquete de oportunidades intelectuais e culturais nos obrigue a um adeus razo ou a um regresso forado ao mundo que Descartes recusou: a escolha diz Toulmin, no hoje entre razo ou absurdo, racionalidade ou caos.

    Apesar dos riscos, que parecem no o assustar, o desafio ser antes a entrada numa nova fase de relao aberta com todas as possibilidades que se desenham diante de ns, qprendendo a viver com a incerteza e a contingn-

    " Cf. HOLTON, G., Science and anfi-science, Harvard Univ. Press., London, 1993. 34 Cf. TOULMIN, S., Co~mopolis, The Free Press, 1990. A anlise de Toulmin parece

    perfeitamente compativel com o desenho do que, por ex., entre ns, o socilogo B. Sousa Santos chama uma ((cincia ps-modema>, (embora Toulmin pretira falar em ((alta moder- nidade))) Cf. S o u s ~ SANTOS, B., IntroduCo a unra cincia ps-moderna, Afrontamento, Porto, 1989. aComo Habemas tambm propunha, precisamos de ideias emancipadoras mas tambm de um comprometimento com uma prtica igualitria. Isso implicaria, como, alis, G. Holton nota (na p. 171 do livro que citei) uma redireccionao de algumas investigaes cienlificas para uma conexo mais orgnica com os maiores problemas que afligem a esp- cie humana, uma espcie de ((investigao estratgica, contextual e tpica. Do meu ponto de visla, isso no obriga, contudo, a que para conseguimos uma certa sabedoria recuse- mos os objeclivos do projecto de conhecimento modemista. CE o meu texto As cincias e os outros territrios do saber)), em Broriria, 142 (1996), 67-89.

  • DESCARTES E A EPISTEMOLOGIA CONTEMPORNEA 289

    cia e procurando, para l do puramente racional, o razovel dum ponto de vista humano 35.

    E ento, cabe insistir na pergunta: -Descartes est vivo ou morto? Suspeito que, tal como o clebre Gato de Schrodinger 36, Descartes se

    encontra, hoje, paradoxalmente, num curioso estado de morto e, simultanea- mente, vivo ...

    jS ((Onde nos deixam estas mudanas? Alguns compatriotas de R. Descartes, escreve Toulmin, concluem que o abandono do programa cartesiano nos deixa atolados em absur- didade. (Estou a pensar nos argumentos do pequeno livro de Luor~Ro, 1. F., A condio ps-moderno). Mas argumentar assim rejeitar o canesianismo por razes puramente mar- tesians. Em vez disso, fariamos melhor se recuamios at antes do programa filos0fico de Ren Descartes, at aos seus predecessores, os humanistas dos finais do sculo XVI - nomeadamente Montaigne - e eventualmente at Aristteles: no o Aristteles dos tradu- tores latinos escolsticos, mas ao prprio Aristteles. Isto significa ir alm das estritas pre- tenses do rncionnlidnde formal (episieae), para chegar 6s mais amplas pretenses da rnzo- abilidade humana @I~ronesis) TOULMIN S., Racionalidade e razoabilidaden em C A ~ I L H O , M. M. (org. ) Reioricn e comi,nicao, Ed. Asa, Porto, 1994, p. 29.

    36 Gato de Schrodinger (paradoxo do): experincia de pensamento inventada em 1935 por E. Schrodinger para tomar manifestos, por uma situao desconcertante (um gato, enquanto nenhuma observa$o feita est num estado incerto, nem moito nem vivo), os aspectos paradoxais duma interpretao ingnua do formalismo quntico. Cf. por ex., KLEIN, E., La physique qunniique, Flammarion, Paris, 1996, p. 114.