depois do além - sapoimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias...

8
CRÓNICA 15 Domingo 24 de Maio de 2020 Naquela manhã de domingo, Sortudo e Passarinho, a consumirem uma dose suculenta de cacusso,a conversa começou diferente aos tempos exageradamente políticos, sobre fulano, rico, sem aspas(o ricaço e os nomes que daqui em diante usarei nesta crónica são fictícios). Ao folhearem a página necrológica do Jornal de Angola todos fixaram o olhar sobre a imagem do velho Mbaxi Pardal, pai de vinte e cinco filhos, dentre eles o famoso João Pardal, homem de negócios Carmo Neto Do falecido sabia-se dono de imenso rebanho. A abun- dância financeira tinha o parto na venda de pilões,be- bidas tradicionais e carne de caça. Antes da era do fran- go congelado distribuía fartas galinhas de capoeiras do- mésticas pra todos. Ao redor da casa,da terra generosa colhia ervas bas- tante e sobrava espaço pra nutrir gado que lhe dava o sabor da carne fresca a san- grar. As suculentas mangas também desprezavam a fo- me. E era com o primeiro canto do galo que iniciava seu trabalho.Foram assim gerados os vinte e cinco filhos com três esposas. No país de nascimento restam cinco. Outros afugentados pela guerra e bem sucedidos na carreira profissional vivem noutros mundos, em busca de património pessoal. Não causaria fúria a no- tícia fosse anúncio de fim de vida do João Pardal,por- que actor de vida exagerada. Quarto filho da terceira mu- lher do falecido, brincava com os pecados carnais,tan- to assim, que vivia da des- culpa permanente de ter sido atraído pelo doce da boca da prima,aparente- mente, todo zonzo, também alegava,culpa da atmosfera eléctrica, causada pelo de- cote da blusa da prima. - Virou a cara. Mas meus olhos encontraram os de- la-contava ele acrescentan- do:e outra vez ela virou a cara rapidamente. Os botões da blusa assustados abri- ram-se.Farejei o sutiã.Caímos abraçados no chão.Disse- ram-me depois que ela es- tava grávida. Era no entanto um patro- cinador de ideias de amplos futuros.Um jovem promissor sem aspas,embora dissessem naquele tempo partilhasse com algumas pessoas o con- sumo da liamba.Nunca gostou de se apetrechar de tristeza. Tinha uma biblioteca.Infeliz- mente agora com mais rata- zanas que leitores!... Também tinha uma gaiola de pássaros e um papagaio que sabia falar abaixo a pequena burguesia. Ainda atarantado com a gra- videz da prima quando os raios solares impunham a tempe- ratura além dos vinte e cinco graus,aproveitava fintar o calor com ar fresco,no terraço de casa, e nunca esquecia o cha- péu de palha de abas largas “made in Angola” com dese- nhos do Kalupeteka, que en- velheciam o seu rosto. E a seguir porque nunca gostou de acumular incum- primentos decidiu telefonar de cara mais séria pra prima a aceitara autoria da gravidez e assim saudaram o décimo segundo filho do João Pardal. Acabada de regressar de Portugal, Lena de olhos afri- canos que sondavam o ir- mão, João Pardal, sem mesmo sobrenome fami- liar,porque a correr, foi le- vada pra Europa em mil novecentos e setenta e cinco. Era-lhe cedido livre trânsito e sempre a gritar. Mais uma dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa- rosa depois de lhe ser apre- sentada gente da mesma aldeia do falecido pai, algu- mas senhoras idosas apare- ceram a saltar e a bater com os pés no chão.Impressionada quis saber se aquilo também era dança kizomba?!... -Não. Não.Epá!-excla- mou um fulano idoso. -Ė uma forma de afastar os maus espíritos, pra distrair a tristeza. Em excesso,mas preciosa prestação ao óbito,dia se- guinte, exigiu do irmão que saíssem pra compra de flores pra o funeral.Pensava ele fosse também pra afugentar a dor,mesmo porque já antes disse não regressaria sem levar suculentas mangas. A caminharem inespera- damente questionou: - Então? Quê faremos com os prédios, terrenos, Depois do Além DR DR carros e a quota no Banco Kitadi, do papá? De humor alterado,quase sem poder respirar como se tivesse asma, respondeu: -Desconheço. O papá dei- xou a casota onde nasce- mos.Sobre o que falas são todos meus bens. Vá lá ficar com a casa do papá se outros manos e manas deixarem. Pôs a mão sobre o rosto. Todo seu corpo soluçava e não mais falou a irmã,en- quanto o irmão cheio de re- volta íntima denunciada pelo rosto enrugado, já no local do óbito depois de curta au- sência contou a ocorrência ao amigo Passarinho e ouviu as seguintes palavras dele: -Não é só este assunto nos dias correntes. Muitos países já acautelam os conflitos dos óbitos com empresas que ga- rantem todo trabalho e serviço depois do além. Pagas um va- lor mensal até concluires o total, pra o teu funeral a so- nhares com Deus ou o diabo.Escolhes cor,qualidade de urna anti-salalé ou não. Com ou sem copo de água e outros etecetras escolhes en- quanto ainda vês e respiras. Surpreendido João Pardal contestou. - E quem vai me acom- panhar? A primeira,segunda ou terceira esposa? -Ó João Pardal mesmo se deverão ou não aparecer de- cotadas.De mini saia ou não no cemitério;seria boa ma- téria para os nossos legisla- dores(deputados)tratarem.Le gislarem ou não!... Mahezu,ngana!

Upload: others

Post on 21-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

CRÓNICA 15Domingo24 de Maio de 2020

Naquela manhã de domingo, Sortudo e Passarinho, a consumirem uma dose suculenta de cacusso,aconversa começou diferente aos tempos exageradamente políticos, sobre fulano, rico, sem aspas(o ricaçoe os nomes que daqui em diante usarei nesta crónica são fictícios). Ao folhearem a página necrológica doJornal de Angola todos fixaram o olhar sobre a imagem do velho Mbaxi Pardal, pai de vinte e cinco filhos,

dentre eles o famoso João Pardal, homem de negócios

Carmo Neto

Do falecido sabia-se donode imenso rebanho. A abun-dância financeira tinha oparto na venda de pilões,be-bidas tradicionais e carnede caça. Antes da era do fran-go congelado distribuía fartasgalinhas de capoeiras do-mésticas pra todos.

Ao redor da casa,da terragenerosa colhia ervas bas-tante e sobrava espaço pranutrir gado que lhe dava osabor da carne fresca a san-grar. As suculentas mangastambém desprezavam a fo-me. E era com o primeirocanto do galo que iniciavaseu trabalho.Foram assimgerados os vinte e cinco filhoscom três esposas. No país denascimento restam cinco.Outros afugentados pelaguerra e bem sucedidos nacarreira profissional vivemnoutros mundos, em buscade património pessoal.

Não causaria fúria a no-tícia fosse anúncio de fimde vida do João Pardal,por-que actor de vida exagerada.Quarto filho da terceira mu-lher do falecido, brincavacom os pecados carnais,tan-to assim, que vivia da des-culpa permanente de tersido atraído pelo doce daboca da prima,aparente-mente, todo zonzo, tambémalegava,culpa da atmosferaeléctrica, causada pelo de-cote da blusa da prima.

- Virou a cara. Mas meusolhos encontraram os de-la-contava ele acrescentan-do:e outra vez ela virou a

cara rapidamente. Os botõesda blusa assustados abri-ram-se.Farejei o sutiã.Caímosabraçados no chão.Disse-ram-me depois que ela es-tava grávida.

Era no entanto um patro-cinador de ideias de amplosfuturos.Um jovem promissorsem aspas,embora dissessemnaquele tempo partilhassecom algumas pessoas o con-sumo da liamba.Nunca gostoude se apetrechar de tristeza.Tinha uma biblioteca.Infeliz-mente agora com mais rata-zanas que leitores!... Tambémtinha uma gaiola de pássarose um papagaio que sabia falar

abaixo a pequena burguesia.Ainda atarantado com a gra-videz da prima quando os raiossolares impunham a tempe-ratura além dos vinte e cincograus,aproveitava fintar o calorcom ar fresco,no terraço decasa, e nunca esquecia o cha-péu de palha de abas largas“made in Angola” com dese-nhos do Kalupeteka, que en-velheciam o seu rosto.

E a seguir porque nuncagostou de acumular incum-primentos decidiu telefonarde cara mais séria pra primaa aceitara autoria da gravideze assim saudaram o décimosegundo filho do João Pardal.

Acabada de regressar dePortugal, Lena de olhos afri-canos que sondavam o ir-m ã o , J o ã o Pa rd a l , s e mmesmo sobrenome fami-liar,porque a correr, foi le-vada pra Europa em milnovecentos e setenta e cinco.Era-lhe cedido livre trânsitoe sempre a gritar. Mais umadentre várias presenças.

Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesmaaldeia do falecido pai, algu-mas senhoras idosas apare-ceram a saltar e a bater comos pés no chão.Impressionadaquis saber se aquilo também

era dança kizomba?!...-Não. Não.Epá!-excla-

mou um fulano idoso. -Ėuma forma de afastar osmaus espíritos, pra distraira tristeza.

Em excesso,mas preciosaprestação ao óbito,dia se-guinte, exigiu do irmão quesaíssem pra compra de florespra o funeral.Pensava elefosse também pra afugentara dor,mesmo porque já antesdisse não regressaria semlevar suculentas mangas.

A caminharem inespera-damente questionou:

- Então? Quê faremoscom os prédios, terrenos,

Depois do Além

DR

DR

carros e a quota no BancoKitadi, do papá?

De humor alterado,quasesem poder respirar como setivesse asma, respondeu:

-Desconheço. O papá dei-xou a casota onde nasce-mos.Sobre o que falas sãotodos meus bens. Vá lá ficarcom a casa do papá se outrosmanos e manas deixarem.

Pôs a mão sobre o rosto.Todo seu corpo soluçava enão mais falou a irmã,en-quanto o irmão cheio de re-volta íntima denunciada pelorosto enrugado, já no localdo óbito depois de curta au-sência contou a ocorrênciaao amigo Passarinho e ouviuas seguintes palavras dele:

-Não é só este assunto nosdias correntes. Muitos paísesjá acautelam os conflitos dosóbitos com empresas que ga-rantem todo trabalho e serviçodepois do além. Pagas um va-lor mensal até concluires ototal, pra o teu funeral a so-n h a re s c o m D e u s o u odiabo.Escolhes cor,qualidadede urna anti-salalé ou não.Com ou sem copo de água eoutros etecetras escolhes en-quanto ainda vês e respiras.

Surpreendido João Pardalcontestou.

- E quem vai me acom-panhar? A primeira,segundaou terceira esposa?

-Ó João Pardal mesmo sedeverão ou não aparecer de-cotadas.De mini saia ou nãono cemitério;seria boa ma-téria para os nossos legisla-dores(deputados)tratarem.Legislarem ou não!...

Mahezu,ngana!

Page 2: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

REPORTAGEM16 Domingo24 de Maio de 2020

FAMÍLIA CLAMA POR APOIOS

“Bangão despertou tardepara a vida”

“Nem tudo que brilha é ouro”, diz o velho ditado. Desde que o cantor Bernardo Jorge “Bangão”partiu para a eternidade, hácinco anos, aos 53 anos, vítima de doença na África do Sul, a sua família tem enfrentado inúmeros problemas financeiros.Para trás ficou uma longa carreira dedicada ao Semba. Mas a vida recheada de sucessos artísticos do “Papá”, para os mais

próximos,ou Bangão para os demais, lamentavelmente foi construída sobre “castelos de areia”

Manuel Albano

No dia 17 de Maio de 2015o país recebia, incrédulo,a notícia de que Bangãopartia para nunca mais vol-tar. Se hoje estivesse emvida o cantor seria, segu-ramente, presença obri-gatória nos principaisespectáculos, online ounão, realizados no país.

Cinco anos depois, acampa de Bangão, locali-zada no cemitério do Altodas Cruzes, em Luanda,ainda não é definitiva eestá ao “abandono”, reve-lou ao Jornal de Angola,com profunda tristeza, umadas viúvas, Felipa João José,mãe dos primeiros filhosdo cantor. “Bangão gostavade calulú com feijão de óleode palma, mas o que apa-recia na mesa ele comia”,disse tia Felipa, actual-mente desempregada.

Bangão não deixou pa-trimónio.Quando decidiufazer alguma coisa pela fa-mília, segundo a viúva, jánão teve tempo.

“Há quem pense que oBangão deixou um império,que deixou a família bem,financeiramente, mas nãoé verdade. Na percepçãode muitos, Bangão deixoubens materiais, o que tam-bém não é verdade.Estamosa passar por inúmeras di-ficuldades financeiras”, la-mentou tia Felipa.

A casa onde actualmenteFelipa José vive com os fi-lhos é herança dos pais deBangão, situação que apreocupa bastante. Ela temsobre si o fardo de cuidardos seis órfãos.

Nos últimos anos da suavida, recordou a viúva, Ban-gão pensava em mudar debairro para dar outra qua-lidade de vida à família, mas

isso ficou pela intenção.Apesar das dificuldades, do-na Felipa nunca perdeu afé. Ter casa própria para darmais conforto à família é oseu principal sonho.

Dona Felipa acredita ain-da existirem,no país,pessoasde boa-fé que lhe possamoferecer uma residência,mesmo que seja no Zango.Agradeceu o gesto solidáriodo cantor Puto Prata, quehá dois anos ofereceu aosórfãos do cantor duas bolsasde estudo. Mas uma das fi-lhas este ano, infelizmente,não se matriculou, por faltade condições financeiras epela longa distância a per-correr do Sambizanga atéao Prenda.

“Bangão gostava de plan-tas e animais, são esses ospresentes que eu mais re-cebia. Oferecia-me passa-rinhos, pombas-correio,rolas, porco índio e coelhos.

Ele tinha paciência de cuidardas plantas e dos animais”,contou a viúva.

Dona Felipa diz que temsabido conviver com a dorde não poder ter mais o Papá.“Bangão foi um pai e irmão,não tinha inimigos. Tratá-vamo-nos por Papá e Mamã”.Nos tempos livres, acres-centou dona Felipa, “Bangãotirava sempre um tempo parao lazer e para transmitir con-selhos aos filhos”.

Felipa José deu a conhecerque os fatos, chapéus e ou-tros adereços exibidos porBangão nos espectáculo-sestão guardados, para, pos-sivelmente, fazerem partede uma casa-museu. “Háalgumas iniciativas, de pes-soas amigas, que pretendemcriar uma casa-museu, masaté agora está tudo parado”.

Amigo dos filhosPara Clemente José Martins

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Correia, primogénito deBangão, o seu pai era umapessoa divertida e gostavade partilhar as suas vivên-cias com a família. Sentin-do-se privilegiado por tertido a oportunidade de tra-balhar com o pai, ClementeCorreia conta que Bangãochegava a actuar sem co-brar caché nas festas dosamigos. “O pai não parecia,mas era acanhado e nãogostava de mendigar oupedir favores a ninguém.Ele sempre nos disse quedevemos viver de acordocom aquilo que ganhamos”.

O cantor chegava a tra-balhar por amor a camisola.Muitas vezes não lhe paga-vam. “Bangão foi um patriotae não um mercenário quesó trabalha por dinheiro”,defendeu o primogénito.

“Papá”, recordou Cle-mente, com nostalgia,“sem-pre disse que o pai do vizinho

também é nosso pai e quedeveríamos respeitar os maisvelhos. Sempre que pudessenos levava a passear e parairmos chupar gelado”.

Bangão nunca forçou osfilhos a entrarem para omundo da música.

Depois da sua morte, afamília teve de se desfazerde alguns pertences seus.Os carros foram vendidose alguns dos fatos menosrelevantes distribuídos entreos familiares.

“O meu pai foi um exem-plo de cantor de sucessoque despertou tarde para avida”, lamentaram, amar-gamente, o filho e a viúva.A viúva descreve Bangãocomo um “homem de dis-curso directo, simples e quebrincava com todos. Erauma pessoa muito divertidae amiga dos filhos. Tinhasempre tempo para conver-sar e passear com eles”.

Page 3: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

KINTINO, AMIGO DE INFÂNCIA

REPORTAGEM 17Domingo24 de Maio de 2020

“Deixou a sua marca na música popular”

O que tem a dizer sobre oBangão?Foi um artista que despontounas décadas de 70 e 80, e quedeixou a sua marca indelévelna música popular angolana.O nome Bangão ele carregavadesde a infância. Desde crian-ça que o pai o vestia com fatospara ir a igreja. Era muito vai-doso e gingava. As pessoasna rua comentavam semprea sua forma de ser, por isso,chamavam-lhe Bangão.

Como o conheceu?Bangão foi meu colega edelegado de turma na pri-mária na Escola 11 , noSambizanga. Foi quandoele se apercebe que eu es-tava a aprender a tocar gui-tarra, por influência domeu pai Sebastião Quin-gueno (falecido) e dos ir-mãos mais velhos PauloSebastião Jesus e Bento Se-bastião (falecido). O meupai tinha aprendido a tocarcom o seu patrão portu-guês. Em 1974/75 Bangãovivia no bairro Brás, portrás da casa da minha mãe.Sempre que pudesse obri-gava-me a ir “roubar” aguitarra do meu pai, comameaças de me bater casonão fosse. Assim fomosnos familiarizando.

O que aconteceu com a chegadada Independência?Com a chegada da Indepen-dência Nacional muitas fa-mílias desestruturaram-se evoltamos a nos reencontrarem 1977. Nessa fase regres-samos já com um grupo deamigos do bairro, compostopor Man Pedrito, ZezinhoNoy, Zé Abílio (falecido) ManChupas (falecido) e o AndréLua (falecido). Estávamoscom 16 ou 17 anos e decidimosformar o grupo de adoles-centes denominado “Os fo-guetões”. Experimentávamostocar música popular, por in-fluência dos grandes gruposcomo Os Jovens do Prenda eOs Kiezos, que actuavam noCentro Recreativo KudissangaKuamakamba. Bangão sem-pre foi vocalista e já cantava

DR

DR

em kimbundu. Depois co-meçamos também a participarno programa infantil “Futuroda Nação”, da Televisão Pú-blica de Angola. O Yuri Simãoera um dos apresentadoresdo programa.

Quais foram as grandestransformações que o gruposofreu?Com o passar do tempo, ti-vemos de alterar o nome, porsugestão de um produtor daTPA, que reconhecia o talentona forma como o grupo tocavaas músicas de raiz. Então de-cidimos atribuir ao grupo onome “Tradição”. Tocávamosmuito nos óbitos e já chegamosa ir ao Porto Kipiri. O grupocomeçou a ter aceitação nobairro e fomos crescendo.Bangão sempre foi um gran-

Perfil de BangãoDono de uma longae rica carreiraartística, Bernardo Jorge MartinsCorreia “Bangão” é um dos músicosmais referenciados do mercadonacional, fruto, sobretudo, dosseus dois últimos discos “Sembele”e “Cuidado”.Exímio executante do estilo

Semba, no suporte textual dassuas canções apresenta narrativasautênticas de ocorrências do quo-tidiano angolano.Na sua carreiraartística passou pelo agrupamento“Tradição”, em 1974, e de 1976 a1977 integrou, como vocalista, ogrupo “Processo de África”, comGuncha (tumbas), Artur Décimo(viola baixo), Alaito (bateria) eAbílio (viola ritmo). No entanto,a sua primeira grande apariçãopública ocorre a 18 de Outubro de1978, como integrante do grupo“Os Gingas Kakulo Kalunga”.Em 1996 venceu o prémio Liceu

Vieira Dias, com o tema “Kibuikila”(Peste), acompanhado pela BandaMovimento. Em plena ascensãona carreira, Bangão é convidado,em 1999, a fazer parte da Banda

Movimento, sempre como vo-calista. No mesmo ano, ganhoua primeira edição do concursoSemba de Ouro, com a canção“Kangila” (Pássaro agoirento)e afirmou-se como cantor ecompositor com inequívocoscréditos firmados.O ano 2003 consagrou Bangão

como um dos maiores intérpretesda música popular angolana. Nesteano, no Top Rádio Luanda, ganhouos prémios Música do Ano, como tema “Fofucho” e Voz Masculinado Ano.Foi ainda reconhecidocom o Prémio Preservação, pelasua incessante defesa da músicapopular angolana. Em 2005 venceuo Top dos Mais Queridos, da RádioNacional de Angola (RNA). Nascido a 27 de Setembro de

1962, no bairro Brás, no actualdistrito urbano do Sambizanga,em Luanda, onde deu início àsua carreira musical. Bangão par-ticipou em espectáculos em Por-tugal, Argentina e Namíbia. NoBrasil dividiu o palco com ocantor Gilberto Gil.

de compositor. Muitos dosseus grandes sucessos como“Kalumba Selecta” e “Sem-bele”são composições an-tigas, das décadas de 70 e80, que só despontaram nasdécadas de 90 e 2000. Co-meçamos a receber convitespara animar as festas de bairro,mesmo no Sambizanga. De-pois fomos cumprir o serviçomilitar. Em 1991 e 1992 nosreencontramos para gravar oprimeiro trabalho de Bangãoem cassete, denominado“Emoção”, nos Estúdios daCT1 da Rádio Nacional de An-gola. Neste primeiro trabalhotoquei viola solo, ritmo e baixonos temas “Sembele”, “Minga”e “Fonseca”. Participaramtambém o Canhoto (viola bai-xo), Romão (baterista), Lan-terna (piano), Morante e Tony

DR

Cafala (coros), Luís Garcia eKito (produção executiva),Decale (apoio) e MoisésDemba (gravação). O trabalhotinha 13 temas. Nesta alturaBangão já era o “mais que-rido” do Sambizanga.

Foi nessa fase que Bangãodecidiu ir para os Gingas?Integramos, em substituiçãodos antigos elementos, oagrupamento “Progresso deÁfrica”, do mais velho An-tónio de Caxito, no Sambi-zanga, com Bangão (voz), ZéAbílio (viola ritmo), o meuirmão Jesus (viola baixo),Pedrito “Alaito” (bateria) eKintino (viola solo). O Eduínoentra em substituição domeu irmão. Estávamos naeuforia de tocar nos grupose aceitávamos todos os con-

vites. Tivemos ainda passa-gem rápida pelo grupo “NzoYami”, do mais velho Adão,que já tocava no Séngulas,nos anos 70 e 80. É nessa al-tura que Bangão vai para osGingas e começa a trilharoutros caminhos, fazendodupla com Guilhermino.Depois de alguma susten-tabilidade dos Gingas, Ban-gão decidiu fazer carreira asolo, nos anos 90. Estive naprodução musical de 90 porcento dos grandes sucessosde Bangão. Quando fundá-mos a Banda Movimento,em 1999, Bangão integra abanda como vocalista e gra-va, em 2000, o tema “Kin-jila”, distinguido como“Semba de Ouro” pela UniãoNacional dos Artistas e Com-positores (UNAC).

Page 4: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

MÚSICA18 Domingo24 de Maio de 2020

NA ONDA DOS “LIVES”

Um achado chamado “Os Jovens do Prenda”

Na sequência dos concertos online em clima de confinamento e aproveitando a disponibilidade que o Youtube e outras plataformasdigitais oferecem, achamos o “live” dos Jovens do Prenda no Show do Mês. Na verdade não foi necessário fazer uma busca, dias depois

do espectáculo, que ocorreu na tarde do primeiro sábado de Maio, eram várias as notificações e comentários nas redes sociais adescrever o acontecimento que ilustra essa evolução dos quintais do Prenda às plataformas digitais

Analtino Santos

O ritmo característico da Or-que s t ra Os J oven s doPrenda,denominação assu-mida pelos seus integrantese admiradores, está bem emevidência nas plataformasdigitais. Orquestrada pelapresença das quatro guitarrase a grande influência que temde formações como Lipolipoa,TP OK Jazz, African Fiesta eoutras, da então Repúblicado Zaire, actual RDC. Os Jo-vens do Prenda, chamandoa si o slogan de animação“Este ritmo é só nosso”, fi-zeram um desfile musicalcom mais de duas dezenasde temas, das centenas quetêm gravados.Mostraram aidentidade do seu som comcondimentos de todas as va-riantes da Música PopularUrbana Angolana, que, porcomodismo, muitos cha-mam Semba. Os elementos

do conjunto, bem como osseus admiradores, dizemque os Jovitos não são sóSemba. E enfatizam:“Esteritmo é só nosso”.

Repetindo o formato daedição anterior do Show doMês, Kizua Gourgel foi cha-mado para conduzir um pai-nel de convidados quecontaram as suas vivênciase histórias relacionadas comOs Jovens do Prenda. ManecoVieira Dias, homem do Prendae animador cultural, MiguelTumba, em representaçãodos seguidores do Show doMês e admirador do Jovitos,eDom Caetano, que teve pas-sagem no conjunto como vo-calista, foram os protagonistasda sentada.Assim foi prepa-rada a animação em primeiramão para uma tarde de sá-bado, penetrando na tradiçãodo funge do almoço de fim-de-semana, muitas vezesacompanhado com música

angolana. Os aficcionadosda formação musical, quemuito a propósito adoptou,há muito, a máxima “Quemprocura acha”, podem en-contrar facilmente o registodo concerto no Youtube ouno Facebook.

O concerto, propiciadopela parceria entre a Brasome a Nova Energia,realizou-seno espírito de outra máximados Jovens do Prenda, “Quemajuda é ajudado”, pois serviupara mitigar a carência ma-terial dos músicos e para darconforto aos amantes damúsica nesta fase de con-finamento. Importa realçarque outras iniciativas onlinebastante mediatizadas, coma participação de artistasjovens associados a grandesmarcas, estão a ser reali-zadas para angariar fundospara ajudar a populaçãomais vulnerável.

A presença dos Jovens do

Prenda na VII Temporada doShow do Mês tem um sim-bolismo que não escapou aosmais atentos, pois foi exac-tamente há três anos, na IIITemporada, que a formaçãomusical consumou a sua reu-nificação, depois de quaseuma década com os seus in-tegrantes divididos em duasalas. Foi depois do concertoda reunificação que o públicovotante do Top Rádio Luandaapostou nos Jovitos, que foicatapultado a vencedor nacategoria Melhor Show, der-rotando artistas que na alturaconquistavam as pistas dedança e produziam os seusprincipais sucessos.

Sem intriga nem invejaEntrando no concerto pro-priamente dito, a escolhapara a abertura recaiu sobre“Manhã de Domingo”,umdos instrumentais mais apre-ciados da orquestra, que caiu

DR

DR

Page 5: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

MÚSICA 19Domingo24 de Maio de 2020

Percurso carregado de místicaA Orquestra Os Jovens doPrenda é uma das formaçõesmais antigas do nosso ce-nário musical. Foi fundadaem 1968 pelos amigos ZéKeno, Chico Montenegro,Toni do Fumo, Verry Inácio,Zé Gama, Luís Neto e Didida Mãe Preta. Mas tudo co-meçou em 1964 com Os Jo-vens do Catambor, que mais

tarde juntou-se aos Jovensda Maianga, passando aJovens do Prenda em 1968,por sugestão de Manguxi,dono do Salão Braguês,no Sambizanga.

Depois da paragem em1974, regressou ao activoem 1981, apoiado pelo em-presário Kangongo. Comvários singles lançados antes

DR

DR

da Independência, Os Jo-vens do Prenda fizeram osuporte instrumental a vá-rios artistas individuais.

O grupo tem os discos“Música de Angola, Jovensdo Prenda”, de 1982, maistarde reeditado como “Mu-tudi”, “Samba-Samba”(1992), “Kudicola Kwetu”(2003) e “Iweza” (2010).

“Somos os pioneiros dos lives”“A Nova Energia foi a primeiraempresa a fazer concertos online,há 7 anos.O nosso grande objectivoé ter o maior espólio de músicaangolana ao vivo na Internet e deforma a imortalizá-la. A nossa mo-tivação é que os consumidores dofuturo possam ver os artistas dehoje e do passado a actuarem coma qualidade e exigência necessárias.Sempre achamos que ter o Showdo Mês é importante para a memóriacolectiva de todos nós.

Os momentos são de adaptação.Um músico numa performance muitogrande e não sentir os aplausos dooutro lado...Temos de conviver comisto. Temos de continuar a produzir,dar trabalho aos músicos e mostrar

aos nossos parceiros que é possívelcontinuar a dar cultura às outraspessoas. Quem não consegue pas-sear ou ir ao cinema pode conti-nuar a ouvir musica, ter acessoa literatura e a outras actividadesartísticas que fazem parte dasnossas vidas. É isto que estamosa tentar dar às pessoas. Estamosa dar cultura às pessoas.

Promotores, artistas, público,provedoras de Internet, ninguémestava preparado, todo o mundoestá a adaptar-se. A questão dalegislação também, pois é precisosalvaguardar os direitos dos artistas.Sempre reclamamos da Internet,mas nestes momentos de pico deconsumo as pessoas estão a re-

clamar menos. É normal que al-guns lives tenham falhas, mas de-vemos parabenizar as provedorasde Internet, porque algumas pes-soas têm internet 24/24 horas.

Quanto às vantagens e desvan-tagens, tudo depende do que sequer do live. Por exemplo, se forum live solidário, em que as pessoasse doam para fazer o bem, pensoque não há desvantagens. Quemproduz tem sempre um custo deprodução. Quanto a contrapartidasfinanceiras, quem puder ter apoio,tudo bem, quem não puder fazpela sua presença no mercado.Penso que é um momento maisde dar do que de receber, de plantarpara colher depois”.

Sucessos como “Farra daMadrugada”, “Samba Sam-ba”, “Nova Cooperação”,“Ilha Virgem”, “Sandra”,“Aiuê Ngongo”, “Isabel”,“Mexilhão”, “Mutudi” “Jien-da ni ubeka”, “Angélica”,e outros, fazem parte damemória musical angolanae universal.

Nos últimos dois anos

DR

YURI SIMÃO

perdeu dois dos seus mem-bros fundadores, Zé Kenoe Chico Montenegro, alémdo guitarrista Charles e ovocalista Mizinga. Tem aindano activo figuras históricascomo Didi da Mãe Preta,António Imperial “Baião”e Augusto Chacaya, que par-tilham a experiência comos mais jovens, já que car-

regam em si a mística dosJovens do Prenda. Conside-rada uma das maiores escolaspara os executantes da mú-sica angolana, pela formaçãopassaram artistas como Kin-tino, Zecax, Mingo Canhoto,Twely Bamba, Romão Tei-xeira, Julinho Vicente, Joca,Dom Pirakanda, Zé Luís,Dom Caetano e outros.

muito bem, pois foi execu-tado, entre outros, pelos trêsguardiões da mística do con-junto: António Imperial Baião,Didi da Mãe Preta e AugustoChacaya, que mostraram todaa “pulungunza” da batidados Jovens do Prenda. Estes“papoites”, como carinho-samente os trata Benjamim,o baixista,estavam acompa-nhados por Zé Mueleputo(solo), Zé Luís (guitarra ritmo),João Diloba (bateria), EuricoSandombe(teclados), EstevesBento (tambores), Tony doFumo Júnior e Miau, estesdois nos vocais. Esta é a cons-tituição actual da OrquestraOs Jovens do Prenda. A in-clusão, nos sopros, de Mam-buya Samuel (trombone),Gabriel Mumpambala (trom-pete) e Sansão Elamba(sa-xofone), jovens provenientesda escola Obra Bella, foi um-bom reforço.

Sempre que Os Jovens doPrenda sobem ao palco ouquando as suas músicas e deartistas que tiveram a suainstrumentalização, tocam,sente-se a genialidade e ovirtuosismo da malha dossolos de Zé Keno. Um outroZé, que não é de Malanje, oMueleputo, foi “entronizado”pelo mestre ainda em vida etem a missão de manter a so-noridade característica doconjunto. E ele, mais umavez, tocou, solou e encantou,reproduzindo os originais,mas deixando a sua marcade benguelense. Kizua Gour-gel, rendido, reconheceu apeculiaridade de Zé Muele-putona guitarra.

Uma outra marca dos Jo-vitos foi, é e será Chico Mon-tenegro, membro-fundadore um dos últimos tocadoresde bongós na música ango-

lana. O artista, que faleceuem Outubro do ano passado,51 anos depois da fundaçãodo grupo, não deixou de serrecordado. Teve um momentosó seu. Considerado o Rei doBolero Angolano,os seus su-cessos ficaram resumidosnuma rapsódia que juntou“Teté”, “Kalumba” e“Lucin-da”, ficando de fora “BoleroJovem”, “Isabel”e“Jienda jiaLuanda”, para não mencionaroutros lamentos que marcama sua carreira.

Augusto Chacaya tem si-do o vocalista principal daorquestra, nestes últimosanos, e encantou interpre-tando temas conhecidos.Da sua passagem pelos Asesdo Prenda nasceu “SantaYami”, que levou para osJovitos e tem apresentadoultimamente com outro an-damento. “Aubé”, “Sandra”,“Makamé” e “Jienda Já Ana-mi” fizeram parte das pro-postas do artista.

Os temas marcantes dosfinados vocalistas Gaby Mon-teiro, Zecax e Tony do Fumoforam interpretados por Tonydo Fumo Filho e Miau, artistasque dão segurança como con-tinuadores do legado. O pri-meiro, nos seus momentos,soltou os sucessos que mar-cam a trajectória artística doseu pai, fundador do conjuntocom “Waxibaba”, “Kikola”e outros temas. Miau prendeuas atenções com canções co-mo “Comboio” e “Bela” e narapsódia dedicada a ChicoMontenegro, em que parti-lhou a interpretação vocalcom Tony do Fumo Filho eJoão Daloba, o baterista.

Se a passagem de guitar-ristas notáveis como Zé Keno,Mingo, Constantino, Canhoto,Kintino e Charles, foi deter-

minante na fixação da rítmica,outra marca da Orquestra OsJovens do Prenda é a dispo-nibilidade dos instrumentistaspara cantar. Foi assim que-João Daloba (bateria), EstevesBento (tambores), os gui-tarristas Zé Luís e Baião ac-tuaram, respectivamente,nos temas “Linguidon”,“Kandima”, “Tendinha” e“Nguende Ni Ubeka”.

As apostas instrumentaisagradaram. Têm passado po-sitivamente pelo crivo dosinternautas que acessam oconcerto. Nas já citadas“Ma-nhã de Domingo” e “Flores-ta”, com Zé Mueleputo eBaião, que voltou a brilharem “Kikola”, os executantesdemonstraram habilidadenos solos. Em“2000” as gui-tarras de Zé Luís, homem doritmo, e de Mueleputo, dia-logaram com os metais, comGabriel a corresponder àquiloque Massy e companheirossopraram nos anos 80.

Como na primeira edição,Kizua Gourgel conduziu aconversa e Dom Caetano teveuma participação muito alémdo dikelengo. Recuou para asegunda metade dos anos 80do século passado com “KadioMané”, “Tia” e a interventiva“Nova Cooperação”. Yuri Si-mão e Ilídio Brás pensam “re-petir a dose”, atendendo aoconfinamento e com a claraintenção de deixar o conteúdona Internet, para a posteri-dade. Mais uma vez, a pre-sença dos Jovens do Prendaagitou as redes sociais e aquio destaque vai para os jorna-listas consagrados Graça Cam-pos, Salas Neto, Kajibangala,Gilberto Júnior e Isaías Afonso,que descreveram o passeiomusical dos Jovitos com bas-tante mestria.

Page 6: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

OFÍCIOS20 Domingo24 de Maio de 2020

ARTESÃOS DO LUBANGO NO NOVO NORMAL

Sobreviver da arte de fabricar balaios

Com a coxa direita amputada apoiada sobre a muleta, Laurindo Vicente, 45 anos, tem a atenção virada para aagulha. A perna foi-lhe amputada depois de ter sido atingido, durante a guerra, por uma bala no Gove,

município da Caála, província do Huambo. A fama de Laurindo Vicente começou na década de 2000, quandoenveredou pelo fabrico artesanal de balaios para a agricultura

Arão Martins | Lubango

Natural do Namibe e mora-dor do bairro Valódia, no Lu-bango, Laurindo Vicentetinha clientes oriundos dosmunicípios de Caluquembe,Caconda e Quipungo, zonastidas como tradicionais nocultivo do milho, massango,massambala e café. Hoje (atépouco antes do Estado deEmergência) quando visitaum parente ou amigo, prin-cipalmente nos bairros pe-riféricos da cidade, vê comsatisfação os balaios e quim-balas por si fabricados a de-corar as lojinhas e as casas.

Laurindo Vicente con-fecciona balaios para suaprópria sobrevivência. Eleconta que era muito jovemquando aprendeu a profissão.O cumprimento obrigatóriodo serviço militar fez-lheinterromper o exercício daprofissão durante algum tem-po. Depois de ser-lhe am-putada a perna, regressou

ao convívio familiar na pro-víncia do Namibe. Dadas ascircunstâncias da vida, foiobrigado a rebuscar a antigaarte de fazer balaios.

O processo de fabrico debalaios tem início com aselecção do bambu, caniços,palha de milho e palmeiras.Na escolha das plantas aespessura certa é funda-mental, explica Vicente aoJornal de Angola, acres-centando que o bambu écortado às fitas e passa porum processo de secagem.As fitas depois são tecidas.

O fabrico de cada balaio,esclarece o artesão, demora,em média, entre uma e duashoras, dependendo do ta-manho e espessura. A esposado artesão Laurindo Vicenteconta que a agilidade paraconfeccionar balaios é re-sultado de muito tempo detrabalho. Ela diz que o seumarido consegue fabricar 4a 5 peças por dia.

O artesão, por sua vez,diz que na família o ofício

começou com um tio e depoisfoi seguido por irmãos, so-brinhos e filhos.

Laurindo Vicente adaptoua tampa da fossa, num cantoda casa arrendada onde vive,e é á que fabrica os seus ar-tefactos. O balaio custa entremil e mil e 800 kwanzas,dependendo do tamanho.Se antes o negócio rendiabem, nesse período de qua-rentena, reconheceu, a rea-lidade é outra.“Os clientesvêm uma vez a outra, porcausa da quarentena. Ac-tualmente, a prioridade écomprar alimentos”.

A realidade atrapalha ascontas de Vicente, que aplicaparte dos rendimentos narenda da casa. “Vivo numacasa de renda. Pago 2.000kwanzas mensalmente. Parater o dinheiro é sacrifício. Odono cobra sempre. Às vezeso mês não terminou e o pro-prietário já vem cobrar”.

Decorativo e funcionalPai de dois filhos, Laurindo

Vicente explicou que parabordar os balaios usa fitasde atados de balão de fardo.As duas primeiras fases doEstado de Emergênc iacomplicaram-lhe o negó-cio, tudo porque o comér-cio do fardo deixou defazer parte dos serviçosmínimos prestados.

Mariano António, 50anos, é outro artesão de ba-laios, vive no bairro JoaquimKapango. Ele refere que obalaio é uma cesta que eramuito usada para carregare armazenar comida. Temtambém o status de peçadecorativa e funcional den-tro de uma casa.

O bambu, que abunda emvários municípios da pro-víncia da Huíla, é fácil deser encontrado e também éde fácil manuseio. Com eleé possível criar diversos ob-jectos, inclusive o cesto, queé uma peça feita artesanal-mente e é usada pelas donasde casa para organizar asroupas, tanto as sujas como

ARÃO MARTINS | EDIÇÕES NOVEMBRO

as limpas. Com o cesto, sa-lientou Mariano António,“tudo fica no seu lugar, sempreocupações”.

Mariano António fabricatambém balaios de palha demilho, mais fácil de manu-sear que o balaio de bam-bu.“A palha de milho é maismole”, justifica.

O Estado de Emergênciadevido ao novo coronavírusveio complicar a vida dosartesãos. Mariano Antónioexplicou que para ter materialé preciso deslocar-se, maso confinamento social com-plicou tudo.

“Sou deficiente da perna.Para ter material contavacom a ajuda de amigos, aquem comprava a preçomódico. Vivo com a esposae três filhos. Faço balaiossó para remediar a vida.As dificuldades não aca-bam. Para mim, o impor-tante é conseguir algo paracomer”, disse.

Os balaios e os cestos têmgrande procura, reconheceu

Madalena Nangombe, quevive no bairro Valódia desde1977. Ela reconhece a qua-lidade dos balaios e cestosfeitos pelos artesãos dasua área de residência. Aspessoas chegam de longepara comprar os artefactos,cada vez mais usados paraefeitos decorativos.

O balaio, segundo explica,é um cesto grande e redondo,que pode ser feito de diversosmateriais. Frisou que, como passar do tempo, o balaiofoi perdendo a função deguardar e carregar coisas,substituído por artigos deplástico com ares modernose mais sofisticados.

“Vivemos próximo deuma zona industrial, ondeestão concentrados armazénsque vendem materiais deplástico. Mesmo assim, hojeem dia, o balaio voltou comforça, por ser uma peça útilnos mais variados ambientese funções. Como, por exem-plo, na separação do milhopisado do farelo”.

Page 7: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

OFÍCIOS 21Domingo24 de Maio de 2020

Artesãos recebem ajudaOs artesãos dos bairrosVa-lódia, Joaquim Kapango eFerrovia, nos arredores dacidade do Lubango, rece-beram, recentemente, ajudaem bens alimentares, noâmbito da gestão da Covid-19. A iniciativa foi da Co-missão Técnica Provincialde Combate à Pandemia.Além dos artesãos, o pro-cesso abrangeu antigos com-batentes e veteranos dapátria, viúvas e portadoresde deficiência.

Felismina Caluvi, 90 anos,recebeu alimentos. Em nomeda avó, Mariana Caluvidisseque a doação foi uma sur-presa. “Não sabíamos de na-da. Vivo com os meus netos,filhas e avó. Por causa donovo coronavírus tudo tor-nou-se difícil. A doação sur-giu em boa altura”.

Paulo Samba, beneficiáriodo bairro Joaquim Kapango,é operador de máquina gi-ratória (Caterpillar). Traba-lhou na Empresa Nacionalde Pontes durante 23 anos.Em 1993 foi despedido. Des-de lá, nunca mais encontrouemprego. “A antiga direcçãotirou-me da empresa e omeu caso suscitou muitas

dúvidas. Os antigos colegasinterrogaram-se sobre omeu caso, já que eu eraum técnico que ensinavaos outros”.

Com três filhos e 13 netos,Paulo Samba afirmou viverde biscates. “Faço biscatede construir casas. Com achuva, não há serviço. Omal é roubar. Quem precisalimpar o quintal, eu vou.Tudo o que faço é para de-senrascar a minha vida. Coma doação, agradecemos”.

O soba do bairro Valódia,Manuel Tchambassa, disseque a principal preocupaçãoda comunidade é a falta deágua. “Não temos sonda. Àsvezes partilhamos água como gado no mesmo rio. O bair-ro tem muitas pessoas”.

O soba mostrou-se sa-tisfeito pelos alimentos en-tregues pela ComissãoTécnica de Combate à Pan-demia da Covid-19. “Naqualidade de autoridadetradicional, o nosso subsídiodemora algum tempo. DesdeJaneiro até finais de Abrilainda não caiu. Com esseapoio que recebemos ascrianças vão dormir satis-feitas”, disse.

13 mil famílias vulneráveisO administrador municipaldo

Lubango disse ao Jornal de Angolaque mais de 25 mil pessoas já be-neficiaram de apoio, no âmbitoda Covid-19. Informou que noLubango estão cadastradas 13 milfamílias em situação de vulnera-bilidade.“Não temos capacidadede dar alimentos a toda a populaçãodo Lubango, o plano é contemplaros grupos mais vulneráveis (idosos,deficientes físicos, portadores deVIH/Sida e crianças em lares)”,esclareceu Armando Vieira.

Informou que, no quadro doapoio às pessoas vulneráveis, asautoridades estão a dinamizar ascozinhas comunitárias para atenderos mais necessitados. Referiu queexistem as cozinhas comunitáriasdos bairros Ferrovia, Kuawa e Co-mercial, bem como os centros derecolhimento do projecto “Criançafeliz”, situados nos bairros Ca-lumbiro e Tchavola.

No Magistério Primário estãoconcentradas crianças e jovensde rua, que beneficiam de apoioe acompanhamento. “Todos oscentros estão a merecer um tra-

tamento especial da AdministraçãoMunicipal e do Governo Provin-cial”, garantiu Armando Vieira.

O administrador explicou queas cozinhas comunitárias já fun-cionam muito antes da Covid-19e que vai ser feito “um sacrifício”para as manter funcionais“mesmodepois da pandemia”.

Antigos combatentesA província da Huíla tem maisde cinco mil antigos comba-tentes e veteranos da pátria.Destes, 1.007 estão em situaçãode vulnerabilidade nos dife-rentes bairros do Lubango. Asadministrações comunais fazemum monitoramento permanentedos mais necessitados.

A directora do gabinete pro-vincial dos Antigos Combatentese Veteranos da Pátria, VerónicaRito, informou que a instituição“conhece bem as condiçõesdos assistidos” e que,no âmbitoda assistência recorrente aosmais vulneráveis, foi criadoum espaço para lhes fornecera cesta básica.

ARÃO MARTINS| EDIÇÕES NOVEMBRO

ARÃO MARTINS | EDIÇÕES NOVEMBRO

Page 8: Depois do Além - SAPOimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1817776477_fim-de... · dentre várias presenças. Ainda a falar alto,pesa-rosa depois de lhe ser apre-sentada gente da mesma

ABRAÇAR E PERDOAR

Somos filhos da nossa mãe: AngolaQue todos aprendemos a amarAbrimos o coração para abraçarEsquecer as mágoas e nos perdoarComo compatriotas e cidadãosMas antes de tudo como irmãos

A guerra já terminou e a paz das armas chegouVamos curar as feridas e rancoresdo passadoPara reclamarmos a reconciliaçãoque triunfouE não mais sentirmos o espíritotão pesado

Vamos nos abraçar meu amigoFrente a frente, olhos nos olhosEstamos juntos, estou contigoP'ra juntos continuarmos o legadoDeixados pelos nossos mais velhosE construirmos Angola lado a lado

Tu erraste, eu errei, nós errámosArrependidos, vamos nos perdoarVarrer as cinzas e nos abraçar

Vamos recuperar a esperançaConstruir a nossa grande naçãoSem reservas, ódios ou vingançaE cantar com amor esta canção

Vamos nos unir e juntar as mãosRogar a Deus por nós nas oraçõesPara ele nos dar força, meus irmãosPaz e amor nos nossos corações

RECONCILIAÇÃO DOS ESPÍRITOS

HOMENAGEM22 Domingo24 de Maio de 2020

Uma constelação de estrelas da nova e velha gerações do mercado musical angolano integra o projecto “Abraçare Perdoar”, criado no âmbito dos trabalhos da Comissão Nacional para a Implementação do Plano de

Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos ocorridos em Angola, desde 1975 a 2002. Osmúsicos interpretam a canção produzida para marcar esse momento reconciliatório. A produção é da KargaEventos, de Big Nelo, e as vozes são de Ary, Bambila, Carlos Lamartine, Dom Caetano, Filho do Zua, GersyPegado, Jeff Brown, Margareth do Rosário, Massoxy (Banda Movimento), Matias Damásio, Puto Português,

Sabino Henda, Selda, Walter Ananás, Yannick Afroman

Músicos cantam em memória das vítimas dos conflitos políticos