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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E SOCIOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA E DE ACONSELHAMENTO Vítimas silenciosas: crianças expostas à violência interparental Relatório de Estágio Susana Patrícia Gonçalves Gaspar nº 20130648 ORIENTADOR: Professor Doutor Tito Laneiro Universidade Autónoma de Lisboa janeiro de 2016 Lisboa

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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E SOCIOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA E DE ACONSELHAMENTO

Vítimas silenciosas: crianças expostas à violência interparental

Relatório de Estágio

Susana Patrícia Gonçalves Gaspar nº 20130648

ORIENTADOR: Professor Doutor Tito Laneiro

Universidade Autónoma de Lisboa

janeiro de 2016

Lisboa

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ii

Relatório de Estágio

Para obtenção de grau de Mestre em Psicologia

na Especialização em Psicologia Clínica e de Aconselhamento.

Susana Patrícia Gonçalves Gaspar nº 20130648

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iii

Agradecimentos

À Pelo Sonho – Cooperativa de Solidariedade Social, que possibilitou a realização do

estágio académico.

Com um carinho especial, à Equipa Técnica da Casa de Abrigo, Dra. A., Dra. M. e ao

orientador no local de estágio Dr. Mauro Paulino, por contribuírem para o meu crescimento

pessoal e profissional, mostrarem o verdadeiro sentido de espírito de equipa e me

incentivarem e orientarem durante todo o trabalho desenvolvido ao longo do estágio.

À minha família, pelo apoio incondicional.

Ao corpo docente da Universidade Autónoma de Lisboa, Prof.ª Dr.ª Odete Nunes e

Prof.ª Dr.ª Mónica Pires, pela partilha de conhecimentos, compreensão e disponibilidade no

esclarecimento de dúvidas. Em especial, ao Prof. Dr. Tito Laneiro, pela sua prontidão na

orientação do Relatório e pelas críticas construtivas.

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“E nesses momentos eu ficava parada a ver. Era uma dor muito grande e a minha

cabeça não parava (…) e cada dia parecia ser o pior da minha vida.”

(Matias & Paulino, 2013, p.133)

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Resumo

A violência doméstica é um crime de natureza pública com consequências severas nas

vítimas e nas crianças expostas à violência. O presente trabalho tem como objetivo central

abordar o fenómeno da violência doméstica, direcionado às consequências que este

representa nas crianças que estão expostas à violência interparental. Apresenta-se literatura

atual assente nos conceitos gerais da violência doméstica, assim como, na sintomatologia

apresentada pelas vítimas mulheres e crianças expostas à violência.

Tendo como referencial teórico a Abordagem Centrada na Pessoa, desenvolvida por

Carl Rogers, são descritos dois casos de crianças acolhidas em Casa de Abrigo, englobando

os acompanhamentos, avaliações e análise clínica dos mesmos. Os acompanhamentos

psicológicos produziram melhorias na sintomatologia apresentada pelas crianças. Contudo,

verificou-se a pertinência de investir no apoio psicológico fornecido às mães, no sentido do

desenvolvimento das competências parentais como forma de promover maior estabilidade

emocional às crianças.

Palavras-chave: violência doméstica; violência interparental; vítimas; crianças.

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Abstract

Domestic violence is a public crime in Portugal and represents severe consequences to

the victims and their children. This paper main objective is to approach the consequences that

this phenomenon represents to children exposed to interparental violence. Current literature is

presented based in central concepts of domestic violence as well as the symptomatology

presented by the victims, woman and children.

Taking as theoretical framework the Person Centered Approach developed by Carl

Rogers two cases of children in a shelter home will be described, covering psychological

monitoring and assessment and clinical analysis. The psychological support produced

improvements in symptoms reported by children. However, it is important to invest in the

psychological support provided to mothers, towards the development of parenting skills in

order to promote greater emotional stability to children.

Key-words: domestic violence; interparental violence; victims; children.

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vii

Índice

Agradecimentos ............................................................................................................ iii

Resumo ........................................................................................................................... v

Abstract ......................................................................................................................... vi

Índice de Anexos ........................................................................................................... ix

Introdução ...................................................................................................................... 1

I Parte – Caraterização do Local de Estágio .................................................................. 2

1.1. Pelo Sonho – Cooperativa de Solidariedade Social ............................................ 3

II Parte - Enquadramento Teórico/Revisão de Literatura .............................................. 6

2.1. Vítimas Silenciosas: Crianças Expostas à Violência Interparental ..................... 7

2.1.1. Violência Doméstica ..................................................................................... 7

2.1.2. Crianças Expostas à Violência Interparental .............................................. 14

2.2. Abordagem Centrada na Pessoa ........................................................................ 20

2.2.1. Ludoterapia Centrada na Criança ............................................................... 24

2.3. Instrumentos de Avaliação Psicológica ............................................................. 25

2.3.1. Avaliação Psicológica de Crianças ............................................................. 25

2.3.2. Avaliação Psicológica de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica ....... 27

III Parte – Trabalho de Estágio .................................................................................... 28

3.1. Casa de Abrigo Nova Esperança ....................................................................... 29

3.1.2. Papel do Psicólogo Clínico ......................................................................... 31

3.2. Desenvolvimento do Estágio ............................................................................. 33

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3.2.1. Intervenções e Avaliações Psicológicas ..................................................... 35

3.2.2. Metodologia de Apresentação dos Casos ................................................... 37

3.2.3. Caso A ......................................................................................................... 38

3.2.3.1. Dados de Identificação ......................................................................... 38

3.2.3.2. Entrevista Clínica/Anamnese ............................................................... 38

3.2.3.3. Avaliação Psicológica .......................................................................... 40

3.2.3.4. Acompanhamento Psicológico ............................................................. 47

3.2.3.5. Análise/Discussão Clínica .................................................................... 51

3.2.3.6. Reflexão Pessoal .................................................................................. 53

3.2.4. Caso B ......................................................................................................... 54

3.2.4.1. Dados de Identificação ......................................................................... 54

3.2.4.2. Entrevista Clínica/Anamnese ............................................................... 54

3.2.4.3. Avaliação Psicológica .......................................................................... 56

3.2.4.4. Acompanhamento Psicológico ............................................................. 59

3.2.4.5. Reavaliação Psicológica ....................................................................... 62

3.2.4.6. Continuação do Acompanhamento Psicológico ................................... 67

3.2.4.7. Análise/Discussão Clínica .................................................................... 67

3.2.4.8. Reflexão Pessoal .................................................................................. 68

IV Parte – Discussão e Conclusão ............................................................................... 70

4.1. Discussão e Conclusão ...................................................................................... 71

Referências ................................................................................................................... 77

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Índice de Anexos

Anexo 1 – Consentimento Informado

Anexo 2 – Caso A – Anamnese

Anexo 3 – Caso A – Teste do Desenho da Família

Anexo 4 – Caso A – Rorschach

Anexo 5 – Caso A – Relatório de Avaliação Psicológica

Anexo 6 – Caso A – Transcrição do Acompanhamento Psicológico

Anexo 7 – Caso B – Anamnese

Anexo 8 – Caso B – Teste do Desenho da Família

Anexo 9 – Caso B – Relatório de Avaliação Psicológica

Anexo 10 – Caso B – Teste do Desenho da Família – Reavaliação

Anexo 11 – Caso B – Mapa da Rede Social Pessoal – Reavaliação

Anexo 12 – Caso B – Relatório de Reavaliação Psicológica

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Introdução

As caraterísticas e a prevalência da violência doméstica em Portugal mostram a

necessidade de continuar a trabalhar no sentido de aprofundar os conhecimentos e encontrar

novas estratégias para melhorar o apoio fornecido às vítimas. Deste modo, o objetivo do

presente relatório consiste em abordar os conceitos acerca da violência doméstica,

particularmente a sintomatologia apresentada pelas vítimas mulheres e crianças expostas à

violência interparental.

Primeiramente apresentar-se-á o local de estágio, Pelo Sonho – Cooperativa de

Solidariedade Social, como forma de entendimento dos serviços prestados pela instituição.

De forma a enquadrar o trabalho realizado com as vítimas de violência doméstica,

mostra-se necessário conhecer os conceitos e sintomatologia associada. Assim, é realizada

uma revisão de literatura atual que assenta nas caraterísticas da violência doméstica, das

vítimas, agressores e, de modo particular, das crianças expostas à violência interparental, uma

vez que os casos abordados posteriormente dizem respeito a crianças acolhidas na Casa de

Abrigo.

Neste sentido, é descrito com maior profundidade, o trabalho que pode ser realizado

em contexto de Casa de Abrigo, uma vez que foi o local onde decorreu a maior parte do

estágio, assim como, todo o trabalho realizado ao longo dos meses de estágio académico. São

aprofundados dois casos de crianças acolhidas na Casa de Abrigo Nova Esperança, incluindo

a história clínica, o acompanhamento e avaliações psicológicos efetuados, análise clínica à luz

da literatura nacional e internacional e uma reflexão final.

Por último é apresentada a discussão e conclusão que aborda uma reflexão acerca do

fenómeno da violência doméstica e interparental em Portugal, assim como, de todo o trabalho

realizado ao longo do estágio académico.

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I Parte – Caraterização do Local de Estágio

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1.1. Pelo Sonho – Cooperativa de Solidariedade Social

Fundada em 1997 na sub-região da península de Setúbal, por um grupo mulheres com

o objetivo de ajudar ao outro e criar postos de trabalho na localidade, a Pelo Sonho –

Cooperativa de Solidariedade Social funciona através de várias valências que prestam o seu

apoio a diferentes níveis sociais (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

Atualmente, a Pelo Sonho tem em funcionamento 8 respostas sociais, nas quais

cooperam cerca de 60 trabalhadores/voluntários/consultores no apoio de, aproximadamente,

150 utentes (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

A Creche Sonho Azul I foi a primeira valência a ser desenvolvida, inaugurando a

criação da Pelo Sonho. É uma resposta social que se destina a acolher até 21 crianças entre

um e três anos de idade, provenientes de famílias com carências de caráter económico, social

e pessoal. A equipa da Creche I é constituída por uma Educadora de Infância, que acumula

funções de Diretora Técnica, dois Auxiliares de Educação e um Auxiliar de Serviços Gerais.

Funciona de segunda a sexta-feira, das 07.30h às 19h (Pelo Sonho Cooperativa de

Solidariedade Social, 2015).

O Centro de Acolhimento Temporário de Menores em Risco Janela Aberta (CAT)

surgiu em dezembro de 1998, pela necessidade de dar reposta às dificuldades sociais

percebidas. Acolhe até 11 crianças de ambos os géneros, em caráter temporário/transitório,

desde os zero meses de idade até aos 12 anos, que se encontram em situação de perigo

eminente subsequente de maus-tratos, abandono, negligência, e outros. O CAT fornece a estas

crianças, um ambiente acolhedor que promove o sentimento de pertença a uma família,

tentando proporcionar-lhes a satisfação de todas as necessidades. Funciona 24 horas por dia,

365 dias por ano, através de uma equipa auxiliar-educativa em turnos rotativos e uma Diretora

Técnica sempre disponível via telemóvel (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social,

2015).

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A Creche Familiar Colo de Afetos surgiu posteriormente, em agosto de 2000, com o

objetivo de acolher até 48 crianças, com idades compreendidas entre os três meses e os três

anos. As crianças são integradas em 12 Amas Familiares qualificadas, geralmente, quatro

crianças por ama familiar, que lhes fornecem os cuidados básicos necessários num ambiente

confortável. Esta valência incorpora também uma Educadora de Infância, que acumula

funções de Diretora Técnica e funciona de segunda a sexta-feira, das 07.30h às 19h (Pelo

Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

A experiência adquirida com o CAT tornou visível a necessidade de uma nova

valência, o Lar de Jovens Vida Nova, fundado em fevereiro de 2002. Esta resposta social

pretende acolher até 10 jovens (cinco raparigas e cinco rapazes), dos 12 aos 18 anos que

viveram em contexto de maus-tratos e fornecer-lhes um ambiente de segurança, carinho e

atenção. No Lar de Jovens, o apoio é constante em quaisquer áreas social, emocional,

profissional e pessoal, para que possam construir um futuro promissor. Atua 24 horas por dia,

365 dias por ano, dispondo de uma equipa auxiliar-educativa em turnos rotativos, com a

orientação de uma Diretora Técnica (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

Em novembro de 2002 foi inaugurada a Casa de Abrigo Nova Esperança, que acolhe

temporariamente e em unidade de emergência, mulheres vítimas de violência doméstica e

respetivos filhos menores, visando a proteção da sua integridade física e/ou psicológica (Pelo

Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015). Uma vez que o estágio decorreu,

maioritariamente, na Casa de Abrigo, esta valência será abordada em pormenor mais adiante.

Também no domínio da violência doméstica, a Pelo Sonho tem em funcionamento o

Gabinete de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica (GAVVD), inaugurado em

março de 2009, que proporciona um serviço de atendimento a pessoas maiores de idade que,

devido a diversos contextos económicos e relacionados com a intimidade, verifiquem o

desrespeito pelos seus direitos e dignidade humana. O GAVVD erguer-se na sequência de um

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protocolo colaborativo entre a Pelo Sonho, como entidade executora e a Câmara Municipal

(autarquia), como entidade promotora, tendo como objetivo a prática das medidas de

intervenção social municipal e da constituição do CONCIGO (Conselho Consultivo para a

Igualdade de Género e Oportunidades). Fornece informação e encaminhamento, tendo em

conta as necessidades imediatas de cada pessoa. Funciona às segundas-feiras, das 14h às

17.30h e sextas-feiras das 9h às 12.30h, sem marcação prévia. Às sextas-feiras, no período

das 14h às 17.00h, os atendimentos realizam-se mediante marcação e maioritariamente para

atendimento jurídico (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

Em outubro de 2012, ergue-se a Creche Sonho Azul II, destinada a acolher até 59

crianças, entre os quatro meses e os cinco anos, com o objetivo de ajudar e promover a

educação e o desenvolvimento infantil. Integram a Equipa Técnica, quatro Educadoras de

Infância, sendo que uma delas acumula as funções de Diretora Técnica, oito Auxiliares de

Ação Educativa, dois Auxiliares de Serviços Gerais, uma Cozinheira e um Ajudante de

Cozinha. A Creche II funciona de segunda a sexta-feira, das 07h às 19h (Pelo Sonho

Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

No mês de junho do presente ano, a Pelo Sonho inaugurou uma nova resposta social,

as Clínicas Pelo Sonho, especializadas na área da saúde, bem-estar e desenvolvimento

humano e destinadas a qualquer pessoa interessada nos serviços prestados. A equipa é

constituída por um Diretor Clínico, Especialistas Clínicos, Terapeutas e Formadores, que

prestam os seus serviços nos horários agendados com o cliente (Pelo Sonho Cooperativa de

Solidariedade Social, 2015).

As valências que atuam num regime de 24 horas por dia, 365 dias por ano, acolhem

crianças, jovens e mulheres vítimas, a qualquer hora do dia ou noite, em qualquer dia da

semana (Pelo Sonho Cooperativa de Solidariedade Social, 2015).

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II Parte - Enquadramento Teórico/Revisão de Literatura

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2.1. Vítimas Silenciosas: Crianças Expostas à Violência Interparental

2.1.1. Violência Doméstica

A violência doméstica é um conceito complexo, tornando-se difícil elaborar uma

definição indiscutível do fenómeno, uma vez que subsistem diversas tipologias, seja na

legislação, na literatura científica, ou em documentos da Organização das Nações Unidas e da

União Europeia (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

Segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV; 2000), a violência

doméstica define-se como qualquer ação de natureza criminal que comine em sofrimentos

físicos, psicológicos, sexuais ou económicos a qualquer pessoa que coabite no mesmo local

doméstico, com a qual mantenha ou tenha mantido um relacionamento análogo à dos

conjugues, namorados e companheiros e pessoas ascendentes ou descentes (Associação

Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

O conceito de violência doméstica é complexo, pelo que se mostra pertinente realizar

algumas distinções, nomeadamente, violência conjugal (VC) e violência nas relações de

intimidade (VRI). A VC compreende todas as formas de comportamento violento, exercido

por cônjuge ou ex-cônjuge, companheiro (a) ou ex-companheiro (a), sobre o outro. A VRI

abrange a violência exercida entre pessoas que estabelecem uma relação de intimidade e não

apenas de conjugalidade (Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

Uma vez que a violência pode ser exercida de múltiplas formas, independentemente do

conceito que lhe está atribuído, é possível, atualmente, denominar os vários tipos de violência,

designadamente, violência psicológica, violência física e violência sexual.

A violência psicológica engloba todos os comportamentos de violência que lesam ou

pretendem lesar a integridade psicológica, incluindo a coação e/ou ameaças de maus-tratos à

vítima, a outros (as) ou ao (à) próprio (a) agressor (a), humilhação, violência contra animais

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de estimação, destruição de objetos, perseguições, entre outras, que podem ocorrer em

contexto privado ou público (Associação de Mulheres Contra a Violência, 2013; Manita,

Ribeiro, & Peixoto, 2009).

A violência física enquadra todos os comportamentos de violência que lesam ou

pretendem lesar a integridade física, através da utilização da força física, incluindo esmurrar,

pontapear, empurrar, estrangular, puxar o cabelo, queimar, induzir ou impedir que o(a)

companheiro(a) obtenha medicação ou tratamentos médicos, entre outros, que podem ser de

menor a maior severidade, sendo que estes últimos podem resultar em lesões graves,

incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima (Associação de Mulheres Contra a

Violência, 2013; Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

A violência sexual define qualquer ação de caráter sexual imposta à vítima, contra a

sua vontade, através de ameaças, coação, força física ou outros comportamentos,

independentemente da relação que o (a) agressor (a) mantém com a mesma. Inclui o

pressionar ou forçar a ter relações sexuais, relações sexuais desprotegidas ou com outras

pessoas (Associação de Mulheres Contra a Violência, 2013; Manita, Ribeiro, & Peixoto,

2009).

A violência doméstica é um crime universal, atravessando os limites da cultura, classe

socioeconómica, educação, idade, etnia e religião (Malyadri, 2013; Martin, 2002, citado por,

Thornton, 2014). A única variação está nos padrões e tendências que existem nos países,

sendo que, grupos específicos de mulheres são mais vulneráveis à violência, nomeadamente,

grupos minoritários, mulheres indígenas, migrantes, refugiadas, institucionalizadas e com

deficiências, assim como, crianças do género feminino e idosas (Malyadri, 2013).

Atualmente, este fenómeno é considerado um problema público. Existe igualdade

entre o homem e a mulher do ponto de vista legal, nada os diferenciando. Ainda assim, essa

igualdade nem sempre é reconhecida como legítima, as tradições culturais continuam bastante

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enraizadas e o comportamento violento contra as mulheres, infelizmente permanece

(Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000). As normas e as tradições reforçam a

divisão de papéis entre homens e mulheres, sendo o papel da mulher, muitas vez, confinado à

reprodução, à esfera privada e à família (Malyadri, 2013).

As caraterísticas individuais, familiares ou socioculturais podem elevar ou diminuir a

probabilidade de ocorrência ou manutenção da violência. Estas questões denominam-se por

fatores de risco de violência doméstica. Um fator de risco isolado não certifica que a violência

ocorra ou venha a ocorrer, mas sim a combinação de vários fatores de risco, aumentado,

assim, a sua probabilidade (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

Segundo a APAV (2000), existem diversos fatores de risco que contribuem para o

desenvolvimento de um potencial agressor, nomeadamente, caraterísticas relacionadas com o

género (i.e., masculino), com os consumos de substâncias - mais precisamente quando existe

dependência de álcool e drogas - e questões de doença física ou mental (e.g., depressão,

perturbação da personalidade).

Existem também alguns traços de personalidade que podem ser considerados como

potenciadores da violência. São alguns exemplos a imaturidade e impulsividade, o reduzido

autocontrolo e fraca tolerância às frustrações, a vulnerabilidade ao stress, baixa estima de si,

expetativas irrealistas e excessiva ansiedade (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,

2000).

Os fatores socioculturais e económicos desempenham, igualmente, um papel

importante no desenvolvimento da violência, pudendo ser observados como condições

extremas. A violência pode desenvolver-se devido à dependência financeira do agressor sobre

a vítima (e.g. desemprego) ou, por outro lado, pode ocorrer quando existe uma vida social

e/ou profissional extremamente ativa que dificulta o estabelecimento de relações positivas

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com os outros. Os antecedentes de comportamentos desviantes ou histórico de violência

familiar também devem ser considerados (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

Quanto aos fatores de risco de ser vítima de violência, também se encontra presente a

condição de género, neste caso, o feminino. Adicionalmente, as caraterísticas de

vulnerabilidade, nomeadamente, no que concerne à idade e necessidades especiais (i.e.,

crianças pequenas e pessoas idosas ou com handicap) devem ser consideradas. Também se

incorporam as questões da personalidade e temperamento, quando estas se encontram

desajustadas. O consumo e dependência de substâncias, como drogas, álcool, medicação e a

presença de doença física e/ou mental (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

Muitas vezes, as vítimas também já vivenciaram um histórico de violência, na infância

ou na família de origem. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000). Segundo Ybarra,

Wilkens, & Lieberman (2007), as mulheres que estiveram expostas à violência doméstica

durante a sua infância, apresentam um número significativamente maior de ações fisicamente

violentas dirigidas a elas pelos seus parceiros masculinos, do que as mulheres que não

estiveram expostas à violência doméstica durante a sua infância (Ybarra, Wilkens, &

Lieberman, 2007).

Apesar de todos os casos serem únicos, é possível identificar fatores comuns na

dinâmica das relações violentas. Deste modo, o chamado ciclo de violência foi desenvolvido

de forma a compreender e aprofundar conhecimentos acerca do modo como as pessoas se

tornam vítimas e como se deixam permanecer numa relação violenta de forma apática e sem

conseguirem sair (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

O ciclo de violência constitui um sistema circular que se carateriza pela continuidade

no tempo, no qual se podem identificar três fases distintas pelas quais o casal passa, que

tendem a elevar-se na frequência, intensidade e perigosidade, ao longo do tempo (Associação

Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000; Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

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Primeiramente dá-se a Fase de Aumento da Tensão, a necessidade do agressor em

manter o controlo sobre a vítima gera uma intensificação da tensão, sem motivo aparente,

uma vez que qualquer pretexto serve de razão para o mesmo ser agressivo com a vítima,

criando na mesma a sensação de perigo eminente. Geralmente iniciam-se as discussões que,

com o aumento da tensão, levam à passagem ao ato violento (Associação Portuguesa de

Apoio à Vítima, 2000; Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

Na Fase do Ataque Violento ou Episódio de Violência, o ofensor agride física,

psicológica e/ou sexualmente a vítima. Esta fase tende a aumentar em frequência e

intensidade, sendo que, na maioria dos casos, começa com a agressão verbal, escalando para

os diversos tipos de violência mais grave. A vítima tende a manter-se passiva ao ataque do

agressor, aguardando que o mesmo interrompa a violência, por não obter resposta da mesma.

No término desta fase, o agressor evoca razões para justificar a agressão perpetuada à vítima,

procurando racionalizar o seu comportamento (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,

2000; Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

Inicia-se, deste modo, a Fase da Lua de Mel, Apaziguamento ou Reconciliação, onde

ocorre o pedido de desculpas do agressor pela violência que exerceu sobre a vítima,

mostrando arrependimento, através de afetos positivos e atenção, prometendo que o mesmo

não voltará a acontecer e que vai alterar o seu comportamento (Associação Portuguesa de

Apoio à Vítima, 2000; Manita, Ribeiro, & Peixoto, 2009).

Este ciclo pode perdurar por vários anos, uma vez que a decisão de abandonar ou não a

relação violenta é complexa. Existem alguns modelos explicativos que auxiliam na

compreensão dos motivos que levam à permanência das mulheres na relação. Por diversas

vezes, a vítima permanece com o agressor devido à presença de handicaps, ou seja, existe

algum tipo de impedimento psicológico. É possível também, que a vítima tenha interiorizado

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uma atitude passiva e que se culpabilize pelos problemas existentes na relação. (Associação

Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

Outra hipótese é a Teoria da Troca, que se refere ao dilema vivido pela vítima

caraterizado pela dúvida em permanecer na relação violenta ou sair, entrando numa vivência

que para ela é desconhecida. Neste processo, é o receio da falta de apoio social e comunitário,

das dificuldades económicas e de fornecer aos filhos uma educação monoparental, que se

evidência. Quanto à Teoria do Comportamento Planeado, dá-se a interiorização de uma

atitude passiva e de autoculpabilização. A vítima acomoda-se ao comportamento do

companheiro e, mesmo que por vezes reconheça o risco envolvido, existe sempre a esperança

de que o comportamento do agressor irá alterar-se (Oliveira, 2008, citado por Associação

Portuguesa de Apoio à Vítima, 2000).

A permanência numa relação na qual estão presentes constantes agressões físicas,

psicológicas e/ou sexuais apresenta consequências significativas a curto e longo prazo, na

vítima. A curto prazo, as mulheres vítimas tendem a apresentar maior medo, raiva, isolamento

e mal-estar emocional, queixas somáticas, como insónias, dores de cabeça, problemas

gastrointestinais e dor pélvica e ainda, sequelas físicas como ossos partidos e concussões

vaginais (Paiva & Figueiredo, 2003).

A longo prazo, depressão, desconfiança em relação ao género oposto, hipervigilância

aos sinais de controlo e baixa estima de si são os efeitos mais comuns quando existe violência

física e psicológica. Quando predomina a violência sexual, a mulher tende a apresentar

disfunção sexual, abuso e dependência de drogas e álcool, sintomas de stress pós traumático e

ainda sintomas dissociativos (Paiva & Figueiredo, 2003).

A experiência pela qual estas mulheres passam, afeta o seu funcionamento psicológico

(Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007) e, para além do impacto, causado diretamente pela

violência exercida sobre a mulher, existem outros fatores causadores de stress como, mudar

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de casa, perder o emprego e o término da relação, que afetam o funcionamento psicológico

das mesmas, aumentando a probabilidade de desenvolver psicopatologia (Levendosky, Huth-

Bocks, Shapiro, & Semel, 2003).

O funcionamento psicológico das vítimas desempenha um papel importante na relação

mãe-criança, pois tem impacto significativo na perceção que as mães têm acerca da

parentalidade e da vinculação com os filhos (Levendosky, Huth-Bocks, Shapiro, & Semel,

2003). As práticas parentais têm uma influência significativa na redução da sintomatologia

apresentada pelas crianças, sendo a relação mãe-criança considerado um fator protetivo

(Gewirtz, DeGarmo, & Medhanie, 2011). Segundo Levendosky, Huth-Bocks, Shapiro, &

Semel (2003), as mulheres que viveram num contexto abusivo de maior gravidade, tendem a

relatar competências parentais mais eficazes e uma vinculação mais segura com as suas

crianças. Esta questão pode ser interpretada como uma forma que as mães encontraram para

compensar a violência, fornecendo aos filhos maior atenção e responsabilidade, ou como uma

forma defensiva de as mesmas enfatizares as suas competências e a relação com os filhos, não

sendo completamente real. Estes autores referem ainda que, um estilo parental eficaz e

autoritativo apresenta efeitos positivos na vinculação mãe-criança (Levendosky, Huth-Bocks,

Shapiro, & Semel, 2003).

As crianças que estiveram expostas à violência interparental apresentam menor

interação com as mães (i.e., menos atenção focada, menos afetos positivos, menor interação

verbal e menor proximidade). Esta interação problemática com as mães pode desenvolver

uma representação negativa dos relacionamentos com os outros, uma vez que as primeiras

relações servem como modelo às posteriores (Levendosky, Huth-Bocks, Shapiro, & Semel,

2003).

Apesar de alguns estudos revelarem que elevados níveis de psicopatologia na mãe

podem intensificar os sintomas de internalização das crianças (Ybarra, Wilkens, &

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Lieberman, 2007), outros não encontraram associações significativas (Gewirtz, DeGarmo, &

Medhanie, 2011).

As vítimas de violência conjugal tendem a reportar sintomas de Post-Traumatic Stress

Disorder (PTSD) com maior frequência e severidade (Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007).

Esta perturbação causa uma sintomatologia persistente que evolve sentimentos de evitação e

entorpecimento afetivo. As mães com diagnóstico de PTSD apresentam uma menor atenção

aos sentimentos de tristeza das crianças, quando comparadas com mães sem o diagnóstico,

demonstrando menos consciência relativamente aos sentimentos das crianças, menor

aceitação desses mesmos sentimentos e menor propensão para ajudarem as crianças a lidarem

com a tristeza (Johnson & Lieberman, 2007).

2.1.2. Crianças Expostas à Violência Interparental

Quando as crianças vivem num contexto familiar no qual ocorre violência,

independentemente da tipologia, entre os progenitores/cuidadores, considera-se que as

mesmas estão expostas à violência interparental. Estas crianças vêm, ouvem ou tem

conhecimento da violência perpetrada por um dos progenitores/cuidadores contra o outro

(Centre for Children and Families in the Justice System, 2002) e estão conscientes das

situações de violência que ocorrem à sua volta e das consequências que as mesmas possuem

(Thornton, 2014).

Na investigação desenvolvida por DeBoard-Lucas & Grych (2011), as crianças

reportavam terem observado as progenitoras a serem puxadas, empurradas, pontapeadas e

socadas pelo companheiro e também presenciaram a utilização de armas, pelo mesmo, como

ameaça à mãe (DeBoard-Lucas & Grych, 2011).

A exposição à violência pode, ainda, ser agravada pela presença do risco de serem, as

próprias crianças, vitimizadas física e psicologicamente (Khatoon, Maqsood, Qadir, &

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Minhas, 2014), vivenciando maus-tratos ou negligência grave (Fórum Municipal de Cascais

contra a Violência Doméstica, 2009), sendo, muitas vezes, objetos da ira do agressor aquando

da violência interparental (DeBoard-Lucas & Grych, 2011).

Uma vez que o contexto do presente relatório aborda crianças que estão acolhidas em

Casa de Abrigo, juntamente com as suas mães, devido a presença de situação de violência

conjugal, importa referir, essencialmente, os sintomas que decorrem da exposição à violência

exercida sobre a mãe. Estas crianças vivenciam sentimentos de instabilidade e insegurança,

estão expostas e convivem com a violência diariamente, sendo importante ter em atenção

alguns dos sintomas frequentemente manifestados, que evidenciam a exposição a um

ambiente violento (Fórum Municipal de Cascais contra a Violência Doméstica, 2009).

A sintomatologia que se apresenta, maioritariamente, nestas crianças, inclui

comportamentos de internalização e externalização, como mal-estar físico (i.e. dores de

cabeça, dores de barriga), fadiga, pesadelos, preocupação excessiva com a segurança dos

membros do agregado familiar, isolamento, baixa estima de si, dificuldades de concentração,

impulsos agressivos direcionados aos outros e a si próprio, comportamentos agressivos e

violentos para com os outros, estados depressivos e crenças estereotipadas relativamente aos

papéis de género na vitimização (Fórum Municipal de Cascais contra a Violência Doméstica,

2009; Centre for Children and Families in the Justice System, 2002; Sani, 2006c). A longo

prazo, estas crianças apresentam um risco elevado de desenvolvimento de psicopatologias,

abuso de substâncias e ofensas criminais (Sani, 2006c), uma vez que a capacidade das

crianças em regular as suas emoções foi afetada e contribui para a manifestação da

agressividade de forma mais intensa e severa (Howell, 2011).

Os comportamentos de internalização são significativamente superiores nestas

crianças, comparativamente a crianças que nunca vivenciaram um contexto violento (Ybarra,

Wilkens, & Lieberman, 2007) e apresentam um risco de desenvolvimento de problemas de

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internalização, semelhante às crianças que sofrem abuso físico (Howell, 2011). Quanto aos

comportamentos de externalização tendem a ser mais intensos quando existe maior gravidade

e frequência no contexto violento a que estão expostas (Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007;

Johnson & Lieberman, 2007) mas também, estão relacionados com fatores de stress ligados a

questões do quotidiano, independentes da exposição à violência (Levendosky, Huth-Bocks,

Shapiro, & Semel, 2003).

As crianças apresentam maior probabilidade para desenvolver sintomatologia física,

nomeadamente, asma, alergias e complicações gastrointestinais (Graham-Bermann & Seng,

2005, citado por Howell, 2011), assim como, o desenvolvimento de sintomas de PTSD, isto é,

hipervigilância, ansiedade de separação e verbalizações recorrentes acerca dos eventos

traumáticos (Levendosky et al., 2002, citado por, Howell, 2011).

A exposição à violência interparental está altamente correlacionada com a

manifestação de ansiedade nas crianças, o que pode afetar a saúde física e psicológica das

mesmas, assim como, o seu desenvolvimento cognitivo (Khatoon, Maqsood, Qadir, &

Minhas, 2014) e a capacidade e disponibilidade para se relacionarem com os outros (Centre

for Children and Families in the Justice System, 2002). Deste modo, as relações com os

outros tendem a ser mais ambivalentes, comparativamente às crianças que não vivenciaram

violência interparental (Graham-Bermann, 1998, citado por Sani, 2006c).

Ao nível do funcionamento intelectual, a exposição à violência interparental tem

revelando um efeito direto nas capacidades verbais das crianças (Huth-Bocks, Levendosky, &

Semel, 2001), que obtêm valores de QI (Quociente de Inteligência) verbal significativamente

menores, comparativamente a crianças que não presenciaram um contexto violento entre os

seus progenitores/cuidadores. Este fator pode ser interpretado como um atraso na

disponibilidade da criança para aprender. Contudo, pode vir a ter implicações noutros

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contextos do desenvolvimento, nomeadamente, na interação social e no desempenho escolar

(Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007).

Adicionalmente, os sintomas regularmente apresentados pelas mães, devido à

violência perpetrada sobre elas, revelam que as mesmas se tornam menos comunicativas e

positivas com os filhos o que, por sua vez, afeta a qualidade do ambiente familiar, tornando-se

menos estimulante para a criança, afetando deste modo, o desenvolvimento das suas

capacidades intelectuais (Huth-Bocks, Levendosky, & Semel, 2001; Ybarra, Wilkens, &

Lieberman, 2007).

Mesmo que indiretamente, as crianças acabam por ser alvo de violência, uma vez que

assistem aos insultos, a queixas e lamentações, à desvalorização das figuras parentais e

ameaças de abandono do lar (Álvaro, 1997, citado por Sani, 2006c). O ambiente familiar está

relacionado com a variação da sintomatologia das crianças (Johnson & Lieberman, 2007), a

não existência de um contexto familiar que forneça suporte à criança, resulta em sentimentos

de insegurança, culpa e medo (Álvaro, 1997; Burnett, 1993, citado por Sani, 2006c).

“A Lua acabou por sofrer também indiretamente, porque, para além de, na realidade, nunca ter tido

um pai, acabou por me perder também um pouco (…) Obviamente, ela ficou com alguma mágoa, mesmo em

relação a mim, já me questionou por que é que arrastei a situação tanto tempo e por que é que não a protegi

(…)

”Lado Lunar (Matias & Paulino, 2013)

A raiva é também uma das emoções que mais surge aquando da exposição ao conflito.

A responsabilidade ou culpa dos conflitos é, maioritariamente, atribuída ao companheiro da

mãe, seguida de ambos ou até da própria criança (DeBoard-Lucas & Grych, 2011).

Os atos do agressor são, muitas vezes, justificados pelas crianças, como se o mesmo

perdesse o controlo ou devido a provocações por parte da própria vítima. O comportamento

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das crianças aquando dos conflitos é variável, por vezes, apenas deixam o local, mesmo que

fiquem atentos a ver ou ouvir o que se está a passar, ou envolvem-se no mesmo, como forma

de o tentar parar, tentando distrair o agressor, separar o casal ou recorrem a outras medidas,

tais como, chamar a polícia ou alguém de confiança (DeBoard-Lucas & Grych, 2011)

Os sentimentos para com o progenitor agressivo são bastante ambivalentes, ou seja, o

afeto coexiste com sentimentos de ressentimento e deceção, uma vez que estas crianças, além

de presenciarem a violência contra a mãe, são muitas vezes utilizadas como instrumento de

controlo da mesma (Fórum Municipal de Cascais contra a Violência Doméstica, 2009).

Algumas das táticas utilizada pelo agressor incluem a atribuição da responsabilidade

das agressões exercidas contra a vítima, à própria criança, porque, por exemplo, esta se portou

mal. Tendem a fazer referências ao comportamento da mãe de forma negativa, podem até

manter as crianças reféns ou raptá-las para afetar a vítima (Fórum Municipal de Cascais

contra a Violência Doméstica, 2009) ou utilizam-na para controlo da mãe, interrogando-a

acerca das ações da mesma (Ganley & Schechter, 1996, citado por Sani, 2006c).

Estes comportamentos do agressor visam afetar e/ou manipular a vítima, mas têm

inúmeras consequências nos filhos (Fórum Municipal de Cascais contra a Violência

Doméstica, 2009). As crianças ao serem expostas ao contexto de violência imitam e aprendem

atitudes e comportamentos agressivos. Além disso, a violência começa a ser interpretada

como normal, sendo menos sensíveis ou manifestarem menor preocupação relativamente aos

comportamentos violentos (Centre for Children and Families in the Justice System, 2002;

Fórum Municipal de Cascais contra a Violência Doméstica, 2009).

A base da saúde mental de uma criança é prejudicada quando a mesma não sente o

apoio dos pais para a proteger. A idade pré-escolar é um período onde a criança começa a

desenvolver as relações com os outros e a conhecer o autocontrolo. Inicia, assim, o

desenvolvimento da sua regulação emocional e capacidades pró-sociais. Um ambiente

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violento, pelas suas caraterísticas caóticas, comprometem o desenvolvimento emocional das

crianças, pois não existe estrutura para ensinar a controlar as emoções que desconhecem.

Neste contexto, a probabilidade de desenvolvimento da agressividade, ansiedade de

separação, dificuldades nas capacidades de empatia e na compreensão de sociais, aumenta

(Howell, 2011). Portanto, se até aos seis anos, as crianças aprendem a expressar a

agressividade, a raiva, assim como, outras emoções, a vivência num contexto violento leva a

que adquiram formas não saudáveis de expressar a sua agressividade e raiva, uma vez que

lhes são transmitidas mensagens opostas relativamente ao que devem fazer e aquilo que

observam (Centre for Children and Families in the Justice System, 2002).

Nesta idade, as crianças apresentam um pensamento egocêntrico e, deste modo, podem

vir a atribuir a violência interparental a algo que elas próprias tenham feito, o que pode

desenvolver sentimentos de culpa (Centre for Children and Families in the Justice System,

2002) e de que não são dignos de respeito e conforto (Howell, 2011). Começam também a

formar as suas ideias acerca dos papéis de género, adquiridas através das mensagens sociais,

sendo que, neste sentido, irão associá-los à violência e à vitimização. A independência que

começam a desenvolver, por exemplo, no calçar e no vestir pode ser inibida ou pode regredir

devido à instabilidade do ambiente em que se encontram (Centre for Children and Families in

the Justice System, 2002).

Por outro lado, algumas crianças são resilientes, não desenvolvem consequências

negativas da exposição à violência interparental e apresentam uma boa capacidade de

adaptação às circunstâncias a que estão expostas. A resiliência é um conceito dinâmico que

engloba a capacidade de adaptação positiva em situações adversas (Rutter, 2007, citado por

Howell, 2011). As crianças apresentam, tipicamente, maior sucesso escolar, competências

sociais e regulação emocional (Howell, 2011).

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2.2. Abordagem Centrada na Pessoa

Desenvolvida por Carl Rogers (1902-1987), a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP)

assenta na teoria da personalidade na qual existe a possibilidade de a pessoa atingir a

completa realização das suas potencialidades ao longo da sua vida. Contrariamente ao modelo

médico, que envolve a procura de uma patologia e a atribuição de um diagnóstico específico,

este modelo tem por base o desenvolvimento e crescimento humano (Cooper, O'Hara,

Schmid, & Bohart, 2013).

Na Abordagem Centrada na Pessoa, o terapeuta mantém uma postura não diretiva,

acreditando nas potencialidades da pessoa para direcionar o seu caminho (Kinget, 1977,

citado por Laneiro, 1995). Aceita as escolhas do cliente, possibilitando-o tomar as suas

decisões em conformidade com o seu projeto de vida pessoal (Nunes, 2001, citado por

Laneiro, 1995). O terapeuta fornece um ambiente que é facilitador do autoconhecimento e

crescimento da pessoa, permitindo-a mover-se em direção a uma maior autocompreensão, em

direção a escolhas mais significativas para a mudança nos comportamentos ou no

autoconceito (Cooper, O'Hara, Schmid, & Bohart, 2013).

Um dos conceitos chave da teoria da personalidade desenvolvida por Carl Rogers é o

de tendência formativa, ou seja, existe uma força no universo que direciona ao crescimento, à

complexidade e autorrealização (Rogers, 1980) A tendência formativa manifesta-se através da

tendência atualizante (Hipólito, 2011), isto é, a tendência para o desenvolvimento mais

completo e complexo das potencialidades, que se encontra presente em todos os organismos,

assim como, nos seres humanos (Rogers, 1980). É um princípio motivacional e direcional no

sentido da complexidade das capacidades e potencialidades inatas e aprendidas da pessoa

(Rogers, 1963, citado por Brodley, 1998) exprimindo-se de forma dinâmica em todos os

sistemas da pessoa, mantendo a sua organização. Funciona em condições favoráveis e

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desfavoráveis ao organismo, numa direção de conservação e fortalecimento da pessoa

(Brodley, 1998).

Maslow (1954, citado por Hipólito, 2011) refere a existência de uma tendência à

autorrealização, ou seja, ao desenvolvimento de todas as potencialidades do organismo. Neste

desenvolvimento está presente a tendência atualizante (Hipólito, 2011). As necessidades

psicológicas, de segurança, amor, estima de si estão incluídas na tendência atualizante e

revelam-se nos comportamentos e experiências da pessoa, sendo moldadas não só pela

tendência atualizante como também pelas circunstâncias interiores e exteriores à pessoa

(Brodley, 1998). Para uma máxima atualização das potencialidades é necessária a existência

de condições ótimas de atualização. Contudo, existem obstáculos que dificultam o

desenvolvimento dessas potencialidades (Hipólito, 2011).

A consciência do eu é desenvolvida na infância e com ela surge a necessidade de

consideração positiva por parte dos outros significativos. Através das suas vivências, a pessoa

começa a perceber quais as experiências que recebem uma consideração positiva e quais as

que recebem uma consideração negativa. Surgem as condições de valor, isto é, as

experiências passam a ser observadas como positivas ou negativas consoante a consideração

fornecida por parte das pessoas significativas. Assim, as experiências que vão ao encontro das

condições de valor são simbolizadas na consciência, por outro lado, as que são contrárias às

condições de valor introjetadas são percebidas de forma distorcida e/ou rejeitadas da

consciência (Rogers, 1959).

A tendência atualizante manifesta-se num subsistema denominado self (Brodley,

1998), estrutura organizada que incorpora as perceções das caraterísticas e capacidades do

indivíduo e dos conceitos de si em relação com os outros e com o ambiente (Rogers, 1951). O

self real é considerado por Hipólito (2011) como a forma como a pessoa se perceciona a si

mesma. Por outro lado, a necessidade de aceitação por parte das pessoas significativas

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denomina-se de self desejado (Thorne, 1991, citado por Laneiro, 1995). Devido às condições

de valor, algumas das experiências do organismo são rejeitadas o que leva à incongruência

entre o self e a experiência do organismo. Os juízos de valor dos outros passam a ser o critério

que a pessoa utiliza para avaliar a sua experiência (Rogers, 1959). Deste modo, as

circunstâncias influenciam a expressão mais ou menos distorcida da tendência atualizante

(Brodley, 1998) e sobre condições desfavoráveis, a atualização do self torna-se discrepante e

em conflito com a experiência do organismo, este conflito diminui a integridade da pessoa

que experimenta um conflito emocional (Brodley, 1998). As condições de valor revelam-se

obstrutoras do desenvolvimento saudável do organismo que entra em incongruência (Mearns,

2003). É nesse momento que a relação terapêutica pode ser procurada e necessária,

proporcionando ao cliente o auxílio no seu desenvolvimento, permitindo-lhe conhecer-se e

ajudar-se a si mesmo, encontrando as suas soluções (Mearns, 1994, citado por Gleitman,

Fridlund, & Reisberg, 2009).

Deste modo, são necessárias e suficientes seis condições durante todo o processo

terapêutico, para iniciar a mudança e o desenvolvimento humano. Esta mudança pretende-se

que seja no sentido de diminuir o conflito interno e do desenvolvimento de um

comportamento mais maduro. Como primeira condição o terapeuta e o cliente têm

consciência de que existe uma relação mútua, ou seja, existe contacto psicológico. Dá-se um

acesso ao mundo experiencial um do outro, compreendendo-o através daquilo que expressa,

proporcionando alterações, sejam elas conscientemente percebidas ou não. Este contacto é

obrigatoriamente mútuo e pode ser considerado como pré-condição, uma vez que as restantes

não fariam sentido na ausência deste (Rogers, 1957/2007).

Quando uma pessoa procura ajuda encontra-se num estado de vulnerabilidade e

sofrimento, deu-se uma discrepância entre a experiência real do organismo e o self da pessoa,

na medida em que representa essa experiência. Encontra-se, portanto, em incongruência,

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segunda condição da Abordagem Centrada na Pessoa. Esta incongruência pode surgir por

diversos fatores, nomeadamente, condições de valor e dificuldades no desenvolvimento ou

situações de vida (Rogers, 1957/2007). Quando pensamos no caso da violência doméstica, os

ideais de casamento perfeito e família unida e feliz presente nas mulheres vítimas entram em

conflito com a sua experiência de maus-tratos físicos, psicológicos e sexuais, acrescido pela

dependência emocional sobre uma pessoa que lhe causa sofrimento. Do mesmo modo, as

crianças também mantém uma relação ambivalente com o progenitor que, ao mesmo tempo é

afetuoso (ou não) com as crianças, mas maltrata a mãe. Os sentimentos positivos que a

criança manifesta pelo progenitor entram em conflito com a experiência de violência

interparental. Acresce-se aqui também, a negligência emocional da qual estas crianças são

alvo, uma vez que a mãe, por estar tão absorvida na sua situação conjugal, não tem

disponibilidade para fornecer o afeto que as mesmas necessitam. Existe uma necessidade de

afeto que não lhe é fornecida.

Em contraste, a terceira condição diz respeito à necessidade de congruência por parte

do terapeuta que, através da sua experiência, tem consciência de si mesmo e é genuíno na

relação terapeuta desenvolvida com o cliente. Esta condição requer um elevado nível de

autoconhecimento por parte do terapeuta para que se mantenha em constante estado de

equilíbrio (Rogers, 1957/2007).

Adicionalmente, a quarta condição diz respeito ao olhar incondicional positivo,

nomeadamente, à aceitação por parte do terapeuta de todas as experiências do cliente,

aceitando-o, sem qualquer juízo de valor, como pessoa individual com as suas próprias

experiências e sentimentos. Está relacionada com a tendência atualizante, todas as

experiências das pessoas são válidas e aceites (Rogers, 1957/2007). Ainda direcionado ao

terapeuta, este deve também desenvolver uma compreensão empática com o cliente,

compreendendo o mundo experiencial da pessoa, através do quadro de referência da mesma,

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como se fosse a experiência do terapeuta. Na compreensão empática o terapeuta sente os

medos, preocupações, angústias do cliente como se fossem as dele mesmo, mas sem nunca

deixar de ter a sua individualidade. Nesta quinta condição, o terapeuta compreende o cliente

de forma clara, possibilitando-lhe comunicar e significar as suas experiências. É considerada

um dos principais motores da mudança terapêutica e sustenta-se na confiança que o terapeuta

mantém na tendência atualizante do cliente (Rogers, 1957/2007).

Por último, é fundamental que o cliente tenha perceção da relação empática e de

aceitação manifestada pelo terapeuta (Tudor, 2011), sentindo-se compreendido, seguro da

relação estabelecida com o terapeuta e livre para se expressar (Brodley, 1998). Esta é a sexta

condição da Abordagem Centrada na Pessoa (Tudor, 2011).

Na presença das seis condições necessárias e suficientes, a pessoa desenvolve abertura

para diferentes alternativas, modifica-se e abandona os padrões comportamentais que lhe são

desfavoráveis (Brodley, 1998). As seis condições devem ser asseguradas e reavaliadas ao

longo de todo o processo terapêutico (Rogers, 1951).

2.2.1. Ludoterapia Centrada na Criança

A ludoterapia é a terapia que utiliza o brincar como forma de facilitar a autoexpressão

das crianças. Os adultos utilizam a expressão verbal de forma livre e espontânea mas, as

crianças tem maior facilidade em expressar os sentimentos e problemas através do jogo

(Axline, 1947).

Na ludoterapia não diretiva é a criança que direciona o processo terapêutico, com

oportunidade para, através dos brinquedos, libertar-se das suas tensões, frustrações,

agressividades e medos. A aceitação incondicional por parte do terapeuta, que ajuda a criança

a compreender-se melhor e a sentir-se compreendida, permite que a mesma cresça e aprenda,

por si própria, a controlar, enfrentar ou esquecer os sentimentos que lhe causam sofrimento.

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Apesar da ausência de diretividade por parte do terapeuta, este não é passivo, manifesta um

genuíno interesse pela criança, procurando compreende-la em tudo o que faz ou verbaliza

(Axline, 1947).

Segundo Axline (1947), existem oito princípios básicos que orientam o terapeuta no

processo e na relação com a criança: 1) desenvolvimento de uma relação calorosa com a

criança; 2) aceitação incondicional da criança; 3) permissividade na relação, para que a

criança se sinta livre para expressar os seus sentimentos; 4) postura de alerta para identificar e

comunicar as experiências manifestadas pela criança; 5) permitir à criança ser responsável

pelas suas decisões, acreditando sempre na sua capacidade; 6) não-diretividade, a criança

direciona e o terapeuta segue-a; 7) respeitar a duração do processo terapêutico; 8) estabelecer

as limitações estritamente necessárias e consciencializar a criança da sua responsabilidade.

Assim, as premissas da Abordagem Centrada na Pessoa estão presentes, mas

direcionadas às crianças e ao seu desenvolvimento.

2.3. Instrumentos de Avaliação Psicológica

2.3.1. Avaliação Psicológica de Crianças

A avaliação psicológica das crianças acolhidas na Casa de Abrigo é efetuada aquando

da sua entrada, tendo em conta o contexto do qual provieram e a sua idade. Existem três

escalas de avaliação psicológica, utilizadas na Casa de Abrigo, específicas para as crianças

que foram expostas à violência interparental.

Escala de Perceção da Criança dos Conflitos Interparentais (Sani, 2006b) que avalia a

perceção da criança relativamente à frequência, intensidade e resolução dos conflitos

interparentais, assim como, as suas capacidades de coping e perceção de ameaça e culpa.

Escala de Crenças da Criança sobre a Violência (E.C.C.V.; Sani, 2006a), que avalia as

crenças das crianças acerca da violência.

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Sinalização do Ambiente Natural Infantil (SANI; Sani, 2007), que permite avaliar o

sistema familiar da criança, de modo a identificar a ocorrência de situações de violência.

Contudo, estas três escalas são utilizadas em crianças a partir dos 10 anos de idade, pelo que

não foram utilizadas nos casos apresentados posteriormente.

Como alternativa às escalas e para uma avaliação mais aprofundada das crianças,

foram utilizados outros instrumentos de avaliação psicológica, descritos em seguida.

Teste do Desenho da Família permite a avaliação das relações familiares, das atitudes

e sentimentos da criança para com a sua família e, também, qual a autoperceção na

constelação familiar. Fornece dados acerca do estado afetivo da criança e da estruturação da

personalidade, assim como, permite compreender a sua representação do contexto familiar, a

maturidade psicomotora e a formação do esquema corporal. Possibilita, igualmente, conhecer

os sentimentos que a criança experiência pelos progenitores/cuidadores e outros elementos e a

forma como se perceciona na sua família (Corman, 2003).

Sistema Compreensivo do Rorschach determina o Rorschach como uma tarefa

percetivo-cognitiva, no qual se manifestam processos de tomada de decisão e resolução de

problemas que permitem aceder às estratégias de confronto e de organização psicológica da

pessoa. Permite compreender a pessoa, como individual, de forma a selecionar as estratégias e

objetivos mais adequados à mesma. Foca-se na organização e funcionamento psicológico da

pessoa e enfatiza a estrutura da personalidade, ao invés dos comportamentos. Fornece, ainda,

informação que permite, não apenas a identificação de sintomas, mas também a identificação

de fatores etiológicos que distinguem as pessoas, mesmo quando estas apresentam a mesma

sintomatologia. É um sistema autónomo face às teorias psicológicas específicas, apesar de a

sua compreensão assentar nos princípios básicos da psicologia cognitiva (Exner, 2003).

Ludodiagnóstico é um instrumento projetivo que, através da utilização de brinquedos,

permite realizar o diagnóstico da personalidade infantil. A criança expressa-se através dos

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brinquedos, possibilitando compreender os seus aspetos motores, cognitivos, afetivos e

sociais (Affonso, 2011).

Mapa da Rede Social Pessoal consiste na representação da rede social pessoal

individual, num mapa dividido em quatro quadrantes, nomeadamente, família, amizades,

relações de trabalho ou escolares e relações comunitárias. Os quatro quadrantes são descritos

em três graus de intimidade, ou seja, relações íntimas, relações com menor grau de

compromisso e relações ocasionais. Permite obter informações acerca dos relacionamentos

mais significativos para a pessoa (Alarcão & Sousa, 2007).

2.3.2. Avaliação Psicológica de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica

A avaliação psicológica das utilizadoras acolhidas na Casa de Abrigo é efetuada,

igualmente, aquando da sua entrada. Neste caso, são utilizadas também três escalas,

específicas para vítimas de violência doméstica. A Escala de Crenças sobre a Violência

Conjugal (E.C.V.C.; Machado, Matos, & Gonçalves, 2008) que avalia as crenças relativas à

violência ocorrida num contexto de relações de intimidade. A Escala de Avaliação da

Vulnerabilidade ao Stress (23 QVS; Vaz Serra, 2008), pretende avaliar a vulnerabilidade

apresentada pela pessoa aquando de uma situação indutora de stress. E o Inventário de

Sintomas Psicopatológicos (BSI; Canavarro, 2007) que acede à sintomatologia

psicopatológica em nove dimensões distintas.

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III Parte – Trabalho de Estágio

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3.1. Casa de Abrigo Nova Esperança

A Casa de Abrigo Nova Esperança é uma resposta social da Pelo Sonho – Cooperativa

de Solidariedade Social que acolhe até 20 utilizadoras, incluindo os seus filhos menores, em

regime de acolhimento temporário. Inclui ainda três vagas para utilizadoras e respetivos filhos

em unidade de emergência (Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014a).

São objetivos da Casa de Abrigo acolher temporariamente mulheres vítimas de

violência doméstica e seus filhos menores, tendo em vista a proteção da sua integridade física

e/ou psicológica. Através de um ambiente de segurança e tranquilidade, a Casa de Abrigo

proporciona às utilizadoras e crianças as condições necessárias à educação, saúde e bem-estar.

Promove o desenvolvimento de competências pessoais, profissionais e sociais das mulheres

acolhidas, tendo em conta o projeto de autonomização, que visa a reinserção familiar social e

profissional (Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014a).

Os serviços de alojamento, alimentação, higiene e proteção e segurança são

assegurados em ambos os regimes, temporário e emergencial. Adicionalmente, as utilizadoras

que são acolhidas temporariamente beneficiam de apoio psicológico e social, informação e

apoio jurídico e encaminhamento em várias áreas, nomeadamente, saúde, laboral e escolar. A

diferença deve-se ao período de permanência na Casa de Abrigo, a unidade de emergência

permite uma permanência até 72 horas, enquanto o acolhimento temporário não deve ser

superior a seis meses, exceto quando fundamentado pela Equipa Técnica, através de relatório

situacional da utilizadora, prorrogando a permanência (Casa de Abrigo Nova Esperança,

2014a).

O apoio psicológico fornecido às utilizadoras e filhos menores consiste num mínimo

de 12 sessões individuais, com regularidade semanal, após as quais é feita uma reavaliação e

decidida eventual continuidade. Em complemento, são disponibilizadas sessões grupais,

igualmente, com regularidade semanal. Sempre que se mostre necessário, pode ser realizada

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intervenção na crise. Antes de qualquer acompanhamento psicológico é realizado o

consentimento informado da utilizadora e do (s) filho (s). Durante o apoio psicológico das

utilizadoras, são feitas avaliações instrumentais e, a cada seis meses, ou aquando da saída, são

realizados relatórios de avaliação psicológica (Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014a). Os

procedimentos relativos às avaliações instrumentais e relatórios de avaliação psicológica

serão descritos mais adiante.

As tarefas domésticas, nomeadamente, a limpeza e arrumação dos quarto e espaços

comuns e organização da roupa do agregado, são da responsabilidade das utilizadoras,

mediante plano de tarefas estruturado semanalmente, ou quando necessário. As refeições nos

dias úteis são confecionadas no exterior da Casa de Abrigo e aos fins de semana e feriados

pelo Auxiliar de Ação Direta com a colaboração das utilizadoras presentes na casa (Casa de

Abrigo Nova Esperança, 2014a).

Para salvaguarda da segurança de todas as utilizadoras, não é permitido divulgar a

morada ou a localização da Casa de Abrigo, nem receber visitas na casa ou no concelho de

localização da mesma (Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014a).

A permanência na Casa Abrigo cessa quando se verificam as condições necessárias e

efetivas à reinserção das utilizadoras, quando a utilizadora manifesta vontade própria em sair,

elaborando uma declaração escrita e quando existe incumprimento das regras estabelecidas

(Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014a).

A Equipa Técnica da Casa de Abrigo é constituída por um (a) Diretor (a) Técnico (a),

um (a) Psicólogo (a) Clínico (a) e um (a) Técnico (a) Superior de Serviço Social.

A constituição da Equipa Auxiliar tem em consideração a capacidade da Casa de

Abrigo, incluindo Jurista, Motorista, Diretor de Serviços Gerais, Auxiliares de Ação Direta e

Pessoal Voluntário.

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São Entidades Parceira da Casa de Abrigo, Agrupamento de Escolas, Câmara

Municipal do Seixal, Centros de Saúde, Centro Hospitalar Lisboa Norte (Hospital D.

Estefânia), Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), Comissões de

Proteção de Crianças e Jovens, Guarda Nacional Republicana, Hospital Garcia de Orta E.P.E.,

Instituto da Segurança Social, Instituto de Emprego e Formação Profissional, Polícia de

Segurança Pública, Juntas de Freguesia do Concelho do Seixal, Tribunais Judiciais, entre

outros.

3.1.2. Papel do Psicólogo Clínico

O estágio académico foi desenvolvido, maioritariamente, na Casa de Abrigo Nova

Esperança mas também houve uma participação significativa no Gabinete de Atendimento a

Vítimas de Violência Doméstica. Assim, mostra-se pertinente a descrição do papel do

psicólogo clínico nestas duas valências.

O trabalho do psicólogo clínico nas casas de abrigo tem como objetivo central o

acompanhamento e a intervenção psicológica com as mulheres vítimas de violência doméstica

e respetivos filhos. Uma vez que o período de permanência na casa de abrigo cessa ao final de

seis meses de acolhimento, a psicologia tem um papel direcionado às problemáticas

identificadas como iminentes e de maior urgência.

Ainda que o papel do psicólogo seja, primordialmente, direcionado ao

acompanhamento e intervenção psicológica desta população, não se limita a ele. Cabe ao

psicólogo, e restantes membros da Equipa Técnica, o encaminhamento e auxílio das mulheres

vítimas, na concretização dos objetivos que visam a sua autonomização, nomeadamente ao

nível social, jurídico, da saúde, profissional e escolar.

Ao nível do apoio social, é necessária a articulação com os serviços externos, tendo

em conta as necessidades individuais de cada utilizadora. No que respeita à informação e

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apoio jurídico, é prestado sempre que solicitado pela utilizadora. A Equipa Técnica efetua

uma marcação prévia com o (a) Jurista que presta o referido esclarecimento. Quanto à área da

saúde, a Equipa Técnica diligencia a inscrição do agregado junto do Centro de Saúde, assim

como, a marcação de consultas, aquando solicitação por parte da utilizadora. Sempre que se

mostre necessário, as mesmas são acompanhadas aos serviços de saúde. Em termos

profissionais, a Equipa Técnica encaminha as utilizadoras para os serviços existentes na

comunidade, colaborando com as mesmas no local e na elaboração e envio de currículos,

sempre que solicitado. Por fim, ao nível escolar, a Equipa Técnica diligencia junto dos

agrupamentos escolares, a integração dos menores, as restantes responsabilidades cabem à

utilizadora, mas, sempre que necessite pode pedir auxílio à Equipa Técnica na resolução de

situações específicas.

Deste modo, é necessário que o psicólogo esteja familiarizado com cada um dos

processos que integram as casas de abrigo, de forma a articular com os serviços competentes.

Todo o acompanhamento e encaminhamento providenciado pela Equipa Técnica da

Casa de Abrigo procura tornar a utilizadora num agente ativo e responsável pela prossecução

do seu projeto de vida.

No GAVVD, o psicólogo clínico tem como objetivos, o atendimento e

encaminhamento das vítimas. Não se realizam acompanhamentos psicológicos, apenas

intervenção em crise. Uma vez verificada a necessidade da pessoa em beneficiar de

acompanhamento psicológico, a mesma é encaminhada, tendo em conta as suas preferências.

O atendimento às vítimas de violência doméstica consiste na compreensão do motivo

pelo qual está a pedir ajuda e o grau de risco associado ao contexto em que se encontra. Uma

vez presentes estas questões é imprescindível considerar as decisões que vítima pretende

tomar, informando-a de todas as possibilidades que lhe são acessíveis e encaminhando-a para

os serviços competentes à realização dos seus objetivos.

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No GAVVD mostra-se necessário a presença de um trabalho multidisciplinar, uma vez

que este fenómeno abrange questões, tanto psicológicas, como sociais e jurídicas, sendo

necessária a articulação com os profissionais competentes para o melhor encaminhamento da

mulher vítima.

3.2. Desenvolvimento do Estágio

Ao nível do plano de estágio, o mesmo iniciou-se a 13 de novembro de 2014 e

terminou no dia 16 de junho de 2015. O horário delineado com a instituição consistia na

realização de um horário semanal de segundas, terças e quintas-feiras das 10h às 17.30h e,

quartas e sextas das 10h às 15.30h, perfazendo um total de 33.30h semanais. A partir do mês

de fevereiro de 2015, todas as sextas-feiras, das 9h às 12.30h, o estágio decorreu no Gabinete

de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica, prosseguindo na Casa de Abrigo até as

15.30h. Contudo, este horário veio a reduzir-se desde o dia 16 de março de 2015, a partir do

qual o estágio decorreu às terças e quintas-feiras das 10h às 17.30h e sextas-feiras das 9h às

15.30h. A redução de horário foi solicitada pela discente, pela necessidade de dedicar mais

tempo à elaboração do Relatório de Estágio, mas apenas porque a diminuição do número de

horas não afetava o trabalho que estava a ser desenvolvido na instituição. Deste modo, o

estágio académico teve a duração de 745 horas, concluindo a obrigatoriedade de 500 horas

nos dois semestres letivos.

As Reuniões de Supervisão concretizaram-se às terças-feiras, às 9h, na Casa de

Abrigo, nas quais a discente teve oportunidade para colocar quaisquer dúvidas e ser

esclarecida nesse sentido.

Ao longo do estágio académico, foi possível assistir à Conferência “Violência

Doméstica e de Género: Verdades, Mitos e Tabus”, realizada a 25 de novembro de 2014, na

Câmara Municipal do Seixal e ao Seminário Internacional “Processos de Inclusão de

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Mulheres Vítimas de Violência Doméstica: Educação, Formação Profissional e

Empreendedorismo”, realizado a nove de dezembro de 2014, no Instituto Superior de

Ciências do Trabalho e da Empresa.

Até ao dia 15 de janeiro, o trabalho realizado no estágio consistia apenas na

observação da dinâmica da Casa Abrigo, obtenção de conhecimentos acerca da Violência

Doméstica, inserção de dados no IBM SPSS Statistics 20 referentes a pedidos de acolhimento

e processos das utilizadoras e auxilio às utentes em questões psicológicas, sociais, económicas

e laborais.

A observação da dinâmica da Casa de Abrigo deu-se ao longo da totalidade do estágio

e consistiu numa observação não estruturada. Permitiu à discente conhecer o quotidiano das

utilizadoras e crianças acolhidas, assim como, as relações que estabelecem entre elas, com a

Equipa Técnica e Auxiliar. Observou-se que, ao invés de um ambiente de interajuda entre

utilizadoras, uma vez que se encontravam todas em situações e com objetivos semelhantes,

muitas vezes, existiam conflitos superficiais relativos às tarefas ou por falta de entendimento

na comunicação.

Ao longo deste período observacional, a Equipa Técnica disponibilizou a bibliografia

existente na Casa de Abrigo, para que a discente aprofundasse os seus conhecimentos teóricos

acerca da violência doméstica, no que diz respeito às questões jurídicas, conceitos base,

procedimentos habituais de atendimento e encaminhamento das vítimas e regulamentação

interna à Casa de Abrigo.

A inserção de dados referente a pedidos de acolhimento permitiu compreender como a

informação é partilhada através das instituições. Os relatórios das utilizadoras são recebidos

na Casa de Abrigo, maioritariamente, via e-mail. Posteriormente são examinados pela Equipa

Técnica para compreender qual a adequabilidade do agregado na Casa de Abrigo,

considerando alguns critérios de inclusão, nomeadamente, a existência de vagas, da

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problemática da violência doméstica, de risco grave/perigo de vida e de menores. Assim

como, critérios de exclusão, ou seja, inexistência de vagas, fragilidades habitacionais,

económicas ou sociais, alcoolismo e/ou toxicodependência ativa, perturbações mentais ou

outras não compensadas e a localização da Casa de Abrigo numa zona de risco para o

agregado. Tendo em conta todos estes critérios, o agregado é admitido ou não na Casa de

Abrigo.

Relativamente aos processos das utilizadoras, aquando da entrada são recolhidas

informações relativas à identificação da utilizadora, filhos acolhidos e agressor, situação

laboral, económica, de saúde e jurídica e história e tipologia da violência.

As informações provenientes dos relatórios referentes a pedidos de acolhimento que

são recebidos na Casa de Abrigo, assim como as informações recolhidas acerca dos agregados

acolhidos, são inseridas no IBM SPSS Statistics 20, para posterior análise e elaboração de

Relatório de Execução anual. A discente, com a supervisão da Equipa Técnica, procedeu à

inserção dos dados no IBM SPSS Statistics 20, assim como, à sua análise estatística e

elaboração do Relatório de Execução de 2014.

No decorrer da totalidade do estágio, a discente observou e efetuou, com a supervisão

da Equipa Técnica, o auxilio às utilizadoras, relacionado com questões sociais, jurídicas, de

saúde, profissionais e escolares, acima descritas.

Infelizmente, não foi possível efetuar a observação das sessões de acompanhamento

psicológico, devido às questões éticas e de confidencialidade

3.2.1. Intervenções e Avaliações Psicológicas

As intervenções e avaliações psicológicas foram realizadas pela discente, com

supervisão semanal pelo Orientador de Estágio e Equipa Técnica da Casa de Abrigo.

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Iniciaram-se no dia 15 de janeiro de 2015, com a atribuição de quatro casos de crianças

acolhidas juntamente com as mães.

Nestes quatro casos, a primeira sessão consistiu na elaboração da Entrevista

Clínica/Anamnese, na qual estavam presentes a criança e a mãe. Nas três sessões seguintes

foram realizadas as avaliações psicológicas às crianças, após a análise, em reunião de

supervisão, da informação clínica adquirida na Entrevista Clínica/Anamnese. Uma vez que o

período de permanência na Casa de Abrigo cessa ao final de seis meses de integração, as

avaliações efetuadas consideraram as necessidades mais iminentes dos (as) examinados (as).

Terminada a avaliação psicológica das crianças, a discente elaborou o Relatório de

Avaliação Psicológica de cada um dos casos, que foi revisto e aceite pelo Orientador de

Estágio. Posteriormente, procedeu-se a uma sessão de devolução dos resultados, que contou

com a presença da criança e da mãe, para que fosse apresentado o Relatório de Avaliação

Psicológica e efetuado o contrato terapêutico. Os Consentimentos Informados (Anexo 1) são

elaborados aquando da entrada do agregado na Casa de Abrigo, englobando o

acompanhamento psicológico das utilizadoras e filho (s) que as acompanham.

A duração das sessões teve em consideração a idade das crianças, sendo decidido em

reunião de supervisão que, com as crianças com menos de 6 anos de idade as sessões teriam

uma duração de, aproximadamente, 30 minutos e, com as crianças a partir dos 6 anos de

idade, a duração das sessões seria de, aproximadamente, 45 minutos. Esta diferença na

duração das sessões tem em consideração o desenvolvimento da criança e a sua capacidade

para manter a atenção focada.

Todos os casos mencionados acima concluíram as 12 sessões iniciais. Adicionalmente,

duas crianças permaneceram na Casa de Abrigo após as 12 sessões, permitindo efetuar

reavaliação psicológica.

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Conforme os acolhimentos eram efetuados na Casa de Abrigo, foram concedidos três

casos de utilizadoras. O primeiro ocorreu a 19 de março de 2015, o seguinte a cinco de maio

de 2015 e o último a sete de maio de 2015.

Com as utilizadoras, a avaliação psicológica efetua-se na primeira sessão, na qual são

aplicadas as escalas E.C.V.C., 23 QVS e BSI, descritas acima. Com os resultados e

conclusões obtidas, procedeu-se à realização do Relatório de Avaliação Psicológica que foi

devolvido às utilizadoras, na segunda sessão. Esta sessão contou ainda com a elaboração do

Plano de Intervenção Individual – Projeto de Vida, que consiste num plano a curto (1º mês),

médio (2º ao 4º mês) e longo (5º ao 6º mês) prazo referente aos objetivos que a utilizadora

pretende alcançar durante o período de tempo que permanecerá na Casa de Abrigo. Este plano

permite às utilizadoras refletir acerca dos seus objetivos e competências a desenvolver para os

alcançar. Efetuou-se, também, o contrato terapêutico, no qual foi acordado com as

utilizadoras a realização de um total de 12 sessões, com ocorrência semanal e duração de,

aproximadamente, 50 minutos, sendo que, no final das 12 sessões, realizar-se-ia nova

avaliação psicológica. Contudo, os três casos foram de curta duração, uma vez que as

utilizadoras abandonaram a Casa de Abrigo.

3.2.2. Metodologia de Apresentação dos Casos

Seguidamente são apresentados dois casos de crianças que foram acompanhadas pela

discente. Em ambos foi efetuada avaliação e acompanhamento psicológico.

A apresentação dos casos A e B inicia-se com os dados de identificação da criança,

seguidos da informação obtida na Anamnese/Entrevista Clínica. Posteriormente é abordada a

avaliação psicológica efetuada, nomeadamente, os instrumentos utilizados e sua

adequabilidade ao caso descrito, resultados obtidos, conclusões da avaliação psicológica e

descrição do processo de devolução dos resultados. Como no Caso B existiram dois

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momentos de avaliação, estes são apresentados separadamente – avaliação psicológica e

reavaliação psicológica. Por último, é apresentada uma síntese do acompanhamento

psicológico, análise/discussão clínica e reflexão pessoal.

3.2.3. Caso A

(Todos os nomes mencionados são fictícios)

3.2.3.1. Dados de Identificação

Nome: Mariana

Idade: 6 anos

Género: Feminino

Nacionalidade: Portuguesa

Escolaridade: a frequentar o 1º ano do Ensino Primário

3.2.3.2. Entrevista Clínica/Anamnese

No dia 19 de janeiro de 2015 procedeu-se à realização da Entrevista Clínica/Anamnese

(Anexo 2), que contou com a presença da criança e da mãe.

A família foi acolhida na Casa de Abrigo Nova Esperança, no dia 30 de outubro de

2014, em consequência de situação de violência conjugal.

No que respeita à saúde física da criança, segundo as informações fornecidas pela

mãe, a Mariana esteve internada durante duas semanas, quando tinha cerca de cinco/seis

meses, devido a uma bronquiolite.

A gravidez foi desejada, mas vivida com preocupação, uma vez que a mãe esteve

internada aos cinco meses de gestação, devido a insuficiência renal. A Mariana nasceu com

cerca de 3,000kg, de parto normal assistido por um médico. Não teve complicações durante o

parto. Quanto à reação ao género da criança, a mãe refere que queria um rapaz, mas ficou

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contente. Clarifica que “tinha perdido os meus outros quatro filhos, era como se fosse a

primeira” (sic) [retirados pela Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em

Risco]. O progenitor reagiu de forma negativa ao nascimento da criança “não gostou. Queria

um menino” (sic).

A Mariana alimenta-se sozinha desde os três anos de idade, mas com dificuldade pois

“é preciso insistir muito com ela” (sic), sendo que tende a chorar, quando o fazem.

Começou a gatinhar aos oito/nove meses e deu os primeiros passos com um ano de

idade. A mãe refere que “começou a gatinhar muito tarde” (sic). Atualmente, é autónoma no

vestir e despir e trata da sua higiene pessoal, exceto o banho. A primeira palavra ocorreu aos

seis meses e, atualmente é uma criança que articula de forma correta as palavras, tendo em

consideração a sua faixa etária.

No que diz respeito ao controlo dos esfíncteres, a Mariana controla a urina desde os

três anos e as fezes desde os dois anos de idade. Quanto ao sono, habitualmente dorme 12

horas, de forma agitada “fala muito” (sic), mas raramente acorda durante a noite.

A mãe descreve a Mariana como uma criança que se adapta bem à novidade e à

mudança, desenvolve rapidamente rotinas regulares de sono e de alimentação, mas reage

inicialmente mal a novos alimentos. Na relação com os outros, é uma criança que sorri e

contacta facilmente com estranhos. Aceita a maior parte das frustrações com um mínimo

desagrado e adapta-se rapidamente às regras de novos jogos. Segundo a mãe, a Mariana é

curiosa e tem facilidade em tomar iniciativas, sendo que apenas pede ajuda aos adultos para

resolver dificuldades pontuais. Não apresenta alterações do humor significativas, estando

regularmente bem-disposta.

A Mariana é a quinta filha de uma fratria de sete irmãos. Tem uma relação próxima

com o irmão Bernardo (4 anos) e a irmã Mónica (2 anos), descendentes dos mesmos

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progenitores. Não conhece os restantes irmãos uterinos, mas tem conhecimento da sua

existência.

A relação com o progenitor é descrita como “boa” (sic), sendo que a mãe considera

que a Mariana sempre teve uma melhor relação com o pai. Acrescenta que a menor a

culpabiliza por estar longe do progenitor, “não deixo ver o pai” (sic). Enfatiza que a separação

do mesmo foi bastante significativa para a criança.

A Mariana tem facilidade em relacionar-se, com as outras crianças e adultos e prefere

brincar com outras crianças do que sozinha.

Frequentou a creche com três anos e neste momento encontra-se a frequentar o ensino

primário. Em ambos, não teve problemas de adaptação. Atualmente, o nível de

aproveitamento da Mariana é reduzido.

Segundo a mãe, a Mariana apresenta choro fácil e frequente “quando não quer fazer

alguma coisa” (sic) e tem medo do escuro.

3.2.3.3. Avaliação Psicológica

Tendo em conta as informações obtidas na Entrevista Clínica/Anamnese, procederam-

se a três sessões de avaliação psicológica, apenas com a criança, onde foram aplicados o Teste

do Desenho da Família, o Sistema Compreensivo do Rorschach e Ludodiagnóstico.

A Mariana provém de um contexto familiar violento, desde o seu nascimento, assistia

a agressões físicas e psicológicas exercidas pelo seu progenitor contra a sua progenitora. A

utilização do Teste do Desenho da Família permite obter informações acerca da perceção da

criança relativamente ao seu contexto familiar e de que modo este se poderá ter revelado

como traumatizante para a mesma. Quando ocorre violência interparental, muitas vezes, as

mães tem dificuldade em dar a atenção necessária aos filhos. O Teste do Desenho da Família

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permite compreender qual a posição em que a Mariana se coloca no seu contexto familiar,

compreendendo, assim, se a mesma se sente integrada no seio familiar e, possivelmente,

averiguar a existência de negligência por parte dos progenitores.

Permite também compreender os seus afetos, percebendo de que modo o facto de

assistir à violência exercida pelo progenitor teve impacto nos sentimentos que a mesma

mantém por ele. Além do mais, possibilita também compreender os afetos que a Mariana tem

pela sua mãe, de modo a aprofundar de que forma, a atribuição de culpa pelo afastamento do

progenitor, afetou a relação de ambas.

O Teste do Desenho da Família apresenta-se com uma fase onde a criança é livre de

projetar, através de uma família imaginária, os desejos relativamente à sua família real, sendo

possível comparar ambos os desenhos e entender as suas idealizações.

O Rorschach permite a avaliação da personalidade da criança, identifica a

sintomatologia presente e os seus fatores etiológicos. É um instrumento que nos permite obter

muita informação acerca do estado clínico das pessoas através do método projetivo. Contudo,

o Rorschach não se encontra validado para crianças portuguesas o que pode trazer limitações

na análise dos resultados obtidos. Segundo Silva & Dias (2007) a tabela normativa do Sistema

Compreensivo do Rorschach não inclui muitas das repostas dos protocolos de crianças

portuguesas e o número de repostas tende a ser muito menor, comparativamente à população

infantil americana. Desse modo, uma análise universal pode limitar as informações obtidas

(Silva & Dias, 2007).

Como alternativas ao Rorschach, podiam ter sido utilizados um dos seguintes testes

projetivos, destinados a crianças. O Pata Negra, desenvolvido por Louis Corman, avalia a

personalidade com foco nos aspetos do desenvolvimento infantil, permitindo aceder aos

afetos da criança (Cegoc, 2012-2015b). O Teste de Aperceção Infantil – versão com animais

(CAT-A) – desenvolvido por Henry Alexander Murray et al., avalia a personalidade,

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nomeadamente, os impulsos, emoções, sentimentos, entre outros, permitindo aceder à

sintomatologia presente na criança (Cegoc, 2012-2015a).

O Ludodiagnóstico permite compreender os aspetos motores, cognitivos, afetivos e

sociais da criança (Affonso, 2011), através de atividades lúdicas não diretivas. Possibilita

também o estabelecimento da relação terapêutica com a criança, oferecendo-lhe aquele tempo

e espaço para brincar com o que tem à sua disposição e age como facilitador da próxima

etapa, a ludoterapia.

3.2.3.3.1. Teste do Desenho da Família

A realização do Teste do Desenho da Família (Anexo 3) realizou-se no dia 26 de

janeiro de 2015. Aquando da solicitação para a elaboração dos desenhos da família imaginária

e da família real, a Mariana adere com facilidade à tarefa.

Apesar de aceitar realizar o desenho da família imaginária com facilidade, hesita

durante algum tempo antes de começar. Enquanto vai desenhando as personagens nomeia-as,

“é um cão, é um gato” (sic), desenhando uma família de animais. Ao terminar, mostra-se

colaborante e interessada em responder a todas as perguntas.

Da análise geral do desenho, constata-se uma amplitude do traço reduzida, assim como

a força do traçado, o que revela alguma inibição, introversão e timidez na realização do

desenho (Corman, 2003). É constituído por estereotipias, repetindo os mesmos traços

simétricos em todas as personagens, o que pode representar falta de espontaneidade na

realização do desenho (Corman, 2003). As personagens são desenhadas afastadas umas das

outras, ocupando cada um o seu espaço com a sua tarefa individual, não havendo interação

(Font, 1978).

A personagem desenhada em primeiro lugar é, no entanto, aquela que aparece menos

investida em detalhes e à qual a criança fornece menos informação.

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A Mariana coloca o nome da irmã (Mónica) na personagem que desvaloriza, o que

pode indicar algum conflito de rivalidade fraternal (Font, 1978) e/ou a irmã ser vista como o

centro da família, uma vez que é a única mencionada.

A Mariana demonstrou contentamento quando lhe foi solicitado que desenhasse a sua

família real. Sem hesitações, começou por desenhar o progenitor, depois a mãe, a irmã

Mónica, o irmão Bernardo e verbaliza “Eu acho que me esqueci de alguém... eu” (sic),

desenhando-se a si própria em último lugar. Ao terminar, mostra-se colaborante e interessada

em responder a todas as perguntas.

A figura paterna surge valorizada, sendo desenhada em primeiro lugar, na posição

inicial à esquerda da família, revela um físico maior e é maioritariamente mencionada no

questionário. Deste modo, o progenitor é percebido como o mais importante da família

(Corman, 2003). Uma vez que se identifica com o progenitor do género oposto, esta

identificação poderá dever-se à existência de uma estrutura mais autoritária e rígida (Font,

1978). Nas respostas ao questionário, a figura paterna é mencionada também como a

preferida.

Desenha-se a si mesma em último lugar, o que sugere baixa estima de si e

desvalorização pessoal, não se sentindo como figura significativa e integrante do contexto

familiar (Corman, 2003).

Alterou a hierarquia de irmãos, desenhando a irmã mais nova a seguir aos pais e mais

próxima dos mesmos, considerando-a privilegiada (Font, 1978), coincidindo com o observado

no desenho da família imaginária.

3.2.3.3.2. Teste de Rorschach

A realização do Teste de Rorschach (Anexo 4) decorreu no dia 06 de fevereiro de

2015. Durante a realização da prova, a Mariana mostrou-se interessada e colaborante.

Registou-se um comprometimento ao nível da tríade cognitiva, assim como, do controlo e

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tolerância ao stress, aspetos afetivos, perceção de si e das relações interpessoais, sendo que,

apresenta positivo o Índice de Pensamento e Perceção (Exner, 2003).

A Ideação refere-se à forma como o sujeito concetualiza e utiliza a informação. A

Mariana apresenta instabilidade emocional e concreção extremas do pensamento que

contrariam o comportamento adaptativo (Exner, 2003).

A Mediação Cognitiva diz respeito às atividades de tradução ou identificação da

informação. A criança simplifica excessivamente as suas perceções, percebidas como

complexas ou ambíguas, evitando, assim, processar a emoção e deixar-se invadir pelos afetos.

Este estilo promove uma negligência na interpretação da informação e, como tal, pode criar

um potencial para uma elevada frequência de comportamentos que não coincidem com as

exigências e expetativas sociais (Exner, 2003).

A Mariana tem tendência a ver as coisas de forma menos convencional, mais

individualista, mesmo em situações simples ou definidas com precisão, o que pode ocorrer

por incapacidade ou dificuldade em expressar respostas demasiado obvias, ou devido a um

excessivo autocentramento, sendo as suas perceções em função das suas necessidades (Exner,

2003).

Quanto ao Processamento da Informação, ou seja, à forma como incorpora a

informação proveniente do exterior, a Mariana reflete uma atitude mais defensiva,

resguardada e de evitação, que pode ser circunstancial ou constituir um estilo de

funcionamento. Possui um baixo nível de motivação e iniciativa e dá pouca importância aos

detalhes que se impõem percetivamente, apresentando rigidez (Exner, 2003).

Relativamente ao Controlo e Tolerância ao Stress, isto é, à capacidade para utilizar e

disponibilizar recursos de acordo com a exigência das situações, a Mariana apresenta maior

vulnerabilidade para perder o controlo e desorganizar-se em situações de stress, pois tem à

sua disponibilidade menos meios dos requeridos para fazer frente aos seus disparadores

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internos de tensão. Apresenta assim, uma vulnerabilidade crónica para a impulsividade

ideacional e afetiva, funcionando de forma positiva, por períodos extensos apenas na presença

de ambientes altamente estruturados e rotineiros, nos quais possa ter alguma sensação de

controlo, e de forma negativa em situações novas (Exner, 2003).

Sente-se indefesa perante qualquer situação complexa, uma vez que não dispõe de

recursos disponíveis para organizar comportamentos, sendo muito mais vulnerável à

desorganização. Deste modo, as suas relações interpessoais caraterizam-se por

superficialidade e cautela. Isto poderá criar uma vulnerabilidade ao stress, uma vez que não

sente o apoio e a proximidade do outro e as relações interpessoais poderão constituir fonte de

stress (Exner, 2003).

Os Aspetos Afetivos medeiam toda a atividade psicológica, interferindo no

pensamento, nas decisões e no comportamento em geral. A Mariana tende a evitar o contacto

com as outras pessoas, sentindo-se incomodada nas relações interpessoais. Desse modo,

interioriza em excesso descargas e trocas afetivas que deveriam ser exteriorizados,

aumentando a tensão interna e favorecendo a somatização, devido aos conflitos internos

(Exner, 2003).

A Perceção de Si refere-se à estima de si e autoimagem. A criança tem um sentimento

negativo sobre o seu valor pessoal, uma vez que, quando se compara com os outros, tem uma

imagem menos favorável de si própria, o que é revelador de baixa estima de si. A sua

autoimagem e estima de si são intensamente baseadas na imaginação e não na experiência.

Este aspeto é revelador de menor maturidade e, frequentemente distorcerá a perceção de si

própria, o que irá interferir na tomada de decisões e na resolução de problemas,

experimentando dificuldades na relação com os outros. Manifesta assim um distanciamento

do mundo real e um maior investimento na fantasia (Exner, 2003).

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Na Perceção e Relacionamento Interpessoal, a Mariana é conservadora em situações

de proximidade interpessoal, especificamente as que envolvem contacto físico, tendendo a

preservar o seu espaço vital e revelando cautela na criação e manutenção de laços emocionais

(Exner, 2003).

3.2.3.3.3. Ludodiagnóstico

A última sessão de avaliação psicológica realizou-se a 09 de fevereiro de 2015. Na

sessão de ludodiagnóstico, a Mariana entra na sala e dirige-se ao quadro de giz. Começou por

fazer um jogo no quadro, solicitando a participação da discente. Ao longo da atividade,

observou-se que tende a recusar aceitar novas regras, predominando as que deseja aplicar.

Quando termina o jogo verbaliza “vamos escrever os nossos nomes” (sic). Escreve o

próprio nome e o da discente no quadro. Verificam-se dificuldades na escrita, nomeadamente,

erros de soletração ao ler e de ortografia ao escrever, mas solicitou a ajuda da discente sempre

que necessitou.

Nos desenhos, utiliza excessivamente o apagador, de forma a melhorar aquilo que

desenhou, o que indicia elevada autocritica e/ou insatisfação consigo mesma (Campos, 1998).

3.2.3.3.4. Conclusões da Avaliação Psicológica

Através da avaliação psicológica efetuada, nomeadamente dos Desenhos da Família

Imaginária e Real, do Rorschach e do Ludodiagnóstico, constata-se que a Mariana é uma

criança com a estima de si baixa e que tende à desvalorização pessoal, demonstrando elevada

autocritica e/ou insatisfação consigo mesma.

Apresenta instabilidade emocional, sendo que evita processar as suas emoções,

mantendo relações interpessoais superficiais e nas quais predomina uma atitude cautelosa e de

evitação, uma vez que as relações existentes podem estar a ser uma fonte de stress para a

criança.

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É recomendável o acompanhamento psicológico da criança, através de intervenção

ludoterapêutica, com o objetivo de trabalhar e promover, o processamento de memórias

traumáticas decorrentes da exposição à violência interparental, as representações e

significações familiares, a expressão e a partilha de sentimentos num ambiente adequado e

seguro, de forma a promover a confiança no outro, a estima de si e autoimagem positivas e a

aquisição de competências interpessoais. Considera-se, igualmente, importante o trabalho

terapêutico ao nível das dificuldades na leitura e na escrita.

3.2.3.3.5. Devolução dos Resultados Obtidos

Os resultados obtidos através da avaliação psicológica efetuada com a criança

permitiram a realização de um Relatório de Avaliação Psicológica (Anexo 5), que foi

transmitido à mãe da Mariana no dia 03 de março de 2015.

Estabeleceu-se um contrato terapêutico com a mesma, no qual se pretendia que os

acompanhamentos psicológicos fossem realizados semanalmente, em sessões com a duração

de aproximadamente 45 minutos, tendo em vista a realização de um total de 12 sessões. Uma

vez terminadas as sessões, proceder-se-ia a nova avaliação psicológica.

Ficou, igualmente, acordado que, ao longo do processo terapêutico se perspetivava um

trabalho conjunto com a progenitora na persecução dos objetivos propostos, devendo qualquer

contato relativamente ao acompanhamento prestado à menor ser na presença desta.

3.2.3.4. Acompanhamento Psicológico

Realizaram-se 12 sessões de Acompanhamento Psicológico (transcrição das sessões

em Anexo 6), com intervenção ludoterapêutica.

Na primeira sessão, realizada a 10 de março de 2015, realizou um fantoche com

cartolinas e, quando termina, comunica através do mesmo. Solicita à discente para ir ao

quadro de giz e explica as regras de um jogo, para que a discente jogasse com ela. Não

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mostrou frustração em perder, contudo, por vezes, alterou as regras do jogo de forma a sair

vitoriosa.

Na segunda sessão, realizada a 17 de março de 2015 a Mariana dirige-se ao quadro de

giz para explicar à discente as tarefas que costuma realizar na escola. Verificam-se ainda

muitas dificuldades na escrita, mas adequadas à idade e tempo escolar. No final da sessão, a

Mariana não quer terminar a sessão e ignora as tentativas da discente para lhe explicar o

motivo pelo qual teriam que terminar a sessão. Após alguma insistência abandona sala, mas

não tentou compreender.

Na terceira sessão, realizada a 24 de março de 2015, inicia a sessão referindo que se

sentia furiosa, pois estava zangada com uma amiga, explicando o sucedido à discente. Escolhe

escrever no quadro de giz, semelhante às tarefas que realiza na escola. Revela ciúmes de uma

criança acolhida na Casa de Abrigo que também acompanhamento psicológico, o que sugere a

existência de baixa autoestima na Mariana.

Na quarta sessão, realizada a 31 de março de 2015, começa por perguntar o que a

discente esteve a fazer no acompanhamento efetuado com outra criança acolhida na casa de

abrigo. Foi-lhe explicado que na presente sessão seria a própria a escolher o que desejava

fazer. Refere que se sente feliz por ter brincado com os irmãos no parque e contou à discente

com tinha sido o seu dia. Realiza um desenho. Aceita com maior facilidade o término da

sessão.

Na quinta sessão, realizada a 07 de abril de 2015, a Mariana levou um pedaço de giz

para a sessão e refere que o retirou na escola sem autorização. Após conversar com a discente

sobre o sucedido, compreende que não deve retirar algo sem pedir. Menciona que se sente

feliz por ter falado com um colega da escola do qual gosta. Realiza um desenho para a mãe,

com a participação da discente.

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Na sexta sessão, realizada a 14 de abril de 2015, a Mariana menciona que a mãe foi a

uma reunião na escola para receber o boletim das notas. Realizou um jogo no quadro de giz e

rapidamente quis brincar às professoras, sendo que a personagem professora alternava entre a

Mariana e a discente. Mencionou que no presente dia se sentia feliz porque conseguiu ler na

escola (dificuldade que a criança sentia). Solicita à discente para realizem, em conjunto, um

desenho. Quando terminam, demostra o seu desejo de que a discente leve o desenho para a

sua casa, mas no final leva-o consigo.

Na sétima sessão, realizada a 21 de abril de 2015, começa por referir que se sentia

envergonhada, triste e assustada e explica a razão dos seus sentimentos. Revela boa

capacidade em expressar e comunicar adequadamente as suas emoções. Realiza um jogo em

conjunto com a discente, alterando constantemente as regras o mesmo para que saísse

vencedora. Apresentou maior dificuldade em terminar a sessão.

Na oitava sessão, realizada a 28 de abril de 2015, realiza vários desenhos, recortes e

colagens. Mostrou-se pouco comunicativa. Referiu sentir-se feliz por ter brincado muito na

escola. Aceita com facilidade o término da sessão.

Na nona sessão, realizada a 05 de maio de 2015, a mãe da Mariana dirige-se à sala da

sessão, juntamente com a criança, para conversar com a discente. Mostrou-se preocupada e

bastante ansiosa relativamente ao que é falado sobre o progenitor, durante o acompanhamento

psicológico (receio que a criança revele à discente que a mesma conversa e já se encontrou

com o agressor – incumprimento de regras que pode originar expulsão da casa). Foi-lhe

explicado que os assuntos falados durante a sessão são confidenciais e que apenas lhe seriam

transmitidos caso fossem pertinentes ao bem-estar da criança e após autorização da mesma.

Esclareceu-se também que não existem assuntos proibidos durante as sessões e que a Mariana

podia falar sobre o que desejasse naquele espaço. Adicionalmente, foram clarificados os

objetivos do processo terapêutico para que a mãe pudesse ficar mais tranquila. Terminada a

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conversa com a mãe, a Mariana permanece na sala. Refere que se sente triste porque a mãe foi

falar com a discente.

Na décima sessão, realizada a 12 de maio de 2015, dirige-se à caixa lúdica e retira

utensílios de cozinha para cozinhar os seus pratos favoritos. Refere que se sente feliz porque

realizou muitos jogos na escola. Apresentou maior dificuldade em terminar a sessão,

comparativamente às sessões anterior, pois tinha pensado em realizar outras atividades e o

tempo não foi o suficiente.

Na décima primeira sessão, realizada a 21 de maio de 2015, a Mariana quis brincar às

professoras. Ela era a professora e chamava-se Susana e a discente era a aluna. Fez vários

exercícios no quadro de fiz (semelhantes aos que realiza na escola) para a discente (aluna)

resolver. Menciona uma briga que ocorreu na escola, na qual este envolvida, e que a deixou

triste.

Na décima segunda sessão, realizada a 26 de maio de 2015, a criança realizou diversas

atividades lúdicas da sua escolha. Observou-se dificuldades em manter a concentração nas

tarefas que realizava, mudando de ação repentinamente e, por vezes, esquecendo-se do que

estava ou desejava fazer.

Ao longo das sessões a Mariana revelava dificuldades ao nível da atenção focada,

pois, regularmente, iniciava outras atividades lúdicas, de forma repentina, sem antes terminar

as que havia iniciado. Não se verificaram melhorias no que dizia respeito à baixa estima de si

da menor, pois manifestava uma tendência para se diminuir quando se comparava aos outros.

No entanto, verificaram-se melhorias significativas na capacidade de expressar e comunicar

as suas emoções. A Mariana identificava e explicava com facilidade os seus sentimentos

durante as sessões, partilhando-os com a discente. Neste sentido, foi possível estabelecer uma

relação terapêutica, baseada na confiança, uma vez que a criança ao longo do processo

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terapêutico partilhou os seus segredos com a discente, com segurança que não seriam

expostos.

3.2.3.5. Análise/Discussão Clínica

Existem alguns sintomas de externalização que, regularmente surgem nas crianças que

vivenciaram um ambiente familiar violento (e.g. dificuldades de concentração; Sani, 2006c).

Apesar de este aspeto não sobressair através da avaliação psicológica efetuada, ao longo das

sessões a Mariana apresentou dificuldades em manter a atenção focada nas tarefas que

realizava, alterando, repentinamente, as atividade lúdicas. Como a gravidade e frequência da

violência interparental tendem a aumentar a intensidade da sintomatologia de externalização

(Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007; Johnson & Lieberman, 2007), o facto de a Mariana,

aparentemente, manifestar apenas um sintoma de externalização, pode sugerir que, no

contexto familiar da criança houve menor frequência e/ou gravidade na violência

interparental. Por outro lado, quando a relação entre a criança e a mãe é mais adaptativa e

existe maior atenção da progenitora relativamente aos sentimentos da criança, a probabilidade

da mesma manifestar estes sintomas diminui (Johnson & Lieberman, 2007). Aparentemente a

relação da Mariana com a mãe é estruturante, o que poderá ter contribuído para uma menor

intensidade na sua sintomatologia.

Ao nível emocional, a Mariana apresentou alguma instabilidade. Na realização do

desenho da família real a criança desenha-se em ultimo lugar, o que sugere baixa estima de si

e desvalorização pessoal (Corman, 2003). Esta sintomatologia foi observada também ao longo

dos acompanhamentos psicológicos. Na opinião da criança, as tarefas ou desenhos realizados

por outras crianças eram sempre melhores e mais bonitos comparativamente aos dela.

Adicionalmente, a Mariana, pareceu apresentar uma elevada autocritica, uma vez que, nos

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desenhos realizados, tanto no ludodiagnóstico como ao longo das sessões, utilizava

excessivamente o apagador ou a borracha (Campos, 1998).

No que diz respeito às relações interpessoais, a exposição à violência interparental

pode afetar a capacidade e disponibilidade das crianças em se relacionarem com os outros

(Centre for Children and Families in the Justice System, 2002). Apesar de o teste de

Rorschach sugerir que a criança se sente incomodada nas relações interpessoais e estas

estarem a ser uma fonte de stress para a mesma, ao longo do acompanhamento psicológico

este aspeto não foi observado. A Mariana mantinha relações aparentemente positivas com os

seus pares, progenitora e irmãos acolhidos na Casa de Abrigo. Do mesmo modo, estabeleceu

rapidamente uma boa relação com a discente, partilhando os seus receios, anseios e segredos.

Segundo a literatura, a relação com o progenitor agressor é, habitualmente,

ambivalente, coexistindo sentimentos positivos e negativos pelo mesmo (Fórum Municipal de

Cascais contra a Violência Doméstica, 2009). No entanto, foi possível observar, através da

avaliação e acompanhamentos psicológicos que a Mariana tende a valorizar o progenitor. No

desenho da família real, a personagem que representa o pai é desenhada em primeiro lugar e

com mais investimento nos detalhes (Corman, 2003) e é mencionado como o preferido, o que

sugere uma identificação com o progenitor (Font, 1978). Ao longo das sessões, as referencias

ao progenitor foram sempre favoráveis, referindo-se ao mesmo como uma figura presente e

estruturante ao desenvolvimento da criança (e.g., auxiliava no vestir e no comer, levava à

escola, brincava). Apesar de a criança ter assistido às agressões proferidas pelo progenitor à

progenitora, a Mariana nunca mencionou nenhuma dessas ocasiões. Deste modo, não existe

informação suficiente para sugerir a existência de sentimentos ambivalentes relativamente ao

progenitor agressor.

A exposição à violência interparental pode ter um impacto negativo ao nível do

funcionamento intelectual, mais especificamente nas capacidades verbais das crianças (Huth-

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Bocks, Levendosky, & Semel, 2001) e, mais tarde, pode vir a afetar o desempenho escolar

(Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007). No mesmo sentido, o ambiente familiar acaba por ser

pouco estimulante, contribuindo para este fator (Huth-Bocks, Levendosky, & Semel, 2001;

Ybarra, Wilkens, & Lieberman, 2007). A Mariana manifestou dificuldades na leitura e na

escrita durante o ludodiagnóstico. Uma vez que o início das sessões deu-se poucos meses

após o ingresso da criança na escola, previa-se que ao longo do tempo se verificassem

melhorias. Contudo, durante as sessões não se observaram melhorias neste sentido e o

aproveitamento escolar da Mariana manteve-se reduzido.

3.2.3.6. Reflexão Pessoal

O caso da Mariana foi o gerador de maior inspiração e motivação. Logo deste o início

das sessões sempre foi uma criança muito comunicativa e com a qual houve maior facilidade

em estabelecer uma relação terapêutica. Apesar das suas tentativas constantes em testar os

limites, verificaram-se melhorias a cada sessão, o que era bastante motivador para a discente.

As sessões eram transcritas no final de cada sessão. Por um lado, a discente teve

bastante dificuldade em memorizar toda a informação mencionada nas sessões, o que resultou

em transcrições incompletas. No entanto, as questões reconhecidas como de maior relevância

foram transcritas, uma vez que eram identificadas no decorrer da sessão, o que facilitava a sua

memorização.

Uma outra dificuldade encontrada diz respeito à utilização de todas as condições

necessárias e suficientes da abordagem centrada na pessoa. Isto deveu-se, por um lado, à falta

de experiência clínica, mas também à necessidade de integrar as diretrizes da instituição, no

acompanhamento psicológico efetuado. A discente, por vezes, orientou a cliente no sentido

que achava ser o melhor, ao invés de utilizar respostas de compreensão empática, para que a

própria cliente direcionasse o seu caminho no sentido do seu crescimento.

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O reconhecimento dos erros cometidos ao longo do processo terapêutico levou à

reflexão e à perceção da necessidade de desenvolver as competências nesse sentido.

3.2.4. Caso B

(Todos os nomes mencionados são fictícios)

3.2.4.1. Dados de Identificação

Nome: Miguel

Idade: 5 anos

Género: Masculino

Nacionalidade: Portuguesa

Escolaridade: a frequentar Jardim de Infância

3.2.4.2. Entrevista Clínica/Anamnese

No dia 15 de janeiro de 2015 procedeu-se à realização da Entrevista Clínica/Anamnese

(Anexo 7), que contou com a presença da criança e da mãe.

A família foi acolhida na Casa de Abrigo, no dia 18 de novembro de 2014, em

consequência de situação de violência conjugal.

No que respeita à saúde física da criança, segundo as informações fornecidas pela mãe,

o Miguel iniciou uma anemia em julho de 2013. Desde essa altura necessita de tomar

medicação (ferro). A criança apresenta algumas dificuldades de alimentação, manifestadas

essencialmente quando a mãe está presente. Tem dificuldade em comer sozinho e sobretudo

alimentos sólidos. Segundo a mãe, a integração em Casa de Abrigo agravou esta situação.

A gravidez do Miguel foi desejada, observada por médicos e sem complicações.

Nasceu com 2,800kg, no Hospital XXXXXXX, de parto normal assistido por uma enfermeira.

Ambos os progenitores reagiram de forma positiva e entusiasmada ao género da criança.

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Começou a andar aos 11 meses, sem complicações e a primeira palavra (“Mãe”)

ocorreu com um ano de idade. Atualmente é uma criança que articula de forma correta as

palavras, tendo em consideração a sua idade. Por vezes não responde às perguntas que lhe são

colocadas, sendo que a mãe afirma “tem receio que ralhem com ele” (sic)

No que diz respeito ao controlo dos esfíncteres, o Miguel controla a urina desde os

dois anos de idade, contudo, por vezes não faz o controlo das fezes. A mãe refere que a

encoprese “acontece mais quando está a brincar com os outros meninos e tem preguiça de ir à

casa de banho” (sic). A reação da mãe aquando da ocorrência é de compreensão e educativa, à

qual o Miguel reage com choro e promessas de não voltar a fazê-lo.

A mãe descreve o Miguel como uma criança que se adapta lentamente à novidade e à

mudança, tendo como referência a integração na Casa de Abrigo, pois “ainda não se adaptou”

(sic). Desenvolve rapidamente rotinas regulares de sono, mas não consegue envolver-se em

novas rotinas de alimentação, reagindo mal durante muito tempo a novos alimentos.

Na relação com os outros, é inibido, demonstrando sempre vergonha. Tende a reagir à

frustração com resistência acentuada, recusa aceitar regras nos jogos, sendo que as

brincadeiras têm que ser da forma como ele deseja. Segundo a mãe, o Miguel é curioso e tem

facilidade em tomar iniciativas, contudo, é muito dependente e apegado ao adulto cuidador.

Não apresenta alterações do humor significativas, estando regularmente bem-disposto.

No tocante à relação com o progenitor, a mãe informa que esta sempre foi distante e

sem afeto. Acrescenta que “oferecia-lhe brinquedos quando queria compensar alguma coisa”

(sic). A mãe apresenta-se como a figura de vinculação, sendo a relação muito próxima e

afetuosa. Antes de integrar a Casa de Abrigo, a criança vivia com ambos os progenitores, o

ambiente familiar era conflituoso, sendo que o Miguel assistia a agressões verbais e ameaças,

chegando a presenciar uma situação de agressão física do progenitor contra a progenitora, da

qual o mesmo se recorda e menciona algumas vezes.

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O Miguel tem uma irmã consanguínea (Diana, 17 anos) e uma uterina (Filomena, 15

anos). A relação com a irmã Filomena é de proximidade, sendo que o Miguel tem sentido

falta da mesma, desde que integrou a Casa de Abrigo.

Com as outras crianças e adultos, o Miguel tem alguma relutância em se relacionar,

sendo bastante inibido, no entanto, com o passar do tempo vai aceitando as novas pessoas.

3.2.4.3. Avaliação Psicológica

Tendo em conta as informações obtidas na Entrevista Clínica/Anamnese, procederam-

se a três sessões de avaliação psicológica, apenas com a criança, onde foram aplicados os

seguintes instrumentos:

O Teste do Desenho da Família possibilita a compreensão dos afetos, emoções e

sentimentos da criança relativamente à sua família. O Miguel provém de um contexto familiar

onde ocorria violência interparental, à qual assistia. Desse modo, mostra-se pertinente

perceber de que modo a violência teve impacto na forma como a criança perceciona o seio

familiar e quais os afetos que predominam relativamente aos seus progenitores.

O instrumento fornece informações acerca da forma como a criança se posiciona na

família, percebendo se o Miguel se sente integrado, despistando assim a possibilidade de

negligência por parte dos progenitores. Uma vez que, inicialmente é solicitado que desenhe

uma família imaginária, a criança mostra os seus desejos relativamente à sua família real.

O Ludodiagnóstico possibilita, através de uma atuação não diretiva, a compreensão

dos aspetos motores, cognitivos, afetivos e sociais da criança. Permite o desenvolvimento da

relação terapêutica com a criança e facilita o início da ludoterapia.

3.2.4.3.1. Teste do Desenho da Família

A realização do Teste do Desenho da Família (Anexo 8) iniciou-se na segunda sessão,

dia 22 de janeiro de 2015. Aquando da solicitação para a elaboração do desenho da família

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imaginária, o Miguel mostra-se relutante verbalizando “não sei” (sic), mas após

encorajamento inicia a tarefa.

Desenha-se primeiro a si próprio, no centro da folha e, posteriormente, desenha uma

segunda pessoa. Enquanto realiza o desenho olha constantemente para os brinquedos

presentes na sala, mostrando pouco interesse na tarefa que está a realizar.

Quando questionado acerca das personagens que desenhou afirma “é a Mariana

[referindo-se a outra criança acolhida em casa de abrigo] e eu” (sic). Às restantes questões,

respondeu de forma evasiva e pouco precisa.

Ao ser solicitado para realizar o desenho da família real, verbaliza “não quero fazer

mais desenhos” (sic). Deste modo, não foi possível completar a aplicação, uma vez que a

criança não se mostrou disponível para realizar o desenho da família real.

Uma vez que o teste ficou incompleto, procedeu-se a uma nova aplicação, na terceira

sessão, dia 29 de janeiro de 2015. Desta vez, o Miguel fez o desenho da família imaginária,

mas sem qualquer atenção ao detalhe ou rigor naquilo que estava a desenhar. Desenhou a mãe

e alguns rabiscos pela folha. Quando questionado acerca do desenho, verbaliza “quero a

minha mãe” (sic). Apesar de alguma insistência para que terminasse a prova foi necessário

terminar a sessão pois a criança manifestou claro sofrimento ao permanecer longe da mãe,

contrastando com as sessões anteriores. Mesmo quando lhe foi sugerido que brincasse e que

não necessitava de continuar a desenhar, não se conseguiu descentrar da sua vontade de estar

com a mãe.

Da análise geral do desenho da família imaginária, destaca-se que o Miguel não

consegue descentrar-se do real, apresentando dificuldades em expressar as suas emoções, é

pouco criativo e rígido na realização do desenho (Corman, 2003). Na segunda aplicação,

desenha apenas a mãe o que sugere que a mesma é percebida como o elemento significativo

da família e/ou a única que está disponível para ele neste momento (Corman, 2003).

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O facto de recusar realizar o desenho da família real pode estar relacionado com a

instabilidade emocional da criança, decorrente da recente alteração na vivência familiar

(integração em casa de abrigo).

3.2.4.3.2. Ludodiagnóstico

Uma vez que o Miguel não respondeu positivamente à aplicação do Teste do Desenho

da Família, passámos à fase de Ludodiagnóstico, na terceira e última sessão de avaliação

psicológica.

O Miguel brincou com vários elementos da caixa lúdica, realizando brincadeiras com

cada um deles por um período curto de tempo. Contudo, verificam-se dificuldades em manter

a atenção e concentração numa mesma atividade lúdica por um período mais longo de tempo.

É uma criança que verbaliza pouco e quando a discente fala diretamente com ele,

muitas vezes não responde, como se não estivesse a ouvir o que lhe está a ser dito.

Apesar de se mostrar interessado em alternar as brincadeiras, rejeita qualquer sugestão

fornecida, afirmando “não quero brincar a isso” (sic). Contudo, se a discente procura algum

brinquedo tende a procurá-lo também, manifestando uma necessidade de controlar aquilo que

se está a fazer. Denota-se que prefere brincar sozinho, não procurando a discente para fazer

parte da brincadeira, mas aceita, desde que dentro das regras dele.

3.2.4.3.3. Conclusões da Avaliação Psicológica

Através da avaliação psicológica efetuada, nomeadamente dos desenhos da família

imaginária e real e do ludodiagnóstico, constatou-se um registo de funcionamento sobretudo

centrado no concreto, o que sugeria instabilidade emocional na criança. Adicionalmente

apresentou dificuldades em manter a atenção e concentração nas tarefas que realizava.

A relação com a mãe surgia como fator protetivo, uma vez que se caraterizava pelo

carinho e afeto, podendo ser considerada pelo Miguel como uma figura significativa e que lhe

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transmitia segurança. Contudo, a criança registava em alguns momentos ansiedade resultante

da separação da mãe.

Face ao exposto, foi recomendado o acompanhamento psicológico do Miguel, através

de intervenção ludoterapêutica, com o objetivo de trabalhar o processamento de memórias

traumáticas decorrentes da exposição à violência interparental, promover a expressão e a

partilha de sentimentos num ambiente adequado e seguro, a estima de si e a capacidade de

criar e imaginar e a aquisição de competências interpessoais e comunicacionais. Considerou-

se, igualmente importante, o trabalho terapêutico ao nível da encoprese e das dificuldades

alimentares.

3.2.4.3.4. Devolução dos Resultados Obtidos

Os resultados obtidos através da avaliação psicológica efetuada com a criança

permitiram a realização de um Relatório de Avaliação Psicológica (Anexo 9), que foi

transmitido à mãe no dia 13 de fevereiro de 2015.

Estabeleceu-se um contrato terapêutico com a mesma, no qual se pretendia que os

acompanhamentos psicológicos fossem realizados semanalmente, em sessões com a duração

de aproximadamente 30 minutos, tendo em vista a realização de um total de 12 sessões. Uma

vez terminadas as sessões, proceder-se-ia a nova avaliação psicológica.

Ficou, igualmente, acordado que, ao longo do processo terapêutico se perspetivava um

trabalho conjunto com a progenitora na persecução dos objetivos propostos, devendo qualquer

contato relativamente ao acompanhamento prestado ao menor ser na presença deste.

3.2.4.4. Acompanhamento Psicológico

Realizaram-se 12 sessões de acompanhamento psicológico, com intervenção

ludoterapêutica. Na primeira sessão, realizada a 19 de fevereiro de 2015, o Miguel entra na

sala do acompanhamento psicológico e dirige-se imediatamente à caixa lúdica. Começa por

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retirar a plasticina e a brincar sozinho. A atividade consiste em fazer pequenos moldes com a

plasticina, com as mãos ou com a ajuda de modelos específicos de animais, carros, entre

outros. A intervenção da discente na atividade lúdica não foi aceite logo ao início mas

posteriormente é admitida, com alguma cautela por parte do menor. Rapidamente explora

outros brinquedos, nomeadamente a família de bonecos. Identifica-se com o bebé, nomeia os

outros membros da família, rejeitando apenas o pai (de referir que o progenitor nunca foi uma

figura presente na vida do Miguel). Identifica a discente no boneco de uma menina, mas não

justifica as suas escolhas. Faz referência a uma situação de violência interparental à qual

assistiu, descrevendo o sucedido. Durante a sessão, as atividades lúdicas foram controladas

pelo Miguel, sendo que o mesmo evita a maioria das interferências da discente.

Na segunda sessão, realizada a 26 de fevereiro de 2015, escolhe novamente fazer

moldes com a plasticina. Aceitou com agrado a participação da discente. Cada um realiza um

boneco com a plasticina e, no final, o Miguel atribui os nomes e refere que estavam a comer,

mas termina a tarefa repentinamente. Aborda o facto de a mãe estar no emprego, referindo ter

saudades da mesma mas revela compreensão da situação (é a primeira vez que o Miguel está

sozinho na Casa de Abrigo desde que a família foi integrada). Nesta sessão, verificou-se

maior interação entre o Miguel e a discente nas atividades lúdicas.

Na terceira sessão, realizada a 05 de março de 2015, chegou uns minutos atrasado à

sessão. Mais uma vez, opta por fazer moldes com a plasticina. O Miguel constrói e

rapidamente desfaz o que fez, de forma repetitiva. Esta atividade lúdica decorreu durante a

maior parte da sessão. Dirige-se ao quadro de giz para desenhar a chuva, fato que o fez

relembrar o seu progenitor, mencionando que o progenitor não pulava nas poças e não

gostava que o Miguel o fizesse.

Na quarta sessão, realizada a 12 de março de 2015, desejou brincar com os bonecos de

vários animais, mencionando o nome de cada um deles e o seu som caraterístico. Entre a

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atividade com os animais pede para fazer moldes de plasticina, mas rapidamente volta à tarefa

inicial. Organizou uma luta entre os animais, atribuindo uma quantidade de animais para ele e

outros para a discente. Os animais deles obtinham sempre a vitória nas lutas, não aceitando

que os da discente ganhassem. No final da sessão, pede para levar um dos animais, pedido

que lhe foi negado e explicado o motivo, sendo que aceita com facilidade a razão.

Na quinta sessão, realizada a 19 de março de 2015, o Miguel apresenta-se com uma

expressão triste e cabisbaixo. Quando a discente menciona que o mesmo aparenta estar triste,

revela que a mãe havia prometido estar em casa mais cedo e não o fez. Referiu ainda que lhe

doía a barriga e por isso estava triste, deitando-se no puf. Explicou à discente que não lhe

apetecia brincar, o que foi aceite com prontidão. A sessão terminou mais cedo pois o Miguel

não se sentia bem. As dores de barriga do Miguel podem ter sido somatização do menor à

tristeza que lhe causou a mãe não estar em casa como lhe tinha prometido.

Na sexta sessão, realizada a 26 de março de 2015, o Miguel optou por brincar com a

plasticina na maior parte da sessão. Referiu que no presente dia já não se sentia triste e que

estava feliz. Nesta sessão, verificou-se um progresso na sua capacidade para expressar as suas

emoções.

Na sétima sessão, realizada a 9 de abril de 2015, mais uma vez, o Miguel quis fazer

moldes com a plasticina, sempre nos mesmos parâmetros das sessões anteriores.

Na oitava sessão, realizada a 16 de abril de 2015, o Miguel trás consigo uma caderneta

e dois bonecos e solicita à discente para brincar com os mesmos. A tarefa consistia em bater

com os bonecos um no outro e o que caísse primeiro perdia. Nesta sessão, o Miguel não

demonstra frustração em perder, nem a necessidade de ser sempre ele a ganhar. Revela que se

sente feliz por ter ido para a escola.

Na nona sessão, realizada a 23 de abril de 2015, escolhe brincar com as moedas e

notas, fazendo magia com as mesmas, ou seja, esconde-as e volta a mostrá-las. Pede à

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discente que faça o mesmo, sendo que fazem-no à vez. No final da sessão o Miguel não

queria terminar, insistindo bastante em continuar a brincar, cedendo após algum tempo.

Na décima sessão, realizada a 30 de abril de 2015, realizou um jogo de memória com

cartas, apresentando muita facilidade em memorizar o local das mesmas. Desenhou a mãe no

quadro de giz, mas não se mostrou disponível para explicar o desenho. Solicitou sempre a

participação da discente durante todas as atividades lúdicas efetuadas durante a sessão.

Na décima primeira sessão, realizada a 7 de maio de 2015, o Miguel revela sentir-se

feliz porque na escola brincou muito. Durante o restante tempo da sessão, escolhe brincar com

missangas, colocando-as e retirando-as de copos de plástico, num processo repetitivo.

Mostrou-se pouco comunicativo e concentrado na atividade.

Na décima segunda sessão, realizada a 14 de maio de 2015, brincou com as missangas

durante toda a sessão. Nesta sessão, foi-lhe explicado que as seguintes sessões iriam ser

diferentes, devido à aplicação dos instrumentos de avaliação psicológica. O Miguel mostra-se

pouco recetivo à ideia de não puder controlar aquilo que iria fazer nas próximas sessões, mas

concorda com a discente.

Ao longo das sessões foi possível observar progressos ao nível das competências

comunicacionais e interpessoais. O Miguel começou a expressar e partilhar os seus

sentimentos com maior facilidade e a aceitar e procurar a participação da discente nas

atividades que desenvolvia. Apresentou, também, melhorias na sua capacidade para manter a

atenção focada nas atividades lúdicas durante mais tempo, contrastando com o que havia sido

inicialmente observado.

3.2.4.5. Reavaliação Psicológica

Terminadas as 12 sessões de acompanhamento psicológico, procedeu-se à reavaliação

psicológica, que contou com a aplicação do Teste do Desenho da Família, como forma de

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compreender a evolução do menor ao nível da significação familiar e capacidade para se

descentrar do real.

O Miguel é pouco comunicativo, verbalmente fornece pouca informação acerca das

pessoas que considera mais importantes. A aplicação do Mapa da Rede Social Pessoal tem

como objetivo compreender o mundo relacional da criança, percebendo quem são as pessoas

mais significativas para a mesma (Alarcão & Sousa, 2007). Não foi aplicado na sua totalidade

porque não se pretendia obter todas as informações possíveis de adquirir com o instrumento.

3.2.4.5.1. Teste do Desenho da Família

Procedeu-se à realização do Teste do Desenho da Família (Anexo 10) no 21 de maio

de 2015.

Aquando da solicitação para a elaboração do desenho da família imaginária, o Miguel

verbaliza “não quero” (sic), mas após encorajamento inicia a tarefa. Embora tenha

demonstrado hesitação em responder ao questionário, foi possível obter todas as respostas.

Começa por desenhar o Ricardo [colega da escola], seguido da Manuela [criança

acolhida na Casa de Abrigo]. Quando questionado acerca do que estão a fazer, refere “a

brincar” (sic). Percebe-se que não consegue descentrar-se do real, pois desenha pessoas do seu

quotidiano, podendo revelar alguma instabilidade emocional ou tendência para a

racionalidade (Corman, 2003).

A personagem Ricardo, aparentemente, surge valorizada, uma vez que é desenhada em

primeiro lugar, ocupa a posição inicial à esquerda e apresenta um físico maior (Corman,

2003). Contudo, ao longo do questionário, o Miguel menciona-o como a personagem que

manda menos “porque é grande” (sic), que é menos simpática e menos feliz.

Quanto à personagem Manuela, surge com um físico menor, é desenhada em último

lugar e é representada muito mais nova do que o real. Contudo, percebe-se que é valorizada

no questionário, uma vez que é mencionada como a que manda mais, a mais simpática

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“porque é muito linda e fofinha” (sic), a mais feliz e, também, aquela que ele gostaria de ser

se pertencesse a esta família “porque é pequena” (sic).

Ao ser solicitado para desenhar a sua família, mais uma vez, o Miguel hesita, sendo

necessário insistir bastante com ele para que inicie a tarefa. Desta vez, não foi possível obter

respostas em todas as perguntas do questionário, uma vez que, após a elaboração do desenho

começou a ficar ansioso, verbalizando “quero a minha mãe” (sic).

Começa por desenhar a sua mãe, seguida da sua irmã uterina Filomena. O desenho é

feito da direita para a esquerda, o que num destro, poderá indicar problemas percetivos

(Corman, 2003).

Não se desenha a si próprio, o que pode ser indicador de baixa estima de si e

acentuada desvalorização pessoal, como se o Miguel não se sentisse bem com a sua atual

situação e não se reconhecesse como figura integrante do contexto familiar (Corman, 2003).

Quando questionado acerca das idades e sobre o que estão a fazer, verbaliza “não sei” (sic).

A mãe surge como personagem valorizada, sendo desenhada em primeiro lugar, com

um físico maior e com maior investimento nos detalhes (Corman, 2003). Ao longo do

questionário é mencionada como a que manda mais, a mais feliz e a preferida na família. O

Miguel não desenhou qualquer elemento representativo da figura paterna.

A irmã apresenta menos detalhes, um físico menor e é desenhada em último lugar.

Contudo, acompanha a mãe na questão sobre quem é o mais feliz “mãe e mana” (sic). Quando

questionado acerca de quem manda menos verbaliza “eu” (sic), apesar de não se ter

representado no desenho.

Da análise geral de ambos os desenhos, constata-se fraco investimento no desenho,

sendo que coloca poucos detalhes, o que pode estar relacionado com alguma imaturidade na

criança. Revela introversão e/ou inibição e tendência para reprimir as emoções na realização

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da família imaginaria, uma vez que o traçado é curto e predominam as linhas retas (Corman,

2003).

3.2.4.5.2. Mapa de Rede Social Pessoal

A aplicação do Mapa de Rede Social Pessoal (Anexo 11) ocorreu no dia 28 de maio de

2015.

Foram avaliados quatro quadrantes – família, amizade, colegas de escola e

comunidade envolvente – em três graus de intimidade - relações íntimas, com menor grau de

compromisso e relações ocasionais. No quadrante familiar, o Miguel nomeia a sua irmã

uterina, Filomena, e a sua mãe, no grau de relações íntimas. Menciona a sua irmã

consanguínea, Diana, num menor grau de compromisso, verbalizando “às vezes ela vai com a

mana (Filomena) ” [referindo-se aos encontros que tem periodicamente com a mesma].

No quadrante das relações de amizade, menciona algumas das crianças que estão,

igualmente, acolhidas na Casa de Abrigo, sendo que a Micaela e a Sofia se encontram num

grau de relação mais intima, e o Edmar e o Bernardo, com menor grau de compromisso.

Quanto às relações escolares, o Miguel menciona o Ricardo [criança que também foi

desenhada no desenho da família imaginária] e o Gonçalo como as crianças com quem

mantém maior proximidade. Num grau de menor compromisso, nomeia o seu colega Diogo e

como relações mais ocasionais refere duas colegas, Laura e Maria, verbalizando “às vezes não

deixam brincar. Brincam só com o Bernardo” (sic). De referir que o Bernardo é também

colega de escola e o único que conhece as crianças mencionadas acima.

Por ultimo, no que concerne à comunidade envolvente, o Miguel menciona duas

senhoras acolhidas na Casa de Abrigo e uma das auxiliares de serviço, verbalizando acerca

desta ultima “é a que eu gosto mais” (sic). As três pessoas nomeadas situam-se num menor

grau de compromisso.

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3.2.4.5.3. Conclusões e Recomendações de Intervenção

As sessões de acompanhamento psicológico permitiram observar que o Miguel

progrediu positivamente em algumas das dificuldades verificadas na primeira avaliação

psicológica, nomeadamente, na capacidade em focar a atenção nas tarefas durante um período

mais longo de tempo, em expressar as suas emoções e nas relações interpessoais, aceitando e

solicitando a participação da discente nas atividades.

Contudo, nesta ultima avaliação, a criança manifestou ainda um registo de

funcionamento centrado no concreto, observável nos desenhos efetuados sobre a família

imaginária e real, o que poderia revelar que a criança sentia dificuldades em expressar as suas

emoções.

Manifestou, também, ansiedade de separação da mãe, ainda que, com menor

frequência e, o facto de não se ter representado no desenho da família real, revelou que o

menor apresenta baixa estima de si e tende a desvalorizar-se.

Deste modo, foi recomendada a continuação do acompanhamento psicológico do

Miguel, através de intervenção ludoterapêutica, com o objetivo de trabalhar a dificuldade em

expressar as suas emoções, promover a estima de si e autoimagem positivas e trabalhar a

ansiedade perante a separação da mãe.

3.2.4.5.4. Devolução dos Resultados Obtidos

Os resultados obtidos através da reavaliação psicológica efetuada com a criança

permitiram a realização de um Relatório de Reavaliação Psicológica (Anexo 12), que foi

transmitido à mãe no dia 12 de junho de 2015.

Estabeleceu-se um contrato terapêutico com a mesma, no qual se pretendia que os

acompanhamentos psicológicos fossem realizados semanalmente, em sessões com a duração

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de aproximadamente 30 minutos, tendo em vista a realização de um total de 12 sessões. Uma

vez terminadas as sessões, proceder-se-ia a nova avaliação psicológica.

Mais uma vez, ficou acordado que, ao longo do processo terapêutico se perspetivava

um trabalho conjunto com a progenitora na persecução dos objetivos propostos, devendo

qualquer contato relativamente ao acompanhamento prestado ao menor ser na presença deste.

3.2.4.6. Continuação do Acompanhamento Psicológico

A continuação do acompanhamento psicológico do menor foi efetuada em Regime de

Voluntariado, com duração determinada pelas necessidades da criança e pelo período de

permanência do agregado na Casa de Abrigo.

3.2.4.7. Análise/Discussão Clínica

As crianças não conseguem prever a ocorrência dos episódios de violência, o que lhes

provoca ansiedade e receio que possa voltar a acontecer. Por vezes, podem não querer sair de

perto dos progenitores pois não sabem quando volta a haver um conflito (Maraus & Adelman,

1997, citado por Sani, 2003). O Miguel manifestava ansiedade de separação da mãe,

essencialmente quando ingressou no jardim de infância, mas também, em algumas das sessões

de acompanhamento psicológico. Nas sessões, foi mais evidente na aplicação do Teste do

Desenho da Família, quando lhe foi solicitado que desenhasse a sua família real. Isto pode ter

ocorrido porque o desenhar a sua família o fizesse recordar a mãe, sentido a necessidade de

estar perto dela e/ou do seu ambiente familiar, que pode ter sido traumatizante para a criança.

Um ambiente familiar violento leva, muitas vezes, ao isolamento das crianças que nele

vivem (Wolfe & Korsh, 1994, citado por Sani, 2003). As crianças são instruídas a não falarem

sobre o que veem, a não sentirem o que sentem, a não fazer perguntas, a não contrariar o

agressor e, essencialmente, a não contarem a ninguém o que acontece em casa (Buschel &

Madsen, 2006). Este isolamento reduz a oportunidade da criança para se envolver em

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atividades e relacionar-se com os outros (Wolfe & Korsh, 1994, citado por Sani, 2003). O

Miguel interagia e comunicava pouco com as outras crianças e pessoas, o que poderia ter sido

uma consequência do ambiente familiar em que esteve inserido. Ao longo do tempo de

integração na Casa de Abrigo e com o decorrer das sessões, a criança foi desenvolvendo as

suas capacidades comunicativas, interagindo com maior frequência com os outros.

As dificuldades de alimentação que, segundo a mãe do Miguel, levaram ao

desenvolvimento de uma anemia, podem estar relacionadas com a sua exposição a eventos

traumáticos (Jeffe et al., 1990, citado por Sani, 2003). Do mesmo modo, a atenção e

concentração também pode ter sido afetada (Sani, 2002ª, citado por Sani, 2003)

A baixa estima de si e desvalorização pessoal é uma sintomatologia, tipicamente

apresentada pelas crianças que assistem à violência interparental (Fórum Municipal de

Cascais contra a Violência Doméstica, 2009; Centre for Children and Families in the Justice

System, 2002; Sani, 2006c). Na avaliação psicológica efetuada com o Miguel,

nomeadamente, nos Testes do Desenho da Família, sugeria que a criança apresentava baixa

estima de si, por não se ter desenhado a si própria no desenho da família real. Contudo, ao

longo do acompanhamento psicológico, não foi possível observar esse fator. A criança, pelo

contrário, valorizava os seus desenhos e atividades lúdicas e, quando mencionava jogos e

brincadeiras efetuadas com outras crianças (exteriores ao acompanhamento psicológico)

referia ser melhor e ganhar sempre.

3.2.4.8. Reflexão Pessoal

O caso do Miguel foi o mais desafiante, uma vez que a criança era muito pouco

comunicativa e pouco recetiva relativamente aos procedimentos de avaliação psicológica e à

presença da discente nas atividades lúdicas.

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A primeira avaliação psicológica teve que ser efetuada em três sessões, em vez de

duas, previstas inicialmente, uma vez que apenas foram aplicados dois instrumentos. O

Miguel recusava-se em aceitar aquilo que ia contra a sua vontade. Estas recusas da criança

levantaram muitas questões pessoais à discente, relativamente à sua competência em fazer o

seu trabalho.

Contudo, ao longo do processo terapêutico, o Miguel tornou-se uma criança mais

comunicativa, ainda que sempre ponderada.

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IV Parte – Discussão e Conclusão

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4.1. Discussão e Conclusão

Em Portugal, a violência exercida no contexto familiar passou a ser criminalizada

desde 1982, pelo artigo 153º do Código Penal (Duarte, 2011). Atualmente, a Lei nº. 59/2007

de 4 de setembro, que tipifica o crime de violência doméstica como um crime da natureza

pública, enquadrado no artigo 152º do Código Penal e que se refere a quem praticar maus

tratos físicos e psíquicos a cônjuge ou ex-cônjuge e relações análogas, prevê o agravamento

do limite mínimo da pena do ofensor, caso os atos sejam praticados “contra menor, na

presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima” (Diário da República,

2007). A lei portuguesa reconhece, portanto, o impacto que a violência pode ter nas vítimas e

crianças expostas à violência interparental.

A Lei nº 112/2009 de 16 de setembro veio estabelecer o regime jurídico aplicável à

prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas, tendo como

finalidades o desenvolvimento de politicas de sensibilização, assegurar os direitos das

vítimas, a criação de medidas de proteção de modo a punir, evitar e prevenir a violência

doméstica, assegurar a aplicação de medidas de coação aos autores de crime, entre outros

(Diário da República, 2009).

Neste sentido, o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e

de Género de 2014-2017, tem como objetivos centrais o desenvolvimento de estratégias para

a proteção das vítimas de violência, intervenção com os ofensores, a qualificação dos

profissionais atuantes na área e a melhoria dos acessos e apoio fornecido às vítimas.

Adicionalmente, na área estratégica 2, que estabelece medidas de apoio e proteção das

vítimas, tendo em vista a sua autonomização e acesso às respostas sociais, assim como, a

prevenção da vitimização, identifica, também, na medida nº21, a necessidade de protocolos de

atuação em situações que abrangem crianças e jovens expostas à violência doméstica e

apresenta como objetivos a execução de ações de sensibilização para os agentes que intervém

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nesses processos. Do mesmo modo, na área estratégica 4, que se refere à formação e

qualificação dos profissionais atuantes na área da violência doméstica, a medida nº47,

pretende a qualificação dos mesmos na intervenção junto de crianças e jovens expostos à

violência interparental (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, 2015).

Segundo a APAV, durante o ano de 2014, a nível nacional, deu-se um aumento do

número de vítimas (idosos, crianças e jovens, mulheres e homens), comparativamente ao ano

anterior. Dos casos recebidos nos Gabinetes de Apoio, observaram que a maioria das vítimas

é mulher, entre os 20 e os 54 anos, casada, com habilitações literárias referentes ao ensino

superior e empregadas. Relativamente ao perfil do agressor, e homem, entre os 25 e os 54

anos, casado e empregado. A tipologia de violência mais identificada foi a psicológica,

seguido a física e da ameaça/coação. A violência tende a ser perpetrada de forma continuada,

com duração entre os 2 e os 6 anos e na residência comum (Associação Portuguesa de Apoio

à Vítima, 2015).

Na Casa de Abrigo Nova Esperança, em 2014 foram acolhidos 16 agregados, com uma

redução de 9, comparativamente ao ano anterior. Quanto ao perfil da vítima, é mulher (a Casa

de Abrigo acolhe apenas vítimas do género feminino), entre os 34 e os 49 anos, portuguesa,

solteira, com o 3º ciclo completo, desempregada e com um filho. Relativamente ao ofensor

foi, maioritariamente, o cônjuge. A tipologia de violência mais identificada pelas mulheres

acolhidas foi a violência psicológica, seguida da violência física e com uma duração de entre

6 a 8 anos (Casa de Abrigo Nova Esperança, 2014b).

Existem, a nível nacional, 37 Casas de Abrigo, perfazendo um total de 639 vagas de

acolhimento para mulheres vítimas e respetivos filhos. A Casa de Abrigo Nova Esperança

abriga até 20 pessoas e durante o triénio de 2012 a 2014 foram integrados 66 agregados, o que

equivale a 155 utentes, mulheres e filhos. Apesar de não haver informação relativa ao total de

acolhimentos efetuados a nível nacional, o número apresentado apenas pela Casa de Abrigo

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Nova Esperança remete para a reflexão da quantidade de pessoas que abandonam as suas

casas para fugir à violência a que estão sujeitas. Mostra-se pertinente continuar a trabalhar no

sentido de desenvolver novas estratégias de atuação e prevenção do fenómeno, assim como,

na evolução do acesso e apoio fornecido às vítimas.

A violência doméstica apresenta consequências severas na vida das vítimas mulheres e

nas crianças. A exposição à violência interparental é considerada uma forma de violência

infantil. As crianças são caraterizadas como vítimas “silenciosas”, pois, frequentemente, são

esquecidas as consequências que a violência doméstica apresenta no desenvolvimento

saudável da criança (Sani & Cardoso, 2013).

No seguimento da Abordagem Centrada na Pessoa, não foram atribuídos diagnósticos

específicos aos casos apresentados. Os acompanhamentos psicológicos com as crianças

tiveram como base a ludoterapia centrada na criança, abordagem que facilitava a expressão

dos sentimentos da criança de forma não diretiva. A avaliação efetuada em ambos os casos

revelou a presença de sintomatologia diversa, que se assemelha em alguns aspetos entre os

casos e também com a literatura atual existente. Aparentemente, a exposição à violência

interparental ou, por consequência, a escassez de um ambiente familiar estruturante e

propenso ao desenvolvimento saudável da criança, levou à incongruência entre o self e a

experiência do organismo, uma vez que estas crianças tendem a avaliar a sua experiência

através dos juízos de valor dos outros (Rogers, 1959). Este conflito origina instabilidade

emocional (Brodley, 1998) e o organismo entra em incongruência (Mearns, 2003),

manifestando a sintomatologia que se percebeu estar presente nestas crianças.

O apoio psicológico é fundamental. Ao longo do estágio foi possível observar o

contributo dos acompanhamentos psicológicos efetuados com os utentes da Casa de Abrigo.

A ansiedade manifestada pelas utilizadoras e filhos, aquando da entrada, ia sendo atenuada ao

longo do tempo, graças ao apoio psicológico, mas também ao contributo de todos os técnicos

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que integram a Casa de Abrigo que, pela sua formação e por já estarem familiarizados com

estas situações, desenvolveram competências nesse sentido.

Como estagiária foi gratificante trabalhar com estas pessoas, mulheres, crianças

acolhidas e técnicos, pelos ensinamentos que, apesar de muito diferentes, com um contributo

enorme para o crescimento pessoal e profissional. Existe um elevado profissionalismo por

parte da Equipa Técnica mas, num ambiente acolhedor, com bases na compreensão, educação

e ajuda. O trabalho desenvolvido na Casa de Abrigo teve um contributo positivo bidirecional,

possível de perceber pelo feedback dos técnicos e pela evolução observada nos casos em que

houve um acompanhamento psicológico de maior duração e, também, porque permitiu o

desenvolvimento de competências de atendimento, encaminhamento e apoio às vítimas de

violência doméstica, assim como, ao nível do acompanhamento e da avaliação psicológica.

Cada um dos casos teve um contributo e aprendizagem diferente. Com as crianças, o

estabelecimento da relação terapêutica surgia de forma mais imediata, contudo, mostrou-se

mais desafiante ao nível da compreensão dos casos, uma vez que a sua forma de expressar é

através do lúdico. Foi positivo pois exigiu à discente o aprofundamento dos seus

conhecimentos teóricos. Com as mulheres vítimas, verificou-se o oposto, o estabelecimento

de uma relação terapêutica com confiança levava mais tempo, com alguma superficialidade

inicial mas, uma vez que as suas experiências são verbalizadas, a compreensão e aceitação

incondicional das mesmas surgia com maior facilidade.

Todos os casos foram diferentes, cada pessoa é única. Apesar da semelhança na

situação vivencial, tanto das mulheres vítimas como das crianças, as suas experiências eram

sentidas e interpretadas de formas bastante distintas, afetando-as com maior ou menor

intensidade consoante a sua personalidade e as suas vivências. Este fator permitiu à discente

uma aprendizagem fundamental, a aceitação e compreensão do sofrimento do outro, na sua

perspetiva, sem juízos de valor.

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Como todos os locais de trabalho e essencialmente instituições sem fins lucrativos,

existem algumas limitações. A primeira limitação encontra-se ao nível da avaliação

psicológica, seria importante haver um maior número de instrumentos de avaliação

psicológica direcionados a adultos e crianças. A Casa de Abrigo tem as escalas fundamentais

ao despiste de sintomatologia associada à violência doméstica e interparental, contudo, na

necessidade de aprofundar alguns aspetos da personalidade, não têm à sua disposição uma

bateria de testes suficiente. A segunda, diz respeito à quantidade de técnicos que existem na

Casa de Abrigo. A Equipa Técnica tem apenas dois técnicos a tempo integral que acumulam

todo o tipo de funções inerentes à Casa de Abrigo. A quantidade de trabalho desenvolvida

diariamente é excessiva apenas para duas pessoas. Os estágios académicos e profissionais

surgem como uma ajuda neste sentido mas, ainda assim, seria importante a integração de mais

um técnico.

Seria pertinente, nas sessões de grupo, desenvolver atividades de promoção da

interajuda e desenvolvimento de competências interpessoais, uma vez que as mulheres

vítimas, por vezes, entram em conflitos. No mesmo sentido, seria importante, o trabalho ao

nível das competências parentais. As mães, muitas vezes estavam absorvidas nos problemas

decorrentes da violência doméstica, procura de emprego, questões jurídicas, entre outros, que

não tinham disponibilidade para fornecer o afeto e estabilidade emocional necessária aos

filhos. Foi possível, em alguns momentos, perceber que o acompanhamento psicológico

apresentava uma evolução positiva nas crianças mas que, por falta de estruturação no exterior

às sessões, havia um retrocesso. Trabalhar em conjunto com as mães para proporcionar o

bem-estar dos filhos seria uma forma eficaz e rápida de obter resultados positivos.

Adicionalmente, as mães podem recear o trabalho desenvolvido pelos técnicos, devido

às experiências anteriores e à dificuldade, muitas vezes manifestada, em confiar no outro.

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Assim, o trabalho dos técnicos diretamente com as mulheres vítimas e com os seus filhos é

dificultado.

É imprescindível trabalhar no sentido de encontrar as respostas mais adequadas a cada

situação. A investigação científica é fundamental para que possamos evoluir na intervenção e

no apoio fornecido às vítimas de violência. A contínua formação dos técnicos permite-lhes

uma atuação posterior mais eficaz. A Pelo Sonho – Cooperativa de Solidariedade Social

caminha nesse sentido e, apesar das pequenas limitações, concretiza os seus objetivos.

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