democracia elitist a

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 ELIEL RIBEIRO MACHADO 123 Os limites da democracia burguesa e a prática política elitist  a * Eliel Ribeiro Machado** Resumo: Este artigo resgata a crítica marxista à democracia representativa, mostra os seus limites estruturais e a presença de instituições de caráter elitista — como o colégio de líderes — nas democracias burguesas. Introdução Estamos no limiar do século XXI e continuamos discutindo a questão da democracia, que está envolvida num conjunto de questões sociais, políticas e econômicas. Enquanto na sociedade burguesa ela é uma forma e um regime político possível, no Estado socialista ela é a sua própria essência, ou seja, é o seu regime político e o seu exercício, inclusive pela via não-estatal do poder político de uma classe social não- exploradora. Procuraremos fazer uma discussão que cerque os debates travados dentro do marxismo, à luz de algumas das várias tendências presentes nesta corrente do pensamento contemporâneo. Sob o manto teórico do marxismo, debateremos o significado da democrac ia, os seus limites estruturais e a prática política elitista nas sociedades capitalistas contemporâneas onde funcionam as democracias representativas. No caso da sociedade brasileira, um dos espaços políticos em que se encontram práticas políticas elitistas é a Câmara dos Deputados, atrav és, por exemplo, do seu colégio de líderes. Por conta disso, faz-se premente, também, definir o significado de democracia representativa e participativa. A discussão que pretendemos desenvolver aqui poderá contribuir para uma reflexão sobre os mecanismos políticos que os trabalhadores dispõem para ultrapassar os obstáculos institucionais impost os pelo próprio capitalismo às reais possibilidades de transformações sociais que se t raduzam na construção de um novo tipo de sociedade, uma sociedade sem classes sociais. Democracia: breve definição Em poucas palavras, se tivermos que definir a democracia, poderíamos concebê- * Este texto está baseado na dissertação de mestrado O colégio de líderes no  parlament o brasileiro e a  participação  política dos  partidos de esquerda: PT, PDT, PSB e PC do B., São Paulo, PUC, 1997. ** Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Pardo e membro do Neils.

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  • ELIEL RIBEIRO MACHADO 123

    Os limites da democraciaburguesa e a prticapoltica elitista*

    Eliel Ribeiro Machado**

    Resumo:

    Este artigo resgata a crtica marxista democracia representativa, mostraos seus limites estruturais e a presena de instituies de carter elitista como o colgio de lderes nas democracias burguesas.

    IntroduoEstamos no limiar do sculo XXI e continuamos discutindo a questo da democracia,

    que est envolvida num conjunto de questes sociais, polticas e econmicas. Enquantona sociedade burguesa ela uma forma e um regime poltico possvel, no Estadosocialista ela a sua prpria essncia, ou seja, o seu regime poltico e o seuexerccio, inclusive pela via no-estatal do poder poltico de uma classe social no-exploradora.

    Procuraremos fazer uma discusso que cerque os debates travados dentro domarxismo, luz de algumas das vrias tendncias presentes nesta corrente dopensamento contemporneo.

    Sob o manto terico do marxismo, debateremos o significado da democracia, osseus limites estruturais e a prtica poltica elitista nas sociedades capitalistascontemporneas onde funcionam as democracias representativas. No caso dasociedade brasileira, um dos espaos polticos em que se encontram prticas polticaselitistas a Cmara dos Deputados, atravs, por exemplo, do seu colgio de lderes.Por conta disso, faz-se premente, tambm, definir o significado de democraciarepresentativa e participativa.

    A discusso que pretendemos desenvolver aqui poder contribuir para umareflexo sobre os mecanismos polticos que os trabalhadores dispem para ultrapassaros obstculos institucionais impostos pelo prprio capitalismo s reais possibilidadesde transformaes sociais que se traduzam na construo de um novo tipo de sociedade,uma sociedade sem classes sociais.

    Democracia: breve definioEm poucas palavras, se tivermos que definir a democracia, poderamos conceb-

    * Este textoest baseadona dissertaode mestradoO colgio delderes noparlamentobrasileiro e aparticipaopoltica dospartidos deesquerda: PT,PDT, PSB ePC do B., SoPaulo, PUC,1997.

    ** Mestre emCinciasSociais pelaPontifciaUniversidadeCatlica deSo Paulo,professor deSociologia daFaculdade deFilosofia,Cincias eLetras de SoJos do RioPardo emembro doNeils.

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    la como uma forma de governo na qual, em contraposio s monarquias e saristocracias, o povo governa. A democracia implica um Estado em que existe algumaforma de igualdade poltica [grifos do autor] entre o povo (Held, 1987: 1). assimque Held inicia o seu livro Modelos de democracia. Nele, o autor procura esboar osquatro modelos de democracia clssica, protetora, desenvolvimentista e direta eas suas variantes contemporneas (Held, 1987).

    Bobbio, tambm procurando dar sentido ao conceito de democracia, define-a emtermos mnimos, mas apenas levando em conta as democracias representativas, poisele inicia assim o seu argumento: afirmo preliminarmente que o nico modo de sechegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta atodas as formas de governo autocrtico, o de consider-la caracterizada por umconjunto de regras (primrias ou fundamentais) que estabelecem quem est autorizadoa tomar decises coletivas e com quais procedimentos (Bobbio, 1992: 18). Notamosque o autor procura definir a democracia nos termos daqueles que esto autorizadosa tomar decises e com quais regras. Um pouco adiante, diz ele: mas at mesmo asdecises de grupo so tomadas por indivduos (o grupo como tal no decide). Porisso, para que uma deciso tomada por indivduos (um, poucos, muitos, todos) possaser aceita como deciso coletiva preciso que seja tomada com base em regras (noimporta se escritas ou consuetudinrias) que estabelecem quais so os indivduosautorizados a tomar as decises vinculatrias para todos os membros do grupo, e base de quais procedimentos (Bobbio, 1992: 18-19).

    Em outras palavras, ainda segundo Bobbio, as democracias deixaram de cumpriralgumas de suas promessas, mas, mesmo assim, as promessas no cumpridas e osobstculos no previstos de que me ocupei no foram suficientes para transformar osregimes democrticos em autocrticos. A diferena substancial entre uns e outrospermaneceu. O contedo mnimo do Estado democrtico no encolheu: a garantiados principais direitos de liberdade, a existncia de vrios partidos em concorrnciaentre si, eleies peridicas e sufrgio universal, decises coletivas ou concordadas(nas democracias consorciativas ou no sistema neocorporativo) ou tomadas combase no princpio da maioria, e de qualquer modo sempre aps um livre debate entreas partes ou entre os aliados de uma coalizo de governo (Bobbio, 1992: 37).

    O autor procura enumerar alguns aspectos formais para a existncia e manutenodos regimes democrticos, embora a sua preocupao tambm se estenda a umaoutra abordagem: determinar os espaos onde se vota. Segundo ele, a preocupaocontempornea no mais quem vota, mas sim, onde se vota. Dessa maneira, ocerto procurar perceber se aumentou no o nmero dos que tm o direito departicipar nas decises que lhe dizem respeito, mas os espaos nos quais podemexercer este direito, afirma Bobbio (1992: 28).

    J para Dcio Saes, a democracia assume caractersticas histricas prprias emqualquer tipo histrico de Estado, seja ele escravista, feudal, asitico ou mesmoburgus. Teremos democracia num determinado Estado, na medida em que o rgode representao da classe exploradora, o parlamento, seja capaz de intervir noprocesso de execuo de polticas do prprio Estado. Se essa interveno direta do

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    parlamento no ocorrer, ento teremos a ditadura. Mas sua definio de democraciaburguesa clara: um regime poltico burgus s efetivamente democrtico quandoo Estado assegura de fato as liberdades polticas (expresso, reunio, organizaopartidria) codificadas nos textos legais. Caso contrrio, no passa de uma ditaduradisfarada (...), (Saes, 1987: 62). O conceito de democracia apresentado por Saesest dentro de uma estrutura terica marxista, de uma sociedade dividida em classessociais, onde o proletariado, por exemplo, exercita suas liberdades polticas e civiscom limitaes fundamentais nas sociedades capitalistas.

    Para algumas correntes do pensamento marxista, a democracia uma das formasdo Estado capitalista burgus e um dos regimes polticos possveis, entre outros,como a ditadura (Saes, 1987: 93-94). A democracia um padro de organizaointerna das atividades estatais, cabveis em qualquer tipo histrico de Estado, como oescravista, o asitico, o feudal e o burgus (Saes, 1987: 22-23 e 33).

    Entretanto, se de um lado a democracia um padro de organizao interna dasatividades burocrticas, de outro, ela plausvel em qualquer tipo histrico de Estado,uma vez que estabelece um modo de relacionamento entre o corpo de funcionrios ea classe exploradora. Esse grupo de funcionrios corresponde a homens especiais,designados para desempenhar a funo de agentes amortecedores do conflito declasses e, ainda, esto empenhados em frustrar a revoluo social. importante dizerque esses homens so deslocados parcial ou totalmente do processo de produo(Saes, 1987: 14 -23).

    Saes tambm d a sua definio de um Estado democrtico: regime polticodemocrtico no a efetividade do pluralismo partidrio ou da competio entreforas civis, mas o elenco de possibilidades objetivas abertas pelo Estado, na suaforma democrtica, ao organizada divergente ou consensual dos membrosda classe exploradora, com vistas a intervir de fato no processo decisrio estatal(Saes, 1987: 25).

    Estamos, dessa maneira, caracterizando a democracia como forma e como regimepoltico de um Estado histrico. Se este contm um rgo de representao direta daclasse exploradora, ento teremos uma democracia burguesa na concepo deSaes. Qualquer tipo histrico pode organizar-se internamente de diferentes modos,ou seja, pode abrigar, ou no, rgos de representao direta da classe exploradora(Saes, 1987: 20).

    Mas, qual a relao entre forma de Estado e democracia? Segundo Saes, nodevemos nos concentrar totalmente apenas sobre o Estado. Antes necessrioobservar o campo sobre o qual incide a poltica de Estado, ou seja, ao das classessociais antagnicas (exploradora e explorada), com vistas a preservar ou suprimir aexplorao do trabalho (Saes, 1987: 20).

    A democracia, mesmo burguesa, requer algumas condies mnimas para suaexistncia, como as liberdades polticas e com estas a organizao partidria. Estasliberdades tm um carter formal, mas nem por isso deixam de ser concretas, segundoSaes (1987: 62).

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    A democracia de que estamos falando aqui analisada sob a tica da luta declasses, ou seja, de uma sociedade cindida historicamente em classes sociaisantagnicas.

    Os idelogos do socialismo vo criticar as concepes liberais da democraciapelo seu carter meramente representativo, onde no se pratica a democraciadireta (Bobbio, 1994: 324). Reivindicam a participao popular e tambm o controledo poder a partir de baixo e que se estenda a todas as esferas da vida social.Alm disso, criticam tambm o fato de que nas democracias capitalistas o poderestatal fundamental para a manuteno da ordem capitalista. Por isso, aopropugnarem a democracia socialista, incluem nela o fim do Estado no processotransitrio, para que, no futuro, com o comunismo, atinjamos o fim da poltica.Segundo Held, o governo e a poltica em todas as suas formas daro lugar autoregulamentao e, todos os assuntos pblicos [sero] governadoscoletivamente. Trata-se de alguns aspectos fundamentais do comunismo. Nosaspectos gerais, temos um importante: todos os vestgios de classe desaparecemalm da eliminao dos mercados, da troca e do dinheiro (Held, 1987: 123).

    Lenin um crtico feroz das democracias burguesas, embora ele reivindique queo socialismo, na sua fase transitria, deve se constituir numa ditadura do proletariado.Conforme observa Wright, para Lenin a violncia do Estado no apenas um meiomas tambm um fim a seu dispor para a dominao de classe e a supresso da luta declasses. Entretanto, esta uma caracterstica de qualquer Estado, inclusive o socialista(Wright, s/data).

    Citando Lenin, o autor diz que a democracia um abrigo poltico para o capitalismo.Assim, quando o capital toma posse dela, solidifica-se de tal sorte que nenhumamudana de pessoa, de instituies ou partidos pode abal-la. Os capitalistas controlamas instituies, mas estas tambm se estruturam de modo a garantir o seu controle porparte dos capitalistas.

    Seguindo ainda essa linha de raciocnio, temos o parlamento como instrumentode dominao da classe exploradora. A estrutura da prpria sociedade burguesagarante o controle dele pela burguesia (Wright, s/data: 173). Assim como o parlamento um instrumento de dominao da classe exploradora sobre a classe explorada,como tambm um instrumento de mistificao dessa explorao, pois d a impressode que os representantes eleitos pelo povo governam o Estado, quando, na verdade,as decises so tomadas nos bastidores, a burocracia tambm vai ser um instrumentoapropriado dominao. Ela tem uma estrutura prpria para desempenhar o papelde amortecer o conflito de classes e frustrar a revoluo social.

    importante notar que o conceito de democracia na sociedade comunista estrecheado de um sentido diferente dos valores imaginados nas sociedades capitalistase mesmo na socialista. Ento cria-se um divisor de guas: pensa-se a democraciacom ou sem Estado, com ou sem poder, com ou sem classes sociais. Os tericos dosocialismo e, via de regra, do comunismo, tentam pens-la das duas maneiras, mesmoem se tratando de um Estado transitrio, deve-se lev-lo em conta.

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    Quando falamos de democracia socialista, estamos nos referindo ao poder polticoproletrio e s organizaes de base. Conforme declara o prprio Saes, a democracianeste caso a prpria essncia do Estado socialista proletrio, e no uma daspossibilidades como se poderia pensar.1 O exerccio do poder poltico aqui no-estatal, pois a meta a eliminao do Estado de forma progressiva.

    Para o liberalismo, a democracia seria o reconhecimento e a garantia de algunsdireitos fundamentais, como o direito de liberdade de pensamento, de religio, deimprensa, de reunio, etc. Entretanto, a democracia deve ser representativa ouparlamentar, na qual o dever de fazer leis diz respeito no a todos os cidadosreunidos em assemblia, mas a um corpo restrito de representantes, eleitos poraqueles cidados aos quais so reconhecidos direitos polticos. Portanto, a participaopoltica se d atravs de uma das muitas liberdades individuais que o cidadoreivindicou e conquistou contra o Estado absolutista.

    Segundo a concepo liberal, a democracia no pode existir se no existiremalguns direitos fundamentais de liberdade que tornam possvel uma participao polticaguiada por uma determinao da vontade autnoma de cada indivduo.2

    Held nos chama a ateno para o seguinte, ao se discutir as concepes dedemocracia entre os liberais: deve-se enfatizar que de forma alguma os liberais, dopassado e do presente, foram democratas e vice-versa (Held, 1987: 5).

    No procuramos aqui trazer argumentos consensuais entre os marxistas acercada democracia. Pelo contrrio, queremos suscitar o debate e mostrar a riqueza deinterpretaes que existem no marxismo em discusses desse tipo. Dessa maneira,quando abordamos a questo da democracia, sob a tica do marxismo, precisolevar em conta que o pensamento marxista no monoltico, ou seja, ele se subdivideem vrias correntes que reivindicam tal denominao. E exatamente por isso queHeld sustenta que o marxismo contemporneo se divide em, pelo menos, trs grandescampos que sero denominados aqui de libertaristas (por exemplo, Paul Mattick,1969), pluralistas (por exemplo, Nicos Poulantzas, 1980) e ortodoxos (por exemplo,marxistas-leninistas). Cada um destes grupos (ou escolas do marxismo) afirma, emparte, envergar o manto de Marx (Held, 1987: 119).

    Podemos dizer que o marxismo libertarista mantm, em resumo, que Marxera um campeo da transformao democrtica da sociedade e do Estado e umcrtico consistente da hierarquia, da autoridade centralizada e de todas as formasde planejamento detalhado (Held, 1987: 120). Enquanto os marxistas libertaristasentendem que no podem haver compromissos com o Estado, uma vez que eleencarna o poder condensado e o instrumento de poder dos interesseseconmicos dominantes, os marxistas pluralistas enfatizam que as instituiesestatais gozam de um certo grau de independncia em relao s classesdominantes. Dessa maneira, eles vo enfatizar a importncia da utilizao destasinstituies contra os interesses do capital (Held, 1987: 120). Os pluralistas aindavo mais longe, explicando que nos pases onde a tradio liberal democrtica

    1. Apossibilidadeda democraciapertence atodos os tiposde Estado pr-burgueses eburgueses.

    2. Essa aforma comoBobbio(1994: 323)delimita aconcepo dedemocraciaentre osliberais.

    4. O programa poltico do PC do B defende a ditadura do proletariado, uma sociedade sem classes sociais e ocomunismo (cf. Bibliografia ao final deste trabalho).

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    estiver bem estabelecida, a transio para o socialismo deve utilizar os recursosdesta tradio a urna de votao, o sistema de competio de partidos primeiro, para ganhar o controle do Estado e, segundo, para usar o Estado parareestruturar a sociedade. O princpio da urna de votao no deveria ser eliminado:no se pode criar uma nova ordem democrtica de uma maneira que se esquive sconquistas de lutas passadas pela emancipao poltica (Held, 1987: 120-121).

    Podemos observar como transparece a concepo de democracia entre ospluralistas, como diz Held. Se para os libertaristas ela equivale a organizar ostrabalhadores como na Comuna de Paris, ou numa estrutura de conselho, para que aluta no seja vulnervel a decises que podem ser exploradas por novas formas depoder desptico, para os pluralistas o partido da classe trabalhadora pode e deveobter uma posio segura e legtima no Estado para ser capaz de reestruturar omundo poltico e social (Held, 1987: 121).

    Enfim, ainda seguindo com Held, temos que os marxistas ortodoxos enfatizam(juntamente com os marxistas libertrios) que o moderno Estado representativo umafora repressora especial para a regulamentao da sociedade em funo dosinteresses da classe economicamente dominante. A crtica democracia liberal vemrecheada com o seguinte sentido: o Estado democrtico liberal precisa criar a ilusode que a sociedade democraticamente organizada, mas isso no mais que umailuso; pois a explorao do trabalho assalariado pelo capital assegurada dentro daestrutura da democracia liberal. E mais ainda: as eleies peridicas no alterameste processo em absoluto. Portanto, o Estado no pode simplesmente ser tomado econtido por um movimento democrtico; sua estrutura coercitiva tem de ser conquistadae esmagada (Held, 1987: 121). Como se faz premente a tomada do poder para seexecutar as mudanas estruturais necessrias, como acabamos de afirmar, ento osmarxistas ortodoxos argumentam que a transio para o socialismo e o comunismonecessitam da liderana profissional de um grupo disciplinado de revolucionrios.Para isso essencial um partido revolucionrio, capaz de criar a estrutura para osocialismo e o comunismo (Held, 1987: 122).

    Os limites da democracia burguesa

    Tomando por base as discusses levantadas por Saes (1987) e Held (1987),abordaremos a democracia burguesa do ponto de vista dos seus limites intrnsecos,caractersticos de sua prpria sociedade.

    Por mais que tenha havido a expanso dos direitos polticos e civis nestasociedade, ela est limitada democraticamente exatamente no ponto em que secoloca em xeque a explorao do trabalho pelo capital. Quando os trabalhadoreschegam a questionar tal explorao, via seus sindicatos ou partidos polticos,ento temos um momento de crise aguda do Estado burgus. Este deixa de serdemocrtico e passa a ditatorial, inclusive afetando as liberdades polticas dosintegrantes da classe exploradora. Isso ocorre porque a democracia burguesaconcede a todos os homens, independente de sua posio no processo social de

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    produo, a cidadania poltica e civil.

    Propomos discutir a democracia dentro do atual contexto histrico em que elase apresenta, ou seja, analis-la sob a sociedade burguesa, indiscutivelmentecindida em classes sociais. No podemos ignorar o carter concentrador daeconomia capitalista contempornea, o que possibilitou ao capital privado obtervitrias nas lutas contra o trabalho, como bem lembra David Held (1987: 194).

    No porque a democracia burguesa no resolve as gritantes desigualdadessociais nem esse o projeto da classe exploradora que devemos desconsideraras conquistas sociais, polticas e econmicas dos trabalhadores. Estas foram obtidasao longo da histria das lutas de classes, muitas vezes com derramamento de sangue.Mas, por outro lado, no porque o proletariado obteve estas conquistas que ademocracia formal da sociedade burguesa suficiente.

    Alguns segmentos da esquerda na Amrica Latina, em geral, e no Brasil, emparticular, aderiram a uma concepo ingenuamente otimista e facilista da democracia,que repousa em dois supostos: a) o carter supostamente linear e irreversvel dosprocessos democrticos (...); b) a crena, teoricamente errnea e historicamentefalsa, de que a democracia um projeto que se esgota apenas na normalizao dasinstituies polticas. A empresa dramtica de instaurar a democracia se reduz criaoe institucionalizao apenas de uma ordem poltica, isto , um sistema de regras dojogo que faz abstrao de seus contedos ticos e da natureza profunda dosantagonismos sociais e que apenas coloca problemas de governabilidade e eficciaadministrativa (Born, 1995: 65).

    Esta transcrio, um tanto longa, serve para percebermos, de um lado, a naturezaformalista-institucional da luta poltica dos partidos socialistas de um modo geral, inclusiveas conseqncias polticas que tero em funo disso como veremos mais adianteem Przeworski e, de outro, o carter dessas lutas que o proletariado podeempreender, ou seja, transpor os aspectos formais mas sem desconsider-los comvistas construo de uma sociedade socialista.

    Uma das crticas do marxismo ao liberalismo refere-se ao sufrgio universal que,enquanto para os liberais o ponto de chegada no processo democrtico, para omarxismo significa o ponto de partida. As crticas no param por a: de um lado, ataca-se a democracia burguesa pelo seu carter apenas representativo e, de outro, pelafalta de mecanismos de controle por parte dos trabalhadores.

    O limite da democracia burguesa est exatamente no ponto em que os interessesdo capital se vejam ameaados. Os trabalhadores no podem, pelas vias institucionais,propor a abolio da mais-valia e o controle democrtico dos meios de produo. Seo fizerem, tero seus partidos polticos proscritos e os mandatos dos seus representantescassados. Alis, o programa poltico dos seus partidos no podem conter tais intenes(Saes, 1987).

    Na luta pelo socialismo, aos partidos de esquerda parece que no sobram muitasalternativas polticas, pois eles so obrigados a se adaptar s ordens institucionais

    8. Veja especialmente sobre isso os depoimentos do ex-deputado Nelson Jobim (PMDB-RS), publicados peloCebrap em 1994.

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    para atuarem politicamente, como lembra Przeworski. E isso parece apontar tambmpara os limites estruturais das sociedades democrticas capitalistas. Przeworski apontapara o seguinte problema dos partidos de esquerda: eles se adaptam aos ventosdemocrticos e isso lhes ocasiona alguns nus polticos. Diz ele: a primeira escolhacom que se defronta qualquer movimento que procura constituir os operrios emclasse entre participar ou no das instituies polticas burguesas, maisespecificamente, das instituies eleitorais. Essa questo continua a dividir osmovimentos da classe operria, desde a separao ocorrida na Primeira Internacional,em 1870, passando pelos debates na Segunda Internacional sobre a participaonos governos burgueses e chegando at nossos dias. Contudo, precisamente pelofato dos trabalhadores serem explorados como produtores imediatos, e precisamenteporque as eleies so, dentro de limites, teis para a satisfao de seus interessesmateriais de curto prazo, todos os partidos socialistas entram em lutas eleitorais ouperdem seus adeptos. E ele continua: a necessidade de organizar o operariado nocampo das instituies eleitorais tem profundas conseqncias para a prtica polticados partidos socialistas. Eles se tornam os partidos eleitorais da classe operria(Przeworski, 1991: 95). Tal citao se justifica pela oportunidade do argumento frente nossa discusso. Quer dizer, na medida em que um partido socialista participa doprocesso eleitoral, ele se torna um partido eleitoral, e isso tem um nus poltico, queanalisaremos a seguir.

    Com a participao dos partidos operrios em eleies, estes so obrigados aampliar o conceito de proletariado. Isso faz com que, a fim de ganhar votos, faamapelos poltico-eleitorais a membros de outras classes sociais. Ocorrendo isto, h umadescaracterizao do partido enquanto representante da classe explorada por umaclasse exploradora.3 Ao adotarem essa postura poltica podem participar das eleies,pois falam em nome do povo. Por outro lado, ainda devem aceitar em seus quadrospessoas das mais diversas classes sociais, inclusive da classe exploradora.

    Mas as conseqncias negativas no param por a. Przeworski vai mais longe:essa fuso do processo de formao da classe operria com a mobilizao polticaque extrapola os limites de classe tem conseqncias que ultrapassam a busca dealiados eleitorais.(...). Na medida em que os movimentos socialistas apelam aos queno so operrios, desfazem aquele vnculo privilegiado, aquele relacionamentoexclusivo entre o proletariado e o seu partido. Deixam de ser aquela expressoorgnica da misso histrica do proletariado, distinta de e oposta a todos osoutros partidos. Contudo, a dissociao do vnculo entre os operrios e o movimentosocialista produz o efeito global de fortalecer a imagem de uma sociedade semclasses [grifo meu], diminuindo a relevncia da classe como base para a identificaocoletiva (Przeworski, 1991: 98).

    Assim, como o carter de classe se dilui em meio ao processo institucional-eleitoral, a identificao coletiva se d em outras bases, como a renda, religio, sexo,cor, raa, natureza do trabalho, etc. Przeworski finaliza: (...) o processo de organizaodas massas desorganiza os operrios (Przeworski, 1991: 98).

    3. Faz-senecessrioconceituaraqui o que

    entendemospor classe

    exploradora(burguesia) e

    classe ex-plorada(prole-

    tariado): porburguesia

    entende-se aclasse dos

    capitalistasmodernos,

    proprietriosdos meios de

    produosocial, que

    empregam otrabalho

    assalariado.Por

    proletrio, aclasse dos

    trabalhadoresassalariados

    modernosque, notendo osmeios de

    produo,so obrigadosa vender sua

    fora detrabalho para

    sobrevive-rem (Marx eEngels, 1988:

    75).

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    luz dos desejos da classe explorada, os partidos socialistas, nos moldes do quevimos aqui, no se distinguem dos demais, inclusive dos representantes da classeexploradora. Alis, para participarem, e no serem excludos dos processosinstitucionais, no devem ser muito diferentes.

    Segundo Saes, mesmo os liberais concordam que devem haver certos limites aoexerccio da democracia, pois, argumenta, do contrrio ela ficaria invivel. No sepode ter liberdade para querer acabar com a prpria liberdade poltica.

    Enquanto para os liberais os limites da democracia so esses, para os marxistas o prprio capital o seu grande limitador. Em casos de crise poltica grave ou emsituaes revolucionrias, em que o capital tem suas estruturas ameaadas, norestam dvidas de que a democracia estar comprometida seriamente.

    Conhecemos os limites da democracia burguesa e talvez este seja um dos principaismotivos pelos quais a participao da sociedade tem se limitado ao ato de escolher osseus representantes. Sem desconsiderar que a democracia burguesa representaum salto qualitativo com relao s democracias pr-burguesas (escravista, feudal)(Saes, 1987: 50), preciso ter em conta, os limites impostos liberdade poltica emgeral numa democracia burguesa (Saes, 1987: 63). Assim, probe-se, aos partidosrevolucionrios, a defesa, no terreno das campanhas eleitorais ou no da aoparlamentar, da totalidade [grifo do autor] do seu programa poltico. Uma parte de seuprograma aquela que prope a dissoluo do aparelho estatal burgus e o definecomo condio para a implantao efetiva do socialismo deve permanecer ausenteda ao partidria legal (Saes, 1987: 65). A oportunidade dessa discusso vem deencontro com questes que a sociedade poderia discutir e no o faz, pois entraria emchoque com interesses das classes dominantes, nacional e internacional. Ento, olimite dessa democracia residiria no fato de que tudo pode ser questionado desde queos interesses do capital no estejam ameaados. Alm disso, quando o cidadoparticipa da vida poltica do seu pas, ele no faz em p de igualdade com outrosatores sociais, como j dissemos anteriormente. Nesse sentido, diz Held: ficaabundantemente claro, como j foi observado na discusso sobre a anlise deSchumpeter das condies para a participao poltica, que muitos grupos no tmrecursos para competir na arena poltica nacional com a influncia, por exemplo, depoderosas corporaes, nacionais ou multinacionais. Muitos no tm os recursosmnimos necessrios mobilizao poltica (Held, 1987: 182). Em outras palavras, adespeito da participao do indivduo na arena poltica, tal participao j est limitadapela prpria estrutura da sociedade capitalista, uma vez que o mesmo encontradesvantagens em tal participao, por um lado, e, por outro, o questionamento nopode colocar em xeque a estrutura social, ou, se quisermos, afirmar a socializaodos meios de produo.

    Quando Saes sustenta que todos os partidos revolucionrios no podem ter vidalegal, por estarem excludos da participao institucional, no devemos nos esquecerque, por exemplo, o programa do Partido Comunista do Brasil, pelos critrios levantadosaqui pelo autor (programa socialista, dissoluo do Estado e socializao dos meios

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    de produo), aponta nessa mesma direo, mas, nem por isso, ele deixa de ter umavida legal; ao contrrio, participa do parlamento e, mais ainda, realiza seus congressosabertos ao pblico, alm de publicar e vender seus documentos.4

    Sem a preocupao de atribuir rtulos aos partidos polticos de esquerda seso ou no revolucionrios , tambm no caso do PT, seu programa defende umEstado dirigido por trabalhadores: lutamos pela construo de uma democracia quegaranta aos trabalhadores, em todos os nveis, a direo das decises polticas eeconmicas do Pas. Uma direo segundo os interesses dos trabalhadores e atravsde seus organismos de base (...). Na construo dessa sociedade, os trabalhadoresbrasileiros tm claro que essa luta se d contra os interesses do grande capitalnacional e internacional (Programa do Partido dos Trabalhadores, maro de 1982).

    Podemos at questionar o sentido de partidos revolucionrios, mas no podemosdesconsiderar que, pelas suas propostas, tanto um como o outro entram em choquecom a sociedade capitalista, pelo menos seus programas apontam para esse lado.

    A despeito do salto de qualidade que a democracia burguesa representa, comoj vimos anteriormente, ela apresenta limitaes. No basta que a forma do Estadoseja democrtica, preciso que o regime poltico tambm o seja. Para isso fundamentalque exista um conjunto de condies mnimas as liberdades polticas extensivaa todos os membros da sociedade e no apenas aos da classe exploradora e seusaliados. Isso significa que a classe explorada pode se organizar em partido poltico.Mas, h limite. As liberdades polticas so formais, mas nem por isso so irreais; pelocontrrio, so concretas.

    Democracia participativa e democracia representativa

    Confirmando a tese marxista de que a democracia socialista o exerccio diretoefetuado pelo povo, Held afirma o seguinte: quando Marx se referiu abolio doEstado e ditadura do proletariado ele tinha em mente (...) o modelo da Comuna deParis (...) Ela era formada pelos conselheiros municipais responsveis, escolhidospor sufrgio universal nos vrios distritos da cidade, para curtos mandatos revogveis.A maioria de seus membros era, naturalmente, homens trabalhadores, ourepresentantes reconhecidos pela classe trabalhadora. A Comuna deveria ser umcorpo de trabalhadores, no um corpo parlamentar, sendo o Executivo e o Legislativouma coisa s. Ao invs de continuar a ser o agente do governo central, a polcia seriaimediatamente despida de seus atributos polticos e transformada no agenteresponsvel, podendo, a qualquer momento, ser dissolvida pela Comuna. Da mesmaforma, os funcionrios pblicos e outros ramos da administrao (...) As funespblicas cessaram de ser propriedade privada dos ocupantes do governo central.No apenas a administrao municipal, mas toda a iniciativa doravante exercida peloEstado foi colocada nas mos da Comuna (Held, 1987: 114).

    Como podemos observar, diferentemente do que ocorre nas democraciasburguesas,5 a democracia na Comuna significa o exerccio direto do poder da classetrabalhadora sobre as demais classes, bem como a perda do poder poltico pelo

    5.Qualificamos

    de democraciaburguesa,aquela em

    que oexerccio do

    poder polticoest associado

    diretamentes classes

    dominantes eque, com isso,

    garantem apropriedadeprivada dos

    meios deproduo,

    seja nostermos da lei

    ou doexerccio

    legtimo daviolncia pelo

    prprioEstado.

    4.O programa

    poltico do PCdo B defende

    a ditadura doproletariado,

    umasociedade

    sem classessociais e o

    comunismo(cf.

    Bibliografia aofinal destetrabalho).

  • ELIEL RIBEIRO MACHADO 133

    Estado. Isso implicava em mandatos imperativos e revogveis a qualquer momento,portanto com um controle direto do representado sobre o representante.

    Para alm dos aspectos formais da democracia burguesa, Lenin, diferentementede Marx que via na transio do capitalismo para o comunismo a democracia comoessencial ao socialismo, sustenta a idia de que ela uma forma de dominao declasse que precisava ser esmagada e substituda pela ditadura do proletariado.Assim, as implicaes dessa concepo, que tem sido, neste sculo, dominante entretodos os leninistas e trotskistas, so claras: uma poltica insurrecional de transio,insensibilidade diante das diferenas entre as formas burguesas de Estado e umatendncia a considerar a suspenso das liberdades democrticas burguesas nassociedades socialistas como no incompatveis com o projeto socialista (Bottomore,1988: 98).

    Cerroni, ao fazer uma reconstituio do processo histrico que desencadeou nosufrgio universal a partir da fundao do Estado moderno, aponta para o fato de queo voto nasceu associado propriedade privada e seleo de talentos (Cerroni,1971: 21). O Estado moderno promoveu a transio do regime feudal para o capitalismopropriamente dito e, desde ento, percebemos que h uma tendncia poltica prticademocrtica elitista, fundamentada na apropriao dos meios de produo por umaminoria, a burguesia.6

    Bobbio faz vrias crticas democracia direta sob o argumento de que o tamanhopopulacional no contribui para que todos possam conhecer a todos. Alm de outrosproblemas irremediveis: os costumes mudaram, os problemas se multiplicaram e asdiscusses so cada vez mais calorosas, fora a questo do luxo, que corrompe tantoo rico como o pobre, etc. (Bobbio, 1992).

    Para Bobbio, a assemblia de cidados s vivel numa pequena comunidade,como era a do modelo clssico por excelncia, a Atenas do V e do IV sculos, quandoos cidados no passavam de poucos milhares e a sua assemblia, considerando-seos ausentes por motivo de fora maior ou por livre e espontnea vontade, reunia-secom todos juntos no lugar estabelecido (...) (Bobbio, 1992: 53).

    A democracia direta, por esse caminho analtico, impraticvel, impossvel de serealizar e tambm no desejvel humanamente, isto , do ponto de vista dodesenvolvimento tico e intelectual da humanidade (Bobbio, 1992: 42). Isso pelo fatode que teramos a formao do cidado total, ou seja, o indivduo rousseaunianochamado a participar da manh at a noite para exercer seus deveres de cidado.Esse indivduo, nada mais que a outra face igualmente ameaadora do Estado total.No por acaso, a democracia rousseauniana foi freqentemente interpretada comodemocracia totalitria em polmica com a democracia liberal. O cidado total e oEstado total so as duas faces da mesma moeda; consideradas uma vez do ponto devista do povo e outra vez do ponto de vista do prncipe, tm em comum o mesmoprincpio: que tudo poltica, ou seja, a reduo de todos os interesses humanos aosinteresses da plis, a politizao integral do homem, a resoluo do homem cidado,a completa eliminao da esfera privada na esfera pblica, e assim por diante (Bobbio,

    6. DizCerroni: elcarcteroriginariamen-te limitado delsufragio (envirtud del cualla voluntad dela autoridadfuncionakantianamentecomo si fuesela voluntadexpresa detodos losasociados)tiene comobase la viejanocin de lapoltica; puedellegar a lacomprensinracional de lafinalidadpoltica sloquin estdotado delucesracionales(patrones decultura), peropuesto que nose trata deuna raznterica, sinoms bien de laraznexquisitamenteprctica delgobiernosocial, esasluces estnestrictamentecondicionadasa un interssocial(Cerroni,1971:19).

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    1992: 42-43). Com isso, o autor elimina de vez a possibilidade da democracia direta,j que ela representa o outro lado do totalitarismo.

    O cidado s deve ser chamado a manifestar-se mais contnua e intensamente nostempos de transformao revolucionria, como foi o caso limitado no tempo e no espao darevoluo parisiense, segundo Bobbio. Entretanto, como esses momentos representam aquebra das regras do jogo democrtico, ento a inviabilidade est dada, pois, as revoluesno se fazem aplicando as regras do jogo democrtico. E ele diz mais: talvez o nico tipohumano ao qual convenha o atributo de cidado total seja o revolucionrio (Bobbio, 1992:43).

    Mais uma vez temos que recorrer a Held para sanarmos uma inquietao terica:a democracia direta, segundo Bobbio, pressupe o cidado total que opina sobretudo e sobre todos, alm de transformar ou reduzir todos os assuntos poltica.Portanto o outro lado do Estado totalitrio (Bobbio, 1992). Segundo Held, a concepode Marx do fim da poltica, de fato, deslegitima radicalmente a poltica dentro do corpodos cidados. Aps a revoluo, haver um marcado perigo de que s pode haveruma forma genuna de poltica; pois no mais havero bases justificadas paradiscordncias fundamentais. O fim das classes significar o fim de qualquer baselegtima para disputas: apenas as classes tm interesses irreconciliveis (Held, 1987:124).

    Segundo Held, Marx defendia o papel das eleies para se escolher entreaqueles que representariam pontos de vista e interesses locais, delegados que teriamo poder de articular posies particulares e estariam sujeitos a revogao se falhassemem cumprir esta funo (Held, 1987: 124). Vemos que esse o tpico mandato quepode ser removido a qualquer momento, basta que os governados no se sintamsuficientemente representados pelos governantes.

    De qualquer maneira, o que estaria mais prximo da democracia direta oinstituto do representante substituvel contraposto ao do representante desvinculadode mandato imperativo. E mais: para que exista democracia direta no sentido prprioda palavra, isto , no sentido em que direto quer dizer que o indivduo participa elemesmo nas deliberaes que lhe dizem respeito, preciso que entre os indivduosdeliberantes e a deliberao que lhes diz respeito no exista nenhum intermedirio.Mesmo se substituvel, o delegado um intermedirio, acima de tudo porque, apesarde vinculado s instrues que recebe da base, tem de fato uma certa liberdade demovimento e se com ele no se entendessem todos os que devem chegar a umadeliberao coletiva, qualquer deliberao coletiva seria impossvel; em segundolugar porque ele no pode ser revogado a todo instante e substitudo por um outro, ano ser sob o risco de paralisar as negociaes (Bobbio, 1992: 51).

    O autor est propondo uma possvel conciliao entre a democraciarepresentativa e a democracia direta: no so dois sistemas alternativos (nosentido de que onde existe uma no pode existir a outra), mas so dois sistemasque se podem integrar reciprocamente (Bobbio, 1992: 52). Entretanto, h uma

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    ressalva a ser feita: qualquer estado complexo no pode funcionar base doreferendum e da assemblia de cidados deliberantes, segundo Bobbio.

    O referendo, que o nico instituto de democracia direta de concreta aplicabilidadee de efetiva aplicao na maior parte dos estados de democracia avanada, trata-sede um expediente extraordinrio para circunstncias extraordinrias (Bobbio, 1992:53). No podemos nos esquecer que os referendos apenas colocam os cidadosante duas alternativas (sim ou no), mas, na verdade, no constatamos a participaono processo de discusso, desde a apresentao do problema ou da proposta at assuas finalizaes. Ao cidado cabe participar apenas para opinar sobre duas alternativasno necessariamente discutidas com ele.

    Hirst aponta para alguns limites da democracia representativa. Mas, antes mesmode entrar diretamente no assunto, ele entende que a democracia representativa uma ferramenta to poderosa de legitimao das aes do governo que nenhumpoltico srio, mesmo que tenha acabado de perder uma eleio, a questionaria. Ademocracia um bem inquestionvel e a democracia representativa identificadacom a democracia (Hirst, 1993: 30). Se isso for verdade, como poderamos pensarna participao de amplas massas da populao sobre os seus destinos? Agora,como tambm afirmou Bobbio (1992: 53), apenas nas pequenas comunidades possvel a prtica da democracia direta, ento, por essa lgica, s nos resta concordarque existem limites da democracia representativa.

    Os limites da democracia representativa podem ser observados quando, comou sem representao proporcional, os eleitores jamais podero escolher decisesou polticas, s pessoas e partidos (Hirst, 1993: 36). Uma outra limitao reside nofato de que a democracia moderna deixa de ser uma forma de poder delegada pelopovo e converte-se, ao contrrio, numa forma de poder exercida por polticosprofissionais e funcionrios pblicos sobre [grifos do autor] o povo, em que algunsdesses governantes so periodicamente trocados pelo mecanismo de eleio (Hirst,1993: 36). Sobre esse problema, Bobbio argumenta que como no existe um mandatoimperativo e os parlamentares so livres em suas decises, ento eles se desligamdos seus representados (Bobbio, 1992: 47). Contudo, temos claro que o problematratado por Hirst se insere dentro das limitaes que o prprio sistema derepresentaes oferece aos cidados. E ele completa com a seguinte idia: mais valeum sistema muito falho de governo representativo que o melhor governo autocrtico(Hirst, 1993: 36).

    A democracia no mais uma forma de governo popular, como se poderiaimaginar, pois, ela converte-se num conjunto de mecanismos polticos, entre os quaisa representao por meio de eleies, de controle sobre o governo. Tambm estodescartados, ainda segundo Hirst, os mitos de poder pelo povo, ela [a democracia]s pode ser um conjunto de mecanismos polticos destinado a assegurar os benefciosda disputa poltica e da influncia e escrutnio pblico (Hirst, 1993: 36).

    Como o controle e a fiscalizao pblica sobre o governo permanece restrita aosculo XIX e o grande governo no pode ser dirigido em nosso nome, ento

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    necessrio se repensar a doutrina e a estrutura da democracia, argumenta Hirst(1993: 38). A democracia representativa, afirma ele, tem a virtude limitada de permitirque alguns dos principais responsveis pela tomada de decises e pela iniciativapoltica no Estado sejam trocados periodicamente ou ameaados de troca. Entretanto,isso no deveria ser superestimado como forma de controle (Hirst, 1993: 39), poiso sistema pe os lderes no pice de uma mquina administrativa totalmentehierarquizada, mas a sua capacidade de controle tambm est limitada. Por outrolado, eles podem propor polticas por vrios anos e lutar pelas suas aprovaes.

    A democracia burguesa brasileira: representativa e elitistaParticipao poltica hoje no Brasil sinnimo de votar em dias de eleies. Na

    verdade, no existem mecanismos polticos ou de outra natureza para controlar asaes dos representantes. O que temos a possibilidade de no reeleger algunsdeles, no caso dos cargos proporcionais.

    Alm disso, o prprio parlamento brasileiro no se esfora para mudar essasituao, mas, ao contrrio, o que se v so mecanismos de decises polticas ldentro extremamente elitizantes, como o caso do colgio de lderes, que tem poderesde decidir o que entra ou no na pauta de votaes, por exemplo (Cebrap, 1994 e1996).

    O colgio de lderes surgiu aps elaborao da Constituio de 1988 e tinha porfinalidade acelerar os processos decisrios, no sentido de disciplinar acordos,entendimentos e regras de procedimento. Era tambm uma resposta complexidadedos trabalhos em plenrio, um conjunto de mais de quinhentos deputados7 quedevem decidir sobre as mais variadas e diferentes questes (Cebrap, 1994 e 1996).

    O colgio de lderes elitizante, entre outros motivos, porque dele participamapenas as lideranas dos partidos que tenham mais de 1% do total de deputados nacasa, ou seja, mais de seis deputados. Alm disso, ele tem um poder extraordinriosobre o processo legislativo, j que em conjunto com a mesa diretora, elabora a pautade votaes, determina as matrias que entram nela ou no, sem falar que os lderespodem fazer pedido de urgncia ou urgncia urgentssima sobre determinadasmatrias de interesse, por exemplo, do Executivo. Estas vo direto para a apreciaoem plenrio, independente de pareceres das comisses temticas (Cebrap, 1994 e1996).

    Quando se pensa em poder na Cmara dos Deputados, poderia se imaginarque ele estivesse localizado exatamente em seu plenrio, que o soberano. Mas,quando analisamos o material produzido pelo Cebrap, observamos que no exatamente no plenrio que ele se manifesta. Na verdade, o plenrio um rgohomologatrio das decises tomadas em outras esferas da casa, como, por exemplo,a mesa diretora e o colgio de lderes, que estabelecem a ordem do dia. Mas, no sotodas as lideranas tambm que tm poder dentro da casa, e sim aquelas que participamda intimidade da mesa (Cebrap, 1994: 49).8

    7.Exatamente

    513deputados.

    8. Vejaespecialmente

    sobre isso osdepoimentos do

    ex-deputadoNelson Jobim(PMDB-RS),

    publicados peloCebrap em

    1994.

  • ELIEL RIBEIRO MACHADO 137

    De qualquer maneira, observamos que a prtica poltica dentro da Cmara dosDeputados se restringe a um grupo de parlamentares que decidem por todo o plenrio.Por outro lado, a Cmara dos Deputados se constitui numa expresso da democraciarepresentativa brasileira, portanto, num filtro da manifestao da cidadania.

    ConclusoAps a breve discusso terica que fizemos sobre a democracia, os seus limites

    e as definies de democracia representativa e democracia participativa, podemoslanar mo de algumas consideraes.

    Embora entre os marxistas no haja uma unanimidade sobre estas questes nem desejvel , importante ressaltar a preocupao de alguns deles sobrecomo pensar a democracia em trs momentos distintos: nas sociedades capitalistas,nas futuras sociedades socialistas e, por fim, nas comunistas.

    Pudemos ento perceber que a maior crtica marxista s democracias liberais a questo da participao poltica, ou seja, ela se restringe aos momentos de escolhados representantes: na teoria marxista-engeliana, para falar apenas desta, o sufrgiouniversal, que para o liberalismo em seu desenvolvimento histrico o ponto dechegada do processo de democratizao do Estado, constitui apenas o ponto departida. Alm do sufrgio universal, o aprofundamento do processo de democratizaoda parte das doutrinas socialistas acontece de dois modos: atravs da crtica dademocracia apenas representativa e da conseqente retomada de alguns temas dademocracia direta e atravs da solicitao de que a participao popular e tambm ocontrole do poder a partir de baixo se estenda dos rgos de deciso poltica aos dedeciso econmica, de alguns centros do aparelho estatal at a empresa, da sociedadepoltica at a sociedade civil pelo que se vem falando de democracia econmica,industrial ou da forma efetiva de funcionamento dos novos rgos de controle (chamadosconselhos operrios), colegial, e da passagem do autogoverno para a autogesto(Bobbio, 1994: 324-325).

    Quando tratamos portanto da questo da participao dos indivduos, Bobbio noschamou a ateno para o risco de transformarmos o cidado em cidado total, que o outro lado do Estado total, isso em funo de que esse cidado estaria sendosolicitado a decidir sobre tudo e sobre todos em assemblia permanente. Entretanto,se considerarmos que o socialismo s existe enquanto um programa, que no hentre os marxistas uma definio consensual sobre o chamado socialismo real para muitos o que existia era um capitalismo de Estado (Saes, 1987: 74) , nopodemos assegurar que de fato o risco possvel ou plausvel. O que temos a faltade participao efetiva dos trabalhadores nos processos decisrios e mesmo paracontrolar as aes dos representantes e do governo (Hirst, 1993: cap. 2). Alm domais, como j foi discutido, a poltica tende a acabar na sociedade comunista (Held,1987: 95).

    As democracias nas sociedades capitalistas esto limitadas estruturalmente, como

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    pudemos constatar. Tais limites afetam a estrutura representativa: os cidados noexercem nenhum controle sobre os seus representantes e as instituiesrepresentativas da sociedade (como a Cmara dos Deputados) no so instrumentosadequados para implementarem mudanas estruturais, j que a maioria parlamentarest comprometida com os interesses da burguesia. Sabemos que os partidos deesquerda hoje representados na Cmara dos Deputados somam, juntos, cerca de 95deputados.

    De qualquer sorte, hoje, na sociedade brasileira no h mecanismos de controlesobre os representantes, ou se existem, so to tmidos que no merecem maiorateno, a no ser aqueles j ditos, que so as ameaas da no reeleio para oscargos proporcionais.BIBLIOGRAFIA

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