deixe de ser bonzinho e seja verdadeiro_trecho
TRANSCRIPT
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Deixe de serbonzinho e seja
verdadeiro
Thomas D ansembourg
Como se relacionar bem com os outrossendo voc mesmo
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A Valrie
e a nossas filhas, Camille e Anna,
com amor e respeito.
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Sumrio
Prefcio 9
Introduo 13
1 Por que nos privamos de ns mesmos, de nossos sentimentos ou de nossas necessidades 17
2 Como tomar conscincia do que vivemos de verdade 45
3 Como tomar conscincia do que o outro realmente vive 103
4 O encontro 137
5 A segurana afetiva e o sentido, duas chaves para a paz 145
6 Trocar informaes e compartilhar nossos valores 170
7 Mtodo 192
Eplogo Jardinando a paz 195
Lista de necessidades 197
Lista de sentimentos 200
Lista de sentimentos compreendendo
interpretaes e julgamentos 204
Referncias bibliogrficas 205
Agradecimentos 206
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9Prefcio
O objetivo deste livro ajudar voc a se expressar de maneira verdadeira, mantendo o respeito por si mesmo e pelo outro. Thomas dAnsembourg sugere que voc mergulhe em um dilogo
interior bastante franco, a fim de melhorar seus relacionamentos e
deixar de lado alguns hbitos que limitam suas escolhas.
O mtodo proposto pelo autor questiona os condicionamentos
inconscientes que costumamos ter.
Essa uma tarefa rdua, porque, para chegar a enunciar de modo
claro o que existe dentro de ns, necessrio nos desvencilharmos
desses condicionamentos. A empreitada revolucionria, pois du-
rante o percurso descobrimos que nos mostrar com clareza expe
nossa vulnerabilidade e revela nosso orgulho. tambm perturba-
dora, j que traz tona nossa tendncia a deixar tudo como est, re-
ceosos de incomodar os outros e de que os outros nos incomodem
se ousarmos ser sinceros. Alm disso, ao mesmo tempo provocan-
te e estimulante, pois convida cada um de ns a trabalhar a prpria
mudana, em vez de esperar que o outro mude.
Compreendi todo o potencial da Comunicao No Violenta
durante uma expedio pelo deserto do Saara, na qual atuei como
consultor psicolgico. Por sugesto de Thomas dAnsembourg,
concordei com a participao de alguns jovens do centro para me-
nores desabrigados em que ele trabalhava.
Apesar de eu ter aceitado o convite, quase me arrependi quando
um dos jovens ameaou um adulto com uma faca. A quilmetros
de distncia de qualquer rea urbana, fiquei bastante assustado com
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aquela demonstrao de violncia. claro que eu no queria que ne-
nhuma das pessoas que trabalhavam comigo corresse o risco de ser
agredida, ento na poca no vi outra soluo a no ser mandar os
encrenqueiros de volta para casa o mais rpido possvel. Na verdade,
aquele foi um jeito fcil de me livrar do problema.
Comuniquei minha deciso a Thomas. Sem rejeitar minha pro-
posta, ele me pediu algumas horas para conversar com a equipe.
Para minha surpresa, ao final das discusses, a paz voltou a reinar
entre a equipe e os jovens. Fiquei impressionado com a pacincia
de Thomas e me dei conta de que a tcnica de Comunicao No
Violenta que ele aplicava merecia ser estudada.
Foi depois desse episdio que Thomas dAnsembourg passou a
participar de meus grupos de trabalho como assistente.
Estamos habituados a avaliar, a julgar e a rotular os outros sem
lhes revelar nossos prprios sentimentos. De fato, quem pode se
vangloriar de tentar apresentar um inventrio dos sentimentos que
geram nossos julgamentos antes de enunci-los? Quem se d ao tra-
balho de identificar e enumerar nossas necessidades reprimidas ou
as palavras que pronunciamos? Quem tenta fazer pedidos realistas
e negociveis nos relacionamentos?
Embora todas as nossas necessidades sejam justas, nem todas
podem ser satisfeitas. preciso encontrar um meio-termo, e a
que a Comunicao No Violenta se mostra mais eficaz.
Essa tcnica faria milagres na poltica. Ela deveria ser ensinada at
aos alunos do ensino fundamental, pois os ajudaria a se expressarem
com mais clareza. Os casais so alguns dos que mais se beneficiam
desse trabalho teraputico e conseguem resolver muitos de seus
conflitos, curando feridas dolorosas e superando obstculos que
prejudicam uma convivncia tranquila com o parceiro. A Comuni-
cao No Violenta nos oferece a possibilidade de compreender nos-
sos problemas, de modo a encontrar um efeito prtico no cotidiano.
Em geral os princpios de todos os mtodos de comunicao
so fceis, a prtica que costuma oferecer algumas dificuldades.
Portanto este livro pode ser visto como um verdadeiro manual de
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referncia. Ele revela todo o talento do autor para entender a com-
plexidade dos sentimentos e das necessidades de cada um de ns.
Thomas dAnsembourg compreendeu que, para se comunicarem
de maneira adequada e verdadeira, as pessoas precisam renunciar
s relaes de poder e pr em xeque a prpria verdade.
Assisti transformao pessoal de Thomas em poucos anos: de
rapaz gentil com medo de assumir compromissos a marido amo-
roso e pai devotado. Eu o vi abandonar progressivamente suas fun-
es de advogado e de consultor a fim de permanecer fiel a si mes-
mo e ajudar outras pessoas a obter o sucesso que ele alcanara. Com
alegria, identifico toda a sua sabedoria neste livro, nos lembrando
de que possvel conviver em harmonia com o outro sem deixar de
ser quem somos.
Guy Corneau,
psicanalista e escritor canadense
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Introduo
No tenho esperana de conseguir sair sozinho de minha solido. A pedra no espera ser algo mais que pedra, mas, ao colaborar
com seus semelhantes, agrupa-se e se torna Templo.
ANTOINE DE SAINT-EXUPRY, escritor francs, autor de O Pequeno Prncipe
Eu era um advogado gentil, educado, deprimido e desmotivado. Hoje, entusiasmado, apresento conferncias e seminrios, alm de atuar como consultor. No passado fui um solteiro que morria de
medo de assumir compromissos afetivos e preenchia a vida solitria
participando de diversas atividades. Hoje sou um homem casado e
feliz com a famlia que formei. Vivia tentando disfarar minha tris-
teza, mas hoje sou uma pessoa alegre e plenamente confiante.
Com o passar do tempo, tomei conscincia de que eu tinha o
hbito de ignorar minhas prprias necessidades, o que s me fazia
mal, e para anular essa autoagresso eu acabava atacando os outros.
Passei a aceitar que tenho carncias e que preciso reconhec-las,
diferenci-las, estabelecer prioridades entre elas e resolv-las sozi-
nho, em vez de reclamar que ningum pode supri-las.
Reuni, ento, toda a energia que costumava dedicar s queixas,
revolta e nostalgia e a canalizei no intuito de promover minha
transformao interior e melhorar meus relacionamentos com as
pessoas minha volta. Essa autoconscientizao tambm me aju-
dou a compreender e aceitar que o outro tem suas prprias necessi-
dades e que eu no sou o nico capaz de satisfaz-las.
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Se cada um de ns resolvesse observar a prpria violncia, aque-
la que exerce inconsciente e muito sutilmente contra si prprio e
contra os outros mesmo que pense que esteja agindo com as me-
lhores intenes do mundo , e tentasse compreender como ela se
manifesta, tenho certeza de que nos esforaramos para impedir
que ela viesse tona. Todos poderiam ento contribuir para criar
relaes humanas mais satisfatrias, tornando-se ao mesmo tempo
mais livres e mais responsveis.
O psiclogo americano Marshall Rosenberg d a esse processo
o nome de Comunicao No Violenta (CNV). A violncia , na
verdade, um efeito da ausncia de conscincia, por isso prefiro a
denominao Comunicao Consciente e No Violenta. Se fsse-
mos mais conscientes, encontraramos com mais facilidade oca-
sies para exprimir nossa fora sem agredir o outro. Acredito que
a violncia surge no momento em que usada no com o objetivo
de criar, estimular ou proteger, mas sim para exercer presso, seja
sobre ns mesmos ou sobre os outros. Essa presso pode ser afetiva,
psicolgica, moral, hierrquica ou institucional. Por isso, a violn-
cia sutil infinitamente mais comum do que aquela manifestada
por meio de agresses fsicas ou verbais.
Se essa violncia no designada como tal, isto se deve ao fato de
ela se manifestar nas palavras empregadas inconscientemente todos
os dias. Portanto, depende apenas de ns trocar palavras que fe-
rem, dividem, opem, separam, julgam, rotulam ou condenam por
termos que unem, propem, reconciliam e estimulam. Assim, pre-
cisamos trabalhar nossa conscincia e nossa linguagem, para livr-
-las do que interfere na comunicao e nos leva a agir de maneira
agressiva e violenta no dia a dia.
Os princpios da Comunicao No Violenta h sculos fazem
parte do inconsciente coletivo, mas muitas pessoas ainda se per-
guntam como coloc-la em prtica. Por outro lado, os conflitos de
comunicao so articulados em um nvel consciente.
O processo da comunicao no violenta nos estimula a parar e
refletir sempre que reagimos fortemente a alguma coisa ou situao.
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Ele composto por quatro fases: a Observao (fase 1) invariavel-
mente nos suscita algum Sentimento (fase 2), que por sua vez cor-
responde a uma Necessidade (fase 3), que nos convida a formular
um Pedido (fase 4).
Esse mtodo fundamentado na constatao de que nos sen-
timos melhor quando identificamos o que desperta nossa reao,
quando compreendemos tanto nossos sentimentos quanto nos-
sas necessidades e quando conseguimos formular pedidos nego-
civeis, seguros de poder aceitar a reao do outro, no importa
qual seja ela. Tambm nos sentimos melhor quando identificamos
claramente aquilo a que o outro se refere ou reage, quando com-
preendemos bem seus sentimentos e suas necessidades e entende-
mos que um pedido negocivel nos permite discordar e buscar, em
conjunto, uma soluo que atenda s necessidades de ambos, e no
s de um em detrimento das do outro. Por essa razo, a Comuni-
cao No Violenta possibilita que voc aprofunde os relaciona-
mentos conservando o respeito por si prprio, pelo outro e pelo
mundo ao redor.
De fato, a tecnologia aumentou a velocidade com que as pessoas
se comunicam umas com as outras. Mas a verdade que a quali-
dade dessa comunicao no melhorou e muitas se tornaram mais
solitrias e se queixam de serem incompreendidas e de no encon-
trarem sentido na vida.
Estamos fartos de sermos incapazes de nos expressar com since-
ridade e desejamos ser entendidos com maior facilidade. Embora a
troca de informaes seja maior hoje em dia, ainda precisamos evo-
luir muito nos quesitos expresso e escuta. Da impotncia resultan-
te dessas tentativas surgem inmeros medos: fundamentalismos,
nacionalismos, racismos, extremismos de toda espcie.
Por causa do uso desenfreado da tecnologia, em particular nos
meios de comunicao, do acesso ao mundo virtual, acabamos
desenvolvendo um medo de perder algo ntimo e verdadeiro, to
precioso que faz qualquer outra busca correr o risco de se revelar
desesperada. Sentimos falta do encontro real entre seres humanos,
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sem manipulaes, sem mscaras, que no seja contaminado por
nossos medos, hbitos e clichs, que no carregue o peso de nossos
condicionamentos e que nos tire do isolamento de nossos univer-
sos virtuais.
Parece haver nesse mundo um novo continente a ser conquista-
do, mal explorado at hoje e que desperta medo em muita gente: a
relao verdadeira entre pessoas livres e responsveis.
Se essa relao assusta por temermos nos perder nela. Mas, no
fundo, j estamos abrindo mo de ns mesmos para estar com o
outro, anulando nossos sentimentos e necessidades.
Minha proposta neste livro explorar uma trilha para as rela-
es verdadeiras entre seres livres e responsveis, sob a seguinte
perspectiva: como ser voc mesmo sem deixar de estar com o outro
e como estar com o outro sem deixar de ser voc mesmo.
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1Por que nos privamos de ns
mesmos, de nossos sentimentos ou de nossas necessidades
Nosso mundo intelectual feito de categorias, limitado por fronteiras
arbitrrias e artificiais.H de se construir pontes, mas para tal preciso um conhecimento, uma visomais ampla do homem e de seu destino.
YEHUDI MENUHIN, violinista e maestro americano
A violncia a expresso de uma frustrao impossvel de ser manifestada em palavras. por isso que jamais conseguimos descrever com exatido o que
sentimos ou o que queremos.
Ao crescer, nos privamos dos prprios sentimentos e necessida-
des para tentar escutar os de nossos pais, irmos, professores, etc.:
Faa o que mame disse... Faa o que sua professora mandar... Faa
o que esperam de voc.
E, assim, prestamos ateno aos sentimentos e s necessidades de
todos chefes, clientes, vizinhos, colegas de trabalho , exceto de
ns mesmos. Para nos integrarmos, acreditamos que necessrio
nos privar daquilo que necessitamos.
Um dia essa ruptura cobra seu preo: timidez, depresso, d-
vidas, hesitao diante de tomadas de decises, incapacidade de
fazer escolhas, dificuldade de se comprometer, perda da alegria de
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viver. Esperamos que algum nos salve, que nos diga o que fazer.
Ao mesmo tempo, no suportamos mais escutar nenhuma reco-
mendao. Estamos saturados de ouvir: Voc precisa... Voc de-
via... Acho melhor...
Temos fundamentalmente necessidade de nos encontrarmos,
de nos ancorarmos em ns mesmos, de sentir l no fundo que
somos ns que falamos, que decidimos e no mais nossos hbitos,
nossos condicionamentos, nosso medo do olhar do outro. Mas
como fazer isso?
As quatro fases da Comunicao No Violenta: A observao Os sentimentos As necessidades (ou valores) O pedido (ou ao concreta e negocivel)
1. A observao
Juzos, rtulos... Preconceitos... Sistema binrio Linguagem desresponsabilizadora
A mente foi desenvolvida, treinada e aprimorada para se tornar efi-
caz, produtiva e rpida. Quanto ao nosso corao, nossa vida afe-
tiva e nossa vida interior, nenhum deles recebeu tamanha ateno.
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Aprendemos a ser espertos e razoveis, a tomar decises acertadas
depois de bastante reflexo, a analisar e rotular todas as coisas e se-
par-las em categorias bem distintas. Desde a infncia nossa com-
preenso intelectual estimulada e aprimorada, e acabamos nos
tornando mestres em lgica e raciocnio. No entanto, nossa com-
preenso emocional foi pouco ou nada incentivada, quando no
abertamente desencorajada.
Atualmente, observo em meu trabalho quatro caractersticas
desse funcionamento mental que, em geral, geram violncia contra
ns mesmos ou contra os outros. Apresento-as a seguir.
Juzos, rtulos e categorias
Fazemos julgamentos de valor constantemente. Julgamos o outro
ou determinada situao em funo do pouco que vimos, e a par-
tir desse pouco estabelecemos a realidade. Um exemplo comum:
vemos na rua um jovem de cabelos cor de abbora, estilo moicano,
e piercings no rosto. Olha l aquele punk, mais um desses revol-
tados, um marginal, um parasita da sociedade. Num piscar de
olhos, emitimos um julgamento. No entanto, no sabemos nada a
respeito dessa pessoa, que talvez esteja engajada em projetos cria-
tivos, em um grupo de teatro ou em pesquisas cientficas, con-
tribuindo, assim, com o seu talento para o progresso do mundo.
Mas porque algo em seu aspecto nos suscita medo, desconfiana
e necessidades que no sabemos identificar, por ele ser diferente
de ns, o julgamos. Veja como nosso julgamento agride a beleza, a
generosidade e a riqueza que certamente existe nessa pessoa e que
no percebemos.
Por outro lado, vemos uma senhora elegante, de casaco de pele,
num carro luxuoso e comentamos: Que perua! Ali vai mais uma
que adora ostentar!
Mais um juzo formado a partir do pouco que vimos do outro.
De novo atacamos a beleza interior no percebida nessa pessoa.
Talvez ela seja generosa com seu tempo e seu dinheiro e se de-
dique a trabalhos voluntrios e assistenciais. No sabemos nada
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sobre ela. Mais uma vez a aparncia de algum nos desperta des-
confiana, raiva, medo, tristeza ou necessidades que no sabemos
decodificar seja a necessidade de dialogar, de compartilhar, de
acreditar que dever de cada pessoa contribuir de forma ativa
para o bem-estar comum. Ento julgamos e restringimos o outro
a uma categoria.
No se v direito seno com o corao. O essencial invisvel
aos olhos, j dizia Antoine de Saint-Exupry. Mas por acaso obser-
vamos o outro de verdade, com o corao?
Preconceitos, crenas estabelecidas e automatismos
Ao longo da vida, aprendemos a agir com base em hbitos arrai-
gados, aes irref letidas, crenas e preconceitos no comprova-
dos. No faltam exemplos: Homem no presta. Mulher dirige
mal. Funcionrio pblico no faz nada. Todo poltico corrup-
to. As coisas sempre foram desse jeito. Uma boa me deve parar
de trabalhar para criar os filhos. Nesta famlia no se pode to-
car nesse assunto. Essas expresses so essencialmente ref lexos
de nossos medos. Agindo assim, aceitamos crenas, costumes
e conceitos sem sequer question-los, nos fechando para novas
interpretaes.
Ao fazermos isso, agredimos os homens que so ntegros e fazem
o bem; as mulheres que dirigem com ateno e seguem as regras
de trnsito, respeitando os demais motoristas e pedestres; os fun-
cionrios pblicos que se dedicam com empenho e entusiasmo ao
trabalho; os polticos que exercem suas funes com integridade
visando ao bem comum.
Sistema binrio ou dualidade: ou isso ou aquilo
A fim de nos proteger, criamos o hbito de dividir tudo em certo
e errado, em positivo e negativo. Uma porta deve estar aberta ou
fechada, um ato justo ou injusto, temos razo ou estamos com-
pletamente errados, isso se faz ou no se faz, algo est na moda
ou cafona, maravilhoso ou completamente insignificante. Com
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as variantes sutis: ou se bem-dotado intelectual ou fisicamente,
matemtico ou artista, pai de famlia responsvel ou vagabundo
inveterado, rueiro ou caseiro, poeta ou engenheiro, trabalhador ou
malandro. Essa a armadilha da dualidade.
Como se fosse impossvel ser ao mesmo tempo um intelectual
brilhante e bom em trabalhos artesanais, um matemtico rigoroso
e artista original, um ser humano responsvel e com uma imagina-
o fervilhante, um poeta sensvel e engenheiro srio.
Como se a realidade no fosse infinitamente mais rica e diver-
sificada que as pobres e limitadas categorias nas quais tentamos
aprision-la, porque tamanha inconstncia, diversidade e vitalida-
de nos desconcerta e nos amedronta.
Praticamos essa lgica da excluso e da diviso com base na ve-
lha maneira de pensar ou isso ou aquilo. Brincamos de Quem
est errado, quem tem razo?, jogo que, em vez de valorizar tudo
o que nos agrega, estigmatiza tudo o que nos separa. Veremos
mais adiante quanto nos deixamos enredar na armadilha desse
sistema binrio e quanta violncia ele exerce sobre ns e sobre
os outros. O exemplo mais recorrente : ou cuidamos dos outros
ou de ns mesmos e, por consequncia, ou nos privamos de ns
mesmos ou dos outros. Como se no pudssemos a um s tempo
cuidar dos outros e de ns, estar perto do outro sem esquecer nos-
sa individualidade.
A linguagem que nos isenta de responsabilidade
Utilizamos uma linguagem que nos exime de sermos responsveis
por aquilo que fazemos ou vivemos. Aprendemos a jogar a respon-
sabilidade de nossos sentimentos sobre os outros ou sobre um fa-
tor externo. Estou com raiva porque voc..., Estou triste porque
meus pais..., Estou deprimido porque o mundo, a poluio, a ca-
mada de oznio..., etc. No assumimos a menor responsabilida-
de por aquilo que sentimos. Ao contrrio, encontramos um bode
expiatrio e nos livramos de nosso mal-estar jogando a culpa no
outro, que serve de para-raios para nossas frustraes. a regra...,
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So as ordens..., A tradio exige que..., No pude agir de outro
jeito..., No tive escolha assim que fugimos da responsabili-
dade por nossos prprios atos.
Veremos quanto essa linguagem nos desconecta de ns mesmos
e dos outros e nos escraviza sutilmente por parecer uma linguagem
responsvel.
2. Os sentimentos
Ao privilegiarmos o processo mental, somos privados de nossos
sentimentos e de nossas emoes como se construssemos um
muro de concreto separando a cabea do resto do corpo.
Talvez voc encontre certa identificao com o que digo. Eu
aprendi a ser um menininho bem-educado e comportado e a sem-
pre escutar os outros. Quando era criana, no pegava bem falar
de si mesmo e das prprias emoes. Podia-se descrever de manei-
ra emotiva uma pintura ou um jardim, comentar uma msica, um
livro ou uma paisagem, mas falar de si era visto como algo egocn-
trico. No bonito pensar em si, preciso pensar nos outros, me
ensinavam.
Se, por acaso, eu sentia raiva e demonstrava isso, com certeza
ouvia algum comentrio do gnero: Um menino bem-educado
no fica com raiva. V j para o quarto e s saia de l depois de ter
refletido sobre sua atitude.
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Ento l ia eu pensar sobre a maneira como tinha agido com mi-
nha cabea j programada para me julgar culpado. E era assim que
eu reprimia meus sentimentos, engolia a raiva e saa do quarto bus-
cando ser aceito pela famlia. Se, num outro dia, eu estivesse triste
e no soubesse o que fazer com as lgrimas, tomado de repente por
uma daquelas sensaes opressivas que sem explicao podem se
abater sobre voc, e precisasse ser tranquilizado e consolado, ouvia:
Que coisa feia ficar triste depois de tudo o que fazemos por voc!
E, alm do mais, tem gente muito mais infeliz. V j para o quarto
e s saia de l depois de ter refletido.
Sozinho no meu quarto, os pensamentos que me ocorriam eram:
verdade, no tenho o direito de ficar triste. Tenho pai, me, ir-
mos e irms, casa e comida, vrios brinquedos. No me falta nada.
O que mais posso querer? No tenho o direito de me chatear. Sou
egosta e mal-agradecido. De novo eu me julgava e condenava a
mim mesmo, reprimindo os sentimentos que iam no fundo do meu
corao. E assim eu sufocava a tristeza e a raiva e ia procurar a apro-
vao da famlia. Normalmente, desse jeito que se aprende a ser
gentil, em vez de sincero.
Numa outra ocasio eu estava feliz e exultante e fiquei correndo
de um lado para outro a fim de demonstrar minha felicidade. No
demorou muito para cortarem o meu barato, dizendo: No se ale-
gre demais porque a vida no nada divertida! O que eu, na poca
uma criana, poderia pensar depois disso? Nem a alegria nem a
tristeza so bem-vistas no mundo dos adultos. Do alto dos meus 10
anos, cheguei concluso de que, para ser adulto, preciso se pri-
var ao mximo das emoes e no se preocupar com elas, para no
incomodar ningum. E, para ser amado, no devo seguir minha
vontade, mas fazer o que os outros querem. Ser eu mesmo significa
me arriscar a perder o amor dos outros.
Mas necessrio acalentar todas essas emoes? No corre-
mos o risco de ser manipulados por elas? Pode ser que voc esteja
pensando em certas pessoas que vivem sentindo raiva h anos e
que no fazem nada para mudar essa realidade e levar uma vida
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feliz. Ou em outras que no conseguem se libertar da tristeza e da
melancolia. Ou, ainda, em algumas, que revoltadas com tudo e
com todos no conseguem encontrar a paz. A verdade que ficar
remoendo sentimentos no leva ningum a lugar nenhum e s
atrasa a vida.
Nossas emoes so como ondas de sentimentos mltiplos, algu-
mas agradveis, outras nem tanto. interessante poder identific-
-las e diferenci-las. O benefcio de reconhecer nossos sentimentos
e nossas necessidades que eles nos ensinam a ter respeito por ns
mesmos. Os sentimentos so como botes piscando no painel de
um avio: eles indicam qual funo est ou no funcionando, e se
uma necessidade est ou no sendo satisfeita.
Podemos nos sentir bem, felizes, aliviados, relaxados, ou po-
demos sentir medo, nos achar feios, nos decepcionar, ficar tristes
ou irritados. Temos bem poucas palavras para descrever nosso es-
tado de esprito, mas apesar de tudo continuamos agindo assim.
Nos cursos de Comunicao No Violenta, uma lista com mais de
250 sentimentos distribuda aos participantes com o intuito de
ajud-los a ampliarem o vocabulrio e, assim, tornarem-se mais
conscientes do que sentem.
Precisamos desenvolver nosso vocabulrio para ampliar nossa conscincia do que vivemos.
A aquisio do vocabulrio caminha lado a lado com o desen-
volvimento da conscincia. Por termos aprendido a nomear os
elementos e a diferenci-los, podemos compreender sua interao
e modific-la quando necessrio. Eu, por exemplo, no entendo
muito de encanamento. Quando meu aquecedor no funciona,
chamo o encanador e explico que o aparelho est com defeito.
Meu nvel de conscincia dos elementos em jogo e minha capa-
cidade de resolver a questo tendem a zero. Depois de identifica-
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do o problema, o encanador explicar em termos concretos: O
acendedor est com defeito ou O circuito est enferrujado, a
mangueira de gs entupiu. O encanador detm o poder de ao
e, nesse caso, o poder de reparo.
Antigamente, quando eu exercia a advocacia e atendia pessoas
s vezes completamente confusas e impotentes diante de suas di-
ficuldades, tive o prazer de analisar o que estava em jogo, enten-
der suas interaes, definir prioridades e assim ter condies de
propor uma ao. Portanto, o poder de ao est ligado cons-
cincia e faculdade de nomear e diferenciar os elementos. Cada
um aprendeu a dispor de determinado poder de ao em sua res-
pectiva rea.
Entretanto, em que momento aprendemos a nomear o que est
em jogo em nossa vida interior e a discernir o que se passa dentro
de ns? Em que momento aprendemos a diferenciar nossos sen-
timentos e a distingui-los de nossas necessidades fundamentais,
a determinar nossas necessidades e formular de maneira simples
pedidos concretos e negociveis que do conta das necessidades
do outro? Quantas vezes nos sentimos impotentes e revoltados
diante de uma raiva, uma tristeza, uma nostalgia que toma conta
da gente e nos corri por dentro sem que possamos reagir? Ao
mal-estar e ao sentimento de raiva, de tristeza ou de nostalgia
acrescenta-se ento o desconforto da impotncia. No apenas
estou infeliz, ou com raiva, mas no sei o que fazer para sair des-
sa situao.
Ento, muitas vezes, para sair dessa s encontramos uma solu-
o: despejar nossa raiva em algum, seja o pai, a me, a professora,
um amigo, um colega de trabalho. No tendo compreenso e, por
conseguinte, tampouco domnio de nossa vida interior, encontra-
mos um responsvel que serve de bode expiatrio para a nossa dor.
Estou com raiva porque voc... Estou triste porque vocs... Estou
revoltado porque o mundo...
Exteriorizamos nossa dificuldade e a descarregamos no outro
por no sabermos resolv-la sozinhos. preciso, portanto, nomear
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com o objetivo de resolver e obter xito, desenvolver o vocabulrio
dos sentimentos e das necessidades de modo a ficar vontade com
o assunto, dominando-o um pouco mais a cada dia. O domnio
no a asfixia, mas o controle.
Essa distino-chave deve ser feita a fim de identificar aquilo de
que necessitamos: por mais que eu me queixe do que no quero
mais e de, muitas vezes, recorrer a algum incompetente em busca
de auxlio, vou poder esclarecer o que quero (a minha necessidade
e no a minha carncia) e pedir ajuda a algum competente. Na
maioria das vezes esse algum sou eu mesmo.
O sentimento funciona como um sinal luminoso num painel
de controle e nos informa se o tanque est cheio ou vazio. Vamos
imaginar que estou dirigindo um carro numa estrada. Posso me
encontrar em uma das trs situaes a seguir:
1. Dirijo um carro antigo sem painel de instrumentos, digamos um
modelo do incio do sculo XX. Sigo confiante, consumindo toda
a reserva, sem tomar conhecimento de que preciso reabastecer o
tanque, pois nenhum sinal me faz tomar conscincia disso. Cedo
ou tarde o combustvel vai acabar e eu vou ficar parado no meio da
estrada. Sem sinal, no h tomada de conscincia da necessidade
nem qualquer poder de ao.
2. Dirijo um carro moderno que dispe de um painel completo.
Em determinado momento o marcador indica que a gasolina j
O sentimento funciona como um sinal luminoso num painel de instrumentos, informando
sobre a necessidade: um sentimento prazeroso indica que a necessidade est sendo satisfeita;
um sentimento opressivo indica que ela no est sendo suprida.
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est entrando na reserva. Ento resmungo: Quem se esqueceu
de colocar gasolina no carro? incrvel, sempre sobra para mim!
Ningum nessa famlia enche o tanque. Eu reclamo, e de to con-
centrado nas queixas nem noto vrios postos de gasolina ao longo
do caminho, at que o carro acaba parando no meio da estra-
da. Havia um sinal, eu tive conscincia da necessidade, mas no
tomei nenhuma atitude para resolver o problema. O que fiz foi
apenas canalizar toda a minha energia para as queixas e procurar
um culpado ou algum em quem eu pudesse descarregar minha
frustrao.
3. Dirijo um carro moderno que dispe de um painel completo. O
marcador indica que a gasolina est entrando na reserva. Identifico
minha necessidade: Puxa, vou precisar abastecer, mas no estou
vendo nenhum posto por perto. O que posso fazer?
Ento empreendo uma ao concreta e positiva: conduzo o
carro de modo econmico, fico atento ao prximo posto, paro e
resolvo o problema. Eu mesmo me ajudo. Consciente da neces-
sidade identificada, presto ateno possibilidade de resolv-la.
A soluo no est l pronta, mas, como tomei conscincia da
necessidade, tenho muito mais chances de encontrar uma so-
luo para algo de que, no primeiro caso, eu nem sequer tinha
conscincia.
O fato de eu mesmo ter me ajudado enchendo o tanque no sig-
nifica que devo renunciar necessidade de considerao e de res-
peito. Ao chegar em casa, posso dizer a minha mulher ou a meus
filhos: Estou cansado de ser obrigado a encher o tanque sempre
que vocs usam o carro (Sentimento). Preciso que levem meu tem-
po em considerao e que me respeitem por ter emprestado o carro
(Necessidade). Da prxima vez, podem abastecer antes de voltarem
para casa? (Pedido)
Se com frequncia nos privamos de nossos sentimentos por
educao ou por hbito, nos privamos mais ainda de nossas
ne cessidades.
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3. As necessidades
Se j nos encontramos bastante privados de nossos sentimentos, es-
tamos quase completamente privados de nossas necessidades.
s vezes temos a impresso de que uma laje de concreto nos isola
de nossas necessidades. A primeira coisa que nos ensinaram foi ten-
tar compreender e satisfazer as necessidades dos outros e no pres-
tar ateno s nossas. Durante muito tempo escutar os prprios de-
sejos foi sinnimo de pecado mortal na melhor das hipteses, de
egocentrismo ou de egosmo. Mesmo a ideia de que podemos ter
necessidades ainda muitas vezes percebida como algo do qual se
deva ter vergonha.
verdade que a palavra necessidade costuma ser mal-inter-
pretada. No se trata aqui de um desejo momentneo, de uma
pulso passageira. Trata-se de nossas necessidades bsicas, es-
senciais para continuarmos vivos, as que devemos satisfazer para
encontrar um equilbrio satisfatrio, as que dizem respeito a nos-
sos valores humanos mais difundidos: identidade, respeito, com-
preenso, responsabilidade, liberdade, solidariedade. Avanando
em minha prtica, reparo cada vez mais em quanto o fato de com-
preender melhor nossas necessidades nos permite entender com
mais clareza nossos valores.
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Num dos seminrios que dei, uma participante explicou com
rancor sua incapacidade de compreender os filhos. Viviam em con-
flito e ela j estava farta de ter que lhes impor mil coisas que eles
pareciam no compreender ou que entendiam, mas preferiam fazer
exatamente o contrrio. Quando lhe perguntei se podia identificar
as prprias necessidades no que dizia respeito a essa situao, ela
explodiu e disse:
Mas a gente no veio ao mundo para se ocupar das prprias
necessidades! Se cada um s olhasse para si mesmo, viveramos em
guerra. O que o senhor prope de um egosmo assustador!
A senhora est irritada (Sentimento) porque gostaria que os se-
res humanos fossem atenciosos e prestassem ateno uns aos outros
(Necessidade) a fim de, juntos, encontrarem solues satisfatrias
para as respectivas necessidades?
Claro.
Por acaso deseja (Necessidade) que haja compreenso e harmo-
nia entre as pessoas?
Mas claro que sim.
Mas fica difcil acreditar que possa estar atenta s necessida-
des de seus filhos se voc no comea prestando ateno s suas.
complicado acreditar que consiga compreend-los em sua multi-
plicidade e em suas contradies se no tenta entender e amar a si
mesma. Como se sente quando digo isso?
Ela no disse nada e ficou espantada beira das lgrimas. Em
seguida, foi como se uma trava se soltasse em seu corao. O grupo
acompanhou sua reao em silncio, unido por profunda empatia.
Ento ela constatou com uma gargalhada:
incrvel. S agora tomo conscincia de que nunca aprendi a
me escutar. Ento, em vez de ouvir meus filhos, eu simplesmente
imponho regras. evidente que eles se revoltam; eu tambm me
rebelava quando tinha a idade deles!
Podemos escutar os outros sem dar ouvidos aos nossos prprios
desejos e necessidades? Podemos nos mostrar disponveis e abertos
em relao aos outros sem agir assim conosco? Podemos amar o
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outro em suas diferenas e contradies sem primeiro nos amar
profundamente?
Se nos privamos de nossas necessidades, algum paga o preo: ns ou o outro.
Manter-se alienado com relao s prprias necessidades tem di-
ferentes consequncias. As mais frequentes so:
Achamos difcil fazer escolhas que nos levem a um comprometi-
mento pessoal. Nos negcios e no trabalho, isso pode at funcio-
nar. Entretanto, em nossa vida afetiva e nas escolhas mais pes-
soais, temos dificuldade. Hesitamos, sem saber o que escolher,
esperando que afinal os acontecimentos ou os outros decidam
por ns. Ou ento nos impomos uma escolha mais razovel,
mais sensato , impotentes que somos para escutar e compreen-
der nossos mais profundos impulsos.
Incapazes de identificar nossas verdadeiras necessidades, acaba-
mos nos tornando dependentes da opinio dos outros. O que
voc acha? O que faria no meu lugar? Ou, pior, nos moldamos
s expectativas do outro, nos adaptando e nos readaptando a
elas, sem analis-las. O que vo pensar de mim? Preciso agir
assim ou assado. Devo adotar tal comportamento, seno... Essa
dependncia da aceitao do outro nos deixa esgotados e, em si-
tuaes extremas, faz de ns vtimas de um modismo, de uma
corrente se todo mundo faz isso, eu tambm fao para ser igual
a todo mundo. Viramos joguete de dependncias diversas di-
nheiro, poder, sexo, TV, jogos, bebidas alcolicas, medicamen-
tos, drogas e internet ou de instrues formais nos submete-
mos autoridade de uma empresa exigente, de um movimento
poltico intervencionista ou de uma seita.
Ao longo da vida encontrei muitas pessoas que sofriam, cons-
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ciente ou inconscientemente, desses tipos de dependncia. Acre-
dito que a mais comum e a menos reconhecida a que nos man-
tm concentrados no olhar do outro. No conhecemos nossas
carncias justamente por no termos aprendido a reconhec-las.
Portanto, esperamos que a droga, o lcool e os outros ditem nos-
sas necessidades. Vivemos privados de ns mesmos.
Levando em considerao que aprendemos a satisfazer as neces-
sidades dos outros, ser um bom filho, educado, gentil e corts,
escutando o que todos tm a dizer e nunca dando ouvidos a ns
mesmos, se um dia, apesar de tudo, chegarmos concluso, con-
fusos, de que nossas necessidades no esto sendo satisfeitas, ser
porque existe um culpado, algum que no cuidou da gente.
assim que entramos no processo de violncia por agresso ou pro
jeo, no qual predominam a crtica, o julgamento, o insulto e a
recriminao: Sou infeliz porque meus pais... Estou triste por-
que minha mulher... Estou desestimulado porque meu chefe...
Estou deprimido porque a crise...
Em geral, sentimos que nos submetemos s necessidades dos
outros ou que no estamos em condies de fazer valer as nos-
sas, as quais impomos de modo autoritrio e sem espao para
contestao. Comigo assim e ponto final. Agora v j arru-
mar seu quarto! Entramos ento no processo da violncia por
autoridade.
Estamos fartos de tentar fazer valer nossas necessidades sem
qualquer sucesso. Finalmente desistimos. Desisto! Eu no me
aguento mais. Neste caso, cometemos violncia contra ns
mesmos.
Mas de que adianta conhecer suas necessidades se for para vi-
ver constantemente frustrado? bem provvel que voc tenha
pensado numa determinada pessoa que percebeu que precisava
de aconchego ou de reconhecimento e passa a vida procura de
ocasies sociais em que possa saciar essa carncia. Ou em outra
que, morta de vontade de conquistar seu prprio lugar, de encon-
trar sua identidade e serenidade interior, vive de um lado para
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outro, frequentando grupos de apoio e terapias sem, contudo,
encontrar paz.
O simples fato de identificar a necessidade mesmo sem satisfaz-
-la traz alvio e bem-estar surpreendentes. De fato, uma das primei-
ras causas do sofrimento desconhecer o que o motiva. Se conse-
guirmos identificar a causa interior de nosso mal-estar, pelo menos
nos libertaremos da dvida.
O mesmo acontece quanto necessidade: identific-la permite
livrar-se da confuso que agrava o mal-estar.
Por outro lado, enquanto no conhecemos nossas necessidades,
no sabemos como satisfaz-las. Ento, esperamos que os outros
(pais, companheiros, filhos) as satisfaam de forma espontnea,
adivinhando o que pode nos agradar, enquanto ns mesmos temos
dificuldade de captar nossas necessidades.
A seguir apresento dois exemplos de casais que me procuraram
em busca de ajuda para solucionar os problemas que enfrentavam
no relacionamento.
Primeiro, a mulher se queixou da incompreenso do marido.
Ele no entende minhas necessidades.
Voc poderia me dizer uma necessidade que gostaria que ele
compreendesse? perguntei.
Ele meu marido e tem obrigao de compreender minhas
necessidades!
Quer dizer que voc espera que ele adivinhe suas necessidades
quando at a senhora tem dificuldade de defini-las?
Exatamente.
E h quanto tempo brincam de adivinhao?
Somos casados h 30 anos.
A senhora deve estar exausta.
Ela caiu no choro.
verdade, estou no meu limite.
Est exausta porque sente falta de compreenso e de apoio e
espera por isso h muito tempo?
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Isso mesmo.
Pois bem, receio que a senhora ainda passe muito tempo espe-
rando, caso no tente esclarecer suas necessidades e explic-las ao
seu marido.
Em seguida, aps um longo silncio banhado de lgrimas, ela disse:
O senhor tem razo, sou eu que estou confusa. Na minha fam-
lia, no tnhamos direito a necessidades, entende? Eu no sei do que
preciso e sempre acabo reprovando meu marido por se mostrar in-
diferente, embora eu no diga exatamente o que quero. No fundo,
sei que ele d o melhor de si, mas entendo que fique irritado com
as minhas reclamaes, e quando ele se irrita eu fico emburrada.
um inferno!
Com este casal precisei fazer um demorado trabalho de com-
preenso e de esclarecimento das necessidades de cada um. Para
uma pessoa que sempre esperou que os outros cuidassem dela, sem
tomar o leme da prpria vida, difcil aceitar se assumir, e o pro-
cesso pode ser doloroso. No entanto, s custa desse trabalho a
relao com o outro pode melhorar.
No outro caso, foi o homem que se queixou:
Minha mulher no reconhece os meus esforos!
Imagino que voc esteja irritado porque precisa se sentir
valorizado.
Exatamente.
Pode me explicar o que gostaria que ela dissesse ou fizesse para
voc se sentir devidamente valorizado?
No sei.
Bom, ela tambm no sabe! Deve ser exaustivo para sua esposa
sentir que existe de sua parte um pedido de reconhecimento, que
sem dvida ela percebe como insa civel e diante do qual se sente
impotente. Suponho que quanto mais voc exige dela, sem lhe dizer
com clareza como agir, mais ela se afasta.
isso mesmo!
Ento suponho que voc esteja cansado dessa busca infrutfera.
verdade, estou exausto.
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