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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais Departamento de História Aula Magna do Curso de História, em 10 de marqo de 2004 Prólogo: Foi com uma mescla de alegria e preocupagáo que aceitei o honroso convite da Chefe do Departamento de História da UFRJ, a colega Professora Monica Grin, para proferir essa Aula Magna. Alegria, porque esta é a escola onde me graduei, no longínquo ano de 1973, e onde a partir de 1987 pude realizar as minhas tarefas de historiador e professor formador de quadros no campo da História. Alegria também porque a sugestáo, acatada pelo Departamento, partira do CAMMA - Centro Académico Manoel Maurício de Albuquerque, o que me deixou agradavelmente supreso. Preocupagáo, diante do tema proposto: abordar os significados do golpe e da ditadura militar para o Curso de História, em fungáo do transcurso da data que assinala, neste ano, os 40 anos do golpe. Preocupagáo porque eu náo estava sendo chamado para falar dos meus temas de pesquisa: a historiografia e a questáo nacional no século XIX, as Inconfidéncias no final do século XVlll, as transformagóes urbanas e arquitetónicas nos séculos XIX e XX, a Corte nos Trópicos, o projeto civilizatório do Império, a Academia Imperial de Belas Artes, a relagáo de Pedro ll com a ciéncia e a cultura ou os meus temas fronteirigos com a literatura e os meus autores cariocas: Alencar, Macedo, Machado de Assis, Lima Barreto (meu patrono), Joáo do Rio e Marques Rebélo, entre outros. Como abordar esse tema sem correr o risco de mexer nos males do passado, desenterrando-o com tudo o que significou de frustragoes, dores e perdas? Como manter o tom académico ao tratar de algo que transformou nossas vidas, destruiu muitos de nós e deixou tantas sequelas e feridas náo cicatrizadas? Sempre me ressenti do fato de que náo encontrar, em muitas das levas de estudantes com quem convivi, a mesma solidariedade que a minha geragáo tivera com os perseguidos da ditadura do Estado Novo e os cassados da ditadura militar em 64 e 68. Parecia que a história que vivemos e sofremos durante os chamados anos de chumbo da ditadura náo era do interesse das novas geragdes, o que dava a impressáo de que, mais uma vez, a ditadura fora vitoriosa, pois os frutos do desinteresse e do esquecimento eram maiores do que a indignagáo e a solidariedade. Contudo, ser chamado para este ato académico, por indicagáo dos estudantes, é um alento novo e em boa hora este alento nos é dado pelo Centro Académico que porta o nome do meu amigo pessoal, Manoel Maurício de Albuquerque que, po¡ razóes obvias náo pode ser meu professor no IFCS, mas com quem privei, na condigáo honrosa de amigo pessoal, náo de aluno ou colega. E é ao Pr ofessor de História do Brasil, Manoel Mauríci e PUBLICADO EM: Aula magna

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Page 1: de - biblioteca.forum.ufrj.br · Departamento Geral de Cultura do Município do Rio de Janeiro. 13)2 de maio de 1983 -háquase2l anos- a defesa do doutorado na Universidade de Sáo

Universidade Federal do Rio de JaneiroInstituto de Filosofia e Ciéncias SociaisDepartamento de História

Aula Magna do Curso de História, em 10 de marqo de 2004

Prólogo:

Foi com uma mescla de alegria e preocupagáo que aceitei o honroso convite da Chefe doDepartamento de História da UFRJ, a colega Professora Monica Grin, para proferir essaAula Magna. Alegria, porque esta é a escola onde me graduei, no longínquo ano de 1973,e onde a partir de 1987 pude realizar as minhas tarefas de historiador e professorformador de quadros no campo da História. Alegria também porque a sugestáo, acatadapelo Departamento, partira do CAMMA - Centro Académico Manoel Maurício deAlbuquerque, o que me deixou agradavelmente supreso. Preocupagáo, diante do temaproposto: abordar os significados do golpe e da ditadura militar para o Curso de História,em fungáo do transcurso da data que assinala, neste ano, os 40 anos do golpe.

Preocupagáo porque eu náo estava sendo chamado para falar dos meus temas depesquisa: a historiografia e a questáo nacional no século XIX, as Inconfidéncias no finaldo século XVlll, as transformagóes urbanas e arquitetónicas nos séculos XIX e XX, aCorte nos Trópicos, o projeto civilizatório do Império, a Academia Imperial de BelasArtes, a relagáo de Pedro ll com a ciéncia e a cultura ou os meus temas fronteirigos com aliteratura e os meus autores cariocas: Alencar, Macedo, Machado de Assis, Lima Barreto(meu patrono), Joáo do Rio e Marques Rebélo, entre outros.

Como abordar esse tema sem correr o risco de mexer nos males do passado,

desenterrando-o com tudo o que significou de frustragoes, dores e perdas? Como mantero tom académico ao tratar de algo que transformou nossas vidas, destruiu muitos de nós e

deixou tantas sequelas e feridas náo cicatrizadas?

Sempre me ressenti do fato de que náo encontrar, em muitas das levas de estudantes comquem convivi, a mesma solidariedade que a minha geragáo tivera com os perseguidos da

ditadura do Estado Novo e os cassados da ditadura militar em 64 e 68. Parecia que ahistória que vivemos e sofremos durante os chamados anos de chumbo da ditadura náo

era do interesse das novas geragdes, o que dava a impressáo de que, mais uma vez, a

ditadura fora vitoriosa, pois os frutos do desinteresse e do esquecimento eram maiores doque a indignagáo e a solidariedade.

Contudo, ser chamado para este ato académico, por indicagáo dos estudantes, é um alento

novo e em boa hora este alento nos é dado pelo Centro Académico que porta o nome do

meu amigo pessoal, Manoel Maurício de Albuquerque que, po¡ razóes obvias náo pode

ser meu professor no IFCS, mas com quem privei, na condigáo honrosa de amigo pessoal,

náo de aluno ou colega. E é ao Pr ofessor de História do Brasil, Manoel Maurície

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Albuquerque, que desejo dedicar este nosso encontro para falar do passado quevitimou. E diante da mesa onde seu corpo foi velado. Para tanto, intitulei esta fala de:

O golpe militar de 1964 e o impacto da ditadurano universo dos estudos históricos. Estudantes,professores e historiadores num tempo de ausénciade liberdade,

"A certa altura da vida, vai ficando possível dar balango no passado semcair em autocomplacéncia, porque o nosso testemunho se torna registro daexperiéncia de muitos, de todos que, pertencendo ao que se chama geragáo,julgam-se a princípio diferentes uns dos outros, mas váo aos poucos ficando táoiguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas

características gerais da sua época. Entáo, registrar o passado náo é falar de si; é

falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visáo do mundo,no momento particular do tempo que se deseja evocar,"

Antonio Candido labertura do Prefácio á 5'. edigáo de Raízes do Brasil, de

Sergio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969)

Introdugáo:

- o tema da memória na História: tem enorme importáncia nos estudos de HistóriaContemporánea, o que levou ao desenvolvimento da chamada História Oral, que

tem produzido frutos importantes para a história dos oprimidos e dos excluídos;- os fragmentos da memória e a reflexáo histórica;- o esquecimento e as lacunas como parte constitutiva do trabalho da memória;- entre a memória e a história: duas dimensdes, prat¡camente opostas, no trato do

passado (citar Pierre Nora);- da biografia á existéncia coletiva (remeter á epígrafe de Antonio Candido);- as múltiplas percepg6es possíveis do processo: de onde se lé o passado

próximo(de qual lugar social)?- um ensaio de ego-história?

I ) O golpe visto do Meyer:

- o dia do golpe: lo. de maio: o subúrbio em siléncio, com as estagóes de trem

tomadas pelas tropas que vieram de Minas; Copacabana em festa (via TV RIO

-canal l3: onde Flávio Cavalcanti e Sandra Cavalcante exultavam no ar). ACidade estava partida, mas náo havia organizagao social para a resisténcia'

- o que mudava nas nossas vidas com o golpe de Estado?

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uma infancia construída no tempo das esperangas: o desenvolvimentismo e a

democracia; A política fazia parte das nossas vidas: com dez anos eu trabalhava

voluntariamente na campanha da chapa Marechal Lott/Jango, distribuindoespadinhas e provocando os vassourinhas da UDN.

o golpe atingindo as reformas propostas pelo Presidente Joáo Goulart(recomendagáo: ver o volume da Mensagem ao Congresso Nacional, de Jango,

em 1964. A partir desse documento é possível identificar as raz6es do golpe no

desejo de impedir as reformas propostas pelo Presidente da República).

a origem numa família politizada: o pai trabalhista e os avós em campos opostos,

avó materno católico e udenista / avó patemo comunista. Um me iniciara no gosto

pelo passado brasileiro e no humanismo cristáo; o outro nas lutas internacionaispela libertagáo dos trabalhadores e no humanismo socialista' Ambos foramhomens honrados: um funcionário e um operário da entáo Estrada de Ferro

Central do Brasil.

o ginásio no Colégio Metropolitano, no Meyer, num universo de classe média

udenista e lacerdista.

A classe-média apoiou o golpe! As Missas haviam sido transformadas em

comícios contra o Governo, insufladas pelo anti-comunismo.

Os anos 1964- l 968

mudangas no sistema partidário, a criagáo do bipartidarismo ( nas eleigóes

estaduais de 1965, a vitória da coligagáo PTB-PSD no Estado da Guanabara

assustou os golpistas). Os partidos políticos legais passam a ser a ARENA(Alianqa Renovadora Nacional e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro).

a construQáo da visáo de mundo de uma geragáo na crítica á ditadura. Meus

tempos de Curso Clássico no lnstituto Lafayette, na Tijuca (1966-1968).

A riqueza da produgáo cultural do período: a literatura, o cinema, o teatro e a

música;

o que significou ter I 8 anos em 1968: um tempo de rompimentos ( no plano

individual e no coletivo / no plano existencial e no plano político);

o espírito de grupo, o caso do AdVersos: poetas da Zona Norte. Poesia e música

popular; rua Santo Afonso e rua Almirante Jaceguai.

a radicalizagáo de uma geragáo (a legitimidade da oposigáo ao regime)

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reformistas e revolucionários: as gradagóes da oposigáo ao regime.

O AI5 e suas conseqüéncias (as cassagdes, os exílios, o esvaziamento crítico da

Universidade e a inevitável queda de nível intelectual no ensino universitário, as

perseguigóes no campo da arte e da cultura)

A invasáo do IFCS na rua Marqués de Olinda.A rranferéncia para o prédio dos engenheiros.O vestibular de janeiro de 1970 no Largo de Sáo Francisco de Paula ( as ameagas

do MAC e do CCC ).

A ditadura e os seus cúmplices (o caso do Curso de História da UFRJ)

uma Chefia de Departamento tranasformada em base de operagóes contra o

movimento estudantil;- as visitas periódicas, semanais, dos agentes do DOPS, DOICODI, PARASAR,

CENIMAR...- professores que se orgulhavam de apoiar o regime; o anti-marxismo e o anti-

comunismo, naquele momento significava a possibilidade de por em risco a vida

de um aluno (náo era apenas uma questáo teórica ou de concepgáo da História);- o despreparo e a incompeténcia patética de alguns professores (aqueles que

substituíram os verdadeiros mestres;

5) As diversas formas de resisténcia (grupos de estudo, etc)

- o que era possível fazer para quem náo havia partido para a luta armada.

6) As derrotas da esquerda no Brasil (as quedas no setor estudantil das organizag6es)

- ver o livro Tortura Nunca Mais, da Editora Vozers (patrocinado pela

Arquidiocese de Sáo Paulo);

7) O significado de uma prisáo em janeiro de 1972:

- as faces do terror- assinando presenga, por um ano, na Chefatura de Polícia do I Exército- retomada do grupo de estudos de marxismo (com Carlos, Chico, Lana e Leila)- as avaliagóes do futuro imediato;- as formaturas: bacharelado, no IFCS, em dez. de 1973 (caracferizada pelo siléncio

e pelo deboxe)- e a licenciatura, na Praia Vermelha, emjan. de 74 (as tentativas de censura pelo

entáo diretor da Faculdade de Educagáo) Anísio Teixeira foi o nosso patrono, a

Profa. Elza Rodrigues paraninfo e eu o orador dos licenciandos de história,

geogtañ4 filosofia e ciéncias sociais (falava em nome de uma geragáo);

8) As conseqúéncias de uma prisáo na vida profissional de um jovem historiador

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- 1974 e 1975 * a pós-graduagáo na História da USP: o encontro com professores

autores das obras nas quais estudávamos. A opgáo pelo marxismo na orientagáode Fernando Novais e nos cursos de Marilena Chauí e Maria Sylvia de CarvalhoFranco. O início da docéncia na PUC do Rio de Janeiro. Por onde se dividiam os

professores de História de entáo: dois eixos principais - um mais progressista,

comportando muitos marxistas, entre a PUC/RJ e a UFF, em Niterói; outro, de

direita, onde estavam muitos dos colaboracionistas: entre a História da UFRJ e a

Gama Filho, na Piedade ou entre a UERJ e uma série de instituigóes privadas.

Um trago diferencial era dado no recrutamento de quadros nessas inslituigdes. NaUFF, até a selegáo de professores colaboradores (os atuais substitutos) era feitaseguindo um ritual de concurso público e com toda lisura. Havia transparéncia nas

contratagóes, mesmo as provisórias. O mesmo náo se verificava na UFRJ e na

Uerj. Na UFF também surgiu o primeiro curso de mestrado em História, mas comprofessores norte-americanos e alguns brasileiros de perfil conseryador. Também

lecionou por lá um historiador liberal como José Honório Rodrigues.

- 1976, a experiéncia no Curso de História da UFF, onde convivia o marxismo de

sala de aula com os "atestados ideológicos". Após um ano de trabalho tive de

abandonar a instituigáo e submeter-me a uma "cassagáo branca". Voltei para a

UFF, por concurso público, no segundo semestre de 1982, após a anistia, da qual

náo me beneficiei para retornar ao Servigo Público Federal.

9) Depois viria a luta pela anistia, onde representei os professores da PUC junto ao

movimento e nas reuni6es do Comité pela Anistia, realizadas na antiga casa do

Estudante Universitário na Av . Rui Barbosa.

l0) O trabalho no ámbito municipal (a idealizagáo e construgáo do Arquivo da

Cidade):

I I ) O concurso de volta para a UFF, em 1982, o concurso para o quadro em I 984 e a

transferéncia para o IFCS da UFRJ em 1987;

12) 1982 - a vitória de Leonel Brizola no Rio de Janeiro; 1983 - Maria Yedda

Linhares na Secretaria Municipal de Educagáo e Cultura; Darcy Ribeiro Vice-Governador e Secretário de Estado da Cultura; 1983 a I 986 - na Diregáo Geral do

Departamento Geral de Cultura do Município do Rio de Janeiro.

13)2 de maio de 1983 -háquase2l anos- a defesa do doutorado na Universidade de

Sáo Paulo - onde estudei os letrados do final do século XVIII perseguidos pela

dominagáo colonial.

Conclusóes de uma História que náo acabou:

- a insuficiéncia da revisáo crítica sobre esse passado: do golpe á resisténcia, a

repressáo e á luta contra a ditadura;

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- os equívocos conceituais dos críticos ao populismo e a condenagáo ao governo

Goulart e á esquerda;- o govemo Joáo Goulart caiu pelas suas qualidades e náo pelos seus defeitos;- os efeitos da ditadura e da abertura política sobre as consciéncias;- na redemocratizagáo todos os gatos viraram pardos: o oportunismo dos que

ingressaram nas instituigóes públicas durante a ditadura (na auséncia dos

concursos públicos) e que aderiram á oposigáo ao regime, na última hora, quando

ele estava se defazendo e se metamorfoseando; a volta dos cassados e o poder na

máo dos que "ficaram": uma triste memória;- as biografias reescritas (colaboracionistas do regime ditatorial viram progressistas

e até passam para a esquerda);- o desastroso efeito Samey. Os 5 anos de um mandato espúrio e a desmoralizagáo

do poder civil;- o corporativismo na Universidade, a incorporagáo de colaboracionistas e os

impasses na representagáo dos docentes;

Náo é o passado que deve conduzir as nossas vidas. Porém, o conhecimento e a

crítica ao passado sáo fundamentais para as nossas escolhas no presente, tanto

como profissionais como cidadáos de uma República'

O que ficou desse passado: o orgulho de ter participado de uma geragáo que,

como a dos Inconfidentes mineiros, cariocas e baianos, ousou se opor ao regime

ditatorial e colocou a sua vida em risco pelo ideal de liberdade'

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