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DA POSSIBILIDADE DE REVISÃO CONTRATUAL: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
E O CÓDIGO CIVIL DE 2002
THE POSSIBILITY OF CONTRACT’S REVIEW: A COMPARATIVE
ANALYSIS BETWEEN THE CODE OF CONSUMER PROTECTION
AND THE CIVIL CODE OF 2002
Márcio Carvalho de Magalhães
1
RESUMO
O presente estudo analisa a possibilidade de revisão contratual à luz do Código de Defesa do
Consumidor e do Código Civil de 2002, enfatizando-se que tal possibilidade deriva de uma
nova ordem contratual, em que a excessiva valorização da força obrigatória dos contratos
cedeu espaços a outros valores: a dignidade da pessoa humana, a boa-fé objetiva e a função
social dos contratos. A revisão contratual – símbolo da mitigação do milenar princípio pacta
sunt servanda – se caracteriza pela possibilidade da vontade declarada pelos sujeitos
contratantes ser modificada mediante a intervenção do Estado-Juiz, de modo a restabelecer o
equilíbrio da relação jurídica contratual. Apresentam-se as principais diferenças entre a
revisão contratual embasada no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002,
destacando-se o diálogo das fontes e a convivência harmônica entre os dois diplomas legais.
PALAVRAS-CHAVE: Contrato; Código Civil; Código de Defesa do Consumidor; revisão.
ABSTRACT
This study examines the possibility of contractual revision in the Consumer Protection Code
and in the Civil Code of 2002, emphasizing this possibility stems from a new contractual
order, in which the excessive appreciation of the binding force of contracts assigned spaces
other values: the dignity of the human person, the objective good faith and the social function
of contracts. The contract review - the ancient symbol of the mitigation principle pacta sunt
servanda - is characterized by the possibility of contracting the subjects declared will be
modified by the intervention of the State Judge, in order to restore the balance of contractual
legal relationship. Shows the main differences between the contractual review grounded in the
Code of Consumer Protection and the Civil Code of 2002, emphasizing dialogue and peaceful
coexistence of sources between the two statutes.
1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-Graduando do Curso de Pós-Graduação em
Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estadual de Londrina, ano de 2012. Pós-Graduando do Curso de
Pós-Graduação da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. Advogado licenciado.
Assistente de Juiz de Direito junto ao Gabinete da 5ª Vara Cível da Comarca de Londrina/PR. E-mail:
2
KEYWORDS: Contract; Civil Code, Code of Consumer Protection; review.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. DA NOVA ORDEM CONTRATUAL; 3. DA
CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E
O CÓDIGO CIVIL DE 2002; 4. DA IDENTIFICAÇÃO DA FIGURA DO CONSUMIDOR
PARA A VERIFICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PREPONDERANTE; 5. DOS
PARÂMETROS CIVIS E CONSUMERISTAS PARA A REVISÃO CONTRATUAL; 6. DA
REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR; 7. DA
REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002; 8. CONCLUSÃO;
REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A mitigação da autonomia da vontade é um dos pressupostos ideológicos da
revisão judicial dos contratos, por se tratar de fundamento justificador da intervenção do
Estado-Juiz em assuntos outrora considerados de interesse eminentemente privados. Neste
novo panorama, o desenvolvimento regular da relação contratual somente ocorrerá se tiver o
pacto sido celebrado e desenvolvido de maneira equilibrada e em consonância com os
importantes princípios característicos de uma nova ordem contratual, a exemplo dos
princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.
Em contrapartida, a violação dos novos princípios contratuais ou a
existência de obrigações excessivamente onerosas a um dos contraentes, abre margem à
rediscussão das cláusulas contratuais, as quais poderão ser submetidas à apreciação do Poder
Judiciário com o fito de restabelecer o equilíbrio econômico da relação jurídica.
Em se tratando de uma relação contratual de consumo, aplicar-se-á
preponderantemente o Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação
subsidiária do Código Civil de 2002, em homenagem à teoria do diálogo das fontes. Por outro
lado, em se tratando de um contrato celebrado entre particulares, o Código Civil de 2002 será
o diploma legal que regerá com maior preponderância a relação contratual.
Há diferentes requisitos autorizadores da revisão judicial de pactos
celebrados sob a égide do CDC ou do Código Civil de 2002 e embora a onerosidade excessiva
seja traço comum aos dois diplomas, o Código Civil apresenta exigências mais rigorosas para
que se empreenda a rediscussão judicial de suas cláusulas. Apesar da presença de caracteres
diferenciadores entre a revisão contratual autorizada por este e por aquele código de leis,
destaca-se a convivência harmônica existente, havendo critérios para a resolução de
problemas advindos de eventuais conflitos destas leis.
3
2. DA NOVA ORDEM CONTRATUAL
A análise da possibilidade de se empreender a revisão judicial dos contratos
demanda uma prévia e breve investigação acerca deste importante instituto jurídico de
exteriorização da vontade humana2, sobretudo para se demonstrar a modificação da sua
relevância e da principiologia que o amolda e o caracteriza ao longo dos tempos.
Pretende-se esclarecer que as mudanças e progressos inerentes às sociedades
humanas, inevitavelmente provocam modificações também em seus ordenamentos jurídicos e,
consequentemente, no campo das relações contratuais.
No compasso destas ideias iniciais, Flávio Tartuce3 sustenta a posição
doutrinária de que o contrato é tão antigo como o próprio ser humano, pois tal instituto
jurídico surgiu desde o momento em que as pessoas passaram a se relacionar, sendo, portanto,
umbilicalmente ligado à ideia de sociedade, de comunidade.
Consoante o escólio de Luiz Guilherme Loureiro4, “o direito privado de
Atenas da Era Clássica (século V e IV a.C.) já conhecia o contrato, pelo qual os cidadãos
podiam dispor livremente de seus bens”.
Vislumbra-se, pois, que desde as sociedades mais remotas, o contrato já era
instituto de grande relevância, sendo certo que o desenvolvimento do instituto sempre esteve
atrelado à sofisticação das operações econômicas, conforme acrescenta Luiz Guilherme
Loureiro5:
Justamente por ser a veste técnico-jurídica de uma realidade cambiante
(operação econômica), a historicidade e a relatividade do contrato emergem com
hialina clareza e a evolução histórica do instituto está diretamente relacionada com o
progresso e sofisticação das operações econômicas. Se confrontarmos as funções
assumidas pelo contrato na Antiguidade e na Idade Média, vale dizer, no âmbito dos
sistemas econômicos arcaicos, baseado no trabalho escravo e pelo modo de
produção feudal, com as funções que o contrato exerce no quadro de uma formação
econômico-social caracterizada pelo maior desenvolvimento das forças produtivas e
pela intensificação do sistema de trocas, podemos perceber profundas diferenças
quanto à dimensão efetiva, à difusão e ao emprego do instrumento contratual.
2 Maria Helena Diniz esclarece que a vontade humana é fonte mediata do liame obrigacional: “(...) a fonte
mediata do liame obrigacional é a vontade humana ou o fato humano, e a fonte imediata é a lei, porque só ela
empresta eficácia ao fato humano ou a qualquer manifestação volitiva.” (DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico
e prático dos contratos, volume I. 5ª. ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 4). 3 TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007, p. 35. 4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos – Teoria Geral e contratos em espécie. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Método, 2008, p. 32. 5 Idem, ibidem, p. 32.
4
Se se trata de instituto tão atrelado à sociedade, parece óbvio, assim, que a
evolução social provoca a evolução do conceito e dos princípios norteadores das relações
contratuais6. Um simples enfoque histórico das relações contratuais revela uma fase pretérita
em que era supervalorizada a autonomia da vontade e o patrimonialismo, em contraposição a
uma fase posterior – atualmente vivenciada – em que o individualismo exacerbado cedeu
espaço a novos princípios, tais como a dignidade da pessoa humana, a boa-fé objetiva e a
função social dos contratos, mitigando-se, deste modo, a ultrapassada valorização do pacta
sunt servanda7.
Teresa Negreiros8 obtempera que o modelo de contrato propagado pelo
individualismo filosófico e pelo liberalismo econômico, no final do século XVIII e durante o
século XIX, se sedimenta em valores jurídicos das codificações francesa e alemã, nas quais se
inspirou o Código Civil Brasileiro de 1916: o formalismo deu lugar ao consensualismo e a
força obrigatória dos contratos se justificava pela ideia de respeito à palavra voluntariamente
dada.
Consoante o escólio da mencionada autora9, a vontade figurava, naquele
momento, como o cerne do contrato:
A vontade passa a ser o cerne do contrato, e este, o cerne do Direito objetivo
como um todo e do próprio Estado.
[...]
A vontade como centro do contrato, articulada à regra da igualdade dos
contratantes, obriga a reconhecer que tanto o legislador como o juiz lhe devem fiel
observância, não podendo intervir naquilo que houver sido pactuado pelas partes
contratantes. Estas têm ampla liberdade quanto à fixação das obrigações que
voluntariamente se auto-imponham; o que é querido é, nesta medida, obrigatório; e a
determinação do conteúdo do querer compete exclusivamente ao indivíduo (...).
Tal visão patrimonialista e individualista, que homenageava a autonomia da
vontade em detrimento de outros importantes valores e princípios, passou a ser superada, no
6 Eduardo Espínola, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, observa que “a organização econômica
de nossos dias é muito diferente, não apenas da considerada pelo direito romano e pelo direito comum, mas
ainda daquela a que tiveram de atender os legisladores do século XIX, cujas codificações, a partir do Código
Napoleão, se tornaram manifestamente inadequadas ou deficientes, em relação a grande parte dos problemas
sociais e econômicos, reclamando várias de suas normas radical substituição e impondo-se a regulamentação de
novos institutos, que surgiram com os negócios e as idéias”. (ESPÍNOLA, Eduardo. Dos contratos nominados
no direito civil brasileiro. Atualizado por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Bookseller, 2002, p. 9). 7 Joaquim de Sousa Ribeiro, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, observa que a representação clássica
do contrato baseava-se em uma racionalidade fechada em si própria: “A concepção clássica do contrato
caracterizava-se por um radical monismo axiológico, alimentado por uma racionalidade estritamente auto-
referencial, fechada sobre si própria. Sendo a liberdade individual reconhecida, no campo do contrato, como
valor único e absoluto, era ela perspectivada em termos puramente formais e jurídicos, com quase total
irrelevância normativa das condições materiais e das consequências do seu exercício”. (RIBEIRO, Joaquim de
Sousa. Direito dos Contratos – Estudos. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 35). 8 NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 24/25.
9 Idem, ibidem, p. 25/27.
5
Brasil, precipuamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, do Código de
Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002),
pois tais diplomas legais apregoaram importantes princípios a serem observados pela
sociedade, inclusive no bojo das relações contratuais.
Além disso, a constitucionalização de direitos passou a exercer fundamental
importância sobre o Direito Civil, originando, assim, o fenômeno consagrado pela doutrina
como Constitucionalização10
do Direito Civil.
Uma perspectiva nova emergiu, irradiando uma nova carga axiológica para
o ordenamento jurídico. Na seara das relações contratuais, três princípios tornaram-se
essencialmente relevantes: a boa-fé objetiva11
(art. 4º, inciso III do Código de Defesa do
Consumidor; art. 51, inciso IV do diploma consumerista e art. 422 do Código Civil de 2002);
a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988), e, por fim,
a função social dos contratos (art. 5º, inciso XXIII da CF/88; art. 173, parágrafo 4º da CF/88;
10
Joaquim de Sousa Ribeiro destaca este importante fenômeno já bastante discutido pela doutrina: “É hoje, na
verdade, um traço marcante de um grande número de constituições contemporâneas o normativizarem, para além
da organização do poder do estado, amplas zonas da vida económica e social – e disso dão exemplo muito
significativo as nossas constituições: a portuguesa, de 1976, e a brasileira, de 1988. Ainda que sem a pretensão
de regularem “todo o divino e todo o humano” – como foi dito, com ironia, da constituição de Weimar, na
respectiva assembleia constituinte -, tais diplomas levam desenvolvidamente a cabo a tarefa de conformação do
ordenamento básico da sociedade e do estatuto jurídico de que, dentro dela, as pessoas gozam. Neste quadro,
incidindo a Constituição, com a eficácia preceptiva que lhe é própria, sobre praticamente todas as instituições
que amoldam a vida dos homens em comum, nenhum ramo do direito fica imune aos seus comandos”.
(RIBEIRO, op. cit., p. 7).
O doutrinador português assevera, ainda, que: “Na verdade, à constituição subjaz, sem dúvida, uma concepção
do homem como sujeito livre e responsável, capaz de autodeterminação, senhor do seu destino e gestor dos seus
interesses na convivência com os demais. Mas também, e simultaneamente, do homem, nas palavras de DAMM,
como ‘sujeito deficitário’, dependente de poderes fácticos e exposto a riscos que individualmente não controla.
Daí a dialéctica entre função defensiva (contra os poderes públicos) e função tuteladora dos direitos
fundamentais, vistos, por um lado, como competências para a acção, para o livre empreendimento de iniciativas
e a livre manifestação de preferências pessoais, mas também, por outro, como mecanismos de salvaguarda, de
contenção de abusos e de compensação”. (Idem, ibidem, p. 33). 11
Judith Martins-Costa esclarece o significado do tão propagado princípio da boa-fé objetiva, em contraponto à
boa-fé subjetiva: “A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual
de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais,
especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o
intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção.
Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. Já
por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do
Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é
atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual
‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com
honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores
concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação
mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo”. (Destaques do original). (MARTINS-COSTA, Judith. A
boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1999, p. 411).
6
art. 421 do Código Civil de 2002 e em toda a sistemática do Direito das Relações de
Consumo, embora tal princípio não esteja explícito no Código de Defesa do Consumidor).
Paulo Nalim12
sintetiza este novo cenário das relações contratuais, ao
proclamar a valorização da pessoa humana:
Despatrimonialização, dignidade da figura do contratante e função social do
contrato encontram o seu fio condutor na figura do homem e no seu livre
desenvolvimento, refundando-se o Direito Civil em torno do respeito aos valores da
pessoa. A autonomia contratual, antes de ser instrumento de circulação de riquezas,
no atual estádio de desenvolvimento constitucional, presta-se ao livre
desenvolvimento da pessoa do contratante, sem que dela se possa excluir um quase
inevitável conteúdo patrimonial mínimo.
Percebe-se, pois, que a vontade outrora admitida como valor absoluto e
irretratável - chancelada a partir da celebração do contrato - foi relativizada por esta nova
roupagem das relações contratuais, devendo a sua manifestação estar envolta aos importantes
princípios supramencionados, sob pena de sofrer a influência de fatores externos passíveis de
readequar a sua manifestação.
Vale trazer à tona, por oportuno, o exemplo da revisão judicial dos contratos
de consumo, posto que a existência de cláusulas abusivas é capaz de ensejar a intervenção do
Estado-Juiz com o fito de nulificar disposições contratuais divorciadas da real intenção do
contratante-consumidor, o que revela uma fase atual caracterizada pela mitigação da força
obrigatória dos contratos.
Feitas estas considerações acerca da nova carga valorativa incorporada pela
teoria contratual, faz-se mister esclarecer sobre a aplicação do Código Civil de 2002 e do
Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas contratuais, com especial ênfase na
possibilidade de revisão/rediscussão das cláusulas de tais pactos.
3. DA CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002
Pretende-se, com o presente estudo, tecer breves considerações acerca da
possibilidade de revisão contratual à luz da nova principiologia contratual, conforme já
tratado no tópico anterior. Assim sendo, defende-se a tese de que o contrato celebrado em
confronto com a livre manifestação da vontade, com a boa-fé objetiva, com a sua função
12
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formação na perspectiva civil-
constitucional. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2008, p. 249.
7
social e/ou com a dignidade do sujeito contratante, merece ser revisto, rediscutido ou, quiçá,
nulificado.
É preciso enfatizar, contudo, que, tradicionalmente, os contratos encontram
tratamentos diferenciados quando celebrados à luz do Código Civil de 2002 ou à luz do
Código de Defesa do Consumidor, o que significa dizer que embora tais diplomas não estejam
em conflito, as disposições de cada qual devem ser aplicadas conforme a natureza da relação
jurídica estabelecida entre os contratantes.
Em se tratando de uma relação jurídica paritária, em que os contratantes
situam-se no mesmo nível de conhecimento técnico, jurídico e informacional, o Código Civil,
em regra, será o diploma aplicável para dirimir os conflitos de interesses que possam vir a
surgir em decorrência da relação contratual.
Em contrapartida, a existência de uma relação jurídica díspar, marcada por
um desequilíbrio jurídico, técnico, informacional e econômico, exige a aplicação precípua do
Código de Defesa do Consumidor, com vistas à utilização dos mecanismos por ele oferecidos
para resguardar os direitos do sujeito contratante fragilizado frente ao poderio do contratante
que ocupa o polo mais influente da relação contratual.
A partir destas ideias iniciais, já se percebe que conquanto as legislações
civil e consumerista convivam harmonicamente e até se interpenetrem, há traços marcantes e
específicos que as distinguem, inclusive quando se almeja a revisão judicial do contrato, a
depender, sobretudo, das características dos sujeitos contratantes e, por consequência, da
natureza da relação jurídica.
Não obstante, é preciso enfatizar a convivência harmônica existente entre os
dois códigos de leis, já que em muitas situações jurídicas, é possível, a partir do chamado
diálogo das fontes13
, a aplicação concomitante de ambos os diplomas.
Cláudia Lima Marques14
obtempera que “o modelo brasileiro é de um
código para iguais (CC/2002) e de um código para diferentes (CDC)”, destacando que a
13
Cláudia Lima Marques, ao tratar o diálogo das fontes como expressão visionária de Erik Jayme, sustenta a
necessidade de aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes:
“Diálogo porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo
tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das
partes sobre a fonte prevalente (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis modelos) ou
mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma solução flexível e aberta, de
interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos
diferentes)”. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 6ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 695/696). 14
Idem, ibidem, p. 714.
8
dúvida quanto à aplicação de dispositivos deste ou daquele código sempre deverá ser
resolvida pela prevalência do aspecto mais favorável ao consumidor.
A doutrinadora gaúcha15
observa que o consumidor será sempre o fator
determinante para a análise sobre qual diploma e em que ordem serão aplicados, em diálogo,
ao caso concreto:
O Código de Defesa do Consumidor é reflexo de uma nova concepção mais
social do contrato, em que a vontade das partes não é a única fonte das obrigações
contratuais, em que a posição dominante passa a ser a da lei, que dota ou não de
eficácia jurídica aquele contrato de consumo. O status ou o papel de consumidor,
sujeito de direitos vulnerável que mereceu a proteção constitucional, é agora o fator
central a determinar, se diante de um fornecedor, qual o conjunto normativo e em
que ordem serão aplicados em diálogo essas leis de direito privado, inclusive o
Código Civil de 2002.
A caracterização da figura do consumidor, portanto, é de extrema relevância
para o intérprete decidir sobre as disposições legais aplicáveis para tutelar os direitos do
jurisdicionado.
Antônio Carlos Efing16
esclarece que o projeto de novo Código Civil
remonta ao ano de 1969, ao passo que o Código de Defesa do Consumidor foi elaborado por
determinação constitucional e sob a égide de novos valores sociais insculpidos pela Carta de
1988, motivo pelo qual entende ser o contexto histórico da promulgação das leis um
importante critério para a sua hermenêutica. Esclarece o autor, todavia, que a antinomia
aparente entre as duas leis não deve ser resolvida pelos critérios hierárquico, cronológico ou
da especialidade. Por isso, defende a harmonização de tais normas a partir dos critérios
identificados por Cláudia Lima Marques: o diálogo sistemático e coerência, o diálogo
sistemático de complementariedade em antinomias reais ou aparentes ou o diálogo de
coordenação e adaptação sistemática.
Percebe-se, destarte, que a identificação da figura do consumidor é
importante para se averiguar eventual aplicação do Código de Defesa do Consumidor à
relação jurídica em análise, sendo certo que aplicação do diploma consumerista não excluirá,
todavia, a aplicação do Código Civil de 2002 e vice-versa.
No campo da revisão contratual, objeto deste estudo, é necessário destacar
que o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor apresentam requisitos e
teorias diferentes para fundamentar a sua possibilidade e o critério maior para se perquirir
15
Idem, ibidem, p. 734. 16
EFING, Antonio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 3ª edição. Curitiba: Juruá, 2011,
p. 43/44.
9
qual será o diploma prevalente será a identificação da figura do consumidor, já que, neste
caso, estar-se-á diante de uma relação de consumo.
4. DA IDENTIFICAÇÃO DA FIGURA DO CONSUMIDOR PARA A VERIFICAÇÃO
DA LEGISLAÇÃO PREPONDERANTE
Em linhas inaugurais, pode-se dizer que a revisão contratual à luz do Código
de Defesa do Consumidor encontra respaldo em seu art. 6º, inciso V (Teoria da Quebra da
Base Objetiva do Negócio), ao passo que a revisão do contrato pautada no Código Civil
vigente se baseia em seus artigos 317 e 478 (Teoria da Imprevisão).
Antes de adentrar no estudo da revisão contratual à luz de cada uma destas
teorias, é preciso, primeiramente, identificar se a figura do consumidor está presente no caso a
ser analisado, com o fito de se investigar sobre eventual aplicação do diploma consumerista.
Identificada a presença do consumidor, a revisão judicial do contrato deverá ser postulada sob
um prisma diverso daquele em que os contratantes são sujeitos paritários, isto é, em igualdade
de condições.
Pois bem, o conceito de consumidor pode ser encontrado em quatro
passagens do diploma consumerista: no art. 2º, “caput” e em seu parágrafo único, no art. 17 e
no art. 29. Interessa a este estudo, sobremaneira, a figura do consumidor standard, prevista no
art. 2º, “caput”, vez que as demais figuras são consumidores por equiparação, os quais, no
mais das vezes, não figuram como contratantes stricto sensu17
e, por isso, distanciam-se do
foco do presente estudo.
Dispõe o “caput” do art. 2º do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou
jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. A subsunção dos
fatos da vida a esta norma, todavia, evidencia fortes embates para a caracterização da relação
de consumo. Isso porque, em relações jurídicas das mais variadas, sempre vem à tona a
discussão quanto ao tema, remanescendo dúvidas, por vezes, acerca da presença da figura do
consumidor.
17
Bruno Miragem esclarece que a relação de consumo pode ou não resultar de um contrato: “(...) será
consumidor tanto quem adquirir, ou seja, contratar a aquisição de um produto ou serviço, quanto quem apenas
utilize este produto ou serviço. Logo, é possível concluir que a relação de consumo pode resultar de um contrato,
assim como pode se dar apenas em razão de uma relação meramente de fato (um contrato social), que por si só
determina a existência de uma relação de consumo.” (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 2ª
ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 85).
10
Alberto Junior Veloso18
observa que embora exista no Brasil um Código de
Defesa do Consumidor com intenção de abarcar todo o regime de proteção aos consumidores
e conquanto exista uma norma de aplicação geral conceituando o que seja consumidor, o
alcance do texto legal é polêmico e pode ser bastante abrangente.
Diante de tal problemática, a doutrina apresenta três teorias principais para a
caracterização do consumidor, quais sejam, as Teorias Finalista, Maximalista e Finalista
Aprofundada.
Conforme leciona Cláudia Lima Marques19
, para a Teoria Finalista, a
definição de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial oferecida pelo código, de
modo que a interpretação da expressão “destinatário final” deve ser feita de maneira restrita.
Nesse sentido, destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou
serviço, seja pessoa física ou jurídica. Trata-se, assim, daquele que não adquire o produto ou
serviço para revenda ou para uso profissional, mas sim daquele que adquire e utiliza um
produto para uso próprio. Para esta teoria, presume-se que a pessoa física seja sempre
consumidora frente a um fornecedor e se permite que a pessoa jurídica vulnerável prove a sua
vulnerabilidade.
Por sua vez, a corrente maximalista apregoa que o art. 2º do CDC deve ser
interpretado de modo extensivo, para que as normas do diploma consumerista possam ser
aplicadas a um número cada vez maior de relações no mercado, consoante observa Antonio
Carlos Efing20
. Os seus defensores entendem que a definição do art. 2º é puramente objetiva,
não sendo importante perquirir se a pessoa física ou jurídica obtém ou não lucro quanto
adquire um produto ou utiliza um serviço. Sendo assim, destinatário final seria o destinatário
fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza.
Cláudia Lima Marques21
adverte que a interpretação extensiva do conceito
de consumidor ocasionaria uma proliferação de agentes considerados “consumidores” e,
assim, o tratamento diferenciado desapareceria e a legislação especial de proteção do
consumidor se tornaria legislação comum, razão pela qual indica uma terceira teoria a ser
aplicada: a Teoria Finalista Aprofundada.
18
VELOSO, Alberto Junior. O contrato de compra e venda a crédito ao consumidor: análise a partir do
direito comunitário europeu. Curitiba: Juruá, 2013, p. 78. 19
BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de
direito do consumidor. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 84/85. 20
EFING, Antonio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do código de defesa do consumidor. 1ª
ed.; 2ª. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 46. 21
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos…, p. 342.
11
Sobre a Teoria Finalista Aprofundada, Cláudia Lima Marques22
esclarece
que se trata de interpretação mais aprofundada e madura, que deve ser saudada:
Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos para
a sua produção, mas não em sua área de expertise ou com uma utilização mista,
principalmente na área dos serviços, provada a vulnerabilidade, conclui-se pela
destinação final de consumo prevalente. Esta nova linha, em especial do STJ, tem
utilizado, sob o critério finalista e subjetivo, expressamente a equiparação do art. 29
do CDC, em se tratando de pessoa jurídica que comprove ser vulnerável e atue fora
do âmbito de sua especialidade, como hotel que compra gás. Isso porque o CDC
conhece outras definições de consumidor. O conceito-chave aqui é o de
vulnerabilidade.
Para esta teoria, portanto, sociedades empresárias que utilizam insumos para
a sua produção e comprovem a sua vulnerabilidade perante o fornecedor, passam a fazer jus à
proteção da legislação consumerista.
A verificação da figura do consumidor deverá, portanto, ser feita
casuisticamente, eis que cada situação jurídica deverá ser apreciada a fim de se concluir se se
trata ou não de uma relação de consumo.
Superada a questão atinente à identificação da figura do consumidor, faz-se
mister a análise da possibilidade de revisão contratual no âmbito do Código de Defesa do
Consumidor e do Código Civil de 2002.
5. DOS PARÂMETROS CIVIS E CONSUMERISTAS PARA A REVISÃO
CONTRATUAL
A análise detida da revisão contratual no âmbito do Código de Defesa do
Consumidor e do Código Civil de 2002 será feita em tópicos apartados, sendo necessário,
inicialmente, elucidar algumas diferenças existentes entre os dois diplomas legais na seara da
revisão contratual.
A revisão contratual no Código Civil de 2002, apesar de possível, é muito
mais restritiva em relação ao Código de Defesa do Consumidor, pois para que se empreenda a
revisão à luz daquele Código, deve haver “excessiva onerosidade, circunstância avaliada de
forma objetiva, com absoluta vantagem sobre a teoria da imprevisão e da cláusula rebus sic
22
BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima.; BESSA, Leonardo Roscoe., op. cit., p. 87.
12
stantibus, calcadas em aspectos subjetivos para que possam ser aplicadas23
”. Deve ser
comprovada, pois, a existência de fatos imprevisíveis que tornaram a prestação
excessivamente onerosa, requisito este dispensado pelo CDC.
Na esteira deste raciocínio, Bruno Miragem24
sintetiza tal distinção:
[...] é nesse ponto que cabe destacar a diferença entre o regime da revisão dos
contratos no direito civil e no direito do consumidor. Segundo a regra do art. 6º, V,
do CDC, em sua segunda parte, o direito subjetivo à revisão do contrato decorre da
circunstância de que fato superveniente tenha tornado excessivamente onerosas as
prestações. Não faz referência, assim, ao requisito sobre a imprevisibilidade ou não
do fato superveniente que tenha dado causa à desproporção. Neste sentido, o CDC,
coerente com a diretriz de impedir a transferência de riscos do negócio ao
consumidor, assim como de promover uma maior objetivação do exame e avaliação
do comportamento das partes do contrato de consumo, afasta a exigência (e com isso
a necessidade de comprovação) de que o fato que tenha dado causa à desproporção
fosse imprevisível. O objetivo desta disposição é a proteção do consumidor não
apenas com relação a fatos supervenientes que desestruturem o plano do contrato e a
possibilidade de adimplemento, mas também uma vedação a que riscos inerentes ao
negócio do fornecedor sejam repassados ao consumidor, quando a responsabilidade
pelos mesmos seja daquele que desenvolve a atividade negocial.
No mesmo compasso, Sergio Cavalieri Filho25
argumenta que a revisão
judicial dos contratos, nos dois dispositivos em que o Código Civil de 2002 a admite (art. 317
e 478), se embasa na existência de desproporções supervenientes à formação da relação
obrigacional, com respaldo na Teoria da Imprevisão, ante a exigência do requisito da
imprevisibilidade nos dois dispositivos legais. Trata-se, no entendimento do autor, de
requisito subjetivo e de difícil configuração, posto que a capacidade de previsão varia de
indivíduo para indivíduo e conforme o lugar da contratação.
Em contrapartida, a posição defendida por Cavalieri Filho26
é a de que o
Código de Defesa do Consumidor filiou-se à Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio
em seu art. 6º, inciso V, uma vez que não se exige ali a imprevisibilidade que torne
excessivamente onerosa a prestação assumida pelo consumidor. Não se investiga, neste caso,
sobre a previsibilidade ou não do fato econômico superveniente, ao contrário do Código Civil
– que adotou a Teoria da Imprevisão.
23
NERY JÚNIOR, Nelson. Da Proteção Contratual. In: GRINOVER, Ada Pellegrini... et al. Código brasileiro
de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª. ed. revista, atualizada e reformulada.
Rio de Janeiro: Forense, 2011, vol. I, p. 550. 24
MIRAGEM, op. cit., p. 134. 25
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 108/109. 26
Idem, ibidem, p. 109.
13
Sergio Cavalieri Filho27
explicita o que entende por base negocial, a fim de
justificar a adoção da Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio pelo Código de Defesa
do Consumidor:
[...] Por base negocial entende-se o conjunto de circunstâncias existentes no
momento da formação do contrato e que permitem às partes contratantes terem
presente a sua viabilidade econômica. Rompe-se a base negocial sempre que
modificação das circunstâncias presentes na formação do contrato inviabilizar a sua
finalidade.
[...] O Código Civil é um Código para relação entre iguais, o sistema nele
estabelecido tem por base o equilíbrio entre as partes, pressupõe igualdade de todos
que participam da relação jurídica, ao passo que o Código de Defesa do Consumidor
regula relações entre desiguais, o seu sistema se assenta sobre a presunção legal de
que, na relação de consumo, o consumidor age sempre como parte vulnerável; a
situação de inferioridade é prévia e objetivamente reconhecida, o que dispensa
exame da condição de consumidor.
Cumpre elucidar que há doutrinadores que defendem a presença da figura da
lesão (Teoria da Lesão) na primeira parte do inciso V do art. 6º do CDC, que trata da
modificação das cláusulas que estabeleçam obrigações desproporcionais, ao passo que a
Teoria da Quebra da Base do Negócio Jurídico corresponderia à segunda parte do dispositivo
legal, posição esta que parece ser a mais adequada.
A exemplo disso, vale mencionar o entendimento de Luís Renato Ferreira
da Silva28
:
No Brasil, em face do diploma dos consumidores, sustenta-se a possibilidade
de revisão por incidência do art. 6º, V, que refere à revisão de cláusulas contratuais
que estabeleçam prestações desproporcionais, o que não é outra coisa senão a figura
da lesão. Há quem diga que tal norma pertine apenas à onerosidade excessiva eis que
no texto consta a expressão “fatos supervenientes”. Em verdade, o dispositivo
referido contém duas regras de revisão. A primeira quanto a prestações
desproporcionais; a segunda quanto a fatos supervenientes. Logo, o remédio
adequado, no direito brasileiro de consumidores, é o da revisibilidade (ou
modificação, na dicção legal).
O aludido autor entende que a Teoria da Quebra da Base do Negócio
Jurídico está vinculada à ideia de circunstâncias posteriores à contratação e tem cunho mais
objetivo. Isso porque prescinde da imprevisibilidade do evento futuro e não se protege
somente o fato excessivamente oneroso, mas resguarda situações onde o contrato resta
frustrado, perdendo seu sentido ante o rompimento da sua base29
.
27
Op. cit., p. 109. 28
SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, p. 92. 29
Idem, ibidem, p. 151.
14
Resta clara, portanto, a diferença fundamental entre a revisão contratual
postulada em um contrato adstrito a uma relação de consumo e aquele celebrado entre
particulares, sob a incidência premente do Código Civil: na seara consumerista, dispensa-se a
demonstração da ocorrência de fatos imprevisíveis, bastando a ocorrência de onerosidade
excessiva que abale a base objetiva do negócio; já no âmbito civil, exige-se a ocorrência de
fatos imprevisíveis que tornem as prestações excessivamente onerosas ao devedor (Teoria da
Imprevisão).
Para demonstrar de maneira concreta tais diferenças, salutar é a menção de
julgados em que a revisão judicial foi postulada sob a égide do Código Civil (Teoria da
Imprevisão) e à luz do diploma de defesa do consumidor (Teoria da Quebra da Base Objetiva
do Negócio).
DIREITO EMPRESARIAL. CONTRATOS. COMPRA E VENDA DE
COISA FUTURA (SOJA). TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE
EXCESSIVA. INAPLICABILIDADE. 1. Contratos empresariais não devem ser
tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo.
Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios
da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2. Direito Civil e
Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e
princípios próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos
cíveis e empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam
essencialmente iguais. 3. O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a
aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/2002: (i) os
contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas
contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da
soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas
apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor rural e (iii) a variação cambial
que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário
e imprevisível, porque ambas as partes contratantes conhecem o mercado em
que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações são
possíveis. 5. Recurso especial conhecido e provido30
. Grifo meu.
No aresto acima, em que se discute contrato celebrado à luz do Código
Civil, a Teoria da Imprevisão não foi aplicada, ante a ausência dos requisitos necessários para
tanto: não se trata de contratos de execução continuada; não se configurou onerosidade
excessiva e não houve a caracterização de acontecimento imprevisível.
Já o julgado a seguir transcrito entendeu pela aplicabilidade da Teoria da
Imprevisão:
30
REsp 936.741/GO, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em
03/11/2011, DJe 08/03/2012. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21612065/recurso-
especial-resp-936741-go-2007-0065852-6-stj> Acesso em 06/06/2013.
15
APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATOS AGRÁRIOS. ARRENDAMENTO
RURAL. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL. PREÇO ÍNFIMO.
MANIFESTO DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE DE
REVISÃO. A força obrigatória dos contratos encontra limites apenas em casos
excepcionais, na ponderação com outros princípios, como a boa-fé objetiva, função
social e equilíbrio econômico. Para viabilizar a revisão contratual, com base na
teoria da imprevisão, é necessário o preenchimento dos requisitos previstos no
art. 317 c/c 478, ambos do Código Civil, dentre eles, a desproporção manifesta
da prestação, colocando uma das partes em situação de extrema vantagem.
Hipótese em que o preço estipulado no contrato, vigente há mais de 15 anos,
revela-se ínfimo, muito inferior à média de mercado, impondo-se sua revisão, a
fim de que seja restabelecido o equilíbrio contratual. Reforma da sentença, para
julgar procedente o pedido. Sucumbência redimensionada31
. Grifo meu.
Por outro lado, o julgado abaixo transcrito se refere a contrato celebrado sob
a égide do CDC, em que se admitiu a revisão contratual por ter havido onerosidade excessiva,
independentemente de prova da imprevisibilidade do fato, visto que, neste caso, não se exige
submissão à Teoria da Imprevisão:
APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO - AÇÃO REVISIONAL E
EMBARGOS DO DEVEDOR - CÉDULA RURAL PIGNORATÍCIA -
APELAÇÃO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - APLICAÇÃO -
CAPTAÇÃO DE RECURSOS EXTERNOS - COMPROVAÇÃO - CLÁUSULA
DE REAJUSTE VINCULADO À VARIAÇÃO CAMBIAL - ART. 6º DA LEI Nº
8.880/94 (PLANO REAL)- NULIDADE PLENA RECONHECIDA -
SUBSTITUIÇÃO PELO INPC - OCORRÊNCIA, ADEMAIS, DE ELEVAÇÃO
ABRUPTA DO DÓLAR NORTE-AMERICANO - ONEROSIDADE
EXCESSIVA SUPERVENIENTE - POSSIBILIDADE DE REVISÃO QUE
NÃO SE SUJEITA À IMPREVISIBILIDADE DO FATO - APELO
DESPROVIDO - RECURSO ADESIVO - ILIQUIDEZ DO TÍTULO -
INOCORRÊNCIA - AUSÊNCIA DO BOLETIM DE COTAÇÕES DO DÓLAR -
FATO QUE NÃO OBSTOU A IMPUGNAÇÃO - INEXIGIBILIDADE DO
TÍTULO - NULIDADE QUE NÃO ATINGE TODO O CONTRATO -
EXISTÊNCIA, ADEMAIS, DE VALOR REMANESCENTE DA DÍVIDA, JÁ
VENCIDA - POSSIBILIDADE DE ADEQUAÇÃO - SUBSISTÊNCIA DA
EXECUÇÃO - RECURSO ADESIVO DESPROVIDO32
. Grifo meu.
Examinados estes julgados exemplificativos da temática ora desenvolvida e
ultrapassada a abordagem sobre as principais diferenças entre a revisão contratual no âmbito
dos diplomas civil e consumerista, necessária se faz uma análise mais precisa acerca da
revisão judicial do contrato no âmbito do CDC.
31
TJRS - AC: 70051029494 RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Data de Julgamento: 25/10/2012, Décima
Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/11/2012. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22597256/apelacao-civel-ac-70051029494-rs-tjrs.> Acesso em
06/06/2013. 32
TJPR - AC: 2872599 PR, Relator: Glademir Vidal Antunes Panizzi, Data de Julgamento: 13/03/2007, 11ª
Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 7343. Disponível em: <http://tj-
pr.jusbrasil.com/jurisprudencia/6240493/apelacao-civel-ac-2872599-pr-0287259-9>. Acesso em 06/06/2013.
16
6. DA REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Sabe-se que o Direito das Relações de Consumo é todo voltado à proteção
do consumidor, figura vulnerável e hipossuficiente que mereceu a proteção do Estado,
precipuamente a partir do comando constitucional33
que determinou a elaboração de uma
legislação protetiva do consumidor, de ordem pública e interesse social.
Nesse sentido, o art. 1º do Código de Defesa do Consumidor34
anuncia o
caráter cogente daquela legislação: “o presente código estabelece normas de proteção e defesa
do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII,
170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”
Trata-se de um intervencionismo do Estado em prol do consumidor,
representado pela criação de um sistema legal protetivo do ente economicamente mais fraco
da relação jurídica, de modo que se passou a regular os dispositivos negociais de vários
contratos35
.
A proteção contratual do consumidor mereceu um capítulo próprio do CDC
– capítulo VI do Título I, cujos artigos 46 a 54 demarcam o intuito do Estado de amparar o
ente vulnerável da relação de consumo, seja ao estabelecer dispositivos que determinam a
interpretação das cláusulas contratuais da maneira mais favorável ao consumidor (art. 47);
seja ao elencar um rol de cláusulas abusivas (art. 51), seja ao definir aspectos do contrato de
adesão que desobrigam o consumidor ao seu cumprimento (art. 46 c/c o art. 54).
Dentre os inúmeros aspectos de defesa do consumidor, merece especial
atenção, por se tratar do foco deste estudo, o direito básico assegurado ao consumidor no art.
6º do diploma consumerista, qual seja: o de modificação ou revisão das cláusulas contratuais,
in verbis:
ART. 6º. São direitos básicos do consumidor:
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas.
33
Art. 5 º, inciso XXXII da CF/88: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. (BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil. VADE MECUM / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva
com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. –
11ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 11). 34
BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. VADE MECUM / obra coletiva de autoria da Editora
Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia
Céspedes. – 11ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 855. 35
LISBOA. Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos: consumidor, meio ambiente, trabalho, agrário,
locação. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 341.
17
Trata-se de dispositivo que modifica sobremaneira o sistema contratual
tradicional do Direito Privado, ao atenuar o dogma da intangibilidade do conteúdo do
contrato, conhecido pelo antigo brocardo pacta sunt servanda36
, conforme analisado no início
deste estudo.
Vale mencionar o entendimento de Nelson Nery Júnior37
acerca do
dispositivo legal ora comentado:
O direito básico do consumidor, reconhecido no art. 6º, nº V, do Código, não
é o de exonerar-se da prestação por meio da resolução do contrato, mas o de
modificar a cláusula que estabeleça prestação desproporcional, mantendo-se íntegro
o contrato que se encontra em execução, ou de obter a revisão do contrato se
sobrevierem fatos que tornem as prestações excessivamente onerosas para o
consumidor.
Assim sendo, caso seja o contrato submetido à apreciação jurisdicional,
pode o magistrado reconhecer a existência de cláusula estabelecendo prestação
desproporcional aos interesses do consumidor ou reconhecer que fatos supervenientes
tornaram as prestações excessivamente onerosas. Em qualquer um destes casos, incumbe ao
juiz, na visão de Nelson Nery Júnior, solicitar às partes uma composição no sentido de
modificar a cláusula ou rever efetivamente o contrato. Não havendo acordo, na sentença
deverá o magistrado estipular a nova cláusula ou as novas bases do contrato revisto
judicialmente, emitindo sentença determinativa, de conteúdo constitutivo-integrativo e
mandamental. Exercerá, deste modo, verdadeira atividade criadora, completando ou mudando
elementos da relação jurídica de consumo já constituída e submetida à apreciação do Poder
Judiciário38
.
Nesse diapasão, é possível pleitear a revisão contratual no âmbito do Código
de Defesa do consumidor bastando a existência de fatos supervenientes que impliquem em
onerosidade excessiva ao consumidor. Não se exige que tais fatos sejam imprevisíveis quando
da celebração do contrato, ao contrário, portanto, da revisão contratual requerida em um pacto
firmado entre particulares, sob a égide principal do Código Civil.
Neste ponto, é preciso ponderar que havendo cláusulas que desde a
celebração do pacto violem o equilíbrio da relação jurídica de consumo, duas situações
distintas são facultadas ao consumidor: postular a decretação da nulidade da cláusula
36
NERY JÚNIOR, Nelson. Da Proteção Contratual. In: GRINOVER, Ada Pellegrini... et al. Código brasileiro
de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª. ed. revista, atualizada e reformulada.
Rio de Janeiro: Forense, 2011, vol. I, p. 549. 37
Idem, ibidem, p. 550. 38
NERY JÚNIOR, Nelson, op. cit., p. 550/551.
18
contratual causadora de desequilíbrio ou requerer a sua revisão, com esteio no art. 6º, inciso V
do CDC. Por sua vez, se se tratar de desequilíbrio identificado posteriormente, em razão de
fato superveniente à celebração do contrato, que torne as prestações excessivamente onerosas,
surge uma segunda hipótese de revisão39
.
Há de se considerar o direito do consumidor à preservação do contrato,
sendo preferível buscar a conservação do negócio jurídico, mediante a revisão judicial
compatível neste sentido, conforme sustenta Roberto Senise Lisboa40
: “Isso significa que a
nulidade da cláusula abusiva não importa, necessariamente, a desconstituição de todo o
vínculo negocial (art. 51, parágrafo 2º, do CDC).”
Existe interessante discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da
possibilidade de reconhecimento ex officio, pelo magistrado, da nulidade de cláusulas
abusivas, tendo em vista, precipuamente, a mens legis do art. 51 do CDC, norma geral e
aberta que estabelece hipóteses de nulidade, de pleno direito, de cláusulas contratuais.
Ora, parece óbvio e pacífico no ordenamento jurídico que nulidades podem
ser reconhecidas de ofício pelo juiz, a qualquer tempo, não havendo razão para que
justamente no Código de Defesa do Consumidor, que contém normas de ordem pública e
interesse social, tal entendimento geral não prevalecesse.
Todavia, a Súmula nº 381 do Superior Tribunal de Justiça41
, caminha na
contramão deste entendimento, senão vejamos: “Nos contratos bancários, é vedado ao
julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
Tal enunciado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça desperta o interesse e
aguça a imaginação da doutrina em busca de um significado técnico-jurídico para a sua
edição, eis que está em confronto direto com o Código de Defesa do Consumidor e, quiçá,
com a Constituição Federal. No mais das vezes, encontra-se tão somente um fundamento
político para súmulas e legislações de semelhante quilate: a influência das instituições
financeiras sobre os três poderes da República Federativa do Brasil.
Não se está a defender, aqui, a possibilidade de uma análise ampla e
irrestrita de todo o conteúdo contratual pelo magistrado, até porque tal intento seria
impossível se consideradas as inúmeras limitações existentes. Defende-se, ao contrário, que
deve ser assegurada ao magistrado a possibilidade de, ao se deparar com eventual cláusula
39
MIRAGEM, op. cit., p. 132. 40
LISBOA, op. cit, p. 388. 41
Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. In VADE MECUM / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com
a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. – 11ª
ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1918.
19
abusiva em contratos bancários, declarar a sua nulidade. Deste modo, estar-se-ia restaurando a
harmonia do sistema jurídico brasileiro quanto à possibilidade de pronunciamento de ofício de
qualquer espécie de nulidade, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, pelo
julgador.
Custodio da Piedade Ubaldino Miranda42
, ao debruçar-se sobre o regime de
nulidades estabelecido para as cláusulas abusivas no direito brasileiro, obtempera que a
sanção de nulidade, nos negócios jurídicos, além de implicar a reprovação, pelo ordenamento
jurídico, do comportamento do sujeito que lhe deu causa, é ditada pelo interesse público.
Sustenta o autor ser a cláusula abusiva lesiva ao interesse público e merecedora de um juízo
de censura ou de reprovação pelo duplo fato de tratar-se de ato que viola a lei e os interesses
gerais da contratação.
Leonardo Roscoe Bessa43
reforça o posicionamento de que as cláusulas
abusivas inseridas em contratos de consumo podem e devem ser conhecidas de ofício pelo
magistrado, independentemente da formulação de qualquer pedido na ação ajuizada pelo
consumidor ou até mesmo quando o consumidor ocupar o polo passivo da ação, por se tratar
de aplicação do disposto no parágrafo único do art. 168 do Código Civil de 2002 c/c o art. 51
do Código de Defesa do Consumidor.
Para eventual reconhecimento ex officio da nulidade de cláusulas contratuais
e até mesmo para que seja submetido o contrato à apreciação do Poder Judiciário, é necessária
a propositura de ação judicial.
Vale mencionar, neste momento, que o projeto de CDC aprovado pelo
Congresso Nacional previa a possibilidade de controle administrativo dos contratos de adesão
e das cláusulas gerais, a ser feito pelo Ministério Público, sendo que o controle judicial, neste
caso, seria feito posteriormente, se necessário. O Presidente da República, entretanto, vetou a
previsão de controle administrativo44
.
Remanesce, portanto, a possibilidade de controle judicial dos contratos, que
inclusive pode ser feito em abstrato (art. 51, parágrafo 4º do CDC), sendo o Ministério
Público o único legitimado a propor tal ação de controle abstrato dos contratos existentes no
42
MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Contrato de Adesão. São Paulo: Atlas, 2002, p. 220/221. 43
BESSA, Leonardo Roscoe. Proteção Contratual. In: BENJAMIN, Antonio Herman V. MARQUES, Cláudia
Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 336. 44
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 1149.
20
mercado, mediante requerimento do consumidor ou de alguma entidade que o represente,
consoante esclarece Cláudia Lima Marques45
.
O Procurador da República Felipe Peixoto Braga Netto46
enfatiza que o art.
51, parágrafo 4º do CDC deve ser interpretado em consonância com o art. 6º, inciso VI do
mesmo diploma legal. Explica que o controle abstrato pode se dar por meio de uma
solicitação ao Ministério Público para que ajuíze ação para ser declarada a nulidade de
cláusula contratual, sendo que tal solicitação, por óbvio, não vincula o Ministério Público, que
pode entender ser impertinente a nulidade alegada. Tal solicitação não se trata, também, de
condição de procedibilidade, vez que pode o Ministério Público pode agir mesmo na sua
ausência.
Além da possibilidade de controle em abstrato, pode o consumidor,
individualmente, no caso concreto, postular a revisão judicial do contrato de consumo,
cabendo ao juiz verificar se a vontade do consumidor foi observada, consoante se extrai do
escólio de Cláudia Lima Marques47
:
[...] O juiz examinará, inicialmente, a manifestação de vontade do
consumidor, verificando se foi respeitado o seu novo direito de informação sobre o
conteúdo das obrigações que está assumindo (arts. 46 e 54), sob pena de declarar o
contrato ou a cláusula não destacada como não existente; verificará igualmente se
houve exercício do novo direito de desistência, assegurado ao consumidor pelo art.
49, no prazo de sete dias, nos casos de contrato de compra e venda concluídos fora
do estabelecimento comercial, nas conhecidas vendas de “porta a porta” e nas
contratações a distância do comércio eletrônico. O art. 47 assegura também, como
frisamos anteriormente, interpretação favorável ao consumidor.
De outro lado, os arts. 51 a 53 do CDC impõem um controle do conteúdo do
contrato, coibindo especialmente as cláusulas abusivas, sob pena de nulidade
absoluta.
Verifica-se, assim, a ampla margem de possibilidade de rediscussão do
contrato pelo consumidor, o que reflete, sobretudo, a intenção do Estado de proteger o polo
vulnerável da relação de consumo.
Sem o propósito de abordar, neste breve estudo, todas as facetas da revisão
contratual no âmbito do diploma consumerista, remete-se o leitor à leitura das obras aqui
indicadas, caso haja interesse em aprofundar a compreensão da matéria ora discorrida.
Passa-se, por conseguinte, ao estudo específico da revisão contratual no
âmbito do Código Civil de 2002.
45
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos...,, p. 1149 46
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ.
Salvador: Edições Juspodvm, 2011, p. 320. 47
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 1151.
21
7. DA REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
No Código Civil de 2002, a revisão contratual foi prevista de maneira
bastante sucinta e restritiva, se comparados os seus requisitos com aqueles necessários para se
empreender a revisão de um contrato de consumo.
Em não se tratando de uma relação contratual entabulada entre fornecedor e
consumidor, mas sim travada entre particulares detentores de semelhantes condições técnicas,
informacionais e econômicas, a revisão contratual, se possível, se operará precipuamente à luz
do Código Civil de 2002.
Conquanto seja restritiva a possibilidade de revisão contratual no Código
Civil de 2002, há também, tal como ocorre no Código de Defesa do Consumidor, a mitigação
do princípio da força obrigatória dos contratos. Não há a sua exclusão, pois a obrigatoriedade
dos contratos é necessária para a estabilidade das relações contratuais e das consequências
delas advindas: “(...) a obrigatoriedade do contrato forma o sustentáculo do direito contratual.
Sem essa força obrigatória, a sociedade estaria fadada ao caos48
”.
A possibilidade de revisão contratual está prevista nos artigos 317, 479 e
480 do Código Civil de 2002, diploma este que optou pela adoção da Teoria da Imprevisão
como fundamento para o pleito revisional no âmbito das relações contratuais civis.
Os artigos 478 a 480 do Código civil, abaixo transcritos, tratam da resolução
contratual por onerosidade excessiva, hipótese em que as avenças outrora assumidas, por
terem se tornado demasiadamente onerosas em razão de acontecimentos imprevisíveis,
justificariam o pedido de resolução ou de revisão contratual.
Dispõem os referidos artigos:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação
de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar
equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes,
poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-
la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
48
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 11ª ed. São
Paulo: Atlas, 2011, p. 473.
22
A partir da exegese de tais dispositivos, a doutrina indica os requisitos que
seriam necessários para que seja possível a revisão contratual, dentre os quais merecem ser
destacados os seguintes: vigência de um contrato comutativo de execução continuada, que não
poderá ser aleatório; a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis que
impliquem em uma alteração radical das condições econômicas no momento da execução do
contrato, em comparação com aquelas do momento da celebração do pacto; onerosidade
excessiva para um dos contraentes e benefício exagerado para o outro49
e, por fim, é
necessário que a parte prejudicada pelo desequilíbrio não tenha sido culpada pela modificação
do estado de coisas50
.
A posição doutrinária majoritária, conforme já dito, fundamenta a
possibilidade de revisão contratual na cláusula rebus sic stantibus e na Teoria da Imprevisão,
além da necessidade de presença dos requisitos acima elencados.
A cláusula rebus sic stantibus, síntese da expressão latina Contractus qui
habent tractum succesuivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur, é
considerada implícita em todo contrato comutativo de trato sucessivo e remonta a um milênio
da criação de Roma, por ter sido constatada no art. 48 do Código de Hammurabi, rei da
Babilônia51
.
Nesse sentido, Nelson Borges, em referência aos estudos de Henrique
Stodieck, observa que a Lei 48 do Código de Hamurabi trouxe a primeira manifestação escrita
(rupestre) do homem acerca da imprevisibilidade, ali registrada como caso fortuito ou força
maior: “Se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a
colheita, ou por falta d’água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo
ao credor, deverá modificar a sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano52
”.
A cláusula rebus sic stantibus significa, em suma, que as cláusulas e
obrigações contratuais permanecem hígidas “enquanto as coisas permaneçam como estão”,
mas eventual alteração do estado das coisas ensejaria a aplicação desta cláusula
modernamente consagrada como Teoria da Imprevisão, adotada pelo Código Civil de 2002.
49
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 3º volume: teoria geral das obrigações contratuais e
extracontratuais. 24ª ed., rev. atual. e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de Lei nº
276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 164. 50
MORAES, Renato José de. Cláusula “rebus sic stantibus”. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 35. 51
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos unilaterais. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 169. 52
BORGES, Nelson. A Teoria da Imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil. São Paulo: Melheiros
Editores, 2002, p. 85.
23
Considera-se que as partes, ainda que tacitamente, almejariam a revisão
contratual caso o estado de fato, em relação ao qual declararam a sua vontade, seja
modificado de maneira imprevisível e profunda, eis que, ao se obrigarem a uma prestação, a
vontade de cada parte pressupunha um determinado estado de coisas53
.
J. M. Othon Sidou54
, citando o entendimento de Arnaldo Medeiros da
Fonseca, explicita o conceito da cláusula em foco:
A doutrina entende pela cláusula tácita a condição em virtude da qual, em
certa categoria de contratos, o vínculo contratual se deve considerar subordinado à
continuação do estado de fato existente ao tempo de sua formação, de tal sorte que,
modificado o ambiente objetivo por circunstâncias supervenientes e imprevistas, a
força obrigatória do contrato não deve ser mantida, justificando-se a intervenção
judicial para revê-lo ou rescindi-lo. (...)
A intervenção judicial, contudo, deve ser feita se o fato superveniente
realmente tiver contornos de imprevisibilidade. Nessa toada, a jurisprudência acolhe com
cautela a aplicação da rebus sic stantibus, pois a inflação e eventuais alterações na economia,
por exemplo, são eventos perfeitamente previsíveis na ocasião da celebração do contrato.
Por se tratar de elemento subjetivo, a imprevisibilidade encontra
dificuldades concretas para o seu reconhecimento. O que é imprevisível para um dos
contratantes, pode não ser considerado pelo outro, devendo o conflito, neste caso, ser
submetido à apreciação jurisdicional, que decidirá sobre eventual aplicação da Teoria da
Imprevisão.
Otávio Luiz Rodrigues Junior55
obtempera que deve ser eliminada a
negligência, a imprudência e a imperícia como fatores capazes de acionar a Teoria da
Imprevisão. Esclarece que deve ser levada em consideração a cautela, o cálculo e a exação de
um bom pai de família. Afastam-se os acontecimentos inevitáveis, muitas vezes associados a
acontecimentos naturais. Somente após essas exclusões, no entendimento de Rodrigues
Junior, é que seria possível investigar os acontecimentos supervenientes e interpretá-los no
âmbito da execução do contrato, decidindo-se, então, pela possível aplicação da Teoria da
Imprevisão.
53
MORAES, op. cit., p. 31/32. 54
SIDOU, J. M. Othon. Resolução Judicial dos contratos e contrato de adesão no direito vigente e no
projeto de Código Civil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 11. 55
RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da
imprevisão. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 143.
24
Na mesma linha de raciocínio, Sílvio de Salvo Venosa56
sustenta que
questões meramente subjetivas do contratante não podem servir de amparo para qualquer
pretensão revisional: “A imprevisão deve ser um fenômeno global, que atinja a sociedade em
geral, ou um segmento palpável de toda essa sociedade. É a guerra, a revolução, o golpe de
Estado, totalmente imprevistos”.
Rodrigues Junior57
, em discordância com o posicionamento de Venosa,
assevera que a guerra, a revolução, a mudança de padrões monetários e a recessão podem ser
antevistos, pelo uso da prudência e do natural senso de acautelamento dos contratantes, razão
pela qual entende que a teoria da imprevisão não seria aplicável a tais hipóteses. Quanto aos
eventos derivados da ação da natureza, tais como chuvas, terremotos, tempestades, tufões,
furacões e doenças, explicita o autor que deve ser invocada a teoria do caso fortuito e da força
maior, diante do caráter inevitável destes acontecimentos.
Percebe-se, portanto, o caráter restritivo da aplicação da Teoria da
Imprevisão, sendo sempre necessária a avaliação casuística para se concluir pela
aplicabilidade da teoria.
Em relação à legitimidade para se requerer a revisão judicial do contrato à
luz do Código Civil de 2002, há duas correntes doutrinárias antagônicas: a primeira, mais
legalista e conservadora, defende a tese de que a revisão judicial somente seria possível por
iniciativa da parte ré, por se tratar da interpretação literal do art. 479 do Código Civil de 2002.
Isso porque o aludido dispositivo faculta ao réu oferecer-se a modificar as condições do
contrato, caso queira evitar a sua resolução.
Para esta parcela da doutrina, o Código Civil tratou a resolução contratual
como regra e a revisão como exceção, em sentido contrário àquele adotado pelo Código de
Defesa do Consumidor, em que a revisão é a regra e a resolução, exceção. Neste diapasão,
válida é a observação de Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Jr.58
:
Diferentemente do sistema previsto no Código de Defesa do Consumidor,
concebido para tratar da extinção do vínculo contratual como a última das
alternativas possíveis que deve ser considerada, na medida em que faz clara opção
pela revisão do contrato, da leitura do dispositivo acima transcrito percebe-se a
priori que o caminho preferencial, adotado pelo novo Código Civil, passa pela
resolução do vínculo celebrado entre as partes, ou seja, sua extinção sem o
cumprimento inicialmente previsto pelos contratantes.
56
VENOSA, op. cit., p. 474. 57
RODRIGUES JUNIOR, op. cit., p. 137. 58
EHRHARDT JR., Marcos Augusto de Albuquerque. Revisão Contratual: a busca pelo equilíbrio negocial
diante da mudança de circunstâncias. Salvador: Juspodvm, 2008, p. 99/100.
25
O entendimento mais apropriado quanto à legitimidade para se requerer a
revisão judicial do contrato, contudo, deve se afastar da compreensão de que somente o réu
poderia fazê-lo, de modo a conferir interpretação extensiva ao art. 478 do Código Civil,
conforme a interpretação de Rodrigues Junior59
. O referido autor apregoa que no contrato
bilateral, qualquer parte pode ser considerada credora ou devedora sob o prisma da
interdependência das prestações. Por isso, o significado de solvens do art. 478 do Código
Civil de 2002 não pode ser associado exclusivamente à figura do devedor, do locatário, do
prestador de serviços, etc. O devedor poderá ser também o comprador, o locador ou o
tomador de serviços, no que concerne às suas respectivas prestações. O autor arremata o
raciocínio ao afirmar que nas avenças bilaterais, as partes contratantes são, simultaneamente,
credor-devedor e devedor-credor, permitindo que o art. 478 seja aplicado a qualquer parte,
legitimando-as, pois, de maneira indistinta, a requerer o reconhecimento judicial da
imprevisão.
Ademais, tal interpretação é corroborada pelo art. 317 do Código Civil, que
ao tratar do pagamento da prestação devida em razão de relação obrigacional, também prevê a
aplicabilidade da Teoria da Imprevisão, consoante já mencionado neste estudo.
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá
o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor
real da prestação.
A posição mais apropriada, portanto, é a de que tanto credor quanto devedor
podem, desde que cumpridos os requisitos necessários, pleitear a revisão do contrato
celebrado.
Ao contrário do Código de Defesa do Consumidor, em que o magistrado
pode, de ofício, pronunciar-se a respeito de eventual nulidade constante no contrato de
adesão, no direito comum é vedado o reconhecimento ex officio da imprevisão.
Nessa esteira é o ensinamento de Otavio Luiz Rodrigues Junior60
:
Com maior causa, o princípio da revisão ex officio, é inaplicável aos
contratos submetidos ao direito comum. O caráter paritético das relações cíveis não
pode sucumbir à salvaguarda excessiva dos interesses de uma das partes. O pedido
certo e o prequestionamento são mecanismos processuais típicos de uma relação
isonômica entre os contendentes. O Poder Judiciário não se pode demitir de sua
59
RODRIGUES JUNIOR, op. cit., p. 124. 60
RODRIGUES JUNIOR, op, cit,. p. 125.
26
imparcialidade ao fito de proteger um litigante que não é, por lei, tido como
vulnerável em face de seu ex adverso.
A aplicação da Teoria da Imprevisão e a consequente revisão contratual
somente serão possíveis, assim, por iniciativa de um dos contratantes, mas nunca por impulso
do magistrado.
A doutrina vacila diante da mora do devedor: há discussão se seria possível
que a revisão atingisse as prestações vencidas ou se o pronunciamento jurisdicional alcançaria
tão somente as prestações vincendas.
Há forte corrente doutrinária e jurisprudencial defensora da tese de que a
imprevisão não se compatibiliza com a mora e, neste caso, ficaria prejudicado o pedido de
revisão judicial do contrato por parte do devedor moroso.
Trata-se de posicionamento correto, à medida que aquele contratante que já
se encontra inadimplente quanto ao cumprimento de suas obrigações não poderia, com esteio
na Teoria da Imprevisão, justificar a sua inadimplência. Assim sendo, a teoria deve ser
invocada antes da caracterização da mora.
Ao discorrer sobre o momento de arguição, Rodrigues Junior61
argumenta
que o pedido de revisão judicial deve anteceder a ocorrência de qualquer conduta inerente às
causas de extinção anormal do contrato, quais sejam: rescisão, resilição ou anulação,
resolução por inexecução voluntária ou resolução por inexecução involuntária.
É importante destacar, ainda, que a imprevisão deverá ser sempre arguida no
Poder Judiciário - ou no Juízo Arbitral, desde que contratualmente pactuado - e o ônus da
prova será sempre de quem alega, nos termos do art. 333, inciso I do Código de Processo
Civil.
A Teoria da Imprevisão deverá ser interpretada pelo magistrado, ao apreciar
o pleito revisional, em consonância com os princípios contratuais já tratados por este estudo,
notadamente os princípios da dignidade da pessoa humana, da boa-fé objetiva e da função
social dos contratos, conforme esclarece Otavio Luiz Rodrigues Junior.
Portanto, é ocioso teorizar de forma abstrata sobre quais seriam essas
circunstâncias. A interpretação dos contratos, baseada nos princípios da autonomia
privada, da prevalência da ordem pública, da boa-fé objetiva, do equilíbrio
contratual (ou do sinalagma) e o da função social do contrato, fornecerá elementos
para a solução prática de tais problemas, definindo se os eventos ou os fatos serão
enquadráveis na resolução por inexecução culposa, na resolução por inexecução
involuntária ou na teoria da imprevisão.
61
RODRIGUES JUNIOR, op. cit., p. 122.
27
Os princípios supramencionados, melhor analisados no início deste trabalho,
deverão ser sopesados pelo magistrado a fim de se decidir pela aplicação da Teoria da
Imprevisão. Por outro lado, a inobservância de tais princípios pode acarretar até a nulidade do
pacto, a exemplo da inobservância do princípio da função social do contrato, entendido como
preceito de ordem pública, consoante estabelecem os artigos 421 e 2.035, parágrafo único do
Código Civil de 2002.
Tendo sido abordados os principais aspectos da revisão contratual à luz do
Código Civil de 2002, vale mencionar, por derradeiro, que tramitou no Congresso Nacional o
Projeto de Lei nº 6.960/2002, de iniciativa do Deputado Federal Ricardo Fiúza, cujo escopo
era a alteração de uma série de artigos do Código Civil, inclusive dos mencionados artigos
478 a 480, que tratam da resolução por onerosidade excessiva e preveem a possibilidade de
revisão contratual.
Tal projeto de lei, se aprovado, dentre outros aspectos, eliminaria a
discussão quanto à legitimidade ativa para se requerer a revisão contratual e tornaria mais
ampla a previsão de revisão contratual pelo Código Civil. O aludido projeto, entretanto,
encontra-se arquivado na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, desde 31/01/2007, na
forma do art. 105 do Regimento Interno da Câmara, ou seja, por ter terminado a legislatura
em que o projeto foi proposto62
.
8. CONCLUSÃO
A nova ordem contratual, respaldada por princípios contidos na
Constituição Federal de 1988, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de
2002, reveste toda a teoria da revisão contratual, sobretudo se considerada a necessidade de
resguardar a função social dos contratos, bem como de valorizar a dignidade e a boa-fé do
sujeito contratante e de se buscar o equilíbrio das relações contratuais.
Conquanto haja tais traços comuns entre os pactos civis e consumeristas, há
caracteres específicos que diferem os contratos circunscritos ao Código de Defesa do
Consumidor e ao Código Civil de 2002, sendo que a sua revisão deverá obedecer a diferentes
requisitos, o que não impede o diálogo e a interpenetração destes dois diplomas legais.
No Código de Defesa do Consumidor, basta o reconhecimento de prestações
originariamente desproporcionais ou de excessiva onerosidade causada por fatos
62
O site: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=56549>. Acesso em
29/05/2013.
28
supervenientes para que o pacto possa ser submetido à apreciação jurisdicional. Assegura-se,
em qualquer dos casos, a rediscussão judicial das cláusulas contratuais. Trata-se de aplicação
da Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio, isto é, a modificação das circunstâncias
ocasiona o desvirtuamento da finalidade do pacto e autoriza a sua revisão ou até o
reconhecimento da nulidade de suas cláusulas, que pode inclusive ser feito de ofício pelo
magistrado.
Já o Código Civil adotou a teoria da imprevisão, denominação moderna da
cláusula rebus sic stantibus, como fundamento da revisão contratual. Neste caso, além do
surgimento de prestações excessivamente onerosas, estas devem ter sido causadas por fatos
imprevisíveis, ou seja, não cogitados no momento da celebração do contrato.
A identificação da figura do consumidor, pois, é um critério importante para
se perquirir acerca da aplicação preponderante de um ou de outro diploma legal. É necessário
enfatizar, todavia, que a existência de um código para iguais (Código Civil) e de um código
para diferentes (CDC), conforme o escólio de Cláudia Lima Marques, não implica na
aplicação apartada e dissociada de seus dispositivos, motivo pelo qual se valoriza o diálogo e
a aplicação subsidiária destes diplomas legais, sempre se valendo da aplicação do diploma
mais compatível ao caso concreto.
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