da laranja ao lote - sonali maria de souza
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Sobre loteamento da gleba rural na BaixadaTRANSCRIPT
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Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro
DA LARANJA AO LOTE Transformaes sociais em Nova Iguau
Sonali Maria de Souza
Rio de Janeiro 1992
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DA LARANJA AO LOTE
Transformaes sociais em Nova Iguau
Sonali Maria de Souza
DISSERTAO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAM A DE
PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DO MUSEU NACIONAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS
REQUISITOS NECESSRIOS OBTENO DO GRAU DE MESTRE
Aprovada por:
Prof. Afranio Raul Garcia Jr./
. o \ 'J
X .A O 0''1'
j / 'y ~ / Prof. Moacir Gracindo Soares Palm eira
Prof. Jos Sergio Leite Lopes
Rio de Janeiro, R J - Brasil1992
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SOUZA, Sonali Maria.Da laranja ao Lote; transformaes sociais em Nova Iguau. Rio de
Janeiro, UFRJ, PPGAS/Museu Nacional, 1992.IX, 181 f.Tese: M estre em Cincias (Antropologia)1. Nova Iguau, Histria 2. Loteamentos 3. Migrao 4. Antropologia
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGAS/Museu NacionalII. Ttulo
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ERRATA
As referncias a PEREIRA, 1970 feitas nas pginas 43, 44, 47 e 48 dizem respeito a PEREIRA,Waldick (1970) - mudana da vila. Edio do autor.
Seguem-se as seguintes correes:
pgina 23
2 Onde se l "a um poder central a a fronteiras determinadas..." leia-se " a um poder central e a fronteiras determinadas...'1.
pgina 27
2 Onde se l "importante ator poltico nesse perodo," leia-se "importante ator poltico nesse perodo.".
pgina 31
4 Onde se l "que no havia um mapa do IBG." leia-se "que no havia um mapa do IBGE para a Baixada.".
pgina 32
3 Onde se l "lideranas histricas oposicionistas e encontraram..." leia-se " lideranas histricas oposicionistas que encontraram ...".
pgina 34
2 Onde se l "Reportando-me Bourdieu ..." leia-se "Reportando-me a Bourdieu...".
pgina 44
5 Onde se l "a estrada de ferro de Pedro II " leia-se " a estrada de ferro Pedro II ".
pgina 45
4 Onde se l "m exemplo demonstrativo dessa verso que pode tambm ser encontrada em..." leia-se "um exemplo demonstrativo dessas verses que podem tambm ser encontradas em...".
pgina 48
4 Onde se l "o povoado menos insalubre, j concentrava..." leia-se "o povoado menos insalubre j concentrava....
- 1 - favor no fazer anotaes ou gritos tinta ou ' i is r*sta nublicac#
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3 Onde se l "(BRASIL. 1946:5) leia-se "(IBGE, 1946:5))".
pgina 57
3 Onde se l "motivada pelo sucesso do cultivo da fruta. Diante da imi>ortncia da produo e por articulaes polticas e da intermediaes da Asssociao de Fruticultores..." lei-se "motivada pelo sucesso do cultivo da fruta e por articulaes polticas. Diante da importncia da produo e das intermediaes da Associao de Fruticultores...".
pgina 60
2 Onde se l "viviam com suas famlias as chcaras de laranja..." leia-se "viviam com suas famlias nas chcaras de laranja...".
pgina 61
3 Onde se l "seu pai mudou-se com a famlia para uma fazenda administrada pelo irmo de seu pai ..." leia-se "seu pai mudou-se com a fmlia para uma fazenda administrada por um tio paterno de Adolfo....
4 Onde se l "diferentemente do estudado por BASTOS (1977)..." leia-se "diferentemente do caso estudado por BASTOS (1977)...".
pgina 62
4 Onde se l "quando o marido rompeu o casamento, resolveu vender a chcara..." leia-se "quando o marido rompeu o casamento, ele resolveu vender a chcara...".
pgina 65
3 Onde se l "Miguel..." leia-se "Joo...".
pgina 76
2 Onde se l "GEIGER & MESQUITA, 1959..." leia-se "GEIGER & MESQUITA, 1956...".
pgina 79
2 Onde se l "os filhos com famlias j constitudas recebiam ento o seu terreno..." leia-se "os filhos com famlias j constitudas recebiam ento cada um o seu terreno...".
3 Onde se l "o loteamento lucrativo." leia-se "o loteamento foi mais lucrativo".
pgina 91
4 Onde se l "LAGO, 1990" leia-se "LAGO, 1991".
pgina 52
- 2 -
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pgina 92
4 Onde se l "e foram constitudos..." leia-se ", tendo sido constitudos...'1. 5 Onde se l "fez retroceder os aluguis retrocederem a ..." leia-se " fez retroceder os alu
guis a ...".
pgina 94
5 Onde se l "acontecendo, inclusive, tendo havido cerca de ..." leia-se "acontecendo, inclusive, cerca de ...".
pgina 103
4 Onde se l "e construo da residncia, de certa forma ..." leia-se "e construo da residncia e, de certa forma ...".
pgina 116
1 Onde se l "para aqules provenientes do Norte, a oposio com uma cultura mais claramente representada como herdeira de africanos, e mais, negra. leia-se "para aqueles provenientes do norte, a oposio com uma cultura mais claramente representada como herdeira de africanos e mais negra."
pgina 121
1 Onde se l "Essa, inclusive, a origem do marido, que viera de Miracema..." leia-se "Essa inclusive a origem do marido que veio de Miracema...".
pgina 122
3 Onde se l "A mais nova, nasceu em 1961... leia-se "A mais nova nasceu em 1961...
pgina 123
3 Onde se l "bem demonstra como a histria da constituio dos trabalhadores urbanos..." leia-se "bem demonstra como conceber a histria da constituio dos trabalhadores urbanos...".
- 3 -
OEM UME-MUim B r ........ . /T
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Afrnio Raul Garcia Jr., orientador de dissertao, pelo est
mulo e ateno criteriosa.
Ao Prof. Gilberto Velho, orientador de curso, por ter percebido rele
vncia no estudo do universo social que optei estudar desde o incio do curso
de mestrado, e por indicaes bibliogrficas preciosas.
Ao Prof. Moacir Palmeira, pela indicao do livro O Campo e a Cida
de, para mim muito importante, no apenas pelo modelo que pude empregar
nesta dissertao, mas tambm pelas questes existenciais que pude melhor com
preender atravs desta leitura.
Ao Prof. Otvio Velho, cuja crtica generosa, detalhada e atenciosa a
um trabalho de curso, no perodo em que fazia os cursos de mestrado, me fez
avanar a pesquisa.
A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em A ntropolo
gia Social, registro aqui meus agradecimentos na pessoa do Prof. Jos Srgio
Leite Lopes.
Ao socilogo Abdeimalek Sayad, por seus ensinamentos de dignidade.
A Tania Soares, responsvel pela Seo de Ensino do PPG AS.
Ao Secretrio de Obras da Prefeitura de Nova Iguau, Sr. Srgio Gur-
gel, e a Alton Alves, pela possibilidade de consultar arquivos desta Secretaria.
Aos professores Franklin Bolvar Lamounier, M aria A parecida Rosesto-
latto, M untaha Murad, diia Herminia dos Santos, M aria Lvdia Caulino Ramos.
M aria Beatriz Afonso Lopes, e ao solidrio Prof. Silva, por terem acreditado
neste trabalho.
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Fsvor no fazer anotaes ou grifss tinta ou lpis nsoia puliiicss
ThomasRealce
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Ao Dr. Moacyr de Carvalho que tornou possvel as entrevistas em Aus-
tin.
Ao Prof. Ruy Arnio Peixoto, pelo acesso a seus arquivos.
A Associao de M oradores de Vista Alegre e Adjacncias.
A todos aqueles que partilharam comigo m om entos significativos de
suas vidas,, possibilitando-me escrever esta dissertao, lhes agradeo desejando
que este trabalho possa ser um registro e uma traduo, mnima que seja, do
que uie foi confiado. -
A Ceclia Boal, que ajudou a desem baraar alguns ns que am arravam
este trabalho.
A Amir Geiger, pela reviso de grande parte do texto e pelas paisa
gens que pudemos trocar ao longo do curso de m estrado.
A Jurandyr Ferrari Carvalho Leite, que de longa data m e confirma a
crena na associao possvel entre saber e justia, pela editorao.
A meus avs maternos, que me fizeram herdeira de um a rica tradio,
"real memory/ like cedar feet/is shod in adaman" (E. Dickinson).
Joo Jos Fernandes de Sousa esteve presente, solidaria e am orosa
mente, em todos os dias e noites desse anthropological blues. Para eie, minha
mais terna gratido.
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RESUMO
O trabalho analisa o processo de transformao de chcaras de laranja
em loteamentos urbanos, no municpio de Nova Iguau, RJ, ocorrido sobretudo
a partir dos anos 1950, avaliando-se algumas das implicaes sociais da produo
de loteamentos. No primeiro captulo, analisam-se as mudanas de sentido da
classificao Baixada Fluminense como representativas das mudanas na ocupao
da regio assim denominada e estuda-se aspectos da histria do municpio aci
ma, a fim de se poder avaliar vises saudosistas de passado, presentes entre as
elites locais e moradores antigos. No segundo, a citricultura descrita e estuda-se
seu declnio. No terceiro, a produo de loteamentos analisada. No quarto e
ltimo captulo feita descrio de uma rea de loteamentos, procura-se carac
terizar os compradores dos lotes, representados pelas elites locais como migran
tes, e descrever como a rea de loteamentos apropriada pelos moradores, sen
do pouco a pouco urbanizada.
Favor no fazer anotaes cis grfl tinte &a lpis neia publica*
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INDICE
In tro d u o ................................................................................................................................. 1
Captulo I - LU G A R E M E M R IA ......................................................................... 161. As Baixadas Fluminenses: construo social
dos limites de uma r e g i o ............................................................................... 23- Para historicizar a c a te g o ria .................. 23- Baixada no presente: confrontos de rep re sen ta es ............................ 30
2. Aspectos histricos do municpio de Nova Iguau ............... 37- D e uma velha e uma nova Ig u a u ............................................................ 40
Captulo II DA LARANJA AO LOTE: de chcara e loteam entosuma tran sfo rm ao ..................................................................... 51
1. Do universo das chcaras de laranja................................................................ 56- Exportao e benefic iam ento ......................................................................... 56- O universo social da p ro d u o ...................................................................... 59- O calendrio da p ro d u o ............................................................................ 66- Citricultura e deslocamento p o p u lac io n a l................................................ 67- Parcelam ento do solo e expanso de p ro p rie d a d e s ........'.-7 0
2. Declinio da C itr icu ltu ra ..................................................................................... 74- Crise a partir da Segunda G u e r r a ............................................................ 74- Converso de chcaras em lo te am e n to s ................................................ 77i
Captulo III - LOTEAM ENTOS E TRANSFORM AESNO ESPAO S O C IA L ............................................................. . . . . 83
- O loteam ento como forma de ocupao u r b a n a .................................. 89- Loteam ento e e sp ecu lao .............................................................................. 93- Loteam ento e vias de tra n sp o rte s ................................................................ 95- Loteam ento e transformao no espao s o c ia l .......................................... 97
Favor n ia fazer anotsrs- ou grifes tints eu lpis nesta puiJicae
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Captulo IV - O "PESSOAL D E FORA":construo de um novo m u n d o ...................................................... 106
1. O migrante: diferentes mundos em transform ao . 1112. Loteamentos: construo de uma c id a d e ....................... 124
C o n c lu s o ................................................................................................................ 135N o ta s ...................................................................................................................................... 143Referncias Bibliogrficas................................................................................................. 149A n e x o s ................................................................................................................................... 160
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Para Miguel e Judith, Alencar, Arlette, Aldina e Wilton
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"Tento relatar algo e, mal me calo, noto que ainda no disse nada. Uma maravilhosa substncia luminosa,
refratria,permanece em mim e escarnece das palavras. Ser o idioma, que l no compreendi e que agora
dever se traduzir lentamente dentro de mim? L existiram acontecimentos, imagens e sons, cujos
significados s agora comeam a se constituir para mim".
Eias Canetti, Vozes de Marrakech
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INTRODUO
Cuidado, diziam no fundo da memria as imagens da Baixada Fluminense, todas nascidas da crnica policial(...)" (Fernando Gabeira - "speros Caminhos da Esperana")
"For the historian comes to the interview to leam: to sit at the feet o f others who, because they come from a different social class, or are less educated, or older, know more about something'' (Paul Thompson - The Voice of the Past)
A regio hoje comumente conhecida por Baixada Fluminense costuma
estar presente no noticirio nacional e internacional como rea de forte crimina
lidade, e tam bm como caso dos problemas do modelo m etropolitano brasileiro.
O jornalista Fernando Gabeira chegou a escrever que os limites da Baixada se
riam uma "fronteira mtica", tal a distncia social resultante das imagens e noti
cirios provenientes desta rea.
Em que pese a dramtica realidade subjacente a estas denncias, que
fatores concorreram para a constituio de uma tal fronteira, que coloca a Bai
xada para alm dos limites da cidade, mas tambm fora das representaes de
campo, circunscrevendo um lugar habitado por seres mticos, assim como as
m ontanhas de uma regio do Pas Basco que, segundo seus camponeses, seriam
habitados pelo "genij"?^1) U
Foram perguntas como esta, feitas por muitos habitantes da Baixada,
que moveram inicialmente o trabalho de pesquisa que deu origem a presente
dissertao, e neste texto inicial, proponho-me a contar os caminhos que percorri
com elas e como pude ir encontrando os dados que me perm itiram chegar at
ThomasRealce
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aqui. Os caminhos no foram fceis, mas medida em que os sinais que ia en
contrando iam me permitindo entender aqueles pelos quais passara anteriorm en
te, pude caminhar com a convico de que as perguntas que fazia levavam
possibilidade de tornar inteligvel um lugar, existencial, geogrfico, social.
Para isso, alm de bibliografia, muito ajudaram as pessoas com as
quais convivi durante o trabalho de campo. Encontrar estas pessoas no foi ape
nas a relao de uma pesquisadora em observao participante, mas a possibili
dade de trocar experincias com aqueles que poderiam m e ajudar a entender
questes deste trabalho. De minha parte, a disponibilidade, em ouvi-los, prpria
da profisso, era muitas vezes a confirmao de que suas vidas de fato tinham
historicidade, uma experincia importante, que s vezes o estatuto politicamente
subalterno de uma condio, como a velhice, a pobreza, o analfabetismo, fazia
esquecer. Mas no apenas os ouvi, vrias vezes conversei. Ou melhor, embora
tendo um roteiro para as entrevistas, por diversas vezes o que aconteceu foram
conversas em tom o dos temas que a pesquisa propunha a essas pessoas. Com
elas, aprendi. E comigo elas tiveram a possibilidade de expor suas experincias e
de refletirmos sobre elas.
D urante todo o tempo, tinha conscincia de que quem ia em busca
dessas pessoas era eu, pesquisadora, e que, portanto, elas possuam um conheci
m ento que a mim era necessrio. Sem pruridos acadmicos, no compartilho de
idias que pretendam dar Cincia um estatuto de saber independente da con
dio humana. Desse modo, como na epgrafe no incio deste texto, convivi com
as pessoas que me ajudaram a escrever esta dissertao para aprender com elas.
Creio que vrias das perguntas que lhes fazia eram perguntas que faziam a si
prprias e que, talvez por isso, quando entrevistava, por diversas vezes vivi a si
tuao de ter uma ou mais pessoas escutando o relato de quem era entrevistado
e tam bm entrevistando.
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Vasculhando bibliotecas locais, arquivos pessoais, efetuando entrevistas,
deparei-me vrias vezes com o extremo interesse de pessoas contatadas, seja em
dar-me seu depoimento pessoal, seja em ceder-me documentos, bibliografias. In
felizmente, as restries objetivas de locomoo, tempo, e mesmo do escopo do
trabalho, levaram-me a. dar um limite necessrio a este levantam ento, que possi
velmente no deve ter correspondido demanda dos grupos contatados. Realizei
entrevistas em que os entrevistados me aguardavam atenciosam ente, alguns
acompanhados de amigos ou parentes que lhes "sopravam" um ou outro dado e
que ao final me indicavam listas de pessoas que poderiam tam bm ser entrevis
tadas, o que, dado os limites acima descritos, muitas vezes no pude faz-lo.
Esta experincia, acontecida entre idosos mas tam bm entre no idosos,
ou melhor, entre pessoas que se interessavam por uma "histria de Nova
Iguau", no caso de elites locais, ou ento pela histria da citricultura, no caso
de parentes de chacreiros, ou ainda pela histria de seu bairro, no caso dos mo
radores de uma rea de loteamentos onde estive no decorrer da pesquisa, deu-
me a convico de que uma histria precisava ser contada, no apenas sob o
ponto de vista da pesquisadora, mas tambm das pessoas entrevistadas. O que
no quer dizer que trabalhos no tenham sido feitos nesse universo social, mas
que para os agentes uma histria vivida precisava ser contada. N otadam ente en
tre habitantes mais antigos de Nova Iguau, elites locais e chacreiros, houve mui
to interesse nos depoimentos colhidos e naqueles que poderiam vir a ser feitos,
por parte daqueles que eram entrevistados e de conhecidos que vinham a saber
da entrevista, pois so significativos, o que me parece, de uma experincia so
cial im portante na histria do estado do Rio de Janeiro.
Inicialmente, estive mais concentrada em fazer entrevistas neste segmen
to. Ao final dessa fase, convenci-me de que um processo de rupturas havia sido
vivenciado por aquelas pessoas e que fora este processo que informava o tom
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de necessidade, de ato necessrio, dos depoimentos. Mais tarde, quando ento
estive mais detidamente fazendo entrevistas entre moradores de loteam entos, co
mecei a pensar neste processo como algo muito mais amplo, que encompassaria
tam bm aqueles que tinham vindo m orar nos loteamentos. Algumas das entrevis
tas tiveram o carter resgatador indicado por vrios pesquisadores (e.g.
THOM PSON, 1988; POLLACK, 1986) a respeito da importncia do depoimento
biogrfico para os entrevistados.
No caminho um tanto quanto poeirento (lembro-me aqui das ruas' e
trilhas porque passei) desta pesquisa, foi pensada a possibilidade de ser feita
uma comparao entre trajetrias de habitantes de um loteam ento e de campo
neses de uma ocupao em Nova Iguau, Pedra Lisa. Isso se deveu ao fato de
ter encontrado, no loteamento em que fazia trabalho de campo, um a antiga li
derana daquela ocupao, hoje octogenrio. Felizmente, de um a em preitada
dessa monta, com todas as implicaes que teria, a nvel de um necessrio su
porte terico, como tambm do flego necessrio para um tal trabalho de cam
po, tirou-me o socilogo Abdelmalek Sayad, com quem pude conversar sobre a
pesquisa, j iniciada, durante sua estadia no Brasil, em 1990.
Assim, concentrei-me "apenas" na rea de loteamentos onde j tinha
conseguido fazer contatos e entrevistas, mas, de qualquer modo, ter ido Pedra
Lisa e entrevistado alguns de seus posseiros me foi importante, no s pela be
leza do mundo que pude conhecer l (a histria de alguns de seus posseiros, a
geografia do lugar), mas tambm como um subsdio para este trabalho.
Esta dissertao procura contar a experincia dos habitantes de uma lo
calidade que, no processo de transformao brasileiro que marcou "o fim da he
gemonia agrrio-exportadora e o incio da predominncia da estrutura produtiva
de base urbano-industrial" (OLIVEIRA, 1972:9), foi um locus profundam ente
marcado por este processo. A cidade, Nova Iguau, e bairros adjacentes, faziam
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parte do territrio de um municpio que, at basicamente o incio dos anos
1950, era socialmente apropriado segundo os princpios de uma economia agrria
e que, a partir daquela dcada, passou a ter vastas reas transform adas em lote
amentos. Ou seja, glebas de terra, vrias delas com produo agrcola, tiveram
esta produo retirada e foram arruadas e divididas em lotes, a fim de serem
comercializados individualmente.
Em sua maioria, estes lotes, destinados ocupao urbana, serviram
para o alojamento de populao que deslocava-se do campo para centros urba-
no-indus'triais como o Rio de Janeiro, em busca de trabalho.
Atravs da interveno de polticas pblicas no decorrer do Estado No
vo, como o saneamento da Baixada Fluminense, a eletrificao dos trens de pas
sageiros, o Decreto-Lei n?58, que regulamentou o loteam ento de terras, foram
dadas as bases para a acelerao desta ocupao, que recebeu novos incentivos
com a abertura ao trfego da Avenida Brasil e da rodovia Presidente Dutra. A
nvel da poltica local, as intervenes estadonovistas se fizeram sentir, por exem
plo, com a deposio, em 1930, do prefeito Alberto Soares de Sousa e Melo,
que veio a ser o ltimo representante, neste cargo, de uma famlia proprietrios
rurais que controlavam o poder poltico h cem anos.
Dentro do quadro da aceleraao da acumulao econmica promovida
a partir do reordenam ento poltico e econmico iniciado pela Revoluo de
1930, os loteamentos, sob a forma da venda de lotes sem investimentos de infra-
estrutura, articulavam-se com as estratgias de acumulao do perodo. A compra
do lote, pago em prestaes durante 12, 15, 20 anos da vida produtiva do grupo
domstico, e a construo .da casa, feita pelo grupo, ajudariam a aum entar, con
forme O LIVEIRA (1972), "a taxa de explorao da fora de trabalho, pois o
seu resultado - a casa - reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodu
o da fora de trabalho - de que os gastos com a habitao so um compo
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nente im portante e para deprimir os salrios reais pagos pelas empresas"
(OLIVEIRA, 1972:31).
A questo da habitao dos trabalhadores, nas cidades onde se concen
travam as indstrias, foi uma questo abordada por autores de diferentes corren
tes, contemporneos do perodo de surgimento do operariado na Europa, tornan
do-se, desde ento, um tem a presente na literatura sobre este segmento social,
na qual a insalubridade e o carter segregador do espao destinado habitao
de trabalhadores, eram dados mencionados (PERR O T, 1971; LOPES, 1984).* Nesse perodo, com o crescimento da industrializao, verificou-se a
transformao de terras encompassadas pelo stio urbano em unidades parceladas
a serem comercializadas, sob a forma de lotes retangulares, "o que se deu inicial
m ente na Europa, e depois Estados Unidos. Este tipo de prtica j seria encon
trada na Europa desde o sculo XVII, vindo a se consolidar e ampliar, no
sculo XIX, sob a forma de planos de loteam entos chamados pelos estudiosos
do urbanismo de planta em grade ou em xadrez (M UM FORD, 1982:456-464;
BELOCH, 1980:25-29).
Esta inovao articulava-se com as transformaes mais gerais, promovi
das pela expanso da economia de mercado desde fins do sculo XVIII, em que
a terra foi incorporada, enquanto mercadoria, nesse sistema (POLANYI, 1980).
Na literatura brasileira sobre habitao popular, o tem a dos loteam en
tos e da autoconstruo (categoria utilizada pelos estudiosos do problem a da ha
bitao para designar a prtica de construo da casa dos trabalhadores pelos
prprios) recente, iniciando-se a partir da segunda m etade dos anos 1970. A
favela foi o objeto de estudo privilegiado desta literatura, influenciada, at os
anos 1970, pela teoria da marginalidade, havendo, assim, uma bibliografia mais
vasta em relao a esta forma de moradia (VALLADARES & FIG U EIR ED O ,
1981).
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S mais recentemente, em fins dos anos 1970, que os loteamentos
passaram a ser analisados, tendo o ensaio de Francisco de Oliveira, "A Econo
mia Brasileira: Crtica Razo Dualista", j referido, como um im portante m ar
co terico. Houve aqui, na verdade, uma descontinuidade com a produo de
gegrafos que, nos anos 1950 e incio dos anos anos 1960, estudaram o assunto
no perodo em que os loteamentos proliferaram no estado do Rio. Cabe, ento,
lem brar dos trabalhos de Pedro Geiger, Myriam M esquita e Terezinha Segadas
Soares, incorporados nesta dissertao.
Este trabalho estuda o caso da produo de loteam entos em Nova
Iguau, procurando mostrar como ela gerou rupturas a nvel local, transform a
es econmicas e sociais.
Estas transformaes se traduziram, inclusive, em mudanas do territrio
administrativo do municpio. O crescimento da ocupao urbana, sob a form a de
loteamentos, presente em Nilpolis e Meriti desde o incio do sculo XX e em
D uque de Caxias a partir da inaugurao da rodovia Rio-Petrpolis em 1928 e
sobretudo a partir dos anos 1930, refletiram-se na emancipao destes distritos.
A ocupao intensa destas reas, posteriorm ente desmembradas, fizeram
ento com que o municpio tivesse um crescimento populacional expressivo, re
gistrando o maior crescimento proporcional do pas no perodo 1920-40
(MENDES, 1950:102). Assim, em 1943, foram emancipados de Nova Iguau os
distritos de D uque de Caxias, Imbari, Meriti e parte do distrito de Belford
Roxo, a fim de constituirem o novo municpio de Duque de Caxias. Em 1947,
M eriti veio a constituir o municpio de So Joo de Meriti, assim como o distri
to de Nilpolis, separando-se de Nova Iguau, ganha autonomia municipal.
De outro modo, o crescimento populacional acima referido ocorreu
tam bm devido ao cultivo da laranja, que atraiu populao cam ponesa para essa
produo. Na cidade de Nova Iguau, centro administrativo do municpio, e arre
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dores, desenvolvia-se desde o incio do sculo o cultivo da laranja, produo
agrcola que teve grande importncia devido a sua insero no modelo agro-ex-
portador do perodo anterior Revoluo de 1930.
O sucesso da citricultura, at a primeira metade dos anos 1940, res
guardou as extenses de terra ocupadas com esta produo da onda crescente
de loteamentos como ser visto mais detidamente no decorrer da dissertao. O
fim deste cultivo, com a transformao das chcaras de laranja em loteamentos
urbanos, trouxe no s uma nova forma de ocupao, mas tam bm mudanas %
economicas, transformaes na organizao social do municpio, e a ruptura com
as idias de uma cidade e de um mundo agrrio.
Este trabalho procura mostrar os loteamentos sob o ponto de vista das
transformaes locais que estes implicaram. A literatura sobre esta form a de
ocupao tem privilegiado as questes do parcelamento do solo, da autoconstru-
o e dos agentes imobilirios. Incorporando estas questes, a dissertao procu
ra dar indicaes de que, a nvel local, os loteamentos podem representar trans
formaes em uma organizao social existente anteriormente.
Desse modo, se procurar demonstrar que os loteam entos feitos em
Nova Iguau, no ps-guerra, desencadearam um processo de rupturas com o pe
rodo anterior, quer seja pelo abandono de uma produo agrcola, quer seja pe
lo crescimento populacional favorecido pelos loteamentos.
A existncia prvia de uma organizao social pode ser percebida atra
vs de um sistema de classificaes relacionado ao tem po em que um a pessoa
habita o lugar, freqentem ente acionado, e que rem ete histria da ocupao
do espao. Esse sistema classificatrio traduz, parece, as diferentes camadas, eta
pas, em que se deu a ocupao. So as categorias: famlia tradicional, iguauano,
pessoal antigo e morador antigo.
As famlias tradicionais, so aquelas ligadas ao passado de proprietrios
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rurais. Elites locais, tm posio de prestgio semelhante quela descrita por
COSTA & DIGIOVANNI (1991) a respeito dos curitibanos de famlias conheci
das, famlias mais antigas e de prestgio em Curitiba. A classificao famlia tra
dicional, rem ete tambm noo de uma tradio de famlia, de um sobrenome
de prestgio historicamente cristalizado. _ ......
A categoria iguauano pouco empregada no cotidiano, em geral apa
rece em situaes de propaganda poltica ou em contextos de reafirm ao de
uma precedncia sobre o lugar.t
O pessoal antigo refere-se a famlias de moradores antigos e ambas as
categorias recobrem os habitantes mais antigos de um bairro, ou da cidade, e,
independentem ente de sua posio econmica, h uma relao de deferncia pa
ra com eles. Em geral, nos bairros, os moradores antigos, so aqueles pioneiros
na ocupao do loteamento, ou aqueles que estavam presentes na cidade, nos
povoados ou nas chcaras, no perodo que precedeu expanso dos loteam en
tos. Em Austin, onde fiz trabalho de campo, eram constantem ente mencionados
Seu Fulano ou Dona Fulana "morador(a) antigo (a) aqui da rea'', e que, segundo
aqueles que me ajudavam a fazer contatos com possveis entrevistados, seriam
"importantes" para a pesquisa.
A existncias destas categorias e as relaes que elas ensejam faz pen
sar a historicidade da ocupao do espao e como o tem po de perm anncia no
espao socialmente relevante neste contexto.
Mas, alm de prestgio, estas classificaes podem rem eter tam bm , pa
ra as elites locais, a uma oposio entre iguauanos e o pessoal de fora em que
os primeiros representam desse modo a populao que foi m orar nos lo team en
tos. Nesta oposio, os iguauanos atribuem aos segundos os problem as advindos
ao municpio sobretudo a partir dos anos 1970, como a falta de infra-estrutura
para o atendim ento da populao e a criminalidade.
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-
Esta parece ser uma constante em vrios processos sociais de mudana,
em que o crescimento populacional atravs da migrao acontece associado
deteriorao de uma situao tida pelos antigos como melhor que a presente.
Ser ento ao estranho que sero destinadas as causalidades da situao, tornan
do exgenas estas causas, externas ao grupo mais antigo no espao, K ELLER
(1977), por exemplo, mostra a existncia de uma oposio entre os m oradores
mais antigos de um povoado sertanejo e nordestinos, em rea de frente de ex
panso agrcola, no M aranho, em que os sertanejos atribuem chegada dos
paraibanos uma certa desordem na vida social do povoado.
A presena desta oposio se traduzem em campanhas eleitorais, no
caso de Nova Iguau. A partir dos anos 1980, tm sido feitas campanhas usan
do-se o argum ento de que somente um poltico iguauano no cargo de prefeito,
seria capaz de administrar melhor o municpio.
Alm desta oposio, uma outra perm ite pensar as transformaes
ocorridas. E a oposio entre a cidade dos laranjais e a cidade dos loteamentos.
Registra-se um a valorizao positiva do passado, em que este idealizado. Esta
valorizao se d entre famlias tradicionais, iguauanos e moradores antigos, p re
sentes no perodo anterior aos loteamentos, e, longe de pensar que a idealizao
do passado seja uma total falsidade, esta questo foi abordada na dissertao
como um mito que rem ete ao passado agrrio do municpio e que pode ajudar
a com preender relaes socialmente estabelecidas. Para isso, foi realizado um le
vantam ento histrico a fim de que se pudesse compreender em que sentido, em
contraste com um perodo anterior, os loteamentos representaram mudanas sig
nificativas.
Se h um eixo temporal, diacrnico, neste trabalho, ele se d como in
vestimento para a compreenso das diferentes ocupaes e representaes sobre
o espao.
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-
- Assim, um outro eixo do trabalho o prprio espao, objeto tradicio
nalm ente estudado pelas cincias sociais. As representaes de Baixada, cidade, e
de um mundo rural, so abordadas no decorrer do trabalho como elem entos sig
nificativos das mudanas analisadas.
D U RK H EIM (1973), ao abordar o espao enquanto representao cole
tiva, demonstrou que as representaes sobre este so produzidas socialmente.
Em Os Nuer (EVANS-PRITCHARD, 1978), pode-se perceber como as categorias
de tem po e espao, articuladas, traduzem a apropriao social da natureza, e %
que assim, as concepes de tempo e espao rem etem s concepes de nature
za e s relaes sociais atravs das quais as sociedades organizam sua temporali-
dade e teritorialidade.
Tendo em vista a nfase espacial do objeto de estudo deste trabalho,
no se poderia esquecer a historicidade das relaes sociais sobre o espao e,
conjuntamente, a dinmica das relaes de apropriao deste, a fim de que ele
no seja substantivado na anlise.
Assim, cumpre ressaltar que no passaram desapercebidos os desloca
mentos e trocas, que tornam irredutveis a populao de um municpio, bairro,
loteamento, aos limites destes (CHAMPAGNE, 1975). Alm deste aspecto, os
prprios limites juridicamente constitudos so aqui pensados enquanto um a cons
truo poltica, social e histrica e, portanto, representando um estado da din
mica de apropriao social do espao.
A cidade, e as possveis particularidades das relaes sociais agenciadas
por ela, tm sido objeto de reflexo constante nas cincias sociais. P resente em
clssicos como W EBER (1966), SIMMEL (1979) e Marx, a cidade teve, no de
partam ento de Sociologia da Universidade de Chicago, um im portante centro de
pesquisa, j a partir do incio deste sculo. Atravs de observao minuciosa es
tudo minucioso de comunidades urbanas, estudiosos como R obert Park, Ernest
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Burguess e Roderick Mackenzie, implementaram e consolidaram os estudos mo-
nogrficos, feitos por cientistas sociais no interior das cidades (BRESLAU, 1988).
No Brasil, as pesquisas em reas urbanas tm tam bm uma produo
expressiva. Apenas para citar alguns trabalhos relevantes de antroplogos, feitos
entre diferentes segmentos e abordando diferentes aspectos das camadas popula
res, pode-se lembrar das pesquisas de CALDEIRA (1984), M AGNANI (1984),
ZA LU A R (1985), D U A RTE (1986) e LOPES (1988).
Desse modo, so amplamente empregados o m todo comparativo e o
trabalho de campo para o entendimento de relaes sociais no contexto do es
pao urbano. A utilizao da abordagem antropolgica para o entendim ento des
tas relaes tem sua validade demonstrada, quando se avalia a contribuio de
diferentes pesquisadores, no sentido de possibilitar um melhor entendim ento dos
microcosmos presentes na heterogeneidade das cidades surgidas com o desenvol
vimento industrial. A possvel "familiaridade" dos pesquisadores com seus "objetos
de estudo", no sentido de que compartilham um a mesma "organizao scio-es-
pacial", no oblitera, por si s, os resultados, podendo ser relativizada, se se
pensar nas inmeras diferenciaes encontradas nesse mundo heterogneo
(V ELHO & SILVA, 1977) e nos recursos analticos e metodolgicos desenvolvi
dos pela Antropologia.
Partindo do suposto que o modelo de urbanizao promovido atravs
do deslocamento de populao para os grandes centros industriais teve como
uma de suas conseqncias a heterogeneidade desse mundo urbano (PARK,
1979; W IRTH, 1979; VELHO & SILVA, 1977), procura-se pensar a cidade cria
da pelos loteamentos como um mundo diferenciado, no apenas porque a popu
lao que aflui para este tem diferentes origens sociais, mas tam bm porque, co
mo se procurar demonstrar, os loteamentos no aconteceram sobre um a rea
de vazio populacional ou sem uma histria de apropriao do espao anterior a
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eles.
Assim, procurou-se esboar um quadro onde surgissem diferentes agen
tes envolvidos no processo: proprietrio de terra, chacreiros, trabalhadores da
laranja, loteador, habitantes de loteamento. Assim tambm, registrou-se a produ
o saudosista dos iguauanos e moradores antigos, no para desqualific-la, mas
como uma expresso que pode ser subsdio para o entendim ento das mudanas.
Procura-se tambm, alm de destacar a diferenciao interna deste uni
verso, dar mostra de um dinamismo prprio s relaes sociais. A inovao dos %
lotes urbanos provocou mudanas no espao social, nos "princpos de diferencia
o ou de distribuio" (BOURDIEU, 1989b: 133) que organizavam a sociedade
sustentada pela citricultura e, desse modo, nas posies ocupadas pelos agentes.
O mundo retratado pela memria idealizada dos "laranjais floridos" foi
constitudo atravs do surgimento de vrios pequenos e mdios estabelecimentos,
e de seus responsveis, os chacreiros-, atraa populao cam ponesa de diferentes
lugares e nele os exportadores tinham posio dominante. Como se tentar de
monstrar, este mundo foi sendo transformado com a entrada em cena de um
novo campo social, cujo objeto de disputa era a terra.
Os loteamentos foram produzidos atravs da criao deste campo, que
formou especialistas como os loteadores (de maior ou m enor capitalizao) e
corretores imobilirios, com conhecimentos prprios (havendo inclusive a especia
lizao atravs de cursos) estes agentes trouxeram novas prticas que se traduzi
ram em amplas mudanas.
A incorporao destas prticas por agentes locais fez com que, por
exemplo, proprietrios de terra viessem a lotear suas propriedades, abrindo suas
prprias firmas de loteamento, e que tambm se tornasse possvel que um ex-
trabalhador rural viesse a ingressar no mercado imobilirio como corretor e pos
teriorm ente loteador, caso este encontrado na pesquisa.
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Assim, atravs da atuao desse novo campo social, foi m udado o em
prego da terra e tambm a prpria organizao social da localidade. A fora
destes agentes pode ser avaliada, inclusive, pela articulao entre estes e o po
der pblico, tom ando possvel a adequao da implementao dos loteamentos
face s exigncias de legislao. .......... .. ... .
A pesquisa procurou descrever uma rea de loteamentos, a fim de
abordar o novo tipo de cidade que surgiu atravs dele. Tenta-se m ostrar como
este espao apropriado pelos novos habitantes, a origem social destes e sua %
diversidade.
Para tal, foi escolhida uma rea em Austin, sub-distrito de Nova
Iguau, cuja denominao se deve estao ferroviria, batizada com o sobreno
me do engenheiro ingls que a construiu no sculo passado. Assim tam bm se
chamou o povoado erguido em torno da estao, cujas redondezas foram ocupa
das por vrias chcaras e pela Fazendas Reunidas Normandia, com produo de
laranja.
Os loteamentos nos quais foi feito trabalho de campo so originrios
de chcaras e se encontram prximos rodovia Presidente Dutra. L pude en
trevistar remanescentes da citricultura, bem como aqueles que com praram lotes e
vieram habitar os loteamentos.
Foram realizadas cinqenta entrevistas para esta pesquisa, entre habi
tantes da cidade de Nova Iguau e de Austin. Trinta delas seguiram o roteiro
de um questionrio com perguntas abertas e fechadas, sendo realizadas no Posto
de Sade Rosa dos Ventos, mantido pelo Sistema Unificado de Sade e situado
no loteam ento Vista .Alegre. A possibilidade de ter acesso aos habitantes dos lo
team entos se deu atravs da Associao de M oradores de Vista Alegre e Adja
cncias, atravs da qual foi possvel a "entrada no campo" no ano de 1989.
As questes e argumentos foram desenvolvidos em quatro captulos. No
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primeiro busca-se demonstrar o processo histrico subjacente construo social
da Baixada e para isso tambm procurou-se esboar um quadro de aspectos da
histria do municpio que deu origem regio. Este esboo talvez seja um tanto
extenso para um trabalho em Antropologia, mas o esforo da pesquisadora nesta
rea fez com que resolvesse registrar aspectos que pareceram im portantes para
que se pense as continuidades e descontinuidades desta histria.
No segundo captulo a citricultura foi descrita com o objetivo de bali
zar a apreciao das rupturas presentes s transformaes dos anos 1950. No %
terceiro captulo os loteamentos foram tratados, sob o ponto de vista de que as
transformaes no espao fsico promovidas por eles tam bm levaram a transfor
maes no espao social, promovendo deslocamentos nesse espao, em que
alguns tiveram trajetria declinante, outros trajetria ascendente, e outros m anti
veram sua posio atravs da reconverso de capital. No quarto captulo desen-
volveu-se uma etnografia em uma rea de loteamentos que foi anteriorm ente
ocupada com produo de laranjas.
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Captulo
LUGAR E MEMRIA
"Mal samos da costa no podamos esquecer o fato de o Brasil se ter transformado, mais do que desenvolvido, durante um sculo"
(Lvi-Strauss Tristes Trpicos)
-
Em um a publicao da agncia municipal do IBGE de Nova Iguau,
datada de 22 de setembro de 1946, pode-se ler, a respeito da situao econmi
ca do municpio, que este
"(...) at pouco antes de ter sua sede transferida para o povoado de Maxambomba, atual Cidade de Nova Iguau, era considerado um dos celeiros da antiga Metrpole. Com o advento da Lei urea, de que resultou a escassez de braos para a lavoura, e a obstruo de seus rios, cujo extrava- samento tornou pantanosas e por isso mesmo inabitveis, vastas regies at ento cultivadas, passou, a partir dos ltimos anos do sculo XIX, a ser explorado mais para o sul, onde j se iniciava a cultura da laranjeira- que, afinal, veio a constituir sua principal fonte de riqueza.(...)
, Hoje, (...), nenhum daqueles produtos, que fizeram outrora a riqueza doMunicpio, revela haver resistido esmagadora concorrncia da citricultura, evidentemente mais rendosa e compensadora". (IBGE, 1946:4)
O dia 22 de setembro de 1946 fora institudo pela prefeitura local co
mo o "Dia da Laranja", festividade para o qual a publicao acima citada foi
uma contribuio. Finda a Segunda Guerra Mundial, pretendia-se retom ar a vita
lidade "esmagadora" da citricultura naquele municpio, seriamente abalada pelas
dificuldades de exportao durante o conflito mundial. O texto em apreo figura
como um registro do incio do processo que levaria ao fim da citricultura em
Nova Iguau.
Sem que seja desconsiderada a presena de outros tipos de explorao
e ocupao agrrias, como por exemplo a existncia de terras devolutas ocupa
das e exploradas por camponeses, de propriedades rurais que constituam heran
a de famlias tradicionais, de extenses de terras ocupadas com pasto para gado
bovino, etc., era marcante a importncia da citricultura no municpio sob o pon
to de vista da lucratividade que esta proporcionava, e tambm de um a estratgia
econmica atribuda a esta cultura por setores da Repblica Velha.
Nos depoimentos de moradores antigos de Nova Iguau, constante a
oposio entre um passado mais buclico e a atual realidade de violncia e
crescimento urbano sem o acom panham ento de infra-estrutura. Atravs das cate
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Thomas Cortado
Thomas Cortado
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gorias morador antigo e famlia antiga, e das representaes que os habitantes
encompassados por essas categorias tm de um perodo anterior s transform a
es decorrentes dos loteamentos, possvel encontrar dados a respeito das
implicaes do crescimento da ocupao urbana sobre a organizao social do
municpio.
Registros como os seguintes podem ser encontrados na produo cultu
ral local:
"Na pacata Nova Iguau, ex-Maxambomba dos iaranjais floridos , eom as * corridas na raia e festas juninas, a vida era comum como a de qualquer
cidade do interior." (PEREIRA, 1981:12. Grifos meus)
" Nova Iguau, por que no flcaste sempre Maxambomba?" (PEIXOTO, s/d:3. Grifo meu)
"NasciEm teu solo fecundo Respirando o aroma Dos seus laranjais (...)Eu viComo em sonho de beijo O velho realejo Em frente a estao (...)Eu viBoiadeiro valente Tanger comovente boi boiada (...)Eu viNo porvir dos meus sonhos Teus frutos risonhos Querido torro.Meu torro." (Meu Torro, cano de autoria do seresteiro Altamiro
Borges de Freitas apud PEREIRA, 1981:98. Grifo meu)
No se poderia aqui deixar de assinalar a idealizao do passado e da
infncia presentes nesse tipo de material. Entretanto, a freqncia de lembranas
como estas indicam a possibilidade de "perceber o verdadeiro processo de m u
dana descrito nesses textos de memria, medida que descobrimos o processo
comum a todos eles" (WILLIAMS, 1989:398).
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Raymond Williams, ao analisar as idias de oposio entre campo e
cidade, demonstrou como tal sistema de idias, presente desde a Antigidade,
tornou-se mais acentuado em fins do sculo XVI passando desde ento a simbo
lizar transformaes sociais ocorridas no contexto do desenvolvimento industrial.
Para o autor, se a constatao da persistncia das idias de oposio campo/ci
dade indica a persistncia de relaes presentes no capitalismo, por outro lado
apenas a constatao dessa permanncia seria insuficiente, pois as idias de
campo e cidade estariam condicionadas pelos processos histricos especficos que%
acionam essas idias e que condicionam sua variedade:
"(...) as idias e imagens do campo e da cidade ainda conservam sua fora acentuada. Esta persistncia to significativa quanto a grande variedade, social e histrica, das idias em si.(...) Mas se percebemos que a persistncia depende das formas, imagens e idias em mudana - ainda que muitas vezes de modo sutil, interna e por vezes, inconscientemente podemos ver tambm que a persistncia indica alguma necessidade permanente ou praticamente permanente, que se reflete nas diferentes interpretaes que vo surgindo. Creio que h, de fato, uma tal necessidade, e ela criada pelos processos de um desenvolvimento histrico especfico. Contudo, se no vemos esses processos, ou se s os vemos por acaso, recamos em formas de pensamento aparentemente capazes de criar a permanncia sem a histria.(...) Ou, em termos mais tericos, devemos saber explicar, em termos relacionados, tanto a persistncia quanto a historicidade dos conceitos" (WILLIAMS, 1989:387-388).
Dessa forma, a presena de um discurso, em diferentes setores da pro-
. duo cultural local, de valorizao do passado agrrio do municpio (2), pode
ser interpretada dentro de um processo histrico. Com a necessria qualificao
daqueles que so os produtores de tal produo saudosista em geral pessoas
de origem nas famlias tradicionais de antigos proprietrios de terra; nas famlias
de chacreiros e de setores citadinos, como comrcio e servios h, presente de
modo geral entre os moradores antigos, de diferentes setores, um a valorizao
positiva do passado em oposio s dificuldades do presente, m arcadas sobretudo
pela violncia.
Se para muitos que l estavam, em diferentes posies sociais, fre-
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qente a representao de que "antes era melhor", pode-se destacar que, tam
bm para aqueles que compravam um lote e para l mudavam-se, um processo
de dissociaes com a condio anterior fora vivido, seja com o trabalho campo
ns, ou com atividades em cidades de pequeno porte vinculadas a reas de pro
duo agrria, ou ainda, com o mundo urbano das favelas cariocas onde alguns
haviam nascido e tinham sido criados. Nesse sentido, podem ser encontrados re
latos como os dois seguintes. O primeiro o depoimento de um poltico a uma
revista local e o segundo faz parte do conjunto de entrevistas realizadas na reat
de loteamentos em que foi feito um trabalho de campo para esta dissertao:
No, eu no sou de Nova Iguau, mas j me considero daqui. Estou aqui h trinta e dois anos. Cheguei de Minas aos nove anos. Sou de Pa- tossi do Muria, regio norte de Minas Gerais, cidade pequena. Viemos tentar aqui na cidade grande uma possibilidade maior. Emprego em cidade do interior de Minas no existe. Ento meu velho teve a viso de vir para uma cidade que estava em perspectiva de ser uma cidade grande. (...) Era uma vida com bastante dificuldade, uma famlia bastante humilde mesmo. Alugou uma casinha no Caonze onde conseguimos fazer uma casinhamelhorzinha para ele.(...)" (Depoimento de comerciante e poltico local revista Nosso Jeito, s/ da ta :l-ll. Grifos meus.)
Quando eu comecei a me entender de gente, foi na poca da Guerra, porque a gente do interior at os sete, oito anos no entende de nada, s da vidinha de sempre (...). Foi no ano de 49, eu estava no milharal, foi um ano em que deu muito milho, meu pai falou comigo assim: 'Jurandir voc no quer ir para o Rio de Janeiro? Eu no, vou fazer o que no Rio, no tenho pai, no tenho me, no tenho nada! Ah, mas tem teu primo Joo. Ah, ...Gostaria sim, de ir pra casa de meu primo Joo. A eu pensei: Ele est no Rio! Tem casa l!, pensei que ele estava numa boa. A viagem foi muito triste, levamos quase um ms, tive raiva de meu pai. Andamos a p cerca de sessenta quilmetros, depois pegamos um trem numa cidadezinha de nome Propri no estado de Sergipe, fomos nesse trem at Salvador, na Bahia, em Salvador... no tinha trem para Belo Horizonte, ficamos quase quinze dias em Salvador, tive raiva, ficamos em hospedagem que mais parecia um chiqueiro, deixei minha casa de pobre mas em que se tinha nossa rede iimpinha (3) ( Quando foi na poca de pegar o trem soubemos que no podia viajar sem tomar vacina, (...). Aquilo me deu uma febre, virou um hematoma(...). A chegou o trem, o trem foi at o interior da Bahia e a tinha um trecho que no podia passar porque tinha cado uma barreira, tivemos que pegar esse trecho na base do caminho, a sim!, a que eu vi as coisas pretas, subimos serra, (...) era um monto de gente (...), eu vi muita misria, fiquei apavorado porque ns ramos pobres mas tnhamos nossa terra, comecei a ter febre (...) era o serto da Bahia, no tinha gua (...). Chegamos em Monte Azul, no norte de Minas, mas no tinha trem, o trem tava atrasado, que-
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brou e ficamos uma semana em outra hospedagem, esperando o trem, e a essa altura papai j estava sem dinheiro (...). E pegamos o tal do trem, chegamos em Belo Horizonte e pegamos o trem para o Rio de Janei-ro.(...) Chegamos na Central do Brasil, que j era a monstruosidade que hoje, e quando eu olhei praquilo pensei: "Pronto, agora que eu estou frito."(...) Acho que papai no imaginava como o Rio era longe. (...)'' (Jurandir, nascido em 1933 no interior do municpio de Traipu, Alagoas)
relato de Jurandir, bancrio aposentado, originrio de rea de ocu
pao imemorial no interior de Alagoas, uma narrativa exemplar das perip
cias de tantos que viajaram do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo para o
Rio de Janeiro e que tiveram nas canes de Luiz Gonzaga, conforme assinalou
um entrevistado, uma interpretao do mundo que deixavam e da viagem, em
que se afastavam do mundo anterior, que fizeram. Nos relatos de suas vidas, ao
tentarem explicar a sua presena em um determinado lugar, que enquanto espa
o geogrfico representa um dos atributos da posio ocupada pelos agentes no
espao social, freqentem ente so evocadas imagens de campo, de cidade, para
descrever e explicar a trajetria dos agentes dentro das transformaes sociais vi-
venciadas. Nos dois trechos citados, encontram-se imagens das realidades que a
viagem deixou para trs: cidades do interior sem possibilidade de emprego,
cidades pequenas, vidinha de sempre, milharal, rede limpinha, nossa terra. E o que
se imaginava encontrar no fim da viagem: possibilidade de emprego na cidade
grande, uma casa no Rio de Janeiro, prestgio.
E possvel perceber que no apenas aqueles que se consideram antigos
in terpretam sua histria atravs das mudanas da ocupao espacial do munic
pio, mas tam bm aqueles que chegaram mais recentem ente descrevem diferentes
paisagens para explicar as transformaes experimentadas em suas vidas, na m e
dida em que tais mudanas esto associadas a deslocamentos geogrficos. Estas
representaes, em suas variaes, so significativas dos diferentes processos de
transform ao vividos pelos agentes, e tambm fazem parte do conjunto de re
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presentaes que tentam explicar a nova realidade social criada pelos loteamen-
tos, que propiciaram a inveno de uma nova cidade e que confrontaram pesso
as de to diferentes origens sociais. A presena de diferentes paisagens nos rela
tos e documentao levantados, avaliadas sob uma crtica histrica e sociolgica,
so assim um ndice das mudanas experimentadas. Nos dados levantados pela
pesquisa, possvel ser percebida a confluncia de pessoas de diferentes mundos
em transformao, quer sejam aquelas que estavam no municpio no perodo de
cultivo expressivo da laranja, ou aquelas, de diferentes outros mundos, que para
l se dirigiram.
A Baixada e, no caso especfico dessa dissertao, o municpio de Nova
Iguau, foram palco de drsticas transformaes desencadeadas sobretudo a par
tir dos anos 1950, dentro das quais a prpria idia de Baixada Fluminense se
transformou, o que pode ser interpretado como um dos elementos desse proces
so. Assim, como as idias de campo e cidade, a idia de Baixada tam bm pode
ser avalliada sob uma perspectiva histrica e, desse modo, uma questo proposta
por Raymond Williams, a respeito das diferentes imagens de campo e cidade,
incorpora-se a este trabalho: "Que tipos de experincias essas idias parecem in
terpretar, e por que certas formas ocorrem e recorrem nesse ou naquele m o
mento?" (WILLIAMS, 1989:388).
Com esta questo, procuro analisar na prim eira parte deste captulo a
Baixada enquanto uma contruo social, e, na segunda parte, aspectos da hist
ria do municpo de Nova Iguau, procurando dem onstrar que um processo hist
rico de rupturas encontra-se subjacente idealizao do passado.
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Thomas Cortado
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1. As Baixadas Fluminenses: Construo social dos limites de uma
regio
Busca-se aqui desenvolver uma anlise que perm ita dar m ostra de co
mo as mudanas ocorridas nos usos da categoria Baixada Fluminense, assim co
mo as lutas de imposio e reconhecimento desta classificao, so um indcio
de um processo histrico. A anlise aqui desenvolvida pretende apenas m ostrar
que as transformaes sociais ocorridas propiciaram, inclusive, a transform ao
das idias e limites da regio e que, o trabalho simblico de construo destas
idias e limites, por sua vez, faz parte da prpria histria da constituio da
Baixada.
Esta afirmativa, em que pese a necessria relativizao ante o caso
aqui em estudo, pode encontrar em MAUSS (1969), um balizamento. Ao refletir
sobre o fenmeno sociolgico da formao da nao moderna, cujo estatuto se
ria dado pela associao de uma sociedade material e m oralm ente integrada a
um poder central a a fronteiras determinadas, este autor j demonstrava que o
processo que havia formado as naes, atravs do qual se criava a substantiva-
o de uma sociedade a uma fronteira, atravs de jurisprudncia, era "econmico
de uma parte, e de outra moral e jurdico" ( MAUSS, 1969:590).
Para historicizar a categoria
Tornou-se difundido o uso dos termos Baixada e Baixada Fluminense
para designar os municpios das vizinhanas ocidentais do Rio de Janeiro, reu
nindo-os sob a idia de uma regio, de uma rea fsica compondo uma mesma
realidade geogrfica e social.
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Pelos noticirios da imprensa com maior poder de divulgao, a
Baixada surge atravs de um repertrio do qual constante a violncia generali
zada e as carncias de sua populao. Desse modo, por exemplo, podem ser en
contradas notcias com os seguintes ttulos:
"Em sete meses, a Baixada teve mais de 1 mil mortos" (Jornal do Brasil,31/08/1988)
"Encapuzados matam dois na Baixada" (O Dia, 13/11/1988)
"Baixada luta contra o crime" (Jornal do Brasil, 22/08/1988)
"Freira assassinada na Baixada" (ltima Hora, 09/06/1990)
Tal repertrio criou o que Fernando Gabeira veio a chamar de "fron
teira mtica", demarcando para alm dos limites do Rio de Janeiro um universo
de anomia, uma regio sem cidadania cuja paisagem nega as idias e imagens
consagradas de cidade.
Sobre o conceito de regio, Pierre Bourdieu assinala que este um ob
jeto particularm ente justificado para uma crtica epistemolgica s cincias sociais
(BOURDIEU,1989a:107). Conceito e campo disputado por gegrafos, economistas
e socilogos notadam ente no perodo ps-Segunda Guerra Mundial, quando en
to, segundo o gegrafo tienne Juillard, deixou de ser um "domnio um tanto
confidencial da pesquisa geogrfica" passando a pensar-se "nos meios de ao
econmica e social,(...) no desenvolvimento, em termos de planejam ento do terri
trio, de regionalizao" (JUILLARD, 1965:224).
A noo de regio como objeto privilegiado pela Geografia francesa,
no perodo anterior ao ps-guerra, diria respeito a reas distinguidas segundo
"uma certa uniformidade natural, tnica ou econmica" (JUILLARD, 1965:224)(4).
E dentro de um contexto de classificao natural que pode-se enccr.trar a defini
o de Baixada Fluminense operada por gegrafos brasileiros s .z MENDES.
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Thomas Cortado
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1944, 1950; CAMPOS, 1955; G E IG ER & M ESQUITA, 1956; SOARES, 1962)
at meados dos anos 1960, quando passaram a utilizar, notadam ente a partir
dos anos 1970, o modelo ncleo-periferia metropolitanos.
Assim Renato da Silveira M endes define Baixada Fluminense:
" A regio do Estado do Rio de Janeiro conhecida pelo nome de Baixada Fluminense constitue uma rea de aproximadamente 17.000km abrangendo as terras baixas que se estendem da escarpa da Serra do Mar at o Oceano Atlntico, numa faixa de algumas dezenas de quilmetros de largura desde Coroa Grande, em Itagua, at a foz do Itabapoana." (MENDES, 1950:21. Conceito operado tambm pelos gegrafos supra citados (*9).
Tambm com esta extenso estavam delimitados os trabalhos da Comis-*
so de Saneam ento da Baixada Fluminense, instituio federal criada em 1933 e
que em 1936 fora transformada na Diviso de Saneamento da Baixada Flumi
nense, com o objetivo de desenvolver obras de saneam ento nos pntanos e pla
ncies de toda esta rea(6) (MENDES, 1950:109-115).
Tratou-se, parece, da incorporao de uma categoria de uso comum
para os quadros conceituais de uma cincia e de instituies pblicas, consagran
do essa categoria, e regulamentando-a, estando a regio agora delimitada por
atos de autoridades. Um artigo da Diviso de Geografia do Conselho Nacional
de Geografia, em que aquele rgo pblico apresenta a diviso regional do es
tado do Rio de Janeiro, instituda por aquele Conselho em 1945, apresenta a
Baixada Centro Litornea como uma das sub-regies do estado, que, segundo o
artigo, seria a B a i x a d a c o m o simplesmente conhecida pelos fluminensed', des
crevendo esta sub-regio por critrios fisiogrficos, nos mesmos limites que M EN
DES (1950). Ainda segundo esse artigo "a Baixada Fluminense teve um a histria
ilustre e gloriosa, com sua fazendas e sua aristocracia rural" e seu futuro torna- *
va-se "novamente promissor, com a realizao das grandes obras de saneamento
e recuperao econmica." (IBGE. Diviso de Geografia do C.N.G.,
1948:15-16). Todavia, o que faz pensar o levantamento que efetuou-se no IBGE,
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que a categoria Baixada Fluminense no foi incorporada pelos rgos pblicos
federais de geografia para denominar a regio que outras instituies pblicas,
como a Diviso de Saneamento, reconheceram por essa classificao.
Encontramos em FO RTE (1933) referncia ao "ciclo da cana" (aspas
do autor) que havia feito "a fortuna dos fazendeiros da zona da baixada, em to
da a sua rea de dezenas de quilmetros, de um e de outro lado da baa e ao
centro, como fz tambm na plancie dos goitacs (...)", esse autor refere-se tam
bm "alagadia baixada fluminense", operando esse termo segundo o uso co
mum acima mencionado, que circunscrevia a baixada exatam ente como a rea
de baixios em torno da Baa de Guanabara, mas no apenas a rea mais prxi
ma, compreendendo ento, parece-me, a idia (e a extenso) da rea de produ
o agrcola irrigada pelos vrios rios que descem a Serra do Mar.
Segundo RAPOSO (1946), haveria na rea de pntanos um tipo, o mu-
xuango, que sobrevivendo ao impaludismo e outras adversidades, seria encontrado
"dirigindo barcos pequenos e obsoletos" e vivendo da explorao de madeiras co
mo a tabebuia (7), carvo, caranguejo, pele de jacar (RAPOSO, 1946:33-36).
Conforme o autor, esse seria "o habitante das runas de uma civilizao que a
natureza tenaz sufocou: a Baixada Fluminense", referindo-se assim populao
que ocupava as reas prximas aos portos fluviais que, quando abandonados,
provocaram o esvaziamento populacional das vilas e arredores desses portos,
bem como obstruo dos rios.
Assim, ao conceituar a Baixada segundo critrios fisiogrficos, os ge
grafos parecem ter incorporado e regulamentado os limites de uma categoria
com historicidade e cuja representao usual estava ligada evocao de um
mundo agrrio. Retom ando BO U RD IEU (1989a:l 15): "as classificaes mais na-
turais apiam-se em caractersticas que nada tm de natural e que so, em
grande parte, produto de uma imposio arbitrria, quer dizer, de um estado an
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terior da relao de foras no campo das lutas pela delimitao legtima". Para
esse autor, a regio no seria tanto um produto do espao, mas do tempo, da
historicidade das relaes sociais em que o espao apropriado (BO U RD IEU ,
1989:115).
Ser exatam ente em um contexto de lutas por apropriao do espao
que a Baixada surgir no noticirio dos anos 1950. GRYNSZPAN (1987), em
seu estudo das lutas camponesas e competio poltica em torno da liderana e
votos de camponeses, no perodo 1950-64, indica que com esse term o que era
denominada a rea conflagrada, quer seja por parte da imprensa em geral, quer
seja pelos agentes envolvidos. O autor demonstra, entre outros aspectos, que o
campesinato surge enquanto um novo e importante ator poltico nesse perodo,
Nos conflitos e no perodo histrico analisados pelo autor, a classifica
o continuava operando no sentido de evocar o universo agrrio das cercanias
do Rio de Janeiro. A classificao Baixada, utilizada pelo autor conforme a cate
goria em pregada pelos agentes envolvidos nos conflitos, encompassava as disputas
ocorridas sobretudo nos municpios de Cachoeiras de Macacu, Itabora, Itagua,
Duque de Caxias, Nova Iguau e Mag, estudados por GRYNSZPAN (1987).
Ser esse o momento em que ocorrero as mudanas nas quais o reor-
denam ento da idia de Baixada ser um dos aspectos. D entro do contexto da
industrializao nacional, em que a acentuao das disparidades regionais foi
uma das caractersticas (8), o estado do Rio teve uma taxa de crescimento popu
lacional, no perodo 1950-60, de 4,0% ao ano, taxa maior do que a mdia anual
do pas (3,2%) nesse perodo (9X Esse perodo caracterizou-se por um acentuado
increm ento do deslocamento populacional para o municpio do Rio de Janeiro e
municpios prximos (Duque de Caxias, Nilpolis, Nova Iguau, So Joo de
Meriti, Niteri e So Gonalo), o que teve como uma de suas conseqncias a
presena, detectada pelo Censo de 1960, de 1.291.670 habitantes com menos de
-
10 anos de residncia nesses municpios, ou seja, 53% de toda a populao mi
grante (ABREU, 1987:118).
Tendo feito meno a um processo de industrializao, no se poderia
aqui, todavia, obscurecer-se o dado de que a populao do campo no estado do
Rio ser expressiva em 1950, representando 52,5% da populao estadual, conti
nuando a crescer ao longo da dcada, muito embora sem acom panhar o ritmo
de crescimento da populao urbana. Assim, as estatsticas apontam , em 1960, a
distribuio de 31,0% de populao rural e 61,0% de populao urbana no esta-
do do Rio (IDEG, 1972:29). Tais percentuais ajudam a pensar a im portncia da
mobilizao camponesa ocorrida nesse perodo e o impacto das mudanas supra
assinaladas.
Desde os anos 1930, com as obras de saneamento da Baixada, as ter
ras nessa rea passam a ser valorizadas, o que agudiza-se nos anos 1950 com a
alta do preo de imveis nas reas de subrbios, ilhas da baa, e proximidades
da zona rural e com os problemas de moradia para a crescente populao
(G EIG ER & M ESQUITA, 1956:179-180). Junto com a expectativa de valoriza
o, o surgimento de um movimento de especulao de terras, fez com que as
reas da Baixada atrassem o interesse de capitalistas para a com pra de terras,
como tam bm a atuao de grupos que, aproveitando-se das indefinies dos t
tulos de terra nessa rea, reinvindicavam a propriedade de terrenos atravs de
operaes fraudulentas em cartrios (G EIG ER & M ESQUITA, 1956:65). Esses
agentes denominados grileiros no contexto dos conflitos camponeses ocorridos nos
anos 1950 na Baixada, foram elementos deflagradores da revolta camponesa, na
medida em que eram percebidos como elementos estranhos, um elem ento outro
na ordem mais conhecida entre camponeses e proprietrios, representando aque
les a nova ordem que desestabilizava as relaes de posse da terra. Note-se que
mesmo alguns proprietrios eram classificados enquanto grileiros, na medida em
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que, desconhecidos dos camponeses, decidiam retom ar as terras face valoriza
o (GRYNSZPAN, 1987:74-75).
O investimento governamental, atravs de obras de saneam ento e o in
crem ento das vias de transporte atravs da eletrificao de trens e abertura de
estradas contribuiram para um processo de valorizao de terras nos municpios
das vizinhanas ocidentais do Rio de Janeiro. O movimento de valorizao e es
peculao de terras foram alguns dos principais fatores que concorreram para as
transformaes ocorridas nessa rea, hoje encompassada mais freqentem ente pe-%
lo term o Baixada. Aspectos dramticos desse processo se traduziram, no campo,
em conflitos de terra, nos despejos de lavradores entre 1950 e o incio da dca
da de 1960. Eles ocorreram em vrios municpios do Estado do Rio, mas incidi
ram sobretudo na rea mais prxima Baa da Guanabara, onde, por outro la
do, os lavradores tinham melhor organizao poltica (10) e ofereceram resistncia
organizada. Aconteceram sobretudo em Mag, Duque de Caxias e Nova Iguau
e tiveram os loteamentos urbanos como principal causa (GRYNSZPAN,
1987:17-56).
Em 1952, Pedro Geiger escrevia que, enquanto companhias e fazendei
ros vendiam seus lotes para as camadas mdias e trabalhadores,
"no terreno, que pode ter sido uma antiga fazenda, o proprietrio expulsaos antigos moradores para realizar o parcelamento e evitar problemas futuros e os terrenos abandonados vo substituir antigas zonas de plantaes" (GEIGER,1952:97. O autor aqui refere-se a terrenos que seriam parcelados e vendidos sob a forma de loteamentos).
Os conflitos de terra e a mobilizao de camponeses, polticos e pro
prietrios de terra acirraram-se, fazendo surgir na imprensa as imagens de uma
Baixada conflagrada. Com o Golpe de 1964, esse movimento foi arrefecido, sem
que houvesse, porm, a soluo dos vrios problemas fundirios da rea como,
por exemplo, a demanda camponesa por terras, apesar de algumas experincias
nesse sentido nos governos militares, o que fz inclusive, que os conflitos pela
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posse da terra reacendessem, no Estado do Rio, nos anos 1980
(GRYNSZPAN,1990, especialmente pginas 8-15).
A idia de Baixada como uma regio perigosa, espao de conflitos ar
mados, perm aneceu e se acentuou, nos anos 1970, bem como o uso de milcias
e armas de fogo, anteriormente presentes nos conflitos fundirios acima mencio
nados, agora sob a forma da criminalidade no interior do espao urbano.
Baixada no Presente: confrontos de representaes
"Voc precisa conhecer Minha jurisdio V prestando ateno Lugar que ocupa um pedao Do meu corao Do meu coraoMas infelizmente tem fama de barra pesadaIsso tudo intriga da oposioE muita mentira e conversa fiada"
("Baixada", samba de dson Show e WilsinhoSarav)
No apelo da letra do samba acima citado, pode-se perceber uma rea
o aos efeitos estigmatizadores da "fama de barra pesada" do "lugar que ocupa
um pedao" do corao dos compositores. Buscando dar os limites desse lugar,
os autores enumeram, na composio, os nomes dos municpios e localidades
que fariam parte desse universo denominado Baixada, como um a tentativa de
tornar conhecida essa realidade, apresent-la ao pblico de modo que, ao sim
plesmente list-las no samba, ela possa ser representada como um a realidade
tangvel, habitvel e habitada, um "domnio tnico" e assim, um lugar (n ) pro
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priamente, e no "um limbo beira da estrada" como fariam crer algumas re
portagens policiais.
O samba indica os limites da jurisdio dos autores, que incluiria, alm
dos municpios de Nova Iguau, So Joo de Meriti, Duque de Caxias e Nilpo-
lis, tambm os municpios de Paracambi, Itagua e Mag.
Im portante notar que na reportagem em que a letra desse samba foi
publicada (LOPES, 1989:6) encontra-se estampado, justo acima dos versos da
composio, um mapa indicando os municpios da Baixada e estes seriam, segun
do o mapa, apenas os quatro primeiros citados no pargrafo acima. Vemos ali
confrontados diferentes limites para a Baixada: um, com posio de destaque na
diagramao da pgina, incorporado e veiculado pela reportagem na figura do
mapa, que no tem indicao de fontes, e outro, descrito por compositores lo
cais, que seria mais amplo, estendendo-se a Mag, Itagua e Paracambi. A din
mica e fluidez dessa classificao, e do mundo que ela busca classificar, podem
ser observadas, creio eu, nesse confronto e no prprio texto e diagramao da
reportagem, que ao tratar da produo musical de um lugar cham ado Baixada
coloca lado a lado o mapa da reportagem e a letra dos sambistas, sem que o
texto do reprter entre em consideraes sobre esse confronto, que no objeto
do texto (Ver Anexos).
Em uma reportagem de GABEIRA (1983), tambm um m apa seme
lhante encontrado. Com esses limites vendido um m apa detalhado, produzi
do por uma grfica particular, e que certa vez encontrei na agncia municipal
do IBGE, ao levantar material para esta pesquisa. Perguntando a um funcionrio
se o m apa fora produzido pela instituio, este me respondeu que no, que no
havia um mapa do IBGE. De fato, a Baixada Fluminense no uma regio
atualm ente delimitada por esse rgo pblico, tendo sido, nos termos de
M ENDES (1950:21) j mencionados, reconhecida em certa poca sob uma pers
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pectiva naturalizante, enquanto uma regio fisiogrfica, mas no sob a perspecti
va de um conceito de regio, operado pela instituio, que pretendesse delimitar
unidades espaciais segundo princpios econmico-sociais-geogrficos.
Em diferentes situaes, pode-se encontrar meno aos municpios de
Itagua, Paracambi, Mag e inclusive So Gonalo, como pertencendo Baixada
Fluminense. Na imprensa, tal ocorre, em geral, quando o contexto da notcia a
criminalidade. A fluidez da fronteira tambm dada pelo alcance dos interesses
dos agentes, mas, com efeito, so mais freqentes representaes em que Bai
xada corresponde a rea do antigo municpio de Nova Iguau.
Ao universo de violncia a que costumeiramente a categoria alude e
ao uso que dele se faz, por vezes discriminatrio, contraps-se um outro, na se
gunda m etade dos anos 1970, que surgiu como reao aos efeitos de estigmatiza-
o, e que teve no municpio de Nova Iguau o foco inicial, devido ao avano
das articulaes polticas no municpio que, entre outros aspectos, centralizava li
deranas histricas oposicionistas e encontraram na Diocese de Nova Iguau uma
im portante sustentao.
Os movimentos sociais, notadam ente o Movimento de Amigos de Bair
ro de Nova Iguau, cuja primeira grande assemblia se deu em 1978
(BERNARDES, 1983:163), passaram a usar a categoria com fins reivindicatrios,
imputando Baixada as caractersticas de uma "terra de promisso". A vinda de
vrios militantes de esquerda para a rea, bem como a articulao de polticos
locais de correntes polticas de esquerda, criou um espao de lutas em que a
Baixada foi investida de valor como lugar de politizao de trabalhadores . As
sim, por exemplo, em fins dos anos 1970 enquanto os esquadres de extermnio
davam manchetes aos jornais da grande imprensa, um jornal de esquerda intitu
lava-se BERRO DA BAIXADA.
Tal movimento ocorreu tambm, a partir da segunda m etade dos anos
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1970, no campo cultural, principalmente em literatura e teatro, com m anifesta
es artsticas de cunho denunciativo, surgindo inclusive um movimento denom i
nado POESIA BAIXADENSE, cujos poetas pichavam os muros com inscries
como "Poesia a Fome".
Essas manifestaes, ao contrrio da letra do samba de dson Show e
Wilsinho Sarav, no negavam a "barra pesada", e tentavam fazer dela objeto de
produo esttica:
"No havia um s dia em que ns no nos cruzssemos e eu que vivia escondido nos romances, nas crnicas e poemas, era violentamente massacrado pelas manchetes que me repugnavam e que os jornais sensacionalistaseditavam em letras garrafais e conseguiam, atravs deles, me arrancar datranqilidade do mundo em que eu vivia para os ferozes e brbaros acontecimentos do dia-a-dia." (Luiz Coelho Medina, "O Passageiro")
Compondo esses grupos de atuao no campo cultural, estavam jovens
migrantes ou filhos de migrantes, de formao poltica em partidos de esquerda
(ento clandestinos) ou atravs dos grupos jovens da Igreja Catlica. Para os par
tidos de esquerda, tam bm esse campo era privilegiado no sentido da divulgao
poltica e da politizao dos jovens que se interessavam pelo ingresso nas prti
cas desse campo.
Sobre esse aspecto, em muito caberia um paralelismo com a histria
de vida apresentada por SAYAD(1979) em "Les Enfants Illgitimes". O autor
demonstra, atravs da fala de uma filha de imigrantes argelinos nascida na F ran
a e que teve acesso escolaridade francesa, cursando a universidade no pero
do de seu depoimento, o confronto, para esses enfants illgitimes, entre o sistema
de crenas de seus pais e do universo do qual se emigra, e o novo mundo em
que esses jovens so socializados, tendo acesso a novos sistemas de representa
o atravs da escolaridade. Essa experincia fragm entadora encontraria nos c
digos transmitidos pela escolaridade tambm uma possibilidade de objetivao e
alguma inteligibilidade das condies da fragmentao vivenciada. Zahoua, a jo-
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vem que relata sua histria de vida no texto produzido por SAYAD(1979)
aprende no apenas a falar o rabe, mas tambm a ler e escrever a lngua de
seus pais, num movimento de aproximao e entendim ento desse cdigo que era,
para ela, familiar e estrangeiro. No caso dos "enfants" da Baixada no se tratou
de um movimento cultural em que se buscavam os cdigos de um a cultura es
trangeira, imigrante e mais claramente exgena, mas, talvez devido s sutilezas e
fluidez em que se apresenta a diversidade de tantos "migrantes" nacionais no
contexto em apreo nessa dissertao, a nfase recaiu sobre o universo em
transformao em que esses jovens foram socializados, numa tentativa de re tra
tar, explicar, codificar, o mundo adverso em que buscavam algum enraizam ento.
Desse modo, passa a surgir uma outra operatividade para o term o Bai
xada, ou seja, polticos e produtores culturais locais passaram a incorpor-la e a
oper-la com um apelo regionalista, fazendo existir a categoria, dando-lhe con-
cretude prtica nos termos dos vrios seminrios, encontros, debates, assemblias,
manifestos, etc. Reportando-m e Bourdieu, ao traar um paralelo entre o regiona
lismo e o sionismo:
"A reivindicao regionalista, por muito longnqua que parea deste nacionalismo sem territrio, tambm uma resposta estigmatizao que produz o territrio de que, aparentemente, ela produto. E, de fato, se a regio no existisse como espao estigmatizado, como "provncia" definida pela distncia econmica e social (e no geogrfica) em relao ao "centro",quer dizer, pela privao do capital (material e simblico) que a capitalconcentra, no teria que reivindicar a existncia."(Bourdieu, 1989a: 126-7).
Em fins dos anos 1980, com o arrefecimento do movimento de associa
o de moradores e a consolidao de setores do campo cultural, um outro tom
passou a ser dado s manifestaes desse setor. Agora, j no se tra ta de ter a
pobreza e a criminalidade como objeto esttico, mas d,e disputar espao nas ins
tncias consagradoras usando como recurso a reivindicao de que na Baixada
no haveria apenas pobreza e criminalidade, articulando-se um discurso de brios
regionalistas.
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Por exemplo, em 1985 lanada em Nova Iguau a revista mensal
Nosso Jeito que tratava de questes culturais e da divulgao da produo local,
assim como temas da poltica e entrevistas com polticos. Nova Iguau constava
inicialmente como lugar de publicao mas a partir do terceiro nm ero, com
melhor lay-out, j passa a figurar Baixada Fluminense como local de publicao,
em bora a circulao continuasse restrita ao municpio.
Passa-se a encontrar, nos veculos de imprensa de maior circulao, re
portagens com matrias diferentes daquelas que do conta dos crimes, indicando
que "apesar da violncia" haveria uma produo cultural regional^12). Tam bm a
presena de camadas mais abastadas passa a ser um dado apresentado em re
portagens (e.g. Veja, 23/05/1990:17-18; Programa Documento Especial n2 50, leva
do ao ar pela TV M anchete-Rio em 27/7/90). O regionalismo encontra-se em as
censo, de tal modo que um deputado de So Joo de Meriti chegou a propor,
segundo notcia de jornal, a criao de um rgo estadual especfico, "uma supe
rintendncia da Baixada Fluminense, como a Sudene para o Nordeste" (Jornal
do Brasil, 1990, Caderno Cidade:6).
D e fato, as prticas que tentam inverter o sentido da dominao sim
blica vm assumindo a forma regionalista. Criticando esta postura um a poeta
ento radicada em Nova Iguau escreveria em sua apresentao um a antologia
de poetas regionais:
"Sem querer ensaiar aqui especulaes mais detalhadas, ou avaliar a espessura do fio que isola o que ou quem assim foi denominado (poesia ou poeta baixadense?), lembramos que o brado do poeta [que lanou esse movimento literrio], poca 'bairrista, retumbou numa espcie de sirene.(...) Longe de insistirmos no prstimo desse "anacrnico" manifesto separatista,cabe lembrar tambm que vemos hoje os novssimos poetas da revista Ar-mlho, de Duque de Caxias, por exemplo, com receptividade merecida e garantida onde quer que se apresentam, itinerar sob o estigma de Poetas Baixad.en.ses. No h dvida de que o 'apelido' ficou selado no inconsciente literrio da regio." (SIQUEIRA,1987. O grifo no termo Baixada Fluminense meu.)
D e fato, alm dos movimentos literrios, um processo de absoro da
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Thomas Cortado
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classificao, por parte de agentes locais, vem acontecendo. A construo social
da Baixada Fluminense enquanto regio se faz, no presente, no apenas atravs
de agncias externas ao territrio assim representado, mas tam bm pela incor
porao da categoria por agentes de diferentes campos que se propem a ser
representantes da regio, fazendo operar o regionalismo. Im portante indicar que
os habitantes afastados das esferas de formao poltica no utilizam costumeira-
m ente esta categoria para seu lugar de moradia, havendo, isso sim, uma identifi
cao e relao de pertencimento mais acentuada com o bairro. Para essa gran
de maioria, a Baixada, como uma representao da periferia urbana do Rio de
Janeiro, embora possa ser por elas operada situacionalmente em oposio ao
centro do Rio de Janeiro, uma categoria externa, veiculada pela imprensa,
pelos polticos e movimentos sociais, e pouco empregada em seu cotidiano.
Thomas Cortado
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2 Aspectos histricos do municpio de Nova Iguau
Nova Iguau,onde sai um bbado homem
de um boteco aos trancos e [barrancos,
tropeando nos tamancos do dia a dia da baixa do cruzeiro e da alta do
[dlar,do custo horroroso da vida.Inflao...E cai num outro boteco, d onde aparece um garon sorridentea lhe servir de antemo.
onde se vive infeliz no que se diz, porque no mais h nesse momento aquele distante vo placntico do
[ontemlaranjal...Nova Iguau (...)De L A s, Ducals, B B s, Casas Matos, Delfins, Sescs, Bobs,Chicletes de bola,Engraxates de arma na mo, pivetes, candinhas, loucos, bispos seqestrados e e um tal de etc... e tal.Que tal,Nova Iguau que tal?!?...("Nova Iguau" Paulo Silva Filho)
Se a laranja tornou-se para as famlias tradicionais, moradores antigos e
produtores culturais do municpio de Nova Iguau o smbolo de um "ontem pla
cntico", tais sentimentos se do atravs da idealizao das relaes sociais desse
passado, em que, por exemplo, as relaes de trabalho da citricultura no so
estudadas pela historiografia local. Na verdade, existe mesmo um a verso, de
parte de setores das famlias tradicionais, segundo a qual o que fez piorar a
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Thomas Cortado
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qualidade de vida tenha sido a chegada "desse pessoal de fora".
A seguinte fala de um antigo funcionrio da Prefeitura de Nova Igua
u, pertencente a uma famlia tradicional, no individual, mas uma interpreta
o corrente, presente nesse grupo. Este um trecho de uma entrevista concedi
da imprensa do municpio:
Revista - Se Nova Iguau j teve uma sociedade que gostava das grandes festas, hoje em dia est muito modificada. S se fala da violncia do lugar, da baguna administrativa, do esquadro, da corrupo. Por que voc acha que as coisas mudaram assim?Entrevistado - A cuipa no foi dos administradores, no foi dos empres-
v rios. Houve por aqui uma expanso territorial [?] e populacional muitogrande e muito deficitria para o municpio. Ficou muito difcil para os governantes fazer qualquer coisa. Para os governantes estaduais, tambm.R Mas quem deu facilidades - e continua dando para os loteamen- tos irregulares, foram os administradores, os poderosos, que deveriam ter previsto o caos urbano para o qual estavam contribuindo.E - Bem, dentro da lei havia a exigncia de que os loteamentos fossem todos dotados de infraestrutura bsica, de gua, luz, saneamento. Mas havia uma procura muito grande e a maioria dos que vieram para c era cada tipo! - era gente sem recursos, carente, que a gente via que no tinha uma preocupao com a cidade na qual tinham vindo parar. A foi que a coisa degenerou. A cidade cresceu incontrolavelmente. As pessoas j no se conheciam. Eu, felizmente, ainda me param muito na rua, me cumprimentam, mas em geral difcil voc reconhecer qualquer pessoa num centro movimentado como o de Nova Iguau." (Nosso Jeito, 1986:3)
Segundo esta interpretao, os problemas contemporneos teriam como
causa a vinda de tanta "gente sem recursos", sem que se coloque em questo a
intrincada teia de relaes que presidiram a implantao dos loteamentos, em
que proprietrios de terra habitantes do municpio e funcionrios da Prefeitura
Municipal foram alguns dos agentes envolvidos.
Alm de tal aspecto, verifica-se tam bm a oposio entre uma cidade
rural e uma cidade predom inantemente urbana, que "cresceu incontrolavelmente",
tornando annimos os tradicionais (essa tam bm uma queixa corrente entre es-*
se grupo). Encontra-se aqui uma das questes centrais abordadas pelos autores
que tornaram a cidade um objeto sociolgico, quando apontavam o anonimato
como uma das caractersticas das metrpoles (SIMMEL, 1979:14-15; PARK,
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1979:45; W IRTH, 1979:101).
Inegavelmente, o crescimento das cidades a partir da Revoluo Indus
trial trouxe para os habitantes de reas metropolitanas um mundo mais hetero
gneo, com o desenvolvimento da diviso social do trabalho e crescimento popu
lacional devido migrao (sobre esses aspectos ver, por exemplo, W IRTH,
1979). Mas cabe tambm, quando se adota uma perspectiva relacionai e se bus
ca desidealizao de imagens de campo e cidade, indicar que a afirmativa do
entrevistado, segundo a qual com o crescimento da cidade "as pessoas j no se *
conheciam", no se encontra isolada de noes de senso comum generalizadas a
prposito do mundo rural.
Em relao a esse aspecto, poder-se-ia assinalar a idealizao presente
na noo de uma cidade "em que todos se conheciam", indicando-se que, em bo
ra anteriorm ente a cidade e o municpio tivessem um m enor nm ero de habi
tantes, sendo mais facilmente identificveis, certam ente no se tratava de uma
organizao social de to pequena populao e to incipiente diviso social do
trabalho, a ponto de toda a populao poder se conhecer.
Em outros termos: se, para aqueles que estavam na cidade antes dos
anos 1950, o nmero de pessoas desconhecidas aumentou, isso no significa que
anteriorm ente haveria uma co