da laranja ao lote - sonali maria de souza

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Sobre loteamento da gleba rural na Baixada

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  • Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro

    DA LARANJA AO LOTE Transformaes sociais em Nova Iguau

    Sonali Maria de Souza

    Rio de Janeiro 1992

  • DA LARANJA AO LOTE

    Transformaes sociais em Nova Iguau

    Sonali Maria de Souza

    DISSERTAO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAM A DE

    PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DO MUSEU NACIONAL DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS

    REQUISITOS NECESSRIOS OBTENO DO GRAU DE MESTRE

    Aprovada por:

    Prof. Afranio Raul Garcia Jr./

    . o \ 'J

    X .A O 0''1'

    j / 'y ~ / Prof. Moacir Gracindo Soares Palm eira

    Prof. Jos Sergio Leite Lopes

    Rio de Janeiro, R J - Brasil1992

    v /

    m

  • SOUZA, Sonali Maria.Da laranja ao Lote; transformaes sociais em Nova Iguau. Rio de

    Janeiro, UFRJ, PPGAS/Museu Nacional, 1992.IX, 181 f.Tese: M estre em Cincias (Antropologia)1. Nova Iguau, Histria 2. Loteamentos 3. Migrao 4. Antropologia

    I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGAS/Museu NacionalII. Ttulo

  • ERRATA

    As referncias a PEREIRA, 1970 feitas nas pginas 43, 44, 47 e 48 dizem respeito a PEREIRA,Waldick (1970) - mudana da vila. Edio do autor.

    Seguem-se as seguintes correes:

    pgina 23

    2 Onde se l "a um poder central a a fronteiras determinadas..." leia-se " a um poder central e a fronteiras determinadas...'1.

    pgina 27

    2 Onde se l "importante ator poltico nesse perodo," leia-se "importante ator poltico nesse perodo.".

    pgina 31

    4 Onde se l "que no havia um mapa do IBG." leia-se "que no havia um mapa do IBGE para a Baixada.".

    pgina 32

    3 Onde se l "lideranas histricas oposicionistas e encontraram..." leia-se " lideranas histricas oposicionistas que encontraram ...".

    pgina 34

    2 Onde se l "Reportando-me Bourdieu ..." leia-se "Reportando-me a Bourdieu...".

    pgina 44

    5 Onde se l "a estrada de ferro de Pedro II " leia-se " a estrada de ferro Pedro II ".

    pgina 45

    4 Onde se l "m exemplo demonstrativo dessa verso que pode tambm ser encontrada em..." leia-se "um exemplo demonstrativo dessas verses que podem tambm ser encontradas em...".

    pgina 48

    4 Onde se l "o povoado menos insalubre, j concentrava..." leia-se "o povoado menos insalubre j concentrava....

    - 1 - favor no fazer anotaes ou gritos tinta ou ' i is r*sta nublicac#

  • 3 Onde se l "(BRASIL. 1946:5) leia-se "(IBGE, 1946:5))".

    pgina 57

    3 Onde se l "motivada pelo sucesso do cultivo da fruta. Diante da imi>ortncia da produo e por articulaes polticas e da intermediaes da Asssociao de Fruticultores..." lei-se "motivada pelo sucesso do cultivo da fruta e por articulaes polticas. Diante da importncia da produo e das intermediaes da Associao de Fruticultores...".

    pgina 60

    2 Onde se l "viviam com suas famlias as chcaras de laranja..." leia-se "viviam com suas famlias nas chcaras de laranja...".

    pgina 61

    3 Onde se l "seu pai mudou-se com a famlia para uma fazenda administrada pelo irmo de seu pai ..." leia-se "seu pai mudou-se com a fmlia para uma fazenda administrada por um tio paterno de Adolfo....

    4 Onde se l "diferentemente do estudado por BASTOS (1977)..." leia-se "diferentemente do caso estudado por BASTOS (1977)...".

    pgina 62

    4 Onde se l "quando o marido rompeu o casamento, resolveu vender a chcara..." leia-se "quando o marido rompeu o casamento, ele resolveu vender a chcara...".

    pgina 65

    3 Onde se l "Miguel..." leia-se "Joo...".

    pgina 76

    2 Onde se l "GEIGER & MESQUITA, 1959..." leia-se "GEIGER & MESQUITA, 1956...".

    pgina 79

    2 Onde se l "os filhos com famlias j constitudas recebiam ento o seu terreno..." leia-se "os filhos com famlias j constitudas recebiam ento cada um o seu terreno...".

    3 Onde se l "o loteamento lucrativo." leia-se "o loteamento foi mais lucrativo".

    pgina 91

    4 Onde se l "LAGO, 1990" leia-se "LAGO, 1991".

    pgina 52

    - 2 -

  • pgina 92

    4 Onde se l "e foram constitudos..." leia-se ", tendo sido constitudos...'1. 5 Onde se l "fez retroceder os aluguis retrocederem a ..." leia-se " fez retroceder os alu

    guis a ...".

    pgina 94

    5 Onde se l "acontecendo, inclusive, tendo havido cerca de ..." leia-se "acontecendo, inclusive, cerca de ...".

    pgina 103

    4 Onde se l "e construo da residncia, de certa forma ..." leia-se "e construo da residncia e, de certa forma ...".

    pgina 116

    1 Onde se l "para aqules provenientes do Norte, a oposio com uma cultura mais claramente representada como herdeira de africanos, e mais, negra. leia-se "para aqueles provenientes do norte, a oposio com uma cultura mais claramente representada como herdeira de africanos e mais negra."

    pgina 121

    1 Onde se l "Essa, inclusive, a origem do marido, que viera de Miracema..." leia-se "Essa inclusive a origem do marido que veio de Miracema...".

    pgina 122

    3 Onde se l "A mais nova, nasceu em 1961... leia-se "A mais nova nasceu em 1961...

    pgina 123

    3 Onde se l "bem demonstra como a histria da constituio dos trabalhadores urbanos..." leia-se "bem demonstra como conceber a histria da constituio dos trabalhadores urbanos...".

    - 3 -

    OEM UME-MUim B r ........ . /T

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Afrnio Raul Garcia Jr., orientador de dissertao, pelo est

    mulo e ateno criteriosa.

    Ao Prof. Gilberto Velho, orientador de curso, por ter percebido rele

    vncia no estudo do universo social que optei estudar desde o incio do curso

    de mestrado, e por indicaes bibliogrficas preciosas.

    Ao Prof. Moacir Palmeira, pela indicao do livro O Campo e a Cida

    de, para mim muito importante, no apenas pelo modelo que pude empregar

    nesta dissertao, mas tambm pelas questes existenciais que pude melhor com

    preender atravs desta leitura.

    Ao Prof. Otvio Velho, cuja crtica generosa, detalhada e atenciosa a

    um trabalho de curso, no perodo em que fazia os cursos de mestrado, me fez

    avanar a pesquisa.

    A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em A ntropolo

    gia Social, registro aqui meus agradecimentos na pessoa do Prof. Jos Srgio

    Leite Lopes.

    Ao socilogo Abdeimalek Sayad, por seus ensinamentos de dignidade.

    A Tania Soares, responsvel pela Seo de Ensino do PPG AS.

    Ao Secretrio de Obras da Prefeitura de Nova Iguau, Sr. Srgio Gur-

    gel, e a Alton Alves, pela possibilidade de consultar arquivos desta Secretaria.

    Aos professores Franklin Bolvar Lamounier, M aria A parecida Rosesto-

    latto, M untaha Murad, diia Herminia dos Santos, M aria Lvdia Caulino Ramos.

    M aria Beatriz Afonso Lopes, e ao solidrio Prof. Silva, por terem acreditado

    neste trabalho.

    iv ' ;

    Fsvor no fazer anotaes ou grifss tinta ou lpis nsoia puliiicss

    ThomasRealce

    ThomasRealce

    ThomasRealce

    ThomasRealce

    ThomasRealce

  • Ao Dr. Moacyr de Carvalho que tornou possvel as entrevistas em Aus-

    tin.

    Ao Prof. Ruy Arnio Peixoto, pelo acesso a seus arquivos.

    A Associao de M oradores de Vista Alegre e Adjacncias.

    A todos aqueles que partilharam comigo m om entos significativos de

    suas vidas,, possibilitando-me escrever esta dissertao, lhes agradeo desejando

    que este trabalho possa ser um registro e uma traduo, mnima que seja, do

    que uie foi confiado. -

    A Ceclia Boal, que ajudou a desem baraar alguns ns que am arravam

    este trabalho.

    A Amir Geiger, pela reviso de grande parte do texto e pelas paisa

    gens que pudemos trocar ao longo do curso de m estrado.

    A Jurandyr Ferrari Carvalho Leite, que de longa data m e confirma a

    crena na associao possvel entre saber e justia, pela editorao.

    A meus avs maternos, que me fizeram herdeira de um a rica tradio,

    "real memory/ like cedar feet/is shod in adaman" (E. Dickinson).

    Joo Jos Fernandes de Sousa esteve presente, solidaria e am orosa

    mente, em todos os dias e noites desse anthropological blues. Para eie, minha

    mais terna gratido.

    v

  • RESUMO

    O trabalho analisa o processo de transformao de chcaras de laranja

    em loteamentos urbanos, no municpio de Nova Iguau, RJ, ocorrido sobretudo

    a partir dos anos 1950, avaliando-se algumas das implicaes sociais da produo

    de loteamentos. No primeiro captulo, analisam-se as mudanas de sentido da

    classificao Baixada Fluminense como representativas das mudanas na ocupao

    da regio assim denominada e estuda-se aspectos da histria do municpio aci

    ma, a fim de se poder avaliar vises saudosistas de passado, presentes entre as

    elites locais e moradores antigos. No segundo, a citricultura descrita e estuda-se

    seu declnio. No terceiro, a produo de loteamentos analisada. No quarto e

    ltimo captulo feita descrio de uma rea de loteamentos, procura-se carac

    terizar os compradores dos lotes, representados pelas elites locais como migran

    tes, e descrever como a rea de loteamentos apropriada pelos moradores, sen

    do pouco a pouco urbanizada.

    Favor no fazer anotaes cis grfl tinte &a lpis neia publica*

  • INDICE

    In tro d u o ................................................................................................................................. 1

    Captulo I - LU G A R E M E M R IA ......................................................................... 161. As Baixadas Fluminenses: construo social

    dos limites de uma r e g i o ............................................................................... 23- Para historicizar a c a te g o ria .................. 23- Baixada no presente: confrontos de rep re sen ta es ............................ 30

    2. Aspectos histricos do municpio de Nova Iguau ............... 37- D e uma velha e uma nova Ig u a u ............................................................ 40

    Captulo II DA LARANJA AO LOTE: de chcara e loteam entosuma tran sfo rm ao ..................................................................... 51

    1. Do universo das chcaras de laranja................................................................ 56- Exportao e benefic iam ento ......................................................................... 56- O universo social da p ro d u o ...................................................................... 59- O calendrio da p ro d u o ............................................................................ 66- Citricultura e deslocamento p o p u lac io n a l................................................ 67- Parcelam ento do solo e expanso de p ro p rie d a d e s ........'.-7 0

    2. Declinio da C itr icu ltu ra ..................................................................................... 74- Crise a partir da Segunda G u e r r a ............................................................ 74- Converso de chcaras em lo te am e n to s ................................................ 77i

    Captulo III - LOTEAM ENTOS E TRANSFORM AESNO ESPAO S O C IA L ............................................................. . . . . 83

    - O loteam ento como forma de ocupao u r b a n a .................................. 89- Loteam ento e e sp ecu lao .............................................................................. 93- Loteam ento e vias de tra n sp o rte s ................................................................ 95- Loteam ento e transformao no espao s o c ia l .......................................... 97

    Favor n ia fazer anotsrs- ou grifes tints eu lpis nesta puiJicae

  • Captulo IV - O "PESSOAL D E FORA":construo de um novo m u n d o ...................................................... 106

    1. O migrante: diferentes mundos em transform ao . 1112. Loteamentos: construo de uma c id a d e ....................... 124

    C o n c lu s o ................................................................................................................ 135N o ta s ...................................................................................................................................... 143Referncias Bibliogrficas................................................................................................. 149A n e x o s ................................................................................................................................... 160

  • Para Miguel e Judith, Alencar, Arlette, Aldina e Wilton

  • "Tento relatar algo e, mal me calo, noto que ainda no disse nada. Uma maravilhosa substncia luminosa,

    refratria,permanece em mim e escarnece das palavras. Ser o idioma, que l no compreendi e que agora

    dever se traduzir lentamente dentro de mim? L existiram acontecimentos, imagens e sons, cujos

    significados s agora comeam a se constituir para mim".

    Eias Canetti, Vozes de Marrakech

  • INTRODUO

    Cuidado, diziam no fundo da memria as imagens da Baixada Fluminense, todas nascidas da crnica policial(...)" (Fernando Gabeira - "speros Caminhos da Esperana")

    "For the historian comes to the interview to leam: to sit at the feet o f others who, because they come from a different social class, or are less educated, or older, know more about something'' (Paul Thompson - The Voice of the Past)

    A regio hoje comumente conhecida por Baixada Fluminense costuma

    estar presente no noticirio nacional e internacional como rea de forte crimina

    lidade, e tam bm como caso dos problemas do modelo m etropolitano brasileiro.

    O jornalista Fernando Gabeira chegou a escrever que os limites da Baixada se

    riam uma "fronteira mtica", tal a distncia social resultante das imagens e noti

    cirios provenientes desta rea.

    Em que pese a dramtica realidade subjacente a estas denncias, que

    fatores concorreram para a constituio de uma tal fronteira, que coloca a Bai

    xada para alm dos limites da cidade, mas tambm fora das representaes de

    campo, circunscrevendo um lugar habitado por seres mticos, assim como as

    m ontanhas de uma regio do Pas Basco que, segundo seus camponeses, seriam

    habitados pelo "genij"?^1) U

    Foram perguntas como esta, feitas por muitos habitantes da Baixada,

    que moveram inicialmente o trabalho de pesquisa que deu origem a presente

    dissertao, e neste texto inicial, proponho-me a contar os caminhos que percorri

    com elas e como pude ir encontrando os dados que me perm itiram chegar at

    ThomasRealce

  • aqui. Os caminhos no foram fceis, mas medida em que os sinais que ia en

    contrando iam me permitindo entender aqueles pelos quais passara anteriorm en

    te, pude caminhar com a convico de que as perguntas que fazia levavam

    possibilidade de tornar inteligvel um lugar, existencial, geogrfico, social.

    Para isso, alm de bibliografia, muito ajudaram as pessoas com as

    quais convivi durante o trabalho de campo. Encontrar estas pessoas no foi ape

    nas a relao de uma pesquisadora em observao participante, mas a possibili

    dade de trocar experincias com aqueles que poderiam m e ajudar a entender

    questes deste trabalho. De minha parte, a disponibilidade, em ouvi-los, prpria

    da profisso, era muitas vezes a confirmao de que suas vidas de fato tinham

    historicidade, uma experincia importante, que s vezes o estatuto politicamente

    subalterno de uma condio, como a velhice, a pobreza, o analfabetismo, fazia

    esquecer. Mas no apenas os ouvi, vrias vezes conversei. Ou melhor, embora

    tendo um roteiro para as entrevistas, por diversas vezes o que aconteceu foram

    conversas em tom o dos temas que a pesquisa propunha a essas pessoas. Com

    elas, aprendi. E comigo elas tiveram a possibilidade de expor suas experincias e

    de refletirmos sobre elas.

    D urante todo o tempo, tinha conscincia de que quem ia em busca

    dessas pessoas era eu, pesquisadora, e que, portanto, elas possuam um conheci

    m ento que a mim era necessrio. Sem pruridos acadmicos, no compartilho de

    idias que pretendam dar Cincia um estatuto de saber independente da con

    dio humana. Desse modo, como na epgrafe no incio deste texto, convivi com

    as pessoas que me ajudaram a escrever esta dissertao para aprender com elas.

    Creio que vrias das perguntas que lhes fazia eram perguntas que faziam a si

    prprias e que, talvez por isso, quando entrevistava, por diversas vezes vivi a si

    tuao de ter uma ou mais pessoas escutando o relato de quem era entrevistado

    e tam bm entrevistando.

  • Vasculhando bibliotecas locais, arquivos pessoais, efetuando entrevistas,

    deparei-me vrias vezes com o extremo interesse de pessoas contatadas, seja em

    dar-me seu depoimento pessoal, seja em ceder-me documentos, bibliografias. In

    felizmente, as restries objetivas de locomoo, tempo, e mesmo do escopo do

    trabalho, levaram-me a. dar um limite necessrio a este levantam ento, que possi

    velmente no deve ter correspondido demanda dos grupos contatados. Realizei

    entrevistas em que os entrevistados me aguardavam atenciosam ente, alguns

    acompanhados de amigos ou parentes que lhes "sopravam" um ou outro dado e

    que ao final me indicavam listas de pessoas que poderiam tam bm ser entrevis

    tadas, o que, dado os limites acima descritos, muitas vezes no pude faz-lo.

    Esta experincia, acontecida entre idosos mas tam bm entre no idosos,

    ou melhor, entre pessoas que se interessavam por uma "histria de Nova

    Iguau", no caso de elites locais, ou ento pela histria da citricultura, no caso

    de parentes de chacreiros, ou ainda pela histria de seu bairro, no caso dos mo

    radores de uma rea de loteamentos onde estive no decorrer da pesquisa, deu-

    me a convico de que uma histria precisava ser contada, no apenas sob o

    ponto de vista da pesquisadora, mas tambm das pessoas entrevistadas. O que

    no quer dizer que trabalhos no tenham sido feitos nesse universo social, mas

    que para os agentes uma histria vivida precisava ser contada. N otadam ente en

    tre habitantes mais antigos de Nova Iguau, elites locais e chacreiros, houve mui

    to interesse nos depoimentos colhidos e naqueles que poderiam vir a ser feitos,

    por parte daqueles que eram entrevistados e de conhecidos que vinham a saber

    da entrevista, pois so significativos, o que me parece, de uma experincia so

    cial im portante na histria do estado do Rio de Janeiro.

    Inicialmente, estive mais concentrada em fazer entrevistas neste segmen

    to. Ao final dessa fase, convenci-me de que um processo de rupturas havia sido

    vivenciado por aquelas pessoas e que fora este processo que informava o tom

  • de necessidade, de ato necessrio, dos depoimentos. Mais tarde, quando ento

    estive mais detidamente fazendo entrevistas entre moradores de loteam entos, co

    mecei a pensar neste processo como algo muito mais amplo, que encompassaria

    tam bm aqueles que tinham vindo m orar nos loteamentos. Algumas das entrevis

    tas tiveram o carter resgatador indicado por vrios pesquisadores (e.g.

    THOM PSON, 1988; POLLACK, 1986) a respeito da importncia do depoimento

    biogrfico para os entrevistados.

    No caminho um tanto quanto poeirento (lembro-me aqui das ruas' e

    trilhas porque passei) desta pesquisa, foi pensada a possibilidade de ser feita

    uma comparao entre trajetrias de habitantes de um loteam ento e de campo

    neses de uma ocupao em Nova Iguau, Pedra Lisa. Isso se deveu ao fato de

    ter encontrado, no loteamento em que fazia trabalho de campo, um a antiga li

    derana daquela ocupao, hoje octogenrio. Felizmente, de um a em preitada

    dessa monta, com todas as implicaes que teria, a nvel de um necessrio su

    porte terico, como tambm do flego necessrio para um tal trabalho de cam

    po, tirou-me o socilogo Abdelmalek Sayad, com quem pude conversar sobre a

    pesquisa, j iniciada, durante sua estadia no Brasil, em 1990.

    Assim, concentrei-me "apenas" na rea de loteamentos onde j tinha

    conseguido fazer contatos e entrevistas, mas, de qualquer modo, ter ido Pedra

    Lisa e entrevistado alguns de seus posseiros me foi importante, no s pela be

    leza do mundo que pude conhecer l (a histria de alguns de seus posseiros, a

    geografia do lugar), mas tambm como um subsdio para este trabalho.

    Esta dissertao procura contar a experincia dos habitantes de uma lo

    calidade que, no processo de transformao brasileiro que marcou "o fim da he

    gemonia agrrio-exportadora e o incio da predominncia da estrutura produtiva

    de base urbano-industrial" (OLIVEIRA, 1972:9), foi um locus profundam ente

    marcado por este processo. A cidade, Nova Iguau, e bairros adjacentes, faziam

    - 4 -

  • parte do territrio de um municpio que, at basicamente o incio dos anos

    1950, era socialmente apropriado segundo os princpios de uma economia agrria

    e que, a partir daquela dcada, passou a ter vastas reas transform adas em lote

    amentos. Ou seja, glebas de terra, vrias delas com produo agrcola, tiveram

    esta produo retirada e foram arruadas e divididas em lotes, a fim de serem

    comercializados individualmente.

    Em sua maioria, estes lotes, destinados ocupao urbana, serviram

    para o alojamento de populao que deslocava-se do campo para centros urba-

    no-indus'triais como o Rio de Janeiro, em busca de trabalho.

    Atravs da interveno de polticas pblicas no decorrer do Estado No

    vo, como o saneamento da Baixada Fluminense, a eletrificao dos trens de pas

    sageiros, o Decreto-Lei n?58, que regulamentou o loteam ento de terras, foram

    dadas as bases para a acelerao desta ocupao, que recebeu novos incentivos

    com a abertura ao trfego da Avenida Brasil e da rodovia Presidente Dutra. A

    nvel da poltica local, as intervenes estadonovistas se fizeram sentir, por exem

    plo, com a deposio, em 1930, do prefeito Alberto Soares de Sousa e Melo,

    que veio a ser o ltimo representante, neste cargo, de uma famlia proprietrios

    rurais que controlavam o poder poltico h cem anos.

    Dentro do quadro da aceleraao da acumulao econmica promovida

    a partir do reordenam ento poltico e econmico iniciado pela Revoluo de

    1930, os loteamentos, sob a forma da venda de lotes sem investimentos de infra-

    estrutura, articulavam-se com as estratgias de acumulao do perodo. A compra

    do lote, pago em prestaes durante 12, 15, 20 anos da vida produtiva do grupo

    domstico, e a construo .da casa, feita pelo grupo, ajudariam a aum entar, con

    forme O LIVEIRA (1972), "a taxa de explorao da fora de trabalho, pois o

    seu resultado - a casa - reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodu

    o da fora de trabalho - de que os gastos com a habitao so um compo

    - 5 -

  • nente im portante e para deprimir os salrios reais pagos pelas empresas"

    (OLIVEIRA, 1972:31).

    A questo da habitao dos trabalhadores, nas cidades onde se concen

    travam as indstrias, foi uma questo abordada por autores de diferentes corren

    tes, contemporneos do perodo de surgimento do operariado na Europa, tornan

    do-se, desde ento, um tem a presente na literatura sobre este segmento social,

    na qual a insalubridade e o carter segregador do espao destinado habitao

    de trabalhadores, eram dados mencionados (PERR O T, 1971; LOPES, 1984).* Nesse perodo, com o crescimento da industrializao, verificou-se a

    transformao de terras encompassadas pelo stio urbano em unidades parceladas

    a serem comercializadas, sob a forma de lotes retangulares, "o que se deu inicial

    m ente na Europa, e depois Estados Unidos. Este tipo de prtica j seria encon

    trada na Europa desde o sculo XVII, vindo a se consolidar e ampliar, no

    sculo XIX, sob a forma de planos de loteam entos chamados pelos estudiosos

    do urbanismo de planta em grade ou em xadrez (M UM FORD, 1982:456-464;

    BELOCH, 1980:25-29).

    Esta inovao articulava-se com as transformaes mais gerais, promovi

    das pela expanso da economia de mercado desde fins do sculo XVIII, em que

    a terra foi incorporada, enquanto mercadoria, nesse sistema (POLANYI, 1980).

    Na literatura brasileira sobre habitao popular, o tem a dos loteam en

    tos e da autoconstruo (categoria utilizada pelos estudiosos do problem a da ha

    bitao para designar a prtica de construo da casa dos trabalhadores pelos

    prprios) recente, iniciando-se a partir da segunda m etade dos anos 1970. A

    favela foi o objeto de estudo privilegiado desta literatura, influenciada, at os

    anos 1970, pela teoria da marginalidade, havendo, assim, uma bibliografia mais

    vasta em relao a esta forma de moradia (VALLADARES & FIG U EIR ED O ,

    1981).

    - 6 -

  • S mais recentemente, em fins dos anos 1970, que os loteamentos

    passaram a ser analisados, tendo o ensaio de Francisco de Oliveira, "A Econo

    mia Brasileira: Crtica Razo Dualista", j referido, como um im portante m ar

    co terico. Houve aqui, na verdade, uma descontinuidade com a produo de

    gegrafos que, nos anos 1950 e incio dos anos anos 1960, estudaram o assunto

    no perodo em que os loteamentos proliferaram no estado do Rio. Cabe, ento,

    lem brar dos trabalhos de Pedro Geiger, Myriam M esquita e Terezinha Segadas

    Soares, incorporados nesta dissertao.

    Este trabalho estuda o caso da produo de loteam entos em Nova

    Iguau, procurando mostrar como ela gerou rupturas a nvel local, transform a

    es econmicas e sociais.

    Estas transformaes se traduziram, inclusive, em mudanas do territrio

    administrativo do municpio. O crescimento da ocupao urbana, sob a form a de

    loteamentos, presente em Nilpolis e Meriti desde o incio do sculo XX e em

    D uque de Caxias a partir da inaugurao da rodovia Rio-Petrpolis em 1928 e

    sobretudo a partir dos anos 1930, refletiram-se na emancipao destes distritos.

    A ocupao intensa destas reas, posteriorm ente desmembradas, fizeram

    ento com que o municpio tivesse um crescimento populacional expressivo, re

    gistrando o maior crescimento proporcional do pas no perodo 1920-40

    (MENDES, 1950:102). Assim, em 1943, foram emancipados de Nova Iguau os

    distritos de D uque de Caxias, Imbari, Meriti e parte do distrito de Belford

    Roxo, a fim de constituirem o novo municpio de Duque de Caxias. Em 1947,

    M eriti veio a constituir o municpio de So Joo de Meriti, assim como o distri

    to de Nilpolis, separando-se de Nova Iguau, ganha autonomia municipal.

    De outro modo, o crescimento populacional acima referido ocorreu

    tam bm devido ao cultivo da laranja, que atraiu populao cam ponesa para essa

    produo. Na cidade de Nova Iguau, centro administrativo do municpio, e arre

    - 7 -

  • dores, desenvolvia-se desde o incio do sculo o cultivo da laranja, produo

    agrcola que teve grande importncia devido a sua insero no modelo agro-ex-

    portador do perodo anterior Revoluo de 1930.

    O sucesso da citricultura, at a primeira metade dos anos 1940, res

    guardou as extenses de terra ocupadas com esta produo da onda crescente

    de loteamentos como ser visto mais detidamente no decorrer da dissertao. O

    fim deste cultivo, com a transformao das chcaras de laranja em loteamentos

    urbanos, trouxe no s uma nova forma de ocupao, mas tam bm mudanas %

    economicas, transformaes na organizao social do municpio, e a ruptura com

    as idias de uma cidade e de um mundo agrrio.

    Este trabalho procura mostrar os loteamentos sob o ponto de vista das

    transformaes locais que estes implicaram. A literatura sobre esta form a de

    ocupao tem privilegiado as questes do parcelamento do solo, da autoconstru-

    o e dos agentes imobilirios. Incorporando estas questes, a dissertao procu

    ra dar indicaes de que, a nvel local, os loteamentos podem representar trans

    formaes em uma organizao social existente anteriormente.

    Desse modo, se procurar demonstrar que os loteam entos feitos em

    Nova Iguau, no ps-guerra, desencadearam um processo de rupturas com o pe

    rodo anterior, quer seja pelo abandono de uma produo agrcola, quer seja pe

    lo crescimento populacional favorecido pelos loteamentos.

    A existncia prvia de uma organizao social pode ser percebida atra

    vs de um sistema de classificaes relacionado ao tem po em que um a pessoa

    habita o lugar, freqentem ente acionado, e que rem ete histria da ocupao

    do espao. Esse sistema classificatrio traduz, parece, as diferentes camadas, eta

    pas, em que se deu a ocupao. So as categorias: famlia tradicional, iguauano,

    pessoal antigo e morador antigo.

    As famlias tradicionais, so aquelas ligadas ao passado de proprietrios

    - 8 -

  • rurais. Elites locais, tm posio de prestgio semelhante quela descrita por

    COSTA & DIGIOVANNI (1991) a respeito dos curitibanos de famlias conheci

    das, famlias mais antigas e de prestgio em Curitiba. A classificao famlia tra

    dicional, rem ete tambm noo de uma tradio de famlia, de um sobrenome

    de prestgio historicamente cristalizado. _ ......

    A categoria iguauano pouco empregada no cotidiano, em geral apa

    rece em situaes de propaganda poltica ou em contextos de reafirm ao de

    uma precedncia sobre o lugar.t

    O pessoal antigo refere-se a famlias de moradores antigos e ambas as

    categorias recobrem os habitantes mais antigos de um bairro, ou da cidade, e,

    independentem ente de sua posio econmica, h uma relao de deferncia pa

    ra com eles. Em geral, nos bairros, os moradores antigos, so aqueles pioneiros

    na ocupao do loteamento, ou aqueles que estavam presentes na cidade, nos

    povoados ou nas chcaras, no perodo que precedeu expanso dos loteam en

    tos. Em Austin, onde fiz trabalho de campo, eram constantem ente mencionados

    Seu Fulano ou Dona Fulana "morador(a) antigo (a) aqui da rea'', e que, segundo

    aqueles que me ajudavam a fazer contatos com possveis entrevistados, seriam

    "importantes" para a pesquisa.

    A existncias destas categorias e as relaes que elas ensejam faz pen

    sar a historicidade da ocupao do espao e como o tem po de perm anncia no

    espao socialmente relevante neste contexto.

    Mas, alm de prestgio, estas classificaes podem rem eter tam bm , pa

    ra as elites locais, a uma oposio entre iguauanos e o pessoal de fora em que

    os primeiros representam desse modo a populao que foi m orar nos lo team en

    tos. Nesta oposio, os iguauanos atribuem aos segundos os problem as advindos

    ao municpio sobretudo a partir dos anos 1970, como a falta de infra-estrutura

    para o atendim ento da populao e a criminalidade.

    - 9 -

  • Esta parece ser uma constante em vrios processos sociais de mudana,

    em que o crescimento populacional atravs da migrao acontece associado

    deteriorao de uma situao tida pelos antigos como melhor que a presente.

    Ser ento ao estranho que sero destinadas as causalidades da situao, tornan

    do exgenas estas causas, externas ao grupo mais antigo no espao, K ELLER

    (1977), por exemplo, mostra a existncia de uma oposio entre os m oradores

    mais antigos de um povoado sertanejo e nordestinos, em rea de frente de ex

    panso agrcola, no M aranho, em que os sertanejos atribuem chegada dos

    paraibanos uma certa desordem na vida social do povoado.

    A presena desta oposio se traduzem em campanhas eleitorais, no

    caso de Nova Iguau. A partir dos anos 1980, tm sido feitas campanhas usan

    do-se o argum ento de que somente um poltico iguauano no cargo de prefeito,

    seria capaz de administrar melhor o municpio.

    Alm desta oposio, uma outra perm ite pensar as transformaes

    ocorridas. E a oposio entre a cidade dos laranjais e a cidade dos loteamentos.

    Registra-se um a valorizao positiva do passado, em que este idealizado. Esta

    valorizao se d entre famlias tradicionais, iguauanos e moradores antigos, p re

    sentes no perodo anterior aos loteamentos, e, longe de pensar que a idealizao

    do passado seja uma total falsidade, esta questo foi abordada na dissertao

    como um mito que rem ete ao passado agrrio do municpio e que pode ajudar

    a com preender relaes socialmente estabelecidas. Para isso, foi realizado um le

    vantam ento histrico a fim de que se pudesse compreender em que sentido, em

    contraste com um perodo anterior, os loteamentos representaram mudanas sig

    nificativas.

    Se h um eixo temporal, diacrnico, neste trabalho, ele se d como in

    vestimento para a compreenso das diferentes ocupaes e representaes sobre

    o espao.

    - 10 -

  • - Assim, um outro eixo do trabalho o prprio espao, objeto tradicio

    nalm ente estudado pelas cincias sociais. As representaes de Baixada, cidade, e

    de um mundo rural, so abordadas no decorrer do trabalho como elem entos sig

    nificativos das mudanas analisadas.

    D U RK H EIM (1973), ao abordar o espao enquanto representao cole

    tiva, demonstrou que as representaes sobre este so produzidas socialmente.

    Em Os Nuer (EVANS-PRITCHARD, 1978), pode-se perceber como as categorias

    de tem po e espao, articuladas, traduzem a apropriao social da natureza, e %

    que assim, as concepes de tempo e espao rem etem s concepes de nature

    za e s relaes sociais atravs das quais as sociedades organizam sua temporali-

    dade e teritorialidade.

    Tendo em vista a nfase espacial do objeto de estudo deste trabalho,

    no se poderia esquecer a historicidade das relaes sociais sobre o espao e,

    conjuntamente, a dinmica das relaes de apropriao deste, a fim de que ele

    no seja substantivado na anlise.

    Assim, cumpre ressaltar que no passaram desapercebidos os desloca

    mentos e trocas, que tornam irredutveis a populao de um municpio, bairro,

    loteamento, aos limites destes (CHAMPAGNE, 1975). Alm deste aspecto, os

    prprios limites juridicamente constitudos so aqui pensados enquanto um a cons

    truo poltica, social e histrica e, portanto, representando um estado da din

    mica de apropriao social do espao.

    A cidade, e as possveis particularidades das relaes sociais agenciadas

    por ela, tm sido objeto de reflexo constante nas cincias sociais. P resente em

    clssicos como W EBER (1966), SIMMEL (1979) e Marx, a cidade teve, no de

    partam ento de Sociologia da Universidade de Chicago, um im portante centro de

    pesquisa, j a partir do incio deste sculo. Atravs de observao minuciosa es

    tudo minucioso de comunidades urbanas, estudiosos como R obert Park, Ernest

    - 11 -

  • Burguess e Roderick Mackenzie, implementaram e consolidaram os estudos mo-

    nogrficos, feitos por cientistas sociais no interior das cidades (BRESLAU, 1988).

    No Brasil, as pesquisas em reas urbanas tm tam bm uma produo

    expressiva. Apenas para citar alguns trabalhos relevantes de antroplogos, feitos

    entre diferentes segmentos e abordando diferentes aspectos das camadas popula

    res, pode-se lembrar das pesquisas de CALDEIRA (1984), M AGNANI (1984),

    ZA LU A R (1985), D U A RTE (1986) e LOPES (1988).

    Desse modo, so amplamente empregados o m todo comparativo e o

    trabalho de campo para o entendimento de relaes sociais no contexto do es

    pao urbano. A utilizao da abordagem antropolgica para o entendim ento des

    tas relaes tem sua validade demonstrada, quando se avalia a contribuio de

    diferentes pesquisadores, no sentido de possibilitar um melhor entendim ento dos

    microcosmos presentes na heterogeneidade das cidades surgidas com o desenvol

    vimento industrial. A possvel "familiaridade" dos pesquisadores com seus "objetos

    de estudo", no sentido de que compartilham um a mesma "organizao scio-es-

    pacial", no oblitera, por si s, os resultados, podendo ser relativizada, se se

    pensar nas inmeras diferenciaes encontradas nesse mundo heterogneo

    (V ELHO & SILVA, 1977) e nos recursos analticos e metodolgicos desenvolvi

    dos pela Antropologia.

    Partindo do suposto que o modelo de urbanizao promovido atravs

    do deslocamento de populao para os grandes centros industriais teve como

    uma de suas conseqncias a heterogeneidade desse mundo urbano (PARK,

    1979; W IRTH, 1979; VELHO & SILVA, 1977), procura-se pensar a cidade cria

    da pelos loteamentos como um mundo diferenciado, no apenas porque a popu

    lao que aflui para este tem diferentes origens sociais, mas tam bm porque, co

    mo se procurar demonstrar, os loteamentos no aconteceram sobre um a rea

    de vazio populacional ou sem uma histria de apropriao do espao anterior a

    - 12 -

  • eles.

    Assim, procurou-se esboar um quadro onde surgissem diferentes agen

    tes envolvidos no processo: proprietrio de terra, chacreiros, trabalhadores da

    laranja, loteador, habitantes de loteamento. Assim tambm, registrou-se a produ

    o saudosista dos iguauanos e moradores antigos, no para desqualific-la, mas

    como uma expresso que pode ser subsdio para o entendim ento das mudanas.

    Procura-se tambm, alm de destacar a diferenciao interna deste uni

    verso, dar mostra de um dinamismo prprio s relaes sociais. A inovao dos %

    lotes urbanos provocou mudanas no espao social, nos "princpos de diferencia

    o ou de distribuio" (BOURDIEU, 1989b: 133) que organizavam a sociedade

    sustentada pela citricultura e, desse modo, nas posies ocupadas pelos agentes.

    O mundo retratado pela memria idealizada dos "laranjais floridos" foi

    constitudo atravs do surgimento de vrios pequenos e mdios estabelecimentos,

    e de seus responsveis, os chacreiros-, atraa populao cam ponesa de diferentes

    lugares e nele os exportadores tinham posio dominante. Como se tentar de

    monstrar, este mundo foi sendo transformado com a entrada em cena de um

    novo campo social, cujo objeto de disputa era a terra.

    Os loteamentos foram produzidos atravs da criao deste campo, que

    formou especialistas como os loteadores (de maior ou m enor capitalizao) e

    corretores imobilirios, com conhecimentos prprios (havendo inclusive a especia

    lizao atravs de cursos) estes agentes trouxeram novas prticas que se traduzi

    ram em amplas mudanas.

    A incorporao destas prticas por agentes locais fez com que, por

    exemplo, proprietrios de terra viessem a lotear suas propriedades, abrindo suas

    prprias firmas de loteamento, e que tambm se tornasse possvel que um ex-

    trabalhador rural viesse a ingressar no mercado imobilirio como corretor e pos

    teriorm ente loteador, caso este encontrado na pesquisa.

    - 13 -

  • Assim, atravs da atuao desse novo campo social, foi m udado o em

    prego da terra e tambm a prpria organizao social da localidade. A fora

    destes agentes pode ser avaliada, inclusive, pela articulao entre estes e o po

    der pblico, tom ando possvel a adequao da implementao dos loteamentos

    face s exigncias de legislao. .......... .. ... .

    A pesquisa procurou descrever uma rea de loteamentos, a fim de

    abordar o novo tipo de cidade que surgiu atravs dele. Tenta-se m ostrar como

    este espao apropriado pelos novos habitantes, a origem social destes e sua %

    diversidade.

    Para tal, foi escolhida uma rea em Austin, sub-distrito de Nova

    Iguau, cuja denominao se deve estao ferroviria, batizada com o sobreno

    me do engenheiro ingls que a construiu no sculo passado. Assim tam bm se

    chamou o povoado erguido em torno da estao, cujas redondezas foram ocupa

    das por vrias chcaras e pela Fazendas Reunidas Normandia, com produo de

    laranja.

    Os loteamentos nos quais foi feito trabalho de campo so originrios

    de chcaras e se encontram prximos rodovia Presidente Dutra. L pude en

    trevistar remanescentes da citricultura, bem como aqueles que com praram lotes e

    vieram habitar os loteamentos.

    Foram realizadas cinqenta entrevistas para esta pesquisa, entre habi

    tantes da cidade de Nova Iguau e de Austin. Trinta delas seguiram o roteiro

    de um questionrio com perguntas abertas e fechadas, sendo realizadas no Posto

    de Sade Rosa dos Ventos, mantido pelo Sistema Unificado de Sade e situado

    no loteam ento Vista .Alegre. A possibilidade de ter acesso aos habitantes dos lo

    team entos se deu atravs da Associao de M oradores de Vista Alegre e Adja

    cncias, atravs da qual foi possvel a "entrada no campo" no ano de 1989.

    As questes e argumentos foram desenvolvidos em quatro captulos. No

    - 14 -

  • primeiro busca-se demonstrar o processo histrico subjacente construo social

    da Baixada e para isso tambm procurou-se esboar um quadro de aspectos da

    histria do municpio que deu origem regio. Este esboo talvez seja um tanto

    extenso para um trabalho em Antropologia, mas o esforo da pesquisadora nesta

    rea fez com que resolvesse registrar aspectos que pareceram im portantes para

    que se pense as continuidades e descontinuidades desta histria.

    No segundo captulo a citricultura foi descrita com o objetivo de bali

    zar a apreciao das rupturas presentes s transformaes dos anos 1950. No %

    terceiro captulo os loteamentos foram tratados, sob o ponto de vista de que as

    transformaes no espao fsico promovidas por eles tam bm levaram a transfor

    maes no espao social, promovendo deslocamentos nesse espao, em que

    alguns tiveram trajetria declinante, outros trajetria ascendente, e outros m anti

    veram sua posio atravs da reconverso de capital. No quarto captulo desen-

    volveu-se uma etnografia em uma rea de loteamentos que foi anteriorm ente

    ocupada com produo de laranjas.

    - 15 -

  • Captulo

    LUGAR E MEMRIA

    "Mal samos da costa no podamos esquecer o fato de o Brasil se ter transformado, mais do que desenvolvido, durante um sculo"

    (Lvi-Strauss Tristes Trpicos)

  • Em um a publicao da agncia municipal do IBGE de Nova Iguau,

    datada de 22 de setembro de 1946, pode-se ler, a respeito da situao econmi

    ca do municpio, que este

    "(...) at pouco antes de ter sua sede transferida para o povoado de Maxambomba, atual Cidade de Nova Iguau, era considerado um dos celeiros da antiga Metrpole. Com o advento da Lei urea, de que resultou a escassez de braos para a lavoura, e a obstruo de seus rios, cujo extrava- samento tornou pantanosas e por isso mesmo inabitveis, vastas regies at ento cultivadas, passou, a partir dos ltimos anos do sculo XIX, a ser explorado mais para o sul, onde j se iniciava a cultura da laranjeira- que, afinal, veio a constituir sua principal fonte de riqueza.(...)

    , Hoje, (...), nenhum daqueles produtos, que fizeram outrora a riqueza doMunicpio, revela haver resistido esmagadora concorrncia da citricultura, evidentemente mais rendosa e compensadora". (IBGE, 1946:4)

    O dia 22 de setembro de 1946 fora institudo pela prefeitura local co

    mo o "Dia da Laranja", festividade para o qual a publicao acima citada foi

    uma contribuio. Finda a Segunda Guerra Mundial, pretendia-se retom ar a vita

    lidade "esmagadora" da citricultura naquele municpio, seriamente abalada pelas

    dificuldades de exportao durante o conflito mundial. O texto em apreo figura

    como um registro do incio do processo que levaria ao fim da citricultura em

    Nova Iguau.

    Sem que seja desconsiderada a presena de outros tipos de explorao

    e ocupao agrrias, como por exemplo a existncia de terras devolutas ocupa

    das e exploradas por camponeses, de propriedades rurais que constituam heran

    a de famlias tradicionais, de extenses de terras ocupadas com pasto para gado

    bovino, etc., era marcante a importncia da citricultura no municpio sob o pon

    to de vista da lucratividade que esta proporcionava, e tambm de um a estratgia

    econmica atribuda a esta cultura por setores da Repblica Velha.

    Nos depoimentos de moradores antigos de Nova Iguau, constante a

    oposio entre um passado mais buclico e a atual realidade de violncia e

    crescimento urbano sem o acom panham ento de infra-estrutura. Atravs das cate

    - 17 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • gorias morador antigo e famlia antiga, e das representaes que os habitantes

    encompassados por essas categorias tm de um perodo anterior s transform a

    es decorrentes dos loteamentos, possvel encontrar dados a respeito das

    implicaes do crescimento da ocupao urbana sobre a organizao social do

    municpio.

    Registros como os seguintes podem ser encontrados na produo cultu

    ral local:

    "Na pacata Nova Iguau, ex-Maxambomba dos iaranjais floridos , eom as * corridas na raia e festas juninas, a vida era comum como a de qualquer

    cidade do interior." (PEREIRA, 1981:12. Grifos meus)

    " Nova Iguau, por que no flcaste sempre Maxambomba?" (PEIXOTO, s/d:3. Grifo meu)

    "NasciEm teu solo fecundo Respirando o aroma Dos seus laranjais (...)Eu viComo em sonho de beijo O velho realejo Em frente a estao (...)Eu viBoiadeiro valente Tanger comovente boi boiada (...)Eu viNo porvir dos meus sonhos Teus frutos risonhos Querido torro.Meu torro." (Meu Torro, cano de autoria do seresteiro Altamiro

    Borges de Freitas apud PEREIRA, 1981:98. Grifo meu)

    No se poderia aqui deixar de assinalar a idealizao do passado e da

    infncia presentes nesse tipo de material. Entretanto, a freqncia de lembranas

    como estas indicam a possibilidade de "perceber o verdadeiro processo de m u

    dana descrito nesses textos de memria, medida que descobrimos o processo

    comum a todos eles" (WILLIAMS, 1989:398).

    - 18 -

  • Raymond Williams, ao analisar as idias de oposio entre campo e

    cidade, demonstrou como tal sistema de idias, presente desde a Antigidade,

    tornou-se mais acentuado em fins do sculo XVI passando desde ento a simbo

    lizar transformaes sociais ocorridas no contexto do desenvolvimento industrial.

    Para o autor, se a constatao da persistncia das idias de oposio campo/ci

    dade indica a persistncia de relaes presentes no capitalismo, por outro lado

    apenas a constatao dessa permanncia seria insuficiente, pois as idias de

    campo e cidade estariam condicionadas pelos processos histricos especficos que%

    acionam essas idias e que condicionam sua variedade:

    "(...) as idias e imagens do campo e da cidade ainda conservam sua fora acentuada. Esta persistncia to significativa quanto a grande variedade, social e histrica, das idias em si.(...) Mas se percebemos que a persistncia depende das formas, imagens e idias em mudana - ainda que muitas vezes de modo sutil, interna e por vezes, inconscientemente podemos ver tambm que a persistncia indica alguma necessidade permanente ou praticamente permanente, que se reflete nas diferentes interpretaes que vo surgindo. Creio que h, de fato, uma tal necessidade, e ela criada pelos processos de um desenvolvimento histrico especfico. Contudo, se no vemos esses processos, ou se s os vemos por acaso, recamos em formas de pensamento aparentemente capazes de criar a permanncia sem a histria.(...) Ou, em termos mais tericos, devemos saber explicar, em termos relacionados, tanto a persistncia quanto a historicidade dos conceitos" (WILLIAMS, 1989:387-388).

    Dessa forma, a presena de um discurso, em diferentes setores da pro-

    . duo cultural local, de valorizao do passado agrrio do municpio (2), pode

    ser interpretada dentro de um processo histrico. Com a necessria qualificao

    daqueles que so os produtores de tal produo saudosista em geral pessoas

    de origem nas famlias tradicionais de antigos proprietrios de terra; nas famlias

    de chacreiros e de setores citadinos, como comrcio e servios h, presente de

    modo geral entre os moradores antigos, de diferentes setores, um a valorizao

    positiva do passado em oposio s dificuldades do presente, m arcadas sobretudo

    pela violncia.

    Se para muitos que l estavam, em diferentes posies sociais, fre-

    - 19 -

  • qente a representao de que "antes era melhor", pode-se destacar que, tam

    bm para aqueles que compravam um lote e para l mudavam-se, um processo

    de dissociaes com a condio anterior fora vivido, seja com o trabalho campo

    ns, ou com atividades em cidades de pequeno porte vinculadas a reas de pro

    duo agrria, ou ainda, com o mundo urbano das favelas cariocas onde alguns

    haviam nascido e tinham sido criados. Nesse sentido, podem ser encontrados re

    latos como os dois seguintes. O primeiro o depoimento de um poltico a uma

    revista local e o segundo faz parte do conjunto de entrevistas realizadas na reat

    de loteamentos em que foi feito um trabalho de campo para esta dissertao:

    No, eu no sou de Nova Iguau, mas j me considero daqui. Estou aqui h trinta e dois anos. Cheguei de Minas aos nove anos. Sou de Pa- tossi do Muria, regio norte de Minas Gerais, cidade pequena. Viemos tentar aqui na cidade grande uma possibilidade maior. Emprego em cidade do interior de Minas no existe. Ento meu velho teve a viso de vir para uma cidade que estava em perspectiva de ser uma cidade grande. (...) Era uma vida com bastante dificuldade, uma famlia bastante humilde mesmo. Alugou uma casinha no Caonze onde conseguimos fazer uma casinhamelhorzinha para ele.(...)" (Depoimento de comerciante e poltico local revista Nosso Jeito, s/ da ta :l-ll. Grifos meus.)

    Quando eu comecei a me entender de gente, foi na poca da Guerra, porque a gente do interior at os sete, oito anos no entende de nada, s da vidinha de sempre (...). Foi no ano de 49, eu estava no milharal, foi um ano em que deu muito milho, meu pai falou comigo assim: 'Jurandir voc no quer ir para o Rio de Janeiro? Eu no, vou fazer o que no Rio, no tenho pai, no tenho me, no tenho nada! Ah, mas tem teu primo Joo. Ah, ...Gostaria sim, de ir pra casa de meu primo Joo. A eu pensei: Ele est no Rio! Tem casa l!, pensei que ele estava numa boa. A viagem foi muito triste, levamos quase um ms, tive raiva de meu pai. Andamos a p cerca de sessenta quilmetros, depois pegamos um trem numa cidadezinha de nome Propri no estado de Sergipe, fomos nesse trem at Salvador, na Bahia, em Salvador... no tinha trem para Belo Horizonte, ficamos quase quinze dias em Salvador, tive raiva, ficamos em hospedagem que mais parecia um chiqueiro, deixei minha casa de pobre mas em que se tinha nossa rede iimpinha (3) ( Quando foi na poca de pegar o trem soubemos que no podia viajar sem tomar vacina, (...). Aquilo me deu uma febre, virou um hematoma(...). A chegou o trem, o trem foi at o interior da Bahia e a tinha um trecho que no podia passar porque tinha cado uma barreira, tivemos que pegar esse trecho na base do caminho, a sim!, a que eu vi as coisas pretas, subimos serra, (...) era um monto de gente (...), eu vi muita misria, fiquei apavorado porque ns ramos pobres mas tnhamos nossa terra, comecei a ter febre (...) era o serto da Bahia, no tinha gua (...). Chegamos em Monte Azul, no norte de Minas, mas no tinha trem, o trem tava atrasado, que-

    - 20 -

  • brou e ficamos uma semana em outra hospedagem, esperando o trem, e a essa altura papai j estava sem dinheiro (...). E pegamos o tal do trem, chegamos em Belo Horizonte e pegamos o trem para o Rio de Janei-ro.(...) Chegamos na Central do Brasil, que j era a monstruosidade que hoje, e quando eu olhei praquilo pensei: "Pronto, agora que eu estou frito."(...) Acho que papai no imaginava como o Rio era longe. (...)'' (Jurandir, nascido em 1933 no interior do municpio de Traipu, Alagoas)

    relato de Jurandir, bancrio aposentado, originrio de rea de ocu

    pao imemorial no interior de Alagoas, uma narrativa exemplar das perip

    cias de tantos que viajaram do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo para o

    Rio de Janeiro e que tiveram nas canes de Luiz Gonzaga, conforme assinalou

    um entrevistado, uma interpretao do mundo que deixavam e da viagem, em

    que se afastavam do mundo anterior, que fizeram. Nos relatos de suas vidas, ao

    tentarem explicar a sua presena em um determinado lugar, que enquanto espa

    o geogrfico representa um dos atributos da posio ocupada pelos agentes no

    espao social, freqentem ente so evocadas imagens de campo, de cidade, para

    descrever e explicar a trajetria dos agentes dentro das transformaes sociais vi-

    venciadas. Nos dois trechos citados, encontram-se imagens das realidades que a

    viagem deixou para trs: cidades do interior sem possibilidade de emprego,

    cidades pequenas, vidinha de sempre, milharal, rede limpinha, nossa terra. E o que

    se imaginava encontrar no fim da viagem: possibilidade de emprego na cidade

    grande, uma casa no Rio de Janeiro, prestgio.

    E possvel perceber que no apenas aqueles que se consideram antigos

    in terpretam sua histria atravs das mudanas da ocupao espacial do munic

    pio, mas tam bm aqueles que chegaram mais recentem ente descrevem diferentes

    paisagens para explicar as transformaes experimentadas em suas vidas, na m e

    dida em que tais mudanas esto associadas a deslocamentos geogrficos. Estas

    representaes, em suas variaes, so significativas dos diferentes processos de

    transform ao vividos pelos agentes, e tambm fazem parte do conjunto de re

    - 21 -

  • presentaes que tentam explicar a nova realidade social criada pelos loteamen-

    tos, que propiciaram a inveno de uma nova cidade e que confrontaram pesso

    as de to diferentes origens sociais. A presena de diferentes paisagens nos rela

    tos e documentao levantados, avaliadas sob uma crtica histrica e sociolgica,

    so assim um ndice das mudanas experimentadas. Nos dados levantados pela

    pesquisa, possvel ser percebida a confluncia de pessoas de diferentes mundos

    em transformao, quer sejam aquelas que estavam no municpio no perodo de

    cultivo expressivo da laranja, ou aquelas, de diferentes outros mundos, que para

    l se dirigiram.

    A Baixada e, no caso especfico dessa dissertao, o municpio de Nova

    Iguau, foram palco de drsticas transformaes desencadeadas sobretudo a par

    tir dos anos 1950, dentro das quais a prpria idia de Baixada Fluminense se

    transformou, o que pode ser interpretado como um dos elementos desse proces

    so. Assim, como as idias de campo e cidade, a idia de Baixada tam bm pode

    ser avalliada sob uma perspectiva histrica e, desse modo, uma questo proposta

    por Raymond Williams, a respeito das diferentes imagens de campo e cidade,

    incorpora-se a este trabalho: "Que tipos de experincias essas idias parecem in

    terpretar, e por que certas formas ocorrem e recorrem nesse ou naquele m o

    mento?" (WILLIAMS, 1989:388).

    Com esta questo, procuro analisar na prim eira parte deste captulo a

    Baixada enquanto uma contruo social, e, na segunda parte, aspectos da hist

    ria do municpo de Nova Iguau, procurando dem onstrar que um processo hist

    rico de rupturas encontra-se subjacente idealizao do passado.

    - 22 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • 1. As Baixadas Fluminenses: Construo social dos limites de uma

    regio

    Busca-se aqui desenvolver uma anlise que perm ita dar m ostra de co

    mo as mudanas ocorridas nos usos da categoria Baixada Fluminense, assim co

    mo as lutas de imposio e reconhecimento desta classificao, so um indcio

    de um processo histrico. A anlise aqui desenvolvida pretende apenas m ostrar

    que as transformaes sociais ocorridas propiciaram, inclusive, a transform ao

    das idias e limites da regio e que, o trabalho simblico de construo destas

    idias e limites, por sua vez, faz parte da prpria histria da constituio da

    Baixada.

    Esta afirmativa, em que pese a necessria relativizao ante o caso

    aqui em estudo, pode encontrar em MAUSS (1969), um balizamento. Ao refletir

    sobre o fenmeno sociolgico da formao da nao moderna, cujo estatuto se

    ria dado pela associao de uma sociedade material e m oralm ente integrada a

    um poder central a a fronteiras determinadas, este autor j demonstrava que o

    processo que havia formado as naes, atravs do qual se criava a substantiva-

    o de uma sociedade a uma fronteira, atravs de jurisprudncia, era "econmico

    de uma parte, e de outra moral e jurdico" ( MAUSS, 1969:590).

    Para historicizar a categoria

    Tornou-se difundido o uso dos termos Baixada e Baixada Fluminense

    para designar os municpios das vizinhanas ocidentais do Rio de Janeiro, reu

    nindo-os sob a idia de uma regio, de uma rea fsica compondo uma mesma

    realidade geogrfica e social.

    - 23 -

  • Pelos noticirios da imprensa com maior poder de divulgao, a

    Baixada surge atravs de um repertrio do qual constante a violncia generali

    zada e as carncias de sua populao. Desse modo, por exemplo, podem ser en

    contradas notcias com os seguintes ttulos:

    "Em sete meses, a Baixada teve mais de 1 mil mortos" (Jornal do Brasil,31/08/1988)

    "Encapuzados matam dois na Baixada" (O Dia, 13/11/1988)

    "Baixada luta contra o crime" (Jornal do Brasil, 22/08/1988)

    "Freira assassinada na Baixada" (ltima Hora, 09/06/1990)

    Tal repertrio criou o que Fernando Gabeira veio a chamar de "fron

    teira mtica", demarcando para alm dos limites do Rio de Janeiro um universo

    de anomia, uma regio sem cidadania cuja paisagem nega as idias e imagens

    consagradas de cidade.

    Sobre o conceito de regio, Pierre Bourdieu assinala que este um ob

    jeto particularm ente justificado para uma crtica epistemolgica s cincias sociais

    (BOURDIEU,1989a:107). Conceito e campo disputado por gegrafos, economistas

    e socilogos notadam ente no perodo ps-Segunda Guerra Mundial, quando en

    to, segundo o gegrafo tienne Juillard, deixou de ser um "domnio um tanto

    confidencial da pesquisa geogrfica" passando a pensar-se "nos meios de ao

    econmica e social,(...) no desenvolvimento, em termos de planejam ento do terri

    trio, de regionalizao" (JUILLARD, 1965:224).

    A noo de regio como objeto privilegiado pela Geografia francesa,

    no perodo anterior ao ps-guerra, diria respeito a reas distinguidas segundo

    "uma certa uniformidade natural, tnica ou econmica" (JUILLARD, 1965:224)(4).

    E dentro de um contexto de classificao natural que pode-se enccr.trar a defini

    o de Baixada Fluminense operada por gegrafos brasileiros s .z MENDES.

    - 24 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • 1944, 1950; CAMPOS, 1955; G E IG ER & M ESQUITA, 1956; SOARES, 1962)

    at meados dos anos 1960, quando passaram a utilizar, notadam ente a partir

    dos anos 1970, o modelo ncleo-periferia metropolitanos.

    Assim Renato da Silveira M endes define Baixada Fluminense:

    " A regio do Estado do Rio de Janeiro conhecida pelo nome de Baixada Fluminense constitue uma rea de aproximadamente 17.000km abrangendo as terras baixas que se estendem da escarpa da Serra do Mar at o Oceano Atlntico, numa faixa de algumas dezenas de quilmetros de largura desde Coroa Grande, em Itagua, at a foz do Itabapoana." (MENDES, 1950:21. Conceito operado tambm pelos gegrafos supra citados (*9).

    Tambm com esta extenso estavam delimitados os trabalhos da Comis-*

    so de Saneam ento da Baixada Fluminense, instituio federal criada em 1933 e

    que em 1936 fora transformada na Diviso de Saneamento da Baixada Flumi

    nense, com o objetivo de desenvolver obras de saneam ento nos pntanos e pla

    ncies de toda esta rea(6) (MENDES, 1950:109-115).

    Tratou-se, parece, da incorporao de uma categoria de uso comum

    para os quadros conceituais de uma cincia e de instituies pblicas, consagran

    do essa categoria, e regulamentando-a, estando a regio agora delimitada por

    atos de autoridades. Um artigo da Diviso de Geografia do Conselho Nacional

    de Geografia, em que aquele rgo pblico apresenta a diviso regional do es

    tado do Rio de Janeiro, instituda por aquele Conselho em 1945, apresenta a

    Baixada Centro Litornea como uma das sub-regies do estado, que, segundo o

    artigo, seria a B a i x a d a c o m o simplesmente conhecida pelos fluminensed', des

    crevendo esta sub-regio por critrios fisiogrficos, nos mesmos limites que M EN

    DES (1950). Ainda segundo esse artigo "a Baixada Fluminense teve um a histria

    ilustre e gloriosa, com sua fazendas e sua aristocracia rural" e seu futuro torna- *

    va-se "novamente promissor, com a realizao das grandes obras de saneamento

    e recuperao econmica." (IBGE. Diviso de Geografia do C.N.G.,

    1948:15-16). Todavia, o que faz pensar o levantamento que efetuou-se no IBGE,

    - 25 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • que a categoria Baixada Fluminense no foi incorporada pelos rgos pblicos

    federais de geografia para denominar a regio que outras instituies pblicas,

    como a Diviso de Saneamento, reconheceram por essa classificao.

    Encontramos em FO RTE (1933) referncia ao "ciclo da cana" (aspas

    do autor) que havia feito "a fortuna dos fazendeiros da zona da baixada, em to

    da a sua rea de dezenas de quilmetros, de um e de outro lado da baa e ao

    centro, como fz tambm na plancie dos goitacs (...)", esse autor refere-se tam

    bm "alagadia baixada fluminense", operando esse termo segundo o uso co

    mum acima mencionado, que circunscrevia a baixada exatam ente como a rea

    de baixios em torno da Baa de Guanabara, mas no apenas a rea mais prxi

    ma, compreendendo ento, parece-me, a idia (e a extenso) da rea de produ

    o agrcola irrigada pelos vrios rios que descem a Serra do Mar.

    Segundo RAPOSO (1946), haveria na rea de pntanos um tipo, o mu-

    xuango, que sobrevivendo ao impaludismo e outras adversidades, seria encontrado

    "dirigindo barcos pequenos e obsoletos" e vivendo da explorao de madeiras co

    mo a tabebuia (7), carvo, caranguejo, pele de jacar (RAPOSO, 1946:33-36).

    Conforme o autor, esse seria "o habitante das runas de uma civilizao que a

    natureza tenaz sufocou: a Baixada Fluminense", referindo-se assim populao

    que ocupava as reas prximas aos portos fluviais que, quando abandonados,

    provocaram o esvaziamento populacional das vilas e arredores desses portos,

    bem como obstruo dos rios.

    Assim, ao conceituar a Baixada segundo critrios fisiogrficos, os ge

    grafos parecem ter incorporado e regulamentado os limites de uma categoria

    com historicidade e cuja representao usual estava ligada evocao de um

    mundo agrrio. Retom ando BO U RD IEU (1989a:l 15): "as classificaes mais na-

    turais apiam-se em caractersticas que nada tm de natural e que so, em

    grande parte, produto de uma imposio arbitrria, quer dizer, de um estado an

    - 26 -

    Thomas Cortado

  • terior da relao de foras no campo das lutas pela delimitao legtima". Para

    esse autor, a regio no seria tanto um produto do espao, mas do tempo, da

    historicidade das relaes sociais em que o espao apropriado (BO U RD IEU ,

    1989:115).

    Ser exatam ente em um contexto de lutas por apropriao do espao

    que a Baixada surgir no noticirio dos anos 1950. GRYNSZPAN (1987), em

    seu estudo das lutas camponesas e competio poltica em torno da liderana e

    votos de camponeses, no perodo 1950-64, indica que com esse term o que era

    denominada a rea conflagrada, quer seja por parte da imprensa em geral, quer

    seja pelos agentes envolvidos. O autor demonstra, entre outros aspectos, que o

    campesinato surge enquanto um novo e importante ator poltico nesse perodo,

    Nos conflitos e no perodo histrico analisados pelo autor, a classifica

    o continuava operando no sentido de evocar o universo agrrio das cercanias

    do Rio de Janeiro. A classificao Baixada, utilizada pelo autor conforme a cate

    goria em pregada pelos agentes envolvidos nos conflitos, encompassava as disputas

    ocorridas sobretudo nos municpios de Cachoeiras de Macacu, Itabora, Itagua,

    Duque de Caxias, Nova Iguau e Mag, estudados por GRYNSZPAN (1987).

    Ser esse o momento em que ocorrero as mudanas nas quais o reor-

    denam ento da idia de Baixada ser um dos aspectos. D entro do contexto da

    industrializao nacional, em que a acentuao das disparidades regionais foi

    uma das caractersticas (8), o estado do Rio teve uma taxa de crescimento popu

    lacional, no perodo 1950-60, de 4,0% ao ano, taxa maior do que a mdia anual

    do pas (3,2%) nesse perodo (9X Esse perodo caracterizou-se por um acentuado

    increm ento do deslocamento populacional para o municpio do Rio de Janeiro e

    municpios prximos (Duque de Caxias, Nilpolis, Nova Iguau, So Joo de

    Meriti, Niteri e So Gonalo), o que teve como uma de suas conseqncias a

    presena, detectada pelo Censo de 1960, de 1.291.670 habitantes com menos de

  • 10 anos de residncia nesses municpios, ou seja, 53% de toda a populao mi

    grante (ABREU, 1987:118).

    Tendo feito meno a um processo de industrializao, no se poderia

    aqui, todavia, obscurecer-se o dado de que a populao do campo no estado do

    Rio ser expressiva em 1950, representando 52,5% da populao estadual, conti

    nuando a crescer ao longo da dcada, muito embora sem acom panhar o ritmo

    de crescimento da populao urbana. Assim, as estatsticas apontam , em 1960, a

    distribuio de 31,0% de populao rural e 61,0% de populao urbana no esta-

    do do Rio (IDEG, 1972:29). Tais percentuais ajudam a pensar a im portncia da

    mobilizao camponesa ocorrida nesse perodo e o impacto das mudanas supra

    assinaladas.

    Desde os anos 1930, com as obras de saneamento da Baixada, as ter

    ras nessa rea passam a ser valorizadas, o que agudiza-se nos anos 1950 com a

    alta do preo de imveis nas reas de subrbios, ilhas da baa, e proximidades

    da zona rural e com os problemas de moradia para a crescente populao

    (G EIG ER & M ESQUITA, 1956:179-180). Junto com a expectativa de valoriza

    o, o surgimento de um movimento de especulao de terras, fez com que as

    reas da Baixada atrassem o interesse de capitalistas para a com pra de terras,

    como tam bm a atuao de grupos que, aproveitando-se das indefinies dos t

    tulos de terra nessa rea, reinvindicavam a propriedade de terrenos atravs de

    operaes fraudulentas em cartrios (G EIG ER & M ESQUITA, 1956:65). Esses

    agentes denominados grileiros no contexto dos conflitos camponeses ocorridos nos

    anos 1950 na Baixada, foram elementos deflagradores da revolta camponesa, na

    medida em que eram percebidos como elementos estranhos, um elem ento outro

    na ordem mais conhecida entre camponeses e proprietrios, representando aque

    les a nova ordem que desestabilizava as relaes de posse da terra. Note-se que

    mesmo alguns proprietrios eram classificados enquanto grileiros, na medida em

    - 28 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • que, desconhecidos dos camponeses, decidiam retom ar as terras face valoriza

    o (GRYNSZPAN, 1987:74-75).

    O investimento governamental, atravs de obras de saneam ento e o in

    crem ento das vias de transporte atravs da eletrificao de trens e abertura de

    estradas contribuiram para um processo de valorizao de terras nos municpios

    das vizinhanas ocidentais do Rio de Janeiro. O movimento de valorizao e es

    peculao de terras foram alguns dos principais fatores que concorreram para as

    transformaes ocorridas nessa rea, hoje encompassada mais freqentem ente pe-%

    lo term o Baixada. Aspectos dramticos desse processo se traduziram, no campo,

    em conflitos de terra, nos despejos de lavradores entre 1950 e o incio da dca

    da de 1960. Eles ocorreram em vrios municpios do Estado do Rio, mas incidi

    ram sobretudo na rea mais prxima Baa da Guanabara, onde, por outro la

    do, os lavradores tinham melhor organizao poltica (10) e ofereceram resistncia

    organizada. Aconteceram sobretudo em Mag, Duque de Caxias e Nova Iguau

    e tiveram os loteamentos urbanos como principal causa (GRYNSZPAN,

    1987:17-56).

    Em 1952, Pedro Geiger escrevia que, enquanto companhias e fazendei

    ros vendiam seus lotes para as camadas mdias e trabalhadores,

    "no terreno, que pode ter sido uma antiga fazenda, o proprietrio expulsaos antigos moradores para realizar o parcelamento e evitar problemas futuros e os terrenos abandonados vo substituir antigas zonas de plantaes" (GEIGER,1952:97. O autor aqui refere-se a terrenos que seriam parcelados e vendidos sob a forma de loteamentos).

    Os conflitos de terra e a mobilizao de camponeses, polticos e pro

    prietrios de terra acirraram-se, fazendo surgir na imprensa as imagens de uma

    Baixada conflagrada. Com o Golpe de 1964, esse movimento foi arrefecido, sem

    que houvesse, porm, a soluo dos vrios problemas fundirios da rea como,

    por exemplo, a demanda camponesa por terras, apesar de algumas experincias

    nesse sentido nos governos militares, o que fz inclusive, que os conflitos pela

    - 29 -

    Thomas Cortado

  • posse da terra reacendessem, no Estado do Rio, nos anos 1980

    (GRYNSZPAN,1990, especialmente pginas 8-15).

    A idia de Baixada como uma regio perigosa, espao de conflitos ar

    mados, perm aneceu e se acentuou, nos anos 1970, bem como o uso de milcias

    e armas de fogo, anteriormente presentes nos conflitos fundirios acima mencio

    nados, agora sob a forma da criminalidade no interior do espao urbano.

    Baixada no Presente: confrontos de representaes

    "Voc precisa conhecer Minha jurisdio V prestando ateno Lugar que ocupa um pedao Do meu corao Do meu coraoMas infelizmente tem fama de barra pesadaIsso tudo intriga da oposioE muita mentira e conversa fiada"

    ("Baixada", samba de dson Show e WilsinhoSarav)

    No apelo da letra do samba acima citado, pode-se perceber uma rea

    o aos efeitos estigmatizadores da "fama de barra pesada" do "lugar que ocupa

    um pedao" do corao dos compositores. Buscando dar os limites desse lugar,

    os autores enumeram, na composio, os nomes dos municpios e localidades

    que fariam parte desse universo denominado Baixada, como um a tentativa de

    tornar conhecida essa realidade, apresent-la ao pblico de modo que, ao sim

    plesmente list-las no samba, ela possa ser representada como um a realidade

    tangvel, habitvel e habitada, um "domnio tnico" e assim, um lugar (n ) pro

    - 30 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • priamente, e no "um limbo beira da estrada" como fariam crer algumas re

    portagens policiais.

    O samba indica os limites da jurisdio dos autores, que incluiria, alm

    dos municpios de Nova Iguau, So Joo de Meriti, Duque de Caxias e Nilpo-

    lis, tambm os municpios de Paracambi, Itagua e Mag.

    Im portante notar que na reportagem em que a letra desse samba foi

    publicada (LOPES, 1989:6) encontra-se estampado, justo acima dos versos da

    composio, um mapa indicando os municpios da Baixada e estes seriam, segun

    do o mapa, apenas os quatro primeiros citados no pargrafo acima. Vemos ali

    confrontados diferentes limites para a Baixada: um, com posio de destaque na

    diagramao da pgina, incorporado e veiculado pela reportagem na figura do

    mapa, que no tem indicao de fontes, e outro, descrito por compositores lo

    cais, que seria mais amplo, estendendo-se a Mag, Itagua e Paracambi. A din

    mica e fluidez dessa classificao, e do mundo que ela busca classificar, podem

    ser observadas, creio eu, nesse confronto e no prprio texto e diagramao da

    reportagem, que ao tratar da produo musical de um lugar cham ado Baixada

    coloca lado a lado o mapa da reportagem e a letra dos sambistas, sem que o

    texto do reprter entre em consideraes sobre esse confronto, que no objeto

    do texto (Ver Anexos).

    Em uma reportagem de GABEIRA (1983), tambm um m apa seme

    lhante encontrado. Com esses limites vendido um m apa detalhado, produzi

    do por uma grfica particular, e que certa vez encontrei na agncia municipal

    do IBGE, ao levantar material para esta pesquisa. Perguntando a um funcionrio

    se o m apa fora produzido pela instituio, este me respondeu que no, que no

    havia um mapa do IBGE. De fato, a Baixada Fluminense no uma regio

    atualm ente delimitada por esse rgo pblico, tendo sido, nos termos de

    M ENDES (1950:21) j mencionados, reconhecida em certa poca sob uma pers

    - 31 -

  • pectiva naturalizante, enquanto uma regio fisiogrfica, mas no sob a perspecti

    va de um conceito de regio, operado pela instituio, que pretendesse delimitar

    unidades espaciais segundo princpios econmico-sociais-geogrficos.

    Em diferentes situaes, pode-se encontrar meno aos municpios de

    Itagua, Paracambi, Mag e inclusive So Gonalo, como pertencendo Baixada

    Fluminense. Na imprensa, tal ocorre, em geral, quando o contexto da notcia a

    criminalidade. A fluidez da fronteira tambm dada pelo alcance dos interesses

    dos agentes, mas, com efeito, so mais freqentes representaes em que Bai

    xada corresponde a rea do antigo municpio de Nova Iguau.

    Ao universo de violncia a que costumeiramente a categoria alude e

    ao uso que dele se faz, por vezes discriminatrio, contraps-se um outro, na se

    gunda m etade dos anos 1970, que surgiu como reao aos efeitos de estigmatiza-

    o, e que teve no municpio de Nova Iguau o foco inicial, devido ao avano

    das articulaes polticas no municpio que, entre outros aspectos, centralizava li

    deranas histricas oposicionistas e encontraram na Diocese de Nova Iguau uma

    im portante sustentao.

    Os movimentos sociais, notadam ente o Movimento de Amigos de Bair

    ro de Nova Iguau, cuja primeira grande assemblia se deu em 1978

    (BERNARDES, 1983:163), passaram a usar a categoria com fins reivindicatrios,

    imputando Baixada as caractersticas de uma "terra de promisso". A vinda de

    vrios militantes de esquerda para a rea, bem como a articulao de polticos

    locais de correntes polticas de esquerda, criou um espao de lutas em que a

    Baixada foi investida de valor como lugar de politizao de trabalhadores . As

    sim, por exemplo, em fins dos anos 1970 enquanto os esquadres de extermnio

    davam manchetes aos jornais da grande imprensa, um jornal de esquerda intitu

    lava-se BERRO DA BAIXADA.

    Tal movimento ocorreu tambm, a partir da segunda m etade dos anos

    - 32 -

    Thomas Cortado

  • 1970, no campo cultural, principalmente em literatura e teatro, com m anifesta

    es artsticas de cunho denunciativo, surgindo inclusive um movimento denom i

    nado POESIA BAIXADENSE, cujos poetas pichavam os muros com inscries

    como "Poesia a Fome".

    Essas manifestaes, ao contrrio da letra do samba de dson Show e

    Wilsinho Sarav, no negavam a "barra pesada", e tentavam fazer dela objeto de

    produo esttica:

    "No havia um s dia em que ns no nos cruzssemos e eu que vivia escondido nos romances, nas crnicas e poemas, era violentamente massacrado pelas manchetes que me repugnavam e que os jornais sensacionalistaseditavam em letras garrafais e conseguiam, atravs deles, me arrancar datranqilidade do mundo em que eu vivia para os ferozes e brbaros acontecimentos do dia-a-dia." (Luiz Coelho Medina, "O Passageiro")

    Compondo esses grupos de atuao no campo cultural, estavam jovens

    migrantes ou filhos de migrantes, de formao poltica em partidos de esquerda

    (ento clandestinos) ou atravs dos grupos jovens da Igreja Catlica. Para os par

    tidos de esquerda, tam bm esse campo era privilegiado no sentido da divulgao

    poltica e da politizao dos jovens que se interessavam pelo ingresso nas prti

    cas desse campo.

    Sobre esse aspecto, em muito caberia um paralelismo com a histria

    de vida apresentada por SAYAD(1979) em "Les Enfants Illgitimes". O autor

    demonstra, atravs da fala de uma filha de imigrantes argelinos nascida na F ran

    a e que teve acesso escolaridade francesa, cursando a universidade no pero

    do de seu depoimento, o confronto, para esses enfants illgitimes, entre o sistema

    de crenas de seus pais e do universo do qual se emigra, e o novo mundo em

    que esses jovens so socializados, tendo acesso a novos sistemas de representa

    o atravs da escolaridade. Essa experincia fragm entadora encontraria nos c

    digos transmitidos pela escolaridade tambm uma possibilidade de objetivao e

    alguma inteligibilidade das condies da fragmentao vivenciada. Zahoua, a jo-

    - 33 -

  • vem que relata sua histria de vida no texto produzido por SAYAD(1979)

    aprende no apenas a falar o rabe, mas tambm a ler e escrever a lngua de

    seus pais, num movimento de aproximao e entendim ento desse cdigo que era,

    para ela, familiar e estrangeiro. No caso dos "enfants" da Baixada no se tratou

    de um movimento cultural em que se buscavam os cdigos de um a cultura es

    trangeira, imigrante e mais claramente exgena, mas, talvez devido s sutilezas e

    fluidez em que se apresenta a diversidade de tantos "migrantes" nacionais no

    contexto em apreo nessa dissertao, a nfase recaiu sobre o universo em

    transformao em que esses jovens foram socializados, numa tentativa de re tra

    tar, explicar, codificar, o mundo adverso em que buscavam algum enraizam ento.

    Desse modo, passa a surgir uma outra operatividade para o term o Bai

    xada, ou seja, polticos e produtores culturais locais passaram a incorpor-la e a

    oper-la com um apelo regionalista, fazendo existir a categoria, dando-lhe con-

    cretude prtica nos termos dos vrios seminrios, encontros, debates, assemblias,

    manifestos, etc. Reportando-m e Bourdieu, ao traar um paralelo entre o regiona

    lismo e o sionismo:

    "A reivindicao regionalista, por muito longnqua que parea deste nacionalismo sem territrio, tambm uma resposta estigmatizao que produz o territrio de que, aparentemente, ela produto. E, de fato, se a regio no existisse como espao estigmatizado, como "provncia" definida pela distncia econmica e social (e no geogrfica) em relao ao "centro",quer dizer, pela privao do capital (material e simblico) que a capitalconcentra, no teria que reivindicar a existncia."(Bourdieu, 1989a: 126-7).

    Em fins dos anos 1980, com o arrefecimento do movimento de associa

    o de moradores e a consolidao de setores do campo cultural, um outro tom

    passou a ser dado s manifestaes desse setor. Agora, j no se tra ta de ter a

    pobreza e a criminalidade como objeto esttico, mas d,e disputar espao nas ins

    tncias consagradoras usando como recurso a reivindicao de que na Baixada

    no haveria apenas pobreza e criminalidade, articulando-se um discurso de brios

    regionalistas.

    - 34 -

  • Por exemplo, em 1985 lanada em Nova Iguau a revista mensal

    Nosso Jeito que tratava de questes culturais e da divulgao da produo local,

    assim como temas da poltica e entrevistas com polticos. Nova Iguau constava

    inicialmente como lugar de publicao mas a partir do terceiro nm ero, com

    melhor lay-out, j passa a figurar Baixada Fluminense como local de publicao,

    em bora a circulao continuasse restrita ao municpio.

    Passa-se a encontrar, nos veculos de imprensa de maior circulao, re

    portagens com matrias diferentes daquelas que do conta dos crimes, indicando

    que "apesar da violncia" haveria uma produo cultural regional^12). Tam bm a

    presena de camadas mais abastadas passa a ser um dado apresentado em re

    portagens (e.g. Veja, 23/05/1990:17-18; Programa Documento Especial n2 50, leva

    do ao ar pela TV M anchete-Rio em 27/7/90). O regionalismo encontra-se em as

    censo, de tal modo que um deputado de So Joo de Meriti chegou a propor,

    segundo notcia de jornal, a criao de um rgo estadual especfico, "uma supe

    rintendncia da Baixada Fluminense, como a Sudene para o Nordeste" (Jornal

    do Brasil, 1990, Caderno Cidade:6).

    D e fato, as prticas que tentam inverter o sentido da dominao sim

    blica vm assumindo a forma regionalista. Criticando esta postura um a poeta

    ento radicada em Nova Iguau escreveria em sua apresentao um a antologia

    de poetas regionais:

    "Sem querer ensaiar aqui especulaes mais detalhadas, ou avaliar a espessura do fio que isola o que ou quem assim foi denominado (poesia ou poeta baixadense?), lembramos que o brado do poeta [que lanou esse movimento literrio], poca 'bairrista, retumbou numa espcie de sirene.(...) Longe de insistirmos no prstimo desse "anacrnico" manifesto separatista,cabe lembrar tambm que vemos hoje os novssimos poetas da revista Ar-mlho, de Duque de Caxias, por exemplo, com receptividade merecida e garantida onde quer que se apresentam, itinerar sob o estigma de Poetas Baixad.en.ses. No h dvida de que o 'apelido' ficou selado no inconsciente literrio da regio." (SIQUEIRA,1987. O grifo no termo Baixada Fluminense meu.)

    D e fato, alm dos movimentos literrios, um processo de absoro da

    - 35 -

    Thomas Cortado

    Thomas Cortado

  • classificao, por parte de agentes locais, vem acontecendo. A construo social

    da Baixada Fluminense enquanto regio se faz, no presente, no apenas atravs

    de agncias externas ao territrio assim representado, mas tam bm pela incor

    porao da categoria por agentes de diferentes campos que se propem a ser

    representantes da regio, fazendo operar o regionalismo. Im portante indicar que

    os habitantes afastados das esferas de formao poltica no utilizam costumeira-

    m ente esta categoria para seu lugar de moradia, havendo, isso sim, uma identifi

    cao e relao de pertencimento mais acentuada com o bairro. Para essa gran

    de maioria, a Baixada, como uma representao da periferia urbana do Rio de

    Janeiro, embora possa ser por elas operada situacionalmente em oposio ao

    centro do Rio de Janeiro, uma categoria externa, veiculada pela imprensa,

    pelos polticos e movimentos sociais, e pouco empregada em seu cotidiano.

    Thomas Cortado

  • 2 Aspectos histricos do municpio de Nova Iguau

    Nova Iguau,onde sai um bbado homem

    de um boteco aos trancos e [barrancos,

    tropeando nos tamancos do dia a dia da baixa do cruzeiro e da alta do

    [dlar,do custo horroroso da vida.Inflao...E cai num outro boteco, d onde aparece um garon sorridentea lhe servir de antemo.

    onde se vive infeliz no que se diz, porque no mais h nesse momento aquele distante vo placntico do

    [ontemlaranjal...Nova Iguau (...)De L A s, Ducals, B B s, Casas Matos, Delfins, Sescs, Bobs,Chicletes de bola,Engraxates de arma na mo, pivetes, candinhas, loucos, bispos seqestrados e e um tal de etc... e tal.Que tal,Nova Iguau que tal?!?...("Nova Iguau" Paulo Silva Filho)

    Se a laranja tornou-se para as famlias tradicionais, moradores antigos e

    produtores culturais do municpio de Nova Iguau o smbolo de um "ontem pla

    cntico", tais sentimentos se do atravs da idealizao das relaes sociais desse

    passado, em que, por exemplo, as relaes de trabalho da citricultura no so

    estudadas pela historiografia local. Na verdade, existe mesmo um a verso, de

    parte de setores das famlias tradicionais, segundo a qual o que fez piorar a

    - 37 -

    Thomas Cortado

  • qualidade de vida tenha sido a chegada "desse pessoal de fora".

    A seguinte fala de um antigo funcionrio da Prefeitura de Nova Igua

    u, pertencente a uma famlia tradicional, no individual, mas uma interpreta

    o corrente, presente nesse grupo. Este um trecho de uma entrevista concedi

    da imprensa do municpio:

    Revista - Se Nova Iguau j teve uma sociedade que gostava das grandes festas, hoje em dia est muito modificada. S se fala da violncia do lugar, da baguna administrativa, do esquadro, da corrupo. Por que voc acha que as coisas mudaram assim?Entrevistado - A cuipa no foi dos administradores, no foi dos empres-

    v rios. Houve por aqui uma expanso territorial [?] e populacional muitogrande e muito deficitria para o municpio. Ficou muito difcil para os governantes fazer qualquer coisa. Para os governantes estaduais, tambm.R Mas quem deu facilidades - e continua dando para os loteamen- tos irregulares, foram os administradores, os poderosos, que deveriam ter previsto o caos urbano para o qual estavam contribuindo.E - Bem, dentro da lei havia a exigncia de que os loteamentos fossem todos dotados de infraestrutura bsica, de gua, luz, saneamento. Mas havia uma procura muito grande e a maioria dos que vieram para c era cada tipo! - era gente sem recursos, carente, que a gente via que no tinha uma preocupao com a cidade na qual tinham vindo parar. A foi que a coisa degenerou. A cidade cresceu incontrolavelmente. As pessoas j no se conheciam. Eu, felizmente, ainda me param muito na rua, me cumprimentam, mas em geral difcil voc reconhecer qualquer pessoa num centro movimentado como o de Nova Iguau." (Nosso Jeito, 1986:3)

    Segundo esta interpretao, os problemas contemporneos teriam como

    causa a vinda de tanta "gente sem recursos", sem que se coloque em questo a

    intrincada teia de relaes que presidiram a implantao dos loteamentos, em

    que proprietrios de terra habitantes do municpio e funcionrios da Prefeitura

    Municipal foram alguns dos agentes envolvidos.

    Alm de tal aspecto, verifica-se tam bm a oposio entre uma cidade

    rural e uma cidade predom inantemente urbana, que "cresceu incontrolavelmente",

    tornando annimos os tradicionais (essa tam bm uma queixa corrente entre es-*

    se grupo). Encontra-se aqui uma das questes centrais abordadas pelos autores

    que tornaram a cidade um objeto sociolgico, quando apontavam o anonimato

    como uma das caractersticas das metrpoles (SIMMEL, 1979:14-15; PARK,

    - 3 8 -

    Thomas Cortado

  • 1979:45; W IRTH, 1979:101).

    Inegavelmente, o crescimento das cidades a partir da Revoluo Indus

    trial trouxe para os habitantes de reas metropolitanas um mundo mais hetero

    gneo, com o desenvolvimento da diviso social do trabalho e crescimento popu

    lacional devido migrao (sobre esses aspectos ver, por exemplo, W IRTH,

    1979). Mas cabe tambm, quando se adota uma perspectiva relacionai e se bus

    ca desidealizao de imagens de campo e cidade, indicar que a afirmativa do

    entrevistado, segundo a qual com o crescimento da cidade "as pessoas j no se *

    conheciam", no se encontra isolada de noes de senso comum generalizadas a

    prposito do mundo rural.

    Em relao a esse aspecto, poder-se-ia assinalar a idealizao presente

    na noo de uma cidade "em que todos se conheciam", indicando-se que, em bo

    ra anteriorm ente a cidade e o municpio tivessem um m enor nm ero de habi

    tantes, sendo mais facilmente identificveis, certam ente no se tratava de uma

    organizao social de to pequena populao e to incipiente diviso social do

    trabalho, a ponto de toda a populao poder se conhecer.

    Em outros termos: se, para aqueles que estavam na cidade antes dos

    anos 1950, o nmero de pessoas desconhecidas aumentou, isso no significa que

    anteriorm ente haveria uma co