cunhal

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Nº 318 – 2 A 9 DE JUNHO DE 2010 – 2,95 (CONT.) AS CONFISSÕES DA MULHER QUE CRIOU SEXO E A CIDADE A VIDA DE CANDACE BUSHNELL ESTUDOS MOSTRAM QUE OS BEBÉS TÊM SUPERPODERES TELEPATIA E VISÃO ESPECIAL SELECÇÃO LEVA NA MALA 4.110 GARRAFAS DE ÁGUA COMO SE PREPARA O MUNDIAL O quinto aniversário da morte do líder histórico do PCP assinala-se este mês. Nesta foto inédita, tirada pelo próprio Cunhal com tripé e temporizador, está abraçado à filha Anita O meu pai mandava-me livros de BD belga: traduzia os diálogos e colava-os por cima dos originais Quando era miúda disse-lhe: ‘Pai, estás mais gordo’. No resto das férias, sempre que me via a olhar para ele, fazia uma cara exagerada de inocente e punha-se a assobiar enquanto encolhia lentamente a barriga Um dia, disse-me para me sentar na areia e construiu um incrível carro de corrida à minha volta

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Nº 318 –2 A9 DE JUNHO DE 2010 –! 2,95 (CONT.)

AS CONFISSÕESDAMULHERQUE CRIOU SEXO EA CIDADE

AVIDADE CANDACE BUSHNELL

ESTUDOSMOSTRAMQUEOSBEBÉS TÊMSUPERPODERES

TELEPATIA E VISÃO ESPECIAL

SELECÇÃO LEVANAMALA4.110 GARRAFASDE ÁGUA

COMO SE PREPARAOMUNDIAL

Oquintoaniversáriodamortedo líderhistóricodoPCPassinala-seestemês. Nesta foto inédita,tiradapelopróprioCunhal comtripéetemporizador,estáabraçadoà filhaAnita

Omeu pai mandava-me livros de BD belga: traduzia os diálogos e colava-os por cima dos originais

Quando era miúda disse-lhe: ‘Pai, estás mais gordo’. No resto das férias, sempre queme via a olhar paraele, fazia uma cara exagerada de inocente e punha-se a assobiar enquanto encolhia lentamente a barriga

Um dia, disse-me para me sentar na areia e construiu um incrível carro de corrida à minha volta

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Destaque

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OMEUPAITINHA SEMPRECOCA-COLAPARADARAOSNETOS

Nanoitede3deJaneirode1960,Ál-varo Cunhal e mais nove presospolíticos evadiram-sedoFortedePeniche. Deregressoàclandesti-nidade,após 11 anos deprisão,o

líder histórico comunista apaixonou-se porIsauraMoreira. Eletinha46 anos,ela19. Pas-sados alguns meses, a25 de Dezembro nas-ceu a sua única filha: Ana Cunhal.

A família passou os meses seguintes emvárias casas clandestinas. Mas aeleiçãodeÁl-varo Cunhal para secretário-geral do Parti-do Comunista Português – cargo vago des-de a morte de Bento Gonçalves, em 1942 –,levou o PCP aenviá-lo paraMoscovo. Foiaí

que Anita– como o paiatratava– passouosprimeiros anos devida. Quandoocasalsese-parou, em 1966, Isaura Moreira e a filha fo-ram viver para Bucareste, na Roménia. Sóvoltaram a Portugal após o 25 de Abril.

Ana Cunhal, 49 anos, nunca quis dar en-trevistas. Vivehámuitotemponoestrangei-roesóaceitoufalaragora,quandoestãopres-tes a assinalar-se os cinco anos da morte deÁlvaro Cunhal– a13 de Junho – “porneces-sidadedesepararaverdadedamentira”. Nãoquis ser fotografada, revelar a cidade ondevive ou falar dos filhos. Só de sie do seu pai:“Jáqueseinsisteemfalardele, quepelo me-nos se conte a verdade.”

AnaCunhal.CincoanosdepoisdamortedolíderhistóricodoPCP,aúnicafilhadeÁlvaroCunhalfalapelaprimeiravezdopaiedosmomentosemfamília.Naspáginasseguintes,osamigosrecordamohomemqueconheceram.PorNunoTiagoPinto

AnaCunhal, aos19anos,comopai a assistiràaberturadosJogosOlímpicosdeMoscovo,em Julhode1980

!AKG/ATLÂNTICO

PRESS

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mões tinhamouvidodizerqueeuerafilhadeÁlvaro Cunhal mas, como não tinham a cer-teza,nãohesitavamemvirperguntar-me.To-dos os dias, várias vezes por dia. A obsessãoera tal que eu mentia-lhes só para me deixa-remempaz.Detestavaserumpontodecurio-sidadesó porterumpaiconhecido. Aeuforiacolectivaincomodava-meao ponto deeufal-tar às aulas. AEstufaFriano Parque EduardoVII era um bom sítio para estudar em paz.Longe dos “é verdade que és afilhade…?”ComoeraÁlvaroCunhal comopai?Maravilhoso. Umserhumanofantástico. Foiecontinuaaserumaverdadeirafontedeins-piração do ponto de vista humano. Pacien-te. Indulgente. Eu era capaz de ir acamparpara o Algarve sem dar satisfações a nin-guém. E os meus pais (que continuaramsempre a falar um com o outro) preocupa-díssimos,claro. Umdia,semqualquercons-ciência da aflição deles, voltei para casa domeu pai com a mochila às costas. Qualqueroutro teria feito um escabeche. Ele, apesardos dias de calvário sem saber por onde euandava – mas calculando que teria levadopouco dinheiro –, a primeira coisa que meperguntoufoi: “Jáalmoçastefilhita?” Oimen-so respeito que eu tinha por ele vinha sem-pre da minha admiração, nunca da sua im-posição, que era inexistente.Serfilhadeumafiguramíticaeraumpesoouuma responsabilidademuitogrande?Houve quem acreditasse e mesmo insistis-sequedeviaserumaresponsabilidade. Sem-pre recuseiesse papel. Queriaserlivre de co-meter erros na minha vida como qualqueroutrapessoa, semterde passarporum“jul-gamento público”. E consegui. Os que que-riam fazer de mim um exemplo acabarampor desistir. Afastei-me deles, deixando-ossem ponta por onde pegar.Aspessoasesperavamque se ligasse aoPCPporser filha do secretário-geral?Não vouespecularsobre o que amaioriadaspessoas esperava. Porque não sei. Mas nun-caouvininguémcriticarabertamenteo factode eu não me ter metido na política. Talvez,inicialmente, alguns camaradas mais próxi-mos do meu paitenham imaginado esse ce-nário como óbvio… atémeteremconhecidomelhor.Maschegou a estar ligada aoPCP?Nos anos de liceu passei como um cometapela União de Estudantes Comunistas. Nãome lembro porque entrei, mas lembro-meporqueéquesaí. O ambientenaquelaépoca,aindatão próximado frenesimdaRevoluçãodeAbril,acaboupordesencadeartensõesen-

Querecordaçõestemdoseupainaépocaemquevivia emBucareste?Passei todas as férias de Verão com ele. Eramuito brincalhão, paciente, carinhoso… eueraumamaria-rapazquegostavadetreparàsárvoresecavarburacosnaareiadapraia“parachegar ao outro lado da terra”. Ele só dizia:“Anita,põeochapéunacabeçaeocremeparao sol nos ombros. Olha que o sol está muitoforte.” Uma vez disse-me para me sentar naareiae construiuumincrívelcarro de corridaàminhavolta. Pareciamesmoqueestavasen-tada lá dentro. Nem mexia os dedos dos péspara não perfurar a parte da frente. Depois,enquanto eu não quis sair, ia-me trazendoconchas para eu decorar o “painel de instru-mentos”. Aoutra maneira de eu estar quietamais de 30 segundos era quando ele me de-safiavaparaumapartidade xadrez. Não per-dia de propósito para me ajudar a desenvol-ver as faculdades de um bom jogador. Cadavezqueperdiadizia-lhe: “Maisuma.” Eelefi-cava a jogar muitas “mais umas” até eu aca-bar por ganhar.Eduranteo restodoano?Recebiafrequentementegiríssimas caricatu-ras de gatos, que ele inventava, desenhava ecoloria à mão. Gato de bicicleta, gato a fazeresqui, gato-bombeiro, gato-capitão de umbarco,gatodorminhocoacairdesono…Ohu-mornessascaricaturaseraprecioso. Eletinhaum jeitão para desenhar, embora costumas-se dizer que aquilo eram “só uns bonecos”.Mandava-me regularmente As Aventuras deSofia, uma série de livros de banda desenha-da belga que eu adorava e que só havia emfrancês. O meu pai traduzia todos os diálo-gos paraportuguês,ecolava-os porcimadosoriginais, bemrecortados, retocando os con-tornos. Mais tarde começou a enviar-me asaventuras deTintim, mas sem traduções. Es-tava numa boa idade para aprender francês.E aprendibastante.

Construiuumincrível carrode

corridaàminhavolta.E trazia-me conchinhasparaeudecoraro painelde instrumentos

!

!Comofoi amudança para Portugal?Sabíamos o que se estava a passar durante o25 deAbrileeraevidentequeíamos voltaraonosso país. Se bem me lembro, por volta deJunho ou Julho de 1974, regressámos numavião comcrianças cujos pais tinhamestadoforade Portugal durante aclandestinidade ecompassageiros quenadatinhamavercon-nosco.Quaisasprincipais diferenças?Falava-sedepolíticaportodoolado.OPaíses-tavanumfrenesimpermanenteetodaagen-te queriaparticipar nessaaventura. Os liceustransformaram-seemcamposdebatalhaen-tre os queques, os MRPPs, os trotskistas, oscomunas, etc. Os outros alunos no Liceu Ca-

FOTOSD.R.

ÁlvaroCunhal napraia,nadécadade1930. AnaCunhal, em2007,apintaraparededeumamigo

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DESTAQUE

52 2 JUNHO 2010 SÁBADO

serra de Sintra, à Praia das Maçãs ou tentarapanhar o espectacular pôr-do-sol no Guin-cho. As conversas eram sempre sobre coisasinteressantes ouentão sobrecomo euestavae o que tinhafeito. Desabafeimuito com ele,que sempre foi um bom ouvinte. Dava-mebonsconselhos,massemmecriticarnemim-por asuaopinião.Era umpai presente?Sempre que possível, apesar das condições.Éverdadequeeletinhaumsentidodehumorfinoeapurado?Ele fazia-me sempre rir. Quando era muitomiúda, durante umas das nossas férias depraia, olhei para ele em fato de banho e dis-se-lhe: “Pai,estásmaisgordo.”Duranteores-to das férias, sempre que olhava para ele, elefazia uma cara exagerada de inocente e pu-nha-se a assobiar enquanto encolhia lenta-menteabarriga,atéeunotaredesataràs gar-galhadas.Dizemqueelequandose zangava nunca gri-tava nem sedescontrolava. Éverdade?Sim. Podiaficardesgostoso,desapontadoouindignado, mas nuncalevantavaavoz. Lem-bro-me de uma vez ter sido eu a levantar avoz contra ele. Tinha uns 17 anos e aquilodeveter-lhedoídoimenso. Eelesódissecomuma voz baixa mas ferida: “Já viste como éque estás afalarparao teu pai?” Sentique ti-nhacometido umaincrívelinjustiça. Dei-lhelogoumgrandeabraçoachorarderemorsos.

tremimealíder,queacharaque,como“filhadodito-cujo”,eu“tinhaaobrigação”desatis-fazercertoscritériosquenadacondiziamcomapessoaqueeuera.Osermãoqueajovemjul-gouserboaideiapregar-meresultounomeurápidoafastamento. Foiogolpefatal. Játinhaaversão ao fanatismo do lado direito. E ago-ra com essa, tinha-me apercebido que fana-tismo não tinhapreferênciapartidária. E queindivíduos dessetipo semeteriamnaminhavidase eu os deixasse.Oseupaicontava-lhehistóriasdoquepassouna clandestinidadeou na prisão?Nunca. Só me contava essas histórias se eulhe pedisse. Um dia, quando jáviviaem Por-tugal, fuiao cinemacomuns amigos verumfilmede1973,chamadoPapillon. Acertaaltu-ra,oSteveMcQueen,queestavadetidonumaprisão numa ilha, calcula o movimento dasondas do mar para escapar sem ser atiradocontraasrochas. Foidepoisdeverofilmequepedi ao meu pai para me contar como tinhafugido da prisão de Peniche. Devia ter 14 ou15 anos. Já tinha lido e ouvido falar sobre afuga, mas a história contada por ele deu-meessasensação de viver um filme.AAnaviviacomamãe.Disse-sedurantemui-tosanosqueoseupaimoravanumpaláciodopartidona estrada doPaçodoLumiar.Issoéumaficçãoquesó quemnãoconheceuo meupaipodeacreditar. Elenuncairiaviverparaumpalácio,nemqueoobrigassem.Mes-mo quando lhe ofereciam privilégios recu-sou sempre. Vivia numa casa modesta, masarranjadacomgosto,nazonadeRiodeMou-ro. Amobília era simples e barata mas boni-ta. Tinhanas paredes quadros maravilhososdo meu avô Avelino, desenhos meus e foto-grafias dos meus avós, minhas, daminhatiae dos meus primos. Em cimadamesinhadecabeceira, tinhafotografias daFernandaBar-roso[asuasegundamulher]. Nãoeramretra-tos tirados por um fotógrafo num estúdio.

Emcasa,omeupai tinhaum

laboratóriofotográfico.Ensinou-me tudo o queseisobre fotografiaantesdaeradigital

Eram fotos apreto e branco, tiradas e revela-dasporeleouoferecidaspelairmã: gargalha-das entre família, passeios à beira-mar, osmeus primos narelvade umparque, euafa-zercaretas… Naquelaépocao meupaitinhauma pequena divisão da casa transformadaemlaboratóriofotográfico. Ensinou-metudooqueseisobrefotografiaantes daeradigital.Coleccionava livros de arte. Gostava de arte-sanato português. Cozinhava deliciosos pe-tiscos. Lavavaaroupadele(eaminha, quan-doeupassavaofim-de-semanaemcasadele).Nunca teve uma empregada, não por umaquestão de segurança mas por uma questãode princípio.Dizia-se que ele a ia buscar com uma boina,para disfarçara cabeleira branca...Erasobretudoeuqueo“iabuscar”. Iatercomeleao Centro deTrabalho do PCP eeletenta-vasairmais cedo e íamos darumavoltaaté à

O secretário-geraldo PCP tinhauma enormeadoração pela filha.Aproveitava osmomentos livrespara passearcom ela pelaserra de Sintraou vero pôr-do-solna praiadoGuincho

LUSA

AKG/ATLÂNTICO

PRESS

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Sintra. Gostava do mar, do cheiro de mare-sia, do somdas ondas edo assobio do vento.E se estávamos por perto não perdia a opor-tunidade de estar connosco.Eledissenumaentrevistaqueerabomdança-rino.Algumavezoviudançar?Não. Mas ouvi-o várias vezes fazer grandeselogios às faculdades de dançarino do Mi-chaelJackson.Sempreelogiouartistascomta-lento.Eleachavaque tudooquevinha dosEstadosUnidoseramauouestava receptivoa aspec-tosda cultura americana?Bebíamos Coca-Cola se nos apetecesse. Seos netos estivessem de visita, havia sempreuma garrafa de dois litros no frigorífico emais uma ou duas de reserva na despensa.Apreciávamos umbomfilme,dos quais mui-tos eram americanos. Gostávamos de Ste-ven Spielberg, adorávamos os Simpsons.Casei-me com um americano e o meu paigostava imenso dele e vice-versa. Vivemosactualmente nos Estados Unidos. Claro queseopunhaapolíticas invasivas emilitaristas.E não gostava da faceta monopolizante dosistemacapitalista. Mas isso nadatinhaavercom o resto. Nacabeçado meu paias coisasnuncaforama“preto e branco”. Eraumho-mem de convicções, mas tinha consciênciada complexidade das coisas.Oqueaconteceu aoespólio dele? Ficou paraa família ou foi entregueaopartido?Foi-meentregue.Deixou-metudooquetinhadematerialeimaterial. Paraquemmedirari-queza apenas em valor monetário, direi quenão foi nenhuma fortuna. Mas para quem amedir em valor espiritual, emocional e inte-lectual, posso afirmar que herdei um tesou-ro de um valor e tamanho inigualáveis.Qual era a relaçãodele comodinheiro?Davatudo o que tinha. Viviae gastavamuitomodestamente. !

Como é que ele reagiu ao saber que ia seravô?Apoiou-me completamente.Ele era realmenteumavôbabado?Avôepaibabado.Orgulhava-semuitodenós.Dizia-me sempre: “Vou ter de ir buscar umlençol paralimpartodaestababa”... um len-ço não chegaria.Porqueéquedecidiu vivernoestrangeiro?Numadasminhasviagensdemochilaàscos-taspelaEuropadescobriacidadedeGante,naBélgica. Deviateruns18anos. Foiamoràpri-meiravista. Lembro-medeterpensado: “Umdiavireiviver paraaqui”. E fui.Emquepaísesviveu?União Soviética, Roménia, Portugal, Bélgicae Estados Unidos.Quegénerode contactomantinham?Escrevia-me. Telefonava-me. EuvinhaaPor-tugal sempre que podia.Ele ia visitar-vospara estarcomosnetos?Éramos nós que o vínhamos visitar. Assim,aproveitávamos paravisitarafamíliatodadeLisboa. Ficou com eles duas ou três vezes.Numa dessas vezes levou-os ao Centro Co-mercialdeCascais paracomerpipocas,ham-búrguereseiraocinema. Umdia,quandoes-tava só com a Fernanda [Barroso] e com omais novo, o meupaipediuao neto parade-senhar o que queria almoçar. Depois prepa-rou-lheo petisco talequaleguardouprecio-

Umdiapediuaonetopara

desenharoquequeriaalmoçar. Depoispreparou-lhe o petiscoe guardouo desenho

samente o desenho, que estava muito bom.Mais tarde mostrava-o, orgulhoso.Ondeéqueele ia passar férias?Devez emquando iaaMonteGordo. IaaLa-gos só de passagem paraespreitarapraiadaDonaAna, de que sempre gostou.Eletransportouparaavidaem“liberdade”oshábitosdosanosda clandestinidade?Só alguns. Mas teveboas razões parao fazer.Ninguémgostadeserreconhecidoeaborda-domilvezes pordia. Privacidadeéumarega-liaparaquem quase nuncaatinha.Eletinhaumaimagempúblicadeumhomemduro. Era assim emprivado?Algumas pessoas confundemdurocomcoe-rente, responsável, íntegro, corajoso e since-ro. Eletinhaumavisão parao nosso mundo.Deu tudo o que tinha e o que não tinha paraalcançar esse sonho. Nessa visão havia me-nos injustiça, mais igualdade, mais respeito.As pessoas podem ou não estar de acordocom o que ele queria – aliás, sempre para osoutros e nunca para si –, mas daí a dizeremque ele eraum homem duro… Nunca. Mui-to pelo contrário.Eletinhamomentosdedescontracçãoouatéos tempos livreseramdedicadosà política?Tempos livres eramtempos livres. Desenha-va e pintava quando podia. Gostava de mú-sica clássica, de documentários sobre a vidaselvagem,deliteratura,depasseiosàserrade

Álvaro Cunhalenviava paraa filha caricaturasde gatose bandadesenhada.Em casa tinhaquadros seus,do seu paie desenhosda filhae de um neto

RUIOLIVEIRA

AVANTE

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DESTAQUE

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A30 de Abril de 1974, Álvaro Cu-nhal recebeu o primeiro banhode multidão após 13 anos de exí-lio, 11 de prisão e oito de clan-destinidade. Tinha acabado de

desembarcar no aeroporto de Lisboa, vin-do de Paris. Era o último dos principais di-rigentes políticos aregressaraPortugalapóso 25 de Abril. Emocionado, disse a CarlosBrito: “Conseguiste umaboamobilização.”Momentos depois estava a subir para umcarro de combate para agradecer os aplau-sos. Foi uma recepção apoteótica. Mas foitambémummomento breve. Pouco depoisentrou numa espécie de semiclandestini-dade que durante décadas manteve em se-gredo tudo o que dizia respeito à sua vidapessoal.

Umdos grandes mistérios eraasuacasa.O líder comunista aparecia em público,mas poucos sabiam onde vivia. Nos pri-meiros dias depois do seu regresso ficoualojado na casa de Maria das Dores Medei-ros e Ivo Madeira. Depois, o Partido Co-

munista Português (PCP) arranjou-lheuma casa na zona de Rio de Mouro. Viveutambém perto da praia – mas não se sabeexactamente onde. Disse-o àjornalista Ca-tarina Pires numa entrevista para o livroCincoConversas comÁlvaroCunhal: “Quan-tas vezes não fui à praia logo cedo, antesde vir para o trabalho. Vivia num sítio queme permitia de passagem sair do carro e

ir à praia e estar ali um bocado.” Nos anos90 a sua residência oficial era na Rua Sou-sa Martins, n.º 17, em Lisboa – que era afi-nal a casa da irmã e onde nunca terá vivi-do. Só no fim da vida a sua morada nosOlivais foi conhecida.

As deslocações também eram compli-cadas. Mudava de carro entre um local eoutro por questões de segurança. “O Paísesteve quase em guerra civil. O Álvaro era

DESTAQUE

NUNOTIAGOPINTO

amado, mas também odiado”, recordaDo-mingos Lopes, que foi secretário do lídercomunista quando ele era ministro sempasta no II Governo Provisório. “Conheci-o nessa altura. Era mais baixo e mais bar-rigudo do que pensava”, diz. “E mais des-contraído também. Chamou-me a S. Ben-to e perguntou-me se percebia algumacoisa de Direito. Respondi-lhe que estavaa acabar o curso e ele disse-me: ‘Não foiisso que perguntei. Perguntei se percebiasalguma coisa de Direito [risos].’ Depoisquis saber se eu gostava de papéis. Res-pondique nem porisso e ele concluiu: ‘En-tão se calhar ficas aqui.’” Ficou.

NAQUELA ÉPOCA, AS reuniões do Conse-lho de Ministros prolongavam-se pelamadrugada. Os secretários ficavamàespe-

ra do final. E foi numa dessasocasiões que Domingos Lopesconheceu o “lado solidário” deÁlvaro Cunhal. “Numadas noi-tes encomendámos comidaparaduas pessoas – mas acabá-mos por ficar uns quatro. Foi

quando o Álvaro apareceu para jantar. Aoverque tínhamos poucacomida, disse quejá tinha jantado e que o Vasco Gonçalvestinha pedido leitão e não sei que mais.Pouco depois tocouo telefone. Erado Con-selho de Ministros para saber se o Álvarojá estava despachado porque tinha desci-do para comer connosco.”

Por vezes, as reuniões de trabalho nasede do PCP também duravam até de ma-

ApósasreuniõesnoPCP,dormiaumashorasnosbelichesepassavaa sua camisaa ferro

Consideravaoamordacompanheirauma“granderiqueza”.Gostavadecozinharearrumavaopratoquandoacabavadejantar.E nãodeixavaumasenhorasegurar-lheaporta

A vidadeÁlvaronaintimidade

HISTÓRIA.A13DEJUNHOPASSAMCINCOANOSDAMORTEDECUNHAL

2 JUNHO 2010 SÁBADO

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drugada. Nessas ocasiões, Álvaro Cunhalnem ia a casa. Dormia algumas horas nosbeliches dos seguranças e até foi visto apassar a ferro a própria camisa. Aprendeu

a fazer todas as tarefas domésticas duran-te a clandestinidade. Manteve os hábitosno exílio em Moscovo, onde, entre 1961 e1964, viveu num apartamento perto do

Álvaro Cunhal (1913-2005), fotografadonaentradada sededoPartidoComunistaPortuguês,naRuaSoeiroPereiraGomes,em1981

Palácio dos Pioneiros com a companhei-ra, Isaura Moreira, e a filha recém-nascida,Ana. “Sempre que acabávamos de almo-çar, o Álvaro levantava-se, lavavao seu pra-to e arrumava-o”, conta à SÁBADO LuísaBasto, que na época estudava na capitalsoviética.

AMULHER QUE AINDA em Moscovo gra-vou a primeira versão de Avante Camara-da tornou-se visita habitual da família Cu-nhal. O secretário-geral do PCP afeiçoou-se a ela. Tanto que considerava Luísa suaafilhada. Foi ele, aliás, quem lhe escolheuo pseudónimo quando ela chegou a Mos-covo – o seu verdadeiro nome é Úrsula Lo-bato. Ela via-o como um pai. “Estava sem-pre preocupado connosco, se estávamosbem e se suportávamos o frio. Obrigava-nos a limpar as solas dos sapatos para ti-rar o gelo e ver se tinham buracos. E às ve-zes tinham”, diz. !

RUIOCHOA

PUB

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O convívio terminou quando Álvaro Cu-nhal e a companheira se separaram, porvolta de 1965. Isaura Moreira (que aindahoje é funcionária do PCP) e a filha, Ana,mudaram-se paraBucareste, na Romé-nia. O secretário-ge-ral do PCP dividia-seentre Praga, Mosco-vo e Paris. Mas só porquestões de trabalho.A sua cabeça estavaem Bucareste. Passa-va horas a desenharcaricaturas de gatos ea traduzir As Aventu-rasdeSofia, umaban-da desenhada belga,que enviava para a fi-lha. E reservava osmeses de Verão parapassar férias na praiacom ela.

Foi na sede da RuaSoeiro PereiraGomesque, nos primeirosanos da década de1980, o líder comu-nista passou váriasvezes a véspera deNatal. Fazia questãode estar com os seguranças que ficavamde serviço. “Estivemos lá com ele muitasvezes. Jantávamos em casa e depois íamoslá ter com os miúdos”, recorda Luísa Bas-

to. “À meia-noite comíamos umas fatiasdouradas e umas gambas com eles. O Ál-varo reconhecia a lealdade daqueles ho-mens, que eram capazes de se pôr à fren-

te de uma bala porele”, diz João Fernan-do, o companheiro deLuísa Basto. “Masquando lá chegáva-mos ele queria era sa-ber dos miúdos. Brin-cava com eles e quan-do estavam cansadosia deitá-los nos sofás.De cinco em cinco mi-nutos iaverse estavambem”, conta a afilhadade Cunhal.

Em paralelo, manti-nhaum código de con-duta que mesmo nopróprio partido eravisto como demasiadorígido. “Não recebiaofertas, a menos quefossem consideradasofertas ao partido, aquem competia deci-dir o destino que lhesdava. Não assistia aolançamento de livros

(...) para não dar a ideia de alguma prefe-rência por parte do partido. Não aceitava,obviamente, convites para almoçar nempara jantar em casa de camaradas para não

parecer que era o partido a fazer distin-ções. Mas podia aceitá-los de artistas ouintelectuais amigos do partido, pois nes-se caso entendia-os como trabalho políti-co”, revela Carlos Britoem Álvaro Cunhal, SeteFôlegos do Combatente.

As sucessivas espe-culações sobre os mis-térios da sua vida leva-ram-no a revelar umpouco de si numa en-trevista a Joaquim Le-tria, no programaDirec-tíssimo, naRTP2, a15 deNovembro de 1978. Aídisse levar uma vidanormal: “Pago os meusimpostos, descontopara a Previdência, ga-nho um salário mensal,como funcionário domeu partido, de 7.533escudos [que corres-ponderia hoje a 517,77euros], salário que éigual para todos os quenele trabalham.”

No entanto, muitasdas suas despesas, como as deslocações e acasa onde vivia, eram suportadas pelo PCP.Até o fato de fazenda inglesa e a gravata deseda com que se apresentou no programatinham sido oferecidas ao partido.

NÃOENRIQUECEUnapolítica. “Erade umaintegridade incrível. Se fosse preciso tinhaum tratamento VIP e o Brejnev arranjava-lhe um avião privado. Mas o que deixa deriqueza são os livros e as pinturas”, dizDomingos Lopes. A fi-lha, Ana Cunhal, con-firma. “Davatudo o quetinha. Vivia e gastavamuito modestamente”,diz à SÁBADO.

Ana Cunhal regres-sou com a mãe a Portu-gal no Verão de 1974.Foiinscritano LiceuCa-mões, onde depressacorreu a notícia de que era filha do lídercomunista. Ana não gostava de ser alvo dacuriosidade dos colegas e chegou a faltaràs aulas. Naquela época, o secretário-geraldo PCP tinhaumaagendapreenchida. Masnão escondia a preocupação com a filhaaos mais próximos. “Ele tinha uma ado-

Oedifício dosOlivaisonde o líder comunistaviveu nos últimos anosde vida; à direita, no

jardim do Torel

AS CASASDE ÁLVARO CUNHALCONHECIDASAPÓSO 25 DE ABRIL

O LÍDER COMUNISTASEMPREMANTEVE ASUAMORADAEM SEGREDO. MESMO EM LIBERDADE

•Quando regressou aPortugal ficou nacasa deMaria dasDoresMedeiroseIvoMadeira –umantigopontodeapoiodoPCP

•Mais tarde, opartidoarranjou-lheuma casa na zona deRiodeMouro

•Numaentrevista nosanos90dissequeviveu pertoda praia, ondepara-va a caminhodo trabalho

• Garantiu quemorava naRua SousaMartins, nº 17, em Lisboa–queera a casa da irmã

• Sópertodo fimda vidaa suamorada foi conhe-cida: era naRua deBenguela, nosOlivais

Nunca tivenenhumamigo fascista.Mas não souapenas amigode camaradasdomeupartido. Sou-oe sou capazde sê-lo depessoas quetêm opiniõesmuito críticasem relação aconcepções eposições doPCPenaturalmenteàsminhas

CincoConversascomÁlvaroCunhal1999

Aliança é coisaque emnenhumascondiçõesusaria

Antena 1SemMargem2 de Junho de 1981

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LUSA

RUIOCHOA

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60 2 JUNHO 2010 SÁBADO

ração enorme pela Anita e chegou a pedir-me para falar com ela porque estavaapreensivo”, recorda Helena Neves, ex-

membro do ComitéCentral do Partido Co-munista e que na épo-ca era casada com ochefe de gabinete deCunhal, Joaquim Gor-jão Duarte. “Acho que

funcionou.” Domingos Lopes acrescenta:“Cheguei a ver livros de banda desenhadaque ele fez para a filha.”

Anaiater com o paiao Centro de Traba-lho do PCP e ele tentavasairmais cedo parapassearem, discretamente. Defendiaao má-

ximo a sua privacidade.Por várias vezes ÁlvaroCunhal recusou mostraracasae fotografias de in-fância, como faziam oslíderes de outros parti-dos. Gabava-se disso.

Foi com surpresa quedecidiu quebrar essa re-gra numa entrevistaconduzida por CarlosCruz, na RTP2, a 6 deNovembro de 1991. “Es-távamos afalar do secre-tismo da sua vida quan-do ele abriu a bolsinhapreta que trazia sempree tirou uma fotografiada filha e dos netos”, re-corda o apresentador àSÁBADO.

A sua relação comFernanda Barroso foimantidaemsegredo du-rante anos. Os dois te-

rão começado a namorar no fim da déca-da de 70. Nos primeiros anos só os maispróximos souberam da relação. “Ele sen-

tia necessidade de falar dela e fazia-o comuns quantos camaradas com quem tinhamais intimidade, mas sempre arranjandouns certos pretextos de trabalho”, recordaCarlos Brito emÁlvaroCunhal, Sete Fôlegosdo Combatente. “Um dia (...) veio pergun-tar-me se sabia se a Fernanda já tinha idoàUnião Soviética. Começavaassim: ‘Aque-la camarada da DORL [Direcção da Orga-

nização Regional de Lisboa]...’ E eu, feitomanhoso, perguntava: ‘A Marília?’ Entãoele lá dizia ruborizado: ‘Não, a Fernanda.’Sugerique lhe telefonasse. Respondeu quejálhe tinhatelefonado nesse diae não que-ria insistir, senão o que é que as camara-das dos telefones iam pensar. Ora, já todaa gente sabia dos telefonemas, que eram

comentados com sorrisos de simpatia.”Mas não eram só as telefonistas a saber

do romance. “Começámos a suspeitarquando ela, que erado Movimento Demo-crático das Mulheres, passou a aparecermais vezes na Soeiro Pereira Gomes. O Ál-varo era naturalmente cordial. Mas comela era menos quando estavam várias mu-lheres. E nós percebemos essas coisas”,

recorda Helena Neves.Asua atenção aos pormenores

era também o que atraía muitasmilitantes comunistas. “Eramui-to sedutor e sempre atento. Umavez entrevistei-o para o Avante! eele reparou que estava a tremer.

Perguntou-melogo o quesepassavaesees-tava bem. Às vezes esse interesse era malinterpretado”, lembraaantigamilitante co-munista.

ÁLVARO CUNHAL e Fernanda Barroso esti-veram juntos mais de 20 anos. Faziam fé-rias no Algarve, em Monte Gordo. “Ia paraa praia como vai toda agente, iaemcabelo, por-que gosto de apanharsol na cabeça, sem ócu-los”, disse aCatarinaPi-res numa das entrevis-tas para o livro CincoConversascomÁlvaroCu-nhal. “E como muitasvezes fui para a praiacomumapessoapróxi-ma, que gosta de apa-nhar conquilhas com odedo do pé naareiaaes-tragar as unhas (...), euàs vezes também apanhava conquilhas.”Considerava o amor de Fernanda Barroso“umagrande riqueza” davida. Naentrevis-taaCarlos Cruz afirmou: “Se chegasse àmi-nha idade e não amasse estava morto.”

Cunhal tentavamanteremsegredoonamoroecoravaquando falava emFernanda

HelenaNevesfoi casadacomochefedegabinetede Cunhal.DomingosLopesfoi secretárioe responsávelpelasRelaçõesInternacionaisdoPCP

CarlosBrito recordaem livroepisódiospassadoscomCunhal durantemaisde30anos

Souapaixonadopor futebolcomomagníficodesporto eespectáculo.Em jovem,joguei (...).Havia até umacontradiçãoentre aminhaorientaçãopolítica, deextrema--esquerda, e ometergolos...porque eu eraponta-direita

Diário deNotícias21 de Dezembrode 1996

Gostomuitodeiràscompras

TSF, Grande Júri17 de Outubro de 1992

Ahomos-sexualidadeé uma coisatriste nasociedade,mesmomuitotriste, é umaopinião queeu tenho

RTP2, CarlosCruz–Quarta-Feira6 de Novembrode 1991

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FOTOSD.R.

NATÁLIAFERRAZ/CM

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“Ele era muito carinhoso com ela”, con-taUrbanoTavares Rodrigues,amigodolíderhistórico comunista. “E ela também. Erauma relação muito bonita.” O casal jantouvárias vezes na casa do escritor, que salien-ta o sentido de humor de Álvaro Cunhal.“PubliqueiolivroAFlordaUtopia,querepre-senta as revoluções francesas de 1848 e deMaio de1968. Quando o liao Álvaro eledis-se: ‘É muito bonito, estámuito bemescrito,mas nãoconcordonadacomisso. Devias erater escrito sobre o Outubro russo.’”

No seu livro, Carlos Brito recorda outrasituação, passada naChecoslováquia, em1967, antes daconferên-cia dos Partidos Comu-nistas. Álvaro Cunhaljuntou-se ao grupo deportugueses e, com arsério, disse: “Estive apensar que a nossa de-legação não foi bem es-colhida.” Os três que oouviam puseram logo olugar à disposição. Foiquando Cunhal obser-vou, com um sorriso:“Viemos para uma Con-ferência de Partidos Co-munistas da Europa,mas afinal de nós osquatro o único europeusou eu, o Manuel [Ro-drigues da Silva] nasceuno Brasil, a Cândida[Ventura] em Moçam-bique, o [Carlos] Britoem Moçambique.”

Foi durante as muitasviagens que alguns companheiros de par-tido conheceram melhor Álvaro Cunhal.“Falávamos das coisas mais incríveis.Lembro-me de que em Viena ele me fez

uma descrição deslumbrante dos dese-nhos e caricaturas de [Pieter] Bruegel [pin-tor holandês do Renascimento]”, lembraDomingos Lopes, que foi o responsávelpelas Relações Internacionais do PCP.

Foi também em Praga que Carlos Bri-to descobriu o entusiasmo e os conheci-mentos de Cunhal sobre a gastronomiaportuguesa. “Sobretudo em relação aos

nossos queijos e vinhos”, escreve no seulivro. “Passámos um jantar, no hotel dopartido, a falar de queijos. (...) No dia se-guinte foi-nos servido um almoço só dequeijos.” Já Carlos Carvalhas garante que

a cultura gastronómica deCunhal era muito mais vasta:“Sempre que saíamos em ini-ciativas partidárias ele sabiaexactamente o que se comiaem cada região.”

OCONHECIMENTO era também passado àprática. Além de apreciador, Álvaro Cunhalera bom cozinheiro. Carlos Carvalhas re-corda um prato de “salsichas injectadascom molho”. O próprio líder comunistaadmitiu que fazia uns óptimos pastéis debacalhau. Domingos Lopes lembra-se davez em que lhe ofereceu um pato e decomo Cunhal lhe des-creveu ao pormenorcomo o preparou: “Sóse queixou de ter tidode o depenar.”

Normalmente almo-çavana cantina do par-tido, na Soeiro PereiraGomes. Ia para a filacomo os restantes “ca-maradas” e sentava-secom o seu tabuleiro. Devez em quando fre-quentava restaurantes.O da afilhada LuísaBasto, o Forno de Cima, no Pragal, Alma-da, era um deles. “Nem perguntava o quehavia. Comia o que vinha para a mesa. Ebebia um copo de vinho branco.”

Também gostava imenso de cinema.“Adorava Ingmar Bergman, Visconti eTarkovsky. Mas também filmes america-nos. Tinhaumagrande admiração peloPa-drinho I e II e pelo Era uma vezna América,

NoVerão ia para a praia deMonteGordo. Gostava deandarao sol e apanhava conquilhas

AsmulheresdavidadeCunhal noseufuneral: a companheiraFernanda,a filhaAna,ea irmãEugénia

OsfilmesdeCunhalTINHAUMAVASTA CULTURA CINEMATOGRÁFI-CA E ADMIRAVA PRODUÇÕES DE HOLLYWOOD

CHOVESOBREONOSSOAMORIngmar Bergman, 1946

SENTIMENTOLuchino Visconti, 1954

OSASSASSINOSAndrei Tarkovsky, 1958

ACONTECEUNOOESTESergio Leone, 1968

O PADRINHOFrancis Ford Coppola, 1972

APOCALYPSENOWFrancis Ford Coppola, 1979

ERA UMA VEZNA AMÉRICASergio Leone, 1984

Não sou bomcontadordeanedotas,masconheço-ase aprecio-as.O humortambémdá riquezae sal à vidae às opiniões

Diário Insular2 de Maio de 1999

Nãoperfilhoda ideia deque o homem,ao chegaracasa, se devasentar a verna televisão ofutebol ou a lero jornal e digaàmulher:‘Traz-me umcopo de águaou prepara eserve o jantar.’Num casalé bonitoo homemcomparticiparcom amulherna vidada casa

Diário deNotícias11 de Fevereirode 1993

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!FOTOSRICARDOPEREIRA

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do Sergio Leone. Até peloApocalypseNow”,diz Helena Neves, que teve longos deba-tes com Álvaro Cunhal sobre cinema. “Al-guns camaradas tinham preconceitos pelaviolência dos filmes americanos. Ele não.

Tinha uma perspectivamuito mais vasta.” Erafãde Steven Spielberg eWoody Allen. E até gos-tava da série de anima-çãoOs Simpsons.

Os últimos anos dasuavidaforam passadosno apartamento dos Oli-vais. A casa pertenceu aJorge Araújo, um desta-cado militante do Porto,membro do ComitéCentral, que nos anos 90a doou ao PCP. ÁlvaroCunhal e Fernanda Bar-roso mudaram-se paralá no fim da década. Éuma casa espaçosa, comcerca de 200 m2 e que

menos de um ano após a sua morte foiocupada por outro membro do PCP: temtrês quartos, umasala, umacozinhae umapequena divisão que servia de escritório.Poucos fora do partido lá entraram.

JUDITE DE SOUSA foi a única jornalistaque subiu ao nono andar daquele prédiona Rua de Benguela para a que viria a sera última entrevista televisiva de ÁlvaroCunhal. “A única coisa que ele me pediu

foi discrição em relaçãoa imagens no interiorda casa”, diz a jornalis-ta da RTP. “Entrámosdirectamente para a salae a entrevista foi feitanuma mesa de pinho. Aum canto tinha uma pe-quena mesa de apoiocom fotografias da filhae dos netos e uma pare-de com quadros quejulgo serem dele.”

Foinaquele escritórioque escreveu os últimoslivros. Fazia-o àmão. Nafase final da vida ditavapara a secretária, OlgaConstança. Urbano Ta-

vares Rodrigues era dos poucos que po-diam ver os manuscritos antes de serempublicados. “Às vezes sugeria alterações,

mas namaiorparte das vezes deixavacomoestava”, recorda.

A maioria das pessoas mais próximasdo líder comunista estava ligada ao PCP.Álvaro Cunhal chegou a dizer que nuncateve nenhum amigo fascista. Mas manti-nha relações de amizade com alguns dos

seus críticos e ex-companheiros – exceptocom aqueles que o criticaram em público,o que consideravaumatraição pessoal. He-lena Neves é um exemplo: “Um dia estavanuma consulta de oftalmologia quando omédico me disse que o Álvaro estavaláfora.Tinha saído do partido e achei que ele nãoia falar-me. Mas quando saí ele abraçou-me e beijou-me e à minha filha. Fez uma

grande festa. Mais tarde, quando acabei omestrado, telefonou-me adaros parabéns.E enviou-me um telegrama que vai ficarpara os meus netos.” A professora univer-sitária tem uma explicação. “Quando saído PCP li uma carta no Comité Central enão voltei a falar disso na imprensa.”

Afastado da política activa, Álvaro Cu-nhal pôde dedicar-se àpintura e à escrita. Mastambém à educaçãodos mais novos. “Umdia a minha filha tevede fazerum trabalho degrupo sobre o 25 deAbril e ele aceitou aju-dar”, contaDoraCarva-lho, a porteira do pré-dio. “Foram cinco me-ninas lá para casa edurante mais de uma hora ele explicou-lhes tudo. As miúdas vieram encantadas.E tiveram Excelente.”

Álvaro Cunhal não fazia vida de bairro.Só saía de casa para apanhar um táxi. EraFernandaBarroso, que morreu um ano de-pois dele, em 2006, quem ia à mercearia

que fica no bloco de apartamen-tos comprar os produtos do dia.Por vezes, trazia para casa algunsbolos. O lídercomunistanão. Cu-nhal resguardava-se ao máximo.Cumprimentava educadamentetodos os vizinhos e, mesmo com

quase 90 anos, mantinha o charme quelhe foi reconhecido durante toda a vida.Numa das últimas vezes que saiu de casasozinho, cruzou-se com a vizinha do lado,Sofia Pereira. Desceram juntos no eleva-dore, quando amulherse antecipou e quisabrir-lhe a porta, Álvaro Cunhal lançou:“Minha senhora, uma senhora não me se-gura a porta.” !

ÁlvaroCunhalera fãdeStevenSpielbergeWoodyAllen.EgostavadasérieOsSimpsons

Álvaro Cunhal teveum tratamentoVIPna União Soviética.Se precisasse,Brejnevarranjava--lhe um aviãoprivado. Mas nãoenriqueceu napolítica

Eu tambémfui um grandefumador,agora nãofumo. Mastambém fumeimuito. Achoque é umdisparate.[Fumei]muitos,muitos. Demata-ratosa outros

Antena 1SemMargem2 de Junho de 1981

Admiti nãoacordardaanestesia oumorrer emconsequênciada operação.Testamentonão fiz. Masdeixei últimasvontades.Estive umanoite inteira aescrever

RTP-2, CarlosCruz–Quarta-Feira6 de Novembrode 1991

Amorsem sexonão chegaa seramor.E sexo semamoré sexobempobre

CincoConversascomÁlvaroCunhal1999

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AFP

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