cultura local x cultura global – o glocal. santos e nolasco

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  • CULTURA LOCAL VERSUS CULTURA GLOBAL:O GLOCAL

    LOCAL CULTURE VERSUS GLO BAL CULTURE:THE GLOCAL

    Natlia Aparecida Tiezzi Martins dos Santos*Edgar Czar Nolasco**

    RESUMO: Este artigo faz parte do projeto de pesquisa cadastrado na PROPP/UFMS Cultura Local, cujo plano de trabalho intitula-se (In) Definies Culturaisnas Culturas Locais de Mato Grasso do Sul. Este trabalho objetiva explicitar aimportncia e os motivos que justificam a relevncia de pesquisar a cultura local doestado de Mato Grosso do Sul. Para tal intento, partimos dos Estudos Culturais,cujo objetivo primeiro desconstruir a concepo cannica de cultura. Aborda-se arelao de cultura local e cultura global a partir dos elementos constituintes tanto denossa cultura como de outras, como o Sob (comida tpica japonesa).Palavras-chave: cultura local; estudos culturais; Mato Grosso do Sul.

    ABSTRACT : This article is a part of a research project which is cadastred in PROPP/UFMS Local Culture which work plan is titled (In) Definies Culturais nas Cul-turas Locais de Mato Grasso do Sul. This work intends to explain the importanceand the causes that justify the relevance of researching the local culture of the State ofMato Grosso do Sul. For so, we start from Cultural Studies which the objective is todeconstruct canon culture conception. Discuss the relation of local culture and globalculture that start on the elements of our culture and other culture, like soba (Japanesefood).Keywords: local culture; cultural studies; Mato Grosso do Sul.

    Reprter: Se ama tanto o nosso pas, como o senhor diz,por que vive na Califrnia? Gmez-Pea: Estou medesmexicanizando para mexicompreender-me... Reprter:O que o senhor se considera ento? Gmez-Pen: Ps-mexica, pr- chicano, panlatino, transterrado,arteamericano... depende do dia da semana e do projeto emquesto. (CANCLINI, 2008, p. 322-324).

    Rado, Dourados, MS, v. 4, n. 7, p. 67-74, jan./ jun. 2010.

    * Acadmica do Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CCHS) e bolsista de Iniciao Cientfica pelo PIBIC/ CNPq, com o Plano de trabalho (In)Definies Culturais nas Culturas Locais de Mato Grasso do Sul, o qual faz parte do projetoCultura Local e desenvolvido sob a orientao do Professor Dr. Edgar Cezar Nolasco.E-mail: [email protected].** Professor Doutor dos Cursos de Graduao e Ps-Graduaes do DLE/ CCHS/ UFMS.E-mail: ecnolasco@ uol.com.br.

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    INTRODUO

    Este artigo tem por objetivo tratar das razes pelas quais se faz necessriopesquisar sobre a cultura local do estado de Mato Grosso do Sul. Para tal intentopartimos dos Estudos Culturais cujo objetivo primeiro desconstruir a concepocannica de cultura e do local da cultura. Nossa reflexo aborda a relao de culturalocal e cultura global a partir dos elementos constituintes tanto de nossa cultura comode outras, como o Sob. Em nossa reflexo, atentamos para o fato de que no sepode tender ao universalismo e excluir o local, como tambm no se pode tender aolocalismo, abstraindo deste o universal, dado que tanto um como outro existemsimultaneamente num mesmo tempo e espao. O local embora traga em seu bojotraos que o diferenciam do todo, do universal, isso no o exime de pertencer aouniversal e vice-versa.

    POR UM ESTUDO DA CULTURA SUL-MATO-GROSSENSE

    Faz-se necessrio investigar algumas produes culturais produzidas no locuscultural limitado geograficamente pelo territrio do Estado de Mato Grosso do Sul,primeiro porque o mesmo faz fronteira com o Paraguai e com a Bolvia, o que, almde permitir uma intensa circulao de pessoas, tambm promove uma produocultural hbrida e fronteiria. Conforme Bhabha uma fronteira no o ponto ondealgo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira o ponto a partir doqual algo comea a se fazer presente (BHABHA, 2003, p. 19). Alm disso, outromotivo dado pela constituio histrico-etnogrfica do nosso estado que, atravsdas ondas migratrias, recebeu e continua a receber migrantes, fato este, que tambmestimula a produo do que Nstor Garca Canclini denomina por culturas hbridas.Nesse sentido, entendemos que embora as produes culturais sul-mato-grossensessejam de natureza hbrida e fronteiria, elas trazem em seu corpus os traos que asdiferenciam como especficas desse local cultural. Nesse sentido, explica-nos PauloSrgio Nolasco dos Santos

    Como a identidade cultural de uma regio no corresponde,por si s e a priori, a prticas culturais de uma regio,localizadas, a verificao e anlise de tais manifestaeslocalizadas, s podem ser compreendidas como spectrum,que irradiam-se por outros espaos, por outras regies, poroutras regies culturais, fazendo da troca, da movimenta-o de idias e temas a razo para o surgimento de outrosprocessos de criao reunindo, assim, o prprio e o alheio.(SANTOS, 2008, p. 07).

    Por ltimo, a investigao se valida, uma vez que preciso desconstruir oconceito de cultura cannica, enfatizando-se, em contrapartida, o conceito de culturana diferena prescrito pelos Estudos Comparados e Estudos Culturais, nos quais asculturas so lidas horizontalmente, e nesse sentido, no podem mais ser estabelecidas

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    relaes hierrquicas e valorativas entre os diferentes grupos sociais e suas produesculturais. At meados do sculo XX, as culturas eram lidas verticalmente, ou seja,como eram as classes privilegiadas economicamente que estabeleciam para o restanteda organizao social o que pode ou no ser considerado cultura, as demais produ-es culturais acabavam por serem marginalizadas ou excludas do processo, no qualse elegia o que seria ou no tomado como sinnimo cultura, como por exemplo, acultura africana, indgena, do sertanejo, entre outros. A ttulo de exemplo, atente cultura local, mencionamos a artista plstica Conceio dos Bugres, que se consagroupor talhar bugres em madeira. De etnia indgena e artista popular, Conceio, aointitular suas esculturas de bugres, j coloca em questo o lugar subalterno do qualfala a artista. Nessa direo, vejamos o que disse Edgar Czar Nolasco:

    Sempre com conotao negativa sob a tica vigente, otermo bugre, como sinnimo de ndio, figura como bodeexpiatrio para tudo o que tido como negativo, indesejvele condenvel. Foi assim, alis, que agiu contra os povosmarginalizados, subalternos latino-americanos todo um pro-jeto moderno aqui implantado revelia das culturas locais.Tendo em pano de fundo esse projeto moderno da AmricaLatina, totalmente hegemnico, visando um desenvolvi-mento econmico a todo custo e de base eminentementeimperialista, logo excludente e dualista desde sempre, enten-de-se melhor porque, quer seja o Brasil, a Amrica Latinacomo um todo, e no Estado de Mato Grosso do Sul no foidiferente, a confuso elaborada entre os termos bugrese ndios caiu feito uma luva sobre as naes: de um lado,modernas prticas econmicas e polticas da modernidadeque, alm de serem as melhores para todos, so tambm asque reforaram o poder do Estado-Nao; de outro, tera-mos aqueles que seriam os prias dessa sociedade, que tra-zem a insgnia de infidelidade moral, os fora-da-lei, pre-guiosos-vagabundos, deficientes-incapazes, violentos-vagabundos, sem religio, no cristos. Ou seja, essesmarginalizados de Natureza, humilde de natureza, por vi-verem mais prximos da Natureza (veja a dualidade: den-tro x fora, letrado x no-letrado, civilizado x brbaro, cam-po-cidade etc), esto condenados a carregar consigo todotipo de desvios morais determinados pela histria, refle-tindo ou mesmo resultando numa excluso social, que fi-car mais acentuada com o desenvolvimento do capitalis-mo e suas exigncias. (NOLASCO, 2009, p. 4-5).

    Os Estudos Culturais e Comparados vm justamente desconstruir essa con-cepo cannica de cultura e do lugar da cultura. Por essa razo, defendemos a idia deque, ao se discutir o conceito de local tendo por base as produes culturais locais, oprprio conceito de Cultura arraigado no Estado, e de forte vezo estatal, serdesconstrudo e lido pelo avesso do olhar cristalizado e sedimentado na sociedade enas representaes sociais. Compreendemos tambm que, alm da teoria dos Estu-dos Culturais, que nos ajudar a pensar conceitos importantes como os j menciona-

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    dos, o que propem os estudos latino-americanos ser indispensvel principalmentepara situar as produes culturais selecionadas em seu contexto geohistrico e territorial.Vale lembrar que a perspectiva dessas duas correntes, embora enfatizem a culturalocal, no nega o lugar das outras culturas.

    Passemos, ento, a refletir sobre o que cultura local, ou melhor, quais so oslocais da Cultura, uma vez que se sabe que as culturas so em qualquer tempo e lugarheterognicas e hbridas. Como explica Canclini (2003), o processo detransnacionalizao (globalizao) afeta diretamente as culturas locais trazendo ahibridizao; em outros termos, significa que as novas relaes sociais e econmicasimpostas aos sujeitos na ps-modernidade trazem por um lado, como uma de suasconsequncias os processos de homogeneizao cultural e por outro, relaesinterculturais. O crtico argumenta ainda que essa hibridizao cultural leva a outrosdois processos inerentes ao momento no qual vivemos: a desterritorializao ereterritorializao. Tais processos correspondem, respectivamente, perda da relaonatural da cultura com os territrios geogrficos e sociais e, ao mesmo tempo, certasrelocalizaes territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produes simblicas(CANCLINI, 2008, p. 309).

    O primeiro processo vai de encontro proposta do universalismo que ao seimpor nega, abafa, marginaliza ou silencia as culturas locais; j o segundo vai nadireo do localismo, que ao se fazer presente d voz ao local, negando a idia dehomogeneidade, pois embora se possa dizer que a cidade aberta e cosmopolita, elatambm precisa fixar signos de identificao, rituais, encontrar traos que a diferenciedos que esto nela de passagem, como os turistas. Tal reflexo nos leva a crer queembora haja

    [...] intercmbios da simbologia tradicional com os circui-tos internacionais de comunicao, com as indstrias cul-turais e as migraes, no desaparecem as perguntas pelaidentidade e pelo nacional, pela defesa da soberania, peladesigual apropriao do saber e da arte. (CANCLINI, 2008,p. 326).

    Por outro lado, o estudioso Homi Bhabha contrape-se ao conceito dehibridismo defendido por Caclini, j que o crtico hindu-britnico aborda o conceitode hibridismo a partir de uma perspectiva ps-colonialista:

    O hibridismo o signo da produtividade do poder colonial,suas foras e fixaes deslizantes; o nome da reversoestratgica do processo de dominao pela recusa (ou seja,a produo de identidades discriminatrias que assegurama identidade pura e original da autoridade). O hibridismo a reavaliao do pressuposto da identidade colonial pelarepetio de efeitos de identidade discriminatrios. Eleexpe a deformao e o deslocamento inerentes a todos osespaos de discriminao e dominao. Ele desestabiliza asdemandas mimticas ou narcsicas do poder colonial, masconfere novas implicaes a suas identificaes em estrat-

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    gias de subverso que fazem o olhar do discriminado voltar--se para o olho do poder. (BHABHA, 2003, p. 162-163).

    Ao tratarmos do processo de hibridizao compreendido dentro do processomaior da globalizao, lembramos tambm de Hugo Achugar (2006), que emboradiscuta a globalizao de forma distinta da de Canclini, argumenta que

    As transformaes e os desafios polticos, tecnolgicos so-ciais de nosso presente continuam, todavia, e de fato, re-produzindo as hierarquias entre as classes sociais, entre asregies e entre os pases dos diferentes mundos que coabi-tam no planeta. Ao mesmo tempo, no se tem podidoerradicar a existncia de esteretipos na representao queuns fazem dos outros. Mais ainda, essas transformaescontinuam reproduzindo as representaes culturais e po-lticas sobre o outro, localize-se o outro na aldeia, no cen-tro ou na periferia. (ACHUGAR, 2006, p. 82).

    Por sua vez, Canclini afirma que embora exista um processo de homogeneizaoglobalizante que faz aflorar diferenas e integraes, esse processo no anula a culturalocal, o regional; em outras palavras, seria como dizer que viver em uma cidade noimplica dissolver-se na massa e no anonimato (CANCLINI, 2008, p. 286). Esta aideia que pretendemos lanar sobre a cultura local de Mato Grosso do Sul. Um bomexemplo de hibridizao no sentido exposto por Bhabha o Sob, conforme nosargumenta Rubens Costa Marques em seu artigo Sob: patrimnio imaterial de CampoGrande/ MS:

    [...] prato tpico da gastronomia campo-grandense, adapta-do da culinria oriental pelos imigrantes vindos, em 1908,da provncia de Okinawa, arquiplago de influncia chine-sa, na regio sul do Japo. Nessa cidade, tradicionalmente, vspera do ano novo, as famlias se reuniam para degustaresse tradicional prato feito de macarro de trigo sarraceno,o toshikoshi-soba. [...] O Sob, que uma adaptao dosprodutos locais culinria oriental (resultado do dilogoda cultura milenar com as matrias primas do meio ambi-ente regional), era consumido, a princpio, apenas pelosimigrantes e fora dos olhares da clientela Gaijin, isto , dosno-orientais. Todavia o costume se difunde, e a popula-o apropria-se da iguaria, consumindo-a cotidianamente.Tornou-se, assim, um prato tpico de Campo Grande, am-plamente divulgado nos restaurantes e nas dezenas desobarias. a principal atrao da Feira Central da cidadeque anualmente promove o Festival do Sob em parceriacom a Prefeitura Municipal.

    Como se observa, o Sob sofre um processo de transculturao no sentido deque foi resignificado em outro espao e outro tempo, que j no do ponto de vistao prato originrio do Japo:

    Entendemos que o vocbulo transculturao expressa me-lhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cul-

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    tura a outra, porque este no consiste somente em adquiriruma cultura diferente que o que, a rigor, indica a vozanglo-americana aculturation -, mas que o processo implica,tambm, necessariamente, na perda ou desenraizamentode uma cultura precedente, o que poderia ser chamado deuma parcial desculturao, e, alm disso, significa a conse-qente criao de novos fenmenos culturais que pudes-sem denominar-se neoculturao [...]. (ORTIZ apudACHUGAR, 2006, p. 99).

    Mencionamos o Sob para exemplificar como a hibridizao altera as culturas,os modos de vida e as experincias humanas, permitindo com que esses elementosao sofrerem tal processo sejam tambm, e ao mesmo tempo, desterritorializados,reterritorializados e transterritorializados. Contudo, poderamos ter tomado comoexemplos a Sopa Paraguaia, o Terer ou a Chipa, que tambm so elementos vindosde outras culturas, espaos e tempos, e que sofreram o mesmo processo,uma vez que,ao serem incorporados na cultura sul-mato-grossense, uma vez que foramresignificados em outro espao e tempo. Nesse sentido, podemos inferir que o locale o global no so instncias antagnicas e excludentes, mas, pelo o contrrio, parti-lhamos e circulamos tanto em um como no outro concomitantemente; portanto asculturas e suas manifestaes no podem ser visitadas sob essa tica dialtica em queos elementos se opem, mas devem ser vistas a partir daquilo que Canclini denominade Glocal (CANCLINI, 1995, p. 85).

    O Glocal para o antroplogo envolve, nesse sentido, o campo da cultura geran-do dois movimentos contrapostos. O primeiro deles o movimento de globalizao,no qual surge uma rede planetria de processos industriais, tecnolgicos e culturais,entre outras caractersticas, que interpela sujeitos diferentes, em dimenses espaciaisdiversas, atravs de bens simblicos. A oferta de tais bens se mostra homogeneizadorade hbitos de consumo medida que ignora fronteiras geogrficas, atraindo diferen-tes segmentos consumidores. Paralelo a esse movimento globalizador, surge o mo-vimento de localizao da cultura. Neste caso, ocorre uma retomada das tradieslocais, num processo de busca por traos culturais capazes de marcar a diferena entreos povos e o pertencimento destes, a seus territrios de origem. A ttulo de exemplopodemos mencionar as colnias japonesa, paraguaia e gacha existentes em nossoestado e que mesmo estando organizadas aqui, seus membros procuram retomar,reconstruir a cultura de seu lugar de origem, demarcando dessa forma uma diferenaem relao aos outros povos e instituindo o sentimento de pertena. Para Cancliniso as negociaes entre esses dois movimentos (o de globalizao e o de localizaoda cultura) que implicam novas identidades hbridas.

    Dessa forma rompe-se com a concepo do sujeito, previamente vivido comotendo uma identidade unificada e estvel, pois o momento atual requer que se rompacom antigos paradigmas. Isso, por sua vez, faz com que os sujeitos sejam compostosno de uma nica, mas de vrias identidades. Em outros termos, a viso dialtica oudualista de mundo no tem voz e muito menos vez numa perspectiva multicultural,

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    j que inegvel que os espaos no so reas delimitadas e homogneas, masespaos de interao em que as identidades e os sentimentos de pertencimento soformados com recursos materiais e simblicos de origem local, nacional e transnacional(CANCLINI, 1993, p. 153).

    Cremos ento, no que expe Bhabha (2008), que o local da cultura est nesseespao geo-histrico fludo e heterogneo, o local da cultura o entre-lugar deslizante,marginal e estranho, como o crtico argumenta:

    Estar estranho ao lar [unhomed] no estar sem-casa[homeless]; de modo anlogo, no se pode classificar o es-tranho [unhomely] de forma simplista dentro da divisofamiliar da vida social em esferas privada e pblica. Omomento estranho move-se sobre ns furtivamente, comonossa prpria sombra, e, de repente, vemo-nos como aIsabel Archer de Henry James em Portrait of a Lady [Retratode uma Dama]. Tomando a medida de nossa habitao emum estado de terror incrdulo. E nesse ponto que, paraIsabel, o mundo primeiro se contrai e depois se expandeenormemente. Enquanto ela luta para sobreviver s guasinsondveis, s torrentes impetuosas, James introduz-nosao estranhamento inerente quele rito de iniciaoextraterritorial e intercultural. Os recessos de espao do-mstico tornam-se os lugares das invases mais intrincadasda histria. Nesse deslocamento, as fronteiras entre casa emundo se confundem e, estranhamente, o privado e o p-blico tornam-se parte um do outro, forando sobre nsuma viso que to divida quanto desnorteadora.(BHABHA, 2008, p. 30).

    Em suma, no se pode mais incorrer no erro de exaustivamente reafirmar umadiferena cultural, previamente determinadora e impositiva no sentido de se ter au-toridade para se eleger um universo particular como sinnimo de cultura, margina-lizando dessa forma as outras culturas existentes, uma vez que o processo dehibridizao no nos permite falar mais em diferena cultural, mas em diversidadecultural. Conforme Bhabha (2008, p. 63)

    A diversidade cultural o processo de enunciao da culturacomo conhecvel, legitimo, adequado construo desistemas de identificao cultural. Se a diversidade umacategoria tica, esttica ou etnologia comparativas, a dife-rena cultural um processo de significao atravs doqual afirmaes da cultura ou sobre a cultura diferenciam,discriminam e autorizam a reproduo de campos de fora,referncia, aplicabilidade e capacidade. A diversidade cul-tural o reconhecimento de contedos e costumes cultu-rais pr-dados; mantida em um enquadramento temporalrelativista, ela d origem a noes liberais demulticulturalismo, de intercmbio cultural ou da culturada humanidade.

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    A questo gira em torno do fato de que se admitirmos que h uma diferenacultural entre as culturas, aceitamos as representaes hierrquicas que uns fazem dosoutros e, consequentemente, elegemos a cultura de uma dada classe como sinnimode cultura, marginalizando e silenciando, dessa forma, as demais culturas, logo nos-sas atitudes tm como pressuposto bsico a intolerncia ao estranho, ao diferente.Contudo, se admitimos a diversidade cultural, no pensamos mais em hierarquiacultural, mas o contrrio, cada cultura tem seu espao, sua voz e sua vez. O outro no o diferente pormenorizado, mas o diferente compreendido e aceito dentro da ticade sua prpria cultura. Voltando ao exemplo do Sob, entendemos que esse prato, dacultura do estado de Mato Grosso do Sul, no pode ser compreendido do ponto devista cultural, partindo-se apenas da questo histrica (sua origem no Japo), massim se levando em considerao questes de ordem geogrfico-espaciais, tnico-cul-turais e poltico-econmicas, uma vez que o prato em questo, alm de patrimniohistrico-cultural da capital sul-mato-grossense, tambm uma atrao culinria daregio.

    REFERNCIAS

    ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2006.BHABHA, Homi Komi. O local da cultura. Trad. Miriam vila et al. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008.CANCLINI, Nstor Garca. A globalizao imaginada. Trad. Srgio Molina. So Paulo:Iluminuras, 2003.______. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. Trad. MaurcioSantana Dias e Javier Rapp. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.______. Culturas hbridas. Trad. Ana Regina Lessa e Helosa Rezza Cintro. So Paulo:EDUSP, 2008.MARQUES, Rubens Costa. Sob: patrimnio imaterial de Campo Grande/MS. Disponvelem: < http:/ / 66.228.120.252/ artigos/ 1714018> . Acesso em: 22 ago. 2009.NOLASCO, Edgar Czar. Bugres subalternus. In: Cadernos de Estudos Culturais: EstudosCulturais, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 16, 2009.SANTOS, Paulo Srgio Nolasco dos. Fronteiras do local. Campo Grande: Ed.UFMS, 2008.