cultura e diversidade - lugares da cultura
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Textos de apoio do módulo II dos seminários Lugares da Cultura - "Cultura e Diversidade", em abril de 2014.TRANSCRIPT
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Textos de apoio 2º módulo: Cultura e Diversidade
22 e 23 de abril
Teixeira Coelho
Dilma de Melo
Marco Aurélio Máximo Prado
Sesc São José dos Campos
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
2014
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Cultura e Diversidade Dilma de Melo
As Instituições Educacionais públicas e particulares devem sensibilizar as
sociedades sobre essa problemática que nos afeta a todos em nossos países latino-
americanos que tivemos matrizes indígenas e africanas em nossas formações históricas.
Somos em Nuestra América Sociedades Multiétnicas e devemos combater todo e
qualquer Estado que defenda valores monoétnicos. Além das condições estruturais que
muitas vezes levam à exclusão social de certas etnias, temos os estereótipos que atentam
contra as identidades de muitos segmentos sociais ligados a ethos indígenas e/ou
africanos.
A interculturalidade deve ir além de uma proposta de diálogo entre as culturas,
mas sim como prática efetiva mostrando às pessoas identificadas com essa ou aquela
cultura que aceitem e compreendam a alteridade. A interculturalidade não pode nunca
defender que uma cultura seja melhor do que a outra, mas sim ensinar a pesquisar ou
procurar entender os valores culturais de todas as culturas.
Por isso, devemos dinamizar o processo de cooperação entre diferentes grupos de
pesquisa e instituições de ensino superior e organizações artístico-culturais,
promovendo, dessa forma, o conhecimento intercultural e interdisciplinar a fim de
contribuir para a integração regional.
Florestan Fernandes nos dá a chave para utilizarmos o processo de
estabelecimento das interações sociais em nosso país e em toda a América Latina, ao
afirmar: “o mecanismo de dinâmica social dá o sentido das relações sociais”.
Como exemplo, podemos tomar as relações entre senhores e escravos na época
colonial. A Igreja, o catolicismo, constituía o mecanismo regulador dessas relações. Os
negros africanos, impossibilitados de refazerem suas identidades culturais, proibidos de
praticarem seus cultos, tinham que inventar estratégias para contornar o domínio cristão
(Roger Bastide analisa o processo, apontando como os africanos escravizados, em dias
de festas dos santos, evocavam seus orixás, seus ancestrais – os tambores chamavam a
África distante e debaixo dos mantos da Virgem estava a Oxum).
Nesse primeiro momento, ocorreu um processo de transculturação (conceito
operacional utilizado por Dom Fernando Ortiz, antropólogo cubano, em seus trabalhos
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sobre os negro-africanos em Cuba), valores e concretude culturais de vários povos e
civilizações se confrontaram, mas numa situação de desigualdade e conflito.
No nível da cultura – aqui entendida como práticas e instituições destinadas à
administração, renovação e reestruturação do sentido (do entendimento do significado
do mundo) – o processo social de produção, que é ao mesmo tempo econômico e
simbólico, imbrica as esferas da economia e da cultura.
O poder cultural é a chave para entendermos a hegemonia de uma classe sobre
outra, pois possibilita:
– a imposição de normas ideológicas que adaptam os integrantes de uma
sociedade a uma estrutura econômica e política arbitrária.
– a legitimação da estrutura dominante, fazendo com que ela seja encarada como
a forma “natural” da organização social, encobrindo a arbitrariedade.
– a ocultação da violência da integração do indivíduo a uma estrutura social,
fazendo com que essa imposição, essa adaptação seja sentida como socialização ou
adequação para a vida em sociedade e não em uma sociedade pré-determinada.
No caso do período colonial, os ameríndios eram impedidos de praticar suas
crenças, de cultivar a seu modo as terras, sendo obrigados a viverem em reduções, do
mesmo modo que os negro-africanos, proibidos de falar suas línguas, impossibilitados
de refazerem livremente suas associações, de praticarem seus rituais.
Uma ordem despótica se sustenta quando é capaz de construir seu espelho na
subjetividade – a opressão alimenta-se do eco que o social gera nos indivíduos.
Os aparelhos culturais encarregam-se, pois, de administrar, transmitir, renovar,
legitimar, valorizar o capital cultural: família, escola, Estado, meios de comunicação,
que constituem formas de organização do espaço e do tempo, que geram hábitos,
sistemas de disposições, esquemas de percepção, compreensão e ação, sendo
estruturados (pelas condições sociais, pela posição de classe, pela inserção social) e
também estruturantes (geradores de práticas, de esquemas de percepção e de
apreciação).
Como trabalho na área de Artes, e, nos últimos anos, tenho me aproximado mais
da produção plástica africana e afro-brasileira, exemplifico como a alteridade foi tratada
e muitas vezes negligenciada no ensino da Arte entre nós.
Felizmente, temos agora a Lei Federal 10.639/03 que torna obrigatória a
introdução e o estudo da temática História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em
todos os níveis de ensino do país e a Lei 11.635/08 (incluindo a temática indígena). Os
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conteúdos serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial, nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
A proposta da Lei 10.639/03 é acompanhada de objetivos como o fortalecimento da
auto-estima, aproximação dos elementos da cultura alicerçados numa matriz cultural
africana ressignificada no Brasil, exercício da criatividade, segurança, possibilidade de
criadores ativos, contra todos os limites de um contexto social que lhes negue as
condições dignas de sobrevivência.
Dentro desta perspectiva, educadores devem promover possibilidades para o
conhecimento e contato com a cultura africana, oferecendo subsídios que
contextualizem e dêem significados para as atividades propostas. Entretanto, esta
apresentação não deve ser “folclorizada”, mas desenvolvida a partir da valorização
cultural, o que exige uma abordagem da História da África, pois, assim, desvenda-se a
verdadeira História de um povo que não nasceu escravo, mas se tornou escravizado nas
mãos de europeus.
Desse modo, aos poucos, nosso alunato poderá conhecer mais outras matrizes
partícipes na formação de nossa cultura, não somente a europeia.
Contudo, os livros didáticos ignoram totalmente a produção estética africana. Nos livros
de História da Arte, encontramos referências ao Egito, mas, na maioria das vezes,
sequer enfatizando que se localiza na África. Nos museus europeus e brasileiros, o Egito
aparece em separado da produção africana, colocado junto a Cultura Mediterrânea.
Durante anos, o pensamento crítico do Ocidente considerou apenas tardiamente uma
produção artística africana, tendo sido incapaz de perceber nela uma singularidade
essencial à qual a Arte Moderna é devedora. Essa produção ficou por muito tempo
excluída da história universal da arte, sendo considerada como primitiva, conforme o
pensamento evolucionista/positivista dos séculos XIX e XX. Os especialistas
afirmavam que essa arte ainda estava na fase infantil representada pela forma figurativa
e que deveria evoluir até atingir a fase adulta representada por uma etapa
intelectual/geométrica/abstrata na qual estaria a arte européia. Entretanto, uma pequena
pesquisa, por exemplo, da arte rupestre, provaria que os africanos produziam sim
formas geométricas.
Outro texto que complementa esse fato relacionado à História da Arte Ocidental
é de José D’Assunção Barros, “As influências da Arte Africana na Arte Moderna”, no
qual o autor se refere ao encontro da Europa com uma alteridade cultural que lhe
permitiu a renovação e ruptura com os parâmetros estéticos anteriores.
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As imagens indicadas por Barros falam por elas mesmas o quanto os artistas
europeus estavam impregnados pela nova visualidade que se apresentava. Entretanto,
nos livros dedicados à História da Arte Ocidental, não há referências a esse “encontro”,
continuam a se referir à arte africana como “primitiva”, não levando em conta o quanto
essa produção é conceitual e o quanto foi responsável pela ruptura ocorrida nos anos
iniciais do século XX. Embora a arte dos povos não-ocidentais tenha uma longa
existência, muito anterior ao aparecimento daquilo que hoje denominamos Ocidente, ou
Europa, sua admissão se deu bem mais recentemente. Isso é compreensível, pois se
tratava de uma sociedade que até então se auto-intitulava a única capaz de levar a
humanidade ao progresso, à civilização.
A partir do contato com as formas africanas, que apresentavam multiplicidade de
perspectivas, geometrizações esquemáticas, que eram anti-naturalistas, abriu-se um
campo novo para novos padrões de expressão, características formais imprevisíveis e
surgimento de produção mental numa dimensão conceitual.
Referências Bibliográficas BARROS, J.D’A. “As Influências da Arte Africana na Arte Moderna”. in Afro-Ásia, 44
(2011), 37-95. Disponível em http://www.afroasia.ufba.br/pdf/AA_44_JABarros.pdf
MUNANGA, K. “A dimensão estética da arte negro-africana tradicional” . in
AJZENBERG,E. Arte e conhecimento. São Paulo, MAC/USP, 2004.
Dilma de Melo é doutora em Sociologia, professora sênior da Universidade de São
Paulo, com ênfase nas temáticas: cultura brasileira, arte e cultura, identidade cultural
afrolatinoamericana e arte contemporânea. E-mail: [email protected]
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Hierarquias Sexuais e de Gênero nos
Antagonismos Contemporâneos da Cultura Marco Aurélio Máximo Prado
O universo polissêmico em que se apresentam estas duas palavras – cultura e
diversidade – bem como a articulação possível e infinita entre elas no contemporâneo,
obriga-nos a um recorte particular que permita circunscrever o tema geral a partir de
experiências singulares. Ou seja, o que se tematiza aqui é, em certa medida, um
elemento político, qual seja: a história de construção hegemônica de uma experiência
cultural que se constituiu como sinônimo de cultura pretensiosamente universal: branca,
masculina, heterossexual e especialista. O que está em pauta, portanto, nesse recorte, é
de fato a própria conceituação de política e de hierarquias, como lentes que nos
permitam ver e escutar o que se tornou invisível e inaudível ao longo dos tempos como
formas de vida e expressões culturais. Enfim, a pergunta que se quer colocar é: quais
são as experiências humanas que cabem nas hierarquias sociais da cultura e quais
aquelas que são consideradas abjetas? Tomarei a partir dessas questões as hierarquias
sexuais e de gênero como experiências culturais, sociais, políticas e subjetivas na
relação entre cultura e diversidade.
Os conceitos de política e hierarquias merecem nossa acuidade, uma vez que são
eles que permitirão uma possível apreensão da relação entre cultura e diversidade. No
exercício desta acuidade conceitual, o conceito de hierarquia torna-se central, dada a sua
capacidade de apreender as diferentes formas subordinadas nas sociedades. Parte-se do
princípio que toda ordem social estabelecida estrutura-se pelas lógicas do arkhé e que
tem como mecanismo de ordenamento as lógicas de subordinação pelas titularidades.
Jacques Rancière, em seu trabalho inovador sobre a partilha do sensível, evidencia com
clareza que a história das sociedades revela-se como o curso normal das dominações,
exemplificando a partir das experiências do antigo regime como as sociedades sempre
se definiram pelas titulações seja da ordem do nascimento ou das riquezas. As
hierarquias constituídas pelas titularidades, definidoras daqueles que podem ter o poder,
se sustentam através de uma ordem simbólica – a cultura – fundamentada nas normas
sociais como um conjunto de cenas históricas nas quais nós aparecemos como sujeitos
legítimos ou não, ao mesmo tempo restringindo as possibilidades de nossa existência no
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mundo social: o duplo da norma. O que se quer dizer, destarte as polissemias culturais,
é que as normas de gênero constituem regimes de visibilidade e de audibilidade que, por
formação hegemônica, criam um campo de abjeção para determinadas experiências do
humano. O regime da ordem simbólica que constitui os critérios de visibilidade e
audibilidade se instala, segundo J. Rancière, como um conjunto de práticas sociais,
instituições que designam os lugares e as funções para cada corpo e os sistemas de
legitimação que, na concepção do autor, define-se como polícia. A polícia, não igualada
a ideia de vigilância, organiza as formas das hierarquias sociais, define lugares e
funções e constitui a ordem simbólica da cultura, dando a permitir em seu regime a
aparição de determinados sujeitos políticos ou não.
É neste ponto que nos interessa articular as noções de cultura – ordem simbólica
– à de diversidade, tendo os conceitos de arkhé e de polícia como ferramentas analíticas
que nos permitam ver o invisível e escutar o inaudível dos regimes que instauram
critérios sobre quem pode falar na cultura. Ao tomarmos as hierarquias de gênero e
sexualidade, pode-se considerar que há regimes de legitimidade – visibilidade e
audibilidade – que determinam quem pode falar a partir de qual posição na titularidade
de gênero e de sexualidade.
É nesse medida que o conceito de diversidade aparece no cenário cultural e
político brasileiro, criando um suposto terreno político anestesiado, ou seja,
pretensiosamente omitindo as lógicas hierárquicas que aí se reproduzem. Nas
experiências de gênero e das sexualidades dissidentes do binarismo polar normativo, o
conceito de diversidade emerge na tentativa de neutralizar um campo que se instala pela
própria política através da norma e das hierarquias sociais. O tamponamento deste
debate tem reforçado no Brasil o mito de uma sociedade tolerante que, por sua vez,
dado o efeito do duplo da norma, incide sobre as dissidências tornando os regimes
violentos como práticas normalizadoras para o reposicionamento dos lugares e das
funções dos corpos no regime policial da política.
A partir dessas singularidades é que busco compreender a normalização das
violências e coerções de função legitimadora da ordem simbólica, introduzindo portanto
a política como elemento analisador necessário para desvelar a ideia de diversidade na
cultura. Nesse contexto é que ao invés das invisibilidades e inaudibilidades se dão
antagonismos contemporâneos que instauram uma disputa política sobre a cultura e os
modos de vida, tornando visíveis e audíveis as vozes antes entendidas apenas como
ruídos.
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Marco Aurélio Máximo Prado é doutor em Psicologia Social e professor associado II
da Universidade Federal de Minas Gerais. É pesquisador junto ao Núcleo de Pesquisa
em Direito e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). E-mail: [email protected]
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Sobre diversidade cultural e direitos culturais Teixeira Coelho
Diversidade e identidade Ficou claro que Diversidade de fato quer dizer Identidade. Ou que por trás do
conceito de Diversidade o que existe de fato é o conceito de Identidade. E Identidade
significa idêntico a Um, algo bem diverso do que Diversidade deveria significar:
multiplicidade, variedade. Alguns ideólogos, políticos e Estados (e frequentemente
essas três figuras se confundem) dizem-no claramente: “Diversidade somos nós,
Diversidade é esta Nação, se eu proteger esta Nação, se eu proteger a nós, estarei
protegendo a Diversidade”. Não, não estará. Amparar a Diversidade significa abrir
terreno, dentro da Nação, dentro do Estado, dentro da Comunidade, para que a real
Diversidade se desenvolva. Nicolas Sarkozy o dizia claramente: “Diversidade é a
França, a França precisa ser protegida”. Sim, a França precisa ser protegida, mas um
real estadista diria: “A França precisa ser protegida assim como todas as Identidades”. E
outros Estados e outros chefes de Estado de inclinação ideológica aparentemente
contrária à Sarkozy dizem o mesmo e fazem o mesmo.
Por que não há mais espaço para a Comunidade fechada em si mesma? Porque o
mundo se tornou demasiado pequeno, porque todos estão ou podem vir a estar por toda
parte, porque a mistura é a regra do dia.
Identidade e território A noção tradicional de Identidade, ainda a que impera, amarra-se ao conceito de
um determinado território, de uma certa geografia, de um determinado Espaço. “Eu sou
este território”. No entanto, essa é uma noção no mínimo do século XIX, quando os
Estados-Nação foram criados, com suas fronteiras e seus territórios. Essa é uma noção-
proprietária, uma noção que carrega em si a ideia de propriedade exclusiva: este
território é minha (nossa) propriedade, tudo que está nele me (nos) pertence.
(Normalmente, pertence a uma só pessoa ou a um só grupo: é ilusão pensar que pertence
a todos...). Um poeta francês citado por Gaston Bachelard em A poética do espaço tem
uma fórmula mais sugestiva (os poetas e artistas deveriam ser admitidos com mais
freqeência nas discussões sobre cultura: não sempre mas muitas vezes eles têm coisas
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mais relevantes a dizer que os sociólogos e historiadores e ideólogos da cultura). Essa
fórmula é a seguinte:
Je suis l’espace où je suis.
Como o francês tem um só verbo para ser e estar, essa fórmula ambígua (mas a
identidade é ambígua!) quer dizer:
Eu sou o espaço onde sou
e
Eu sou o espaço onde estou
O primeiro entendimento é o tradicional, essencialista:
Eu sou o que sou
O segundo é mais contemporâneo:
Eu sou ali onde estou,
o que significa: se eu estiver em outro lugar, serei outro.
Acabou-se a Identidade Proprietária: eu não sou mais propriedade de nenhum
lugar, de nenhum território, de nenhum espaço, de nenhum Estado: eu sou onde estou;
onde eu estiver, eu serei (quer dizer: se eu sair de meu território não deixarei de ser).
A ideia de Nação, que leva ao Nacionalismo, que leva ao Integrismo, se vê
diante do abismo. Melhor assim. Hoje, século XXI, eu sou na verdade Cidadão do
Mundo, onde eu estiver o Mundo deverá proteger-me. Por que só pode ser Cidadão do
Mundo o grande poeta, o grande estadista, o grande cientista? Somos todos cidadãos do
mundo. Onde estiver meu corpo, estarei eu.
A diversidade cultural, a identidade e o passado. O que está por trás da ideia da Diversidade como sinônimo da Identidade (e o
que está também por trás da Identidade) é o Passado, a ideia do Passado. Os conceitos
de Diversidade e de Identidade são conceitos historiográficos, de historiadores. Para
declarar-se uma Identidade, olha-se para o Passado: para o que foi feito lá trás, para os
que existiram, para os que fizeram. “Eu sou o que fui”. E: “Eu serei o que fui”. Essa
ideia de identidade abole o futuro. O futuro não existe e não importa. Importa é o
passado. Como eu não controlo o futuro, eu anulo o futuro. O futuro é o incerto,
portanto o arriscado. Melhor ficar com o passado. Por isso todas as ditaduras cultuam o
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passado, as de Direita e as de Esquerda. As de direita cultuam de preferência o passado
longínquo e o Passado dos outros (por exemplo, o passado de Portugal do século XV tal
como foi cultuado no Brasil da ditadura mais recente, de 64 a 85). As de esquerda, o
passado imediato e o próprio passado. Mas ambas cultuam o passado.
A identidade, no entanto, pode perfeitamente ser o futuro, pode perfeitamente
incluir o futuro, pensar o futuro. Essa é a Identidade como Projeto, na esteira do que
observou Sartre (“o homem é um projeto, o homem é seu projeto, homem sem projeto
não existe”).
Eu não quero ser o que fui. Quero ser o que estou sendo, quero ser o que serei. O
que fui é parte de mim – mas não é a parte determinante de mim. Eu me faço (como
meu projeto) tanto ou mais do que fizeram ser.
De onde vem o discurso da Diversidade, a quem se dirige O discurso da Diversidade vem da ideia de proteção daquilo que está ameaçado
ou se julga ameaçado. Por exemplo, os idiomas sentem-se ameaçados pelo inglês, assim
como a cinematografia de outros territórios e de outras línguas se sente ameaçada pela
cinematografia que vem dos EUA ou que fala inglês. A Diversidade é um discurso que
vem da reação à Globalização. Mas, aqui vale o que se pode chamar de O paradoxo de
Garrincha que, durante a preleção de um técnico antes de uma partida, depois da
explicação do que teria de ser feito em campo perguntou a esse mesmo técnico: “Você
combinou tudo isso com o adversário?”
Com o discurso da Diversidade acontece a mesma coisa: ele não foi combinado
com o adversário que, portanto, não o leva em consideração. O que significa dizer, sem
meias palavras, que só vale para os fracos, entre os fracos e diante dos fracos. (Oh,
claro, é melhor que exista um discurso assim claro; mas isso não impede de reconhecer-
se o que está por trás dele).
Há culturas para as quais a conclamação ao respeito da Diversidade é letra morta
– porque para essas culturas, a melhor cultura do Outro é a cultura morta. É o caso de
certas culturas que exigem da mulher, de qualquer cultura que seja, uma manifestação
de respeito ao homem dessa mesma “certa cultura”. Esse homem não se sente obrigado
a respeitar a mulher, nem aquela de sua própria cultura, nem a que provenha de outra
cultura. Se o princípio da Diversidade tivesse validade, duas pessoas de cultura distinta,
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ao se encontrarem, continuariam com os hábitos e costumes de sua própria cultura sem
que isso significasse (como não significa) desrespeito ao outro.
A respeito, a cultura ocidental iluminista é, essencialmente, a cultura da dúvida,
a cultura que duvida, a cultura que se questiona, a cultura que está sempre pronta a
reconhecer que está equivocada, a cultura que busca sempre o melhor caminho, o
caminho mais justo. É isso que está por trás e no fundo da cultura ocidental
contemporânea, é esse o forte movimento de fundo desta cultura. É a herança do
Iluminismo, que desemboca na figura do Herói Problemático, que tem sido o melhor
Herói dos melhores romances e filmes modernos e contemporâneos, e que é bem
diferente do Herói Assertivo das epopéias (Don Quixote é o antecessor imediato do
romance moderno porque seu herói é um herói problemático, risível até). Culturas há,
hoje, que não duvidam – quer dizer, que não duvidam de si mesmas, que não põem em
dúvida seus princípios e seus vetores, que se crêem certas, que portanto vêem as demais
como equivocadas e que portanto impõem às outras seus valores (por exemplo, exigindo
que a mulher da Outra Cultura mostre respeito ao Homem Dessa Cultura Certa,
condenando à morte o escritor que, no seu entender, proferir ofensas contra Essa
Cultura – e conclamando todo seguidor Dessa Cultura a exercer seu “direito” de levar a
morte ao infiel). Enquanto isso, na cultura ocidental, nada ou quase nada é sagrado,
inclusive a religião e o chefe espiritual daquela que ainda é, parece, a maior religião do
ocidente. O mais perverso é que aqueles que estão no leito antropológico da cultura
ocidental exercem agora a autocensura (por medo ou pela força do “politicamente
correto”) quando a crítica ou a sátira se faz contra os valores Daquela Cultura, mas não
a exercem quando a crítica ou a sátira se faz contra os valores de sua própria cultura. (É
o caso, nestes mesmos dias em que discutimos estes temas, da autocensura feita contra o
desenho animado americano South Park, que aparentemente faz, num episódio, uma
sátira Àquela Cultura; aos produtores de South Park e às televisões que o divulgam não
ocorreria jamais fazer autocensura se um tema de um episódio fosse a Igreja Católica).
É esse estado de coisas que me leva a pensar que existem Culturas Fracas e Culturas
Fortes. Adeptos da linguagem politicamente correta preferem dizer, como Jesus Prieto,
Culturas Abertas e Culturas Fechadas. Pode ser. Mas o fato é que a Cultura Aberta está
se revelando uma Cultura Fraca, que não faz valer seus princípios (porque não reagiu
quando Salman Rushdie foi condenado à morte, e essa falta de reação é uma das
maiores vergonhas culturais do século XX, ou quando o cartunista dinamarquês o foi
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igualmente), enquanto a Cultura Fechada está se revelando uma Cultura Forte. No frigir
dos ovos, é essa a realidade das coisas.
Os direitos culturais são direitos individuais Algo que precisa ficar bem claro: os direitos culturais são direitos individuais,
não coletivos (de comunidade ou Estado). Os direitos culturais derivam dos Direitos
Humanos, promulgados pela ONU após a II Guerra Mundial em resposta às atrocidades
cometidas por coletivos e Estados contra a pessoa humana (assim como a “limpeza
étnica” na ex-Iugoslávia foi igualmente um atentado aos direitos humanos praticados
agora, não exatamente pelo Estado, mas por Comunidades, no caso comunidades
étnicas e religiosas.)
No entanto, coletivos e Estados estão tentando usurpar os direitos culturais dos
indivíduos e outorgar a si mesmos esses direitos. Em recente seminário em Genebra,
fevereiro de 2010, quando foi publicamente empossada a nova Especialista
Independente para os Direitos Culturais nomeada pela ONU, vi e ouvi um representante
de uma comunidade indígena americana dizer em alto e bom som que não se deveria
amparar a exigência das mulheres de não terem o clitóris extirpado porque extirpar
clitóris seria um direito cultural da comunidade indígena ou autóctone a que pertencem
essas mulheres. Esse representante, ignorante das questões básicas do Direito e da
antropologia (e o problema está exatamente na ignorância freqüente dos que falam em
nome desses Direitos), com essa afirmação, repudiada na hora por mulheres presentes
em plenário, dava exemplo da tentativa de usurparem-se esses direitos do indivíduo, tão
duramente conquistados (embora ainda não afirmados: não existe Direito sem Sanção, e
não há sanção eficaz para esses direitos, hoje, salvo alguns poucos casos exemplares de
discutível eficácia).
Deve-se lembrar, ainda, que a ONU e a UNESCO são entidades que reúnem
Estados e Nações e que, portanto, têm enorme dificuldade em aceitar os direitos e
interesses dos indivíduos. Estados e Nações não podem aceitar os direitos dos
indivíduos porque isso significa, na prática, pôr em risco a si mesmas, o que significa
pôr em risco os partidos políticos e os políticos, com seus interesses menores, que se
apropriam desses Estados e Nações. Cultura é sempre Política. Essa é a razão pela qual,
no mundo globalizado de hoje quando os Estados quase nada mais podem controlar de
suas economias (e de sua saúde etc.), esses mesmos Estados não raro insistem em
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controlar pelo menos o campo da cultura, a todo o custo (razão pela qual o que é
permitido em outros campos, como a economia, não é permitido no campo da cultura:
refiro-me, por exemplo, aos incentivos fiscais). Controlar a cultura dá aos Estados, e aos
partidos políticos e aos políticos, a sensação de que ainda controlam, de que ainda estão
no poder. E desgraçadamente, às vezes sim. O antídoto a isso seria, como lembra Alfons
Martinell, a criação de uma sociedade civil na esfera global.
A respeito deste tema, a distinção que faz Jesus Prieto entre a cultura como um
“bem jurídico coletivo” e os direitos culturais individuais (que portanto seriam
subjetivos) é especiosa. Essa distinção leva a que se considere, por exemplo, a culinária
de um dado lugar, como a culinária mexicana efetivamente o foi, um “patrimônio
cultural universal”, o que não passa de uma tolice e de cócegas no ego nacionalista dos
interessados. A cultura como bem jurídico coletivo é uma abstração, enquanto os
direitos culturais de indivíduos são algo bem concreto. Que os Estados e seus sistemas
jurídicos estejam inclinados a reconhecer o caráter de “bem jurídico coletivo” de
entidades intangíveis como a língua e a não reconhecer direitos individuais bem
precisos, como o direito de não portar o véu diante de um homem, diz tudo.
Ministério da Cultura para o Espaço Cultura Ibero-Americano, não Nem ministério, nem ministro. Ou melhor, até que sim, se a política cultural
empregada fosse a da cooperação e não a da intervenção, como geralmente acontece. A
questão é que o pensamento institucional, como é o pensamento jurídico,
frequentemente se contenta com a fórmula, no caso com a letra da lei, com as garantias
estruturais escritas. Esse é um pensamento formalista, ao qual se opõe o pensamento
fenomenológico, que leva em consideração os fenômenos tais como acontecem na
prática. E o que interessa é exatamente o “como acontece”, na prática. Um dos melhores
“sistemas” jurídicos do mundo, em termos de proteção ao indivíduo, é o inglês –
sistema não escrito. O Brasil sabidamente tem a melhor legislação do mundo, em todos
os campos. O único problema é que ela não funciona, porque as pessoas não são as
pessoas certas. Essa é a questão. E se essa é a questão, talvez um ministério da cultura
não seja necessário, nem um ministro da cultura. Essa é a questão, quer dizer, a questão
a ser reexaminada. (E se um ministério da cultura for necessário, será preciso criar um
para as artes...).
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Teixeira Coelho é mestre em Ciências da Comunicação, doutor em Letras e professor
titular da Universidade de São Paulo. É curador-coordenador do Museu de Arte
Moderna de São Paulo e especialista em política cultural. E-mail: [email protected]