crimes contra direitos humanos
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Excelente artigo do juíz Luiz Ernane Ferreira RibeiroTRANSCRIPT
CRIMES CONTRA DIREITOS HUMANOS
Luiz Ernane Ferreira Ribeiro Malato1
Creonte, rei de Tebas, foi quem ordenou a prisão de Antígona
por ter enterrado o corpo do irmão, assassinado na guerra. A ordem de sua
majestade era para que o corpo de seu irmão que ousara desafiar seu reino
ficasse insepulto, servindo de comida aos cães e abutres, até nada mais
restar. Antígona, invocando outras leis, desrespeitou o édito imperial e
sepultou o irmão.
Quando foi presa, afirmou: Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são ditadas entre os homens pela justiça (...) e nem me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. Na afirmação de Antígona encontra-se a compreensão dos
direitos humanos como dimensão e não como condição. Dignidade antes de
cães e abutres, prevalecendo sobre leis e sobre vontades, ainda que
batizadas pelo cetro do rei vaidoso e vingativo.
Dignidade como bem preponderante acima de intenções
legais, oriunda da própria existência humana que tudo supera quando se
baseia no princípio da igualdade, da fraternidade e da solidariedade.
Na vida contemporânea, falamos muito em direitos humanos
interpretando pouco de sua verdadeira representação. Os caminhos da
humanidade nem sempre se restringiram à prioridade da condição humana,
persistindo a indignidade.
1Juiz de Direito, titular da 7ª Vara Criminal da Comarca de Belém, Professor de Direito, graduado pela Universidade da Amazônia, UNAMA, Mestre e Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
Passados mais de sessenta anos da Declaração dos Direitos
Humanos o mundo ainda observa nações que negam liberdades, praticam
ou permitem discriminações e violências de toda ordem contra os seres
humanos. Verifica-se, contudo, o fortalecimento de uma política de
proteção aos Direitos Humanos por intermédio da ação dos órgãos
internacionais reunidos em favor da humanidade.
O Brasil é campeão de casos de violação contra direitos
humanos e por conta dessa triste realidade nasceu a idéia de federalizar a
competência para o julgamento destes, segundo critério legal estabelecido.
A federalização da competência para crimes contra Direitos
Humanos é um instrumento recente que, em caso de grave violação,
transfere o julgamento desses delitos à justiça federal. Denomina-se como
Incidente de Deslocamento, promovido pelo Procurador Geral da
República perante o Superior Tribunal Federal, quando configurada essa
hipótese.
Foi criado em 2004, pela Emenda Constitucional nº 45, que
incorporou o inciso V-A e o parágrafo 5º ao artigo 109 da Constituição
Federal, mas ainda provoca polêmicas e reflexões que relacionam conceitos
tradicionais como o da autonomia dos Estados e o do princípio do juiz
natural.
Essa idéia nasceu com o próprio advento da Constituição
Federal que elegeu como princípios fundamentais o da Dignidade Humana
(artigo 1º, inciso III) e da Prevalência dos Direitos Humanos (artigo 4º,
inciso II). Em seguida, o legislador resolveu compatibilizar, através do § 2º
do artigo 5º, os Tratados Internacionais, dos quais a República seja
parte, com direitos e garantias expressas no texto constitucional.
Nessa cruzada em prol dos Direitos Humanos, a Emenda 45
inseriu os § 3º e o § 4º no mesmo artigo 5º, determinando, pelo primeiro, a
equivalência dos Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos
Humanos à condição de Emenda Constitucional (desde que aprovados em
dois turnos por 3/5 dos membros de cada Casa do Congresso Nacional) e,
pelo segundo, a submissão do Brasil à jurisdição de um Tribunal Penal
Internacional, criado pelo Estatuto de Roma (para julgar crimes de
genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão).
Abria-se, inegavelmente, no Brasil, o Sistema jurídico
Internacional de Proteção de Direitos, com o reconhecimento de dupla
fonte normativa: do Direito interno e do Direito Internacional. Mas essa
jornada ainda avança gradativamente, a custas de muitos esforços, contra
inúmeras resistências, pois o ser humano ainda continua ultrajado pela
violência e pela omissão dos entes federativos.
O Deslocamento de Competência é sem dúvida um reflexo de
quatro situações: a) O avanço da Democracia no País; b) A inércia ou a
omissão dos Estados, cobradas pela comunidade internacional na
resolução de crimes que abalaram a sociedade (Estados do Acre,
Pernambuco, Rio de Janeiro e Pará); c) A responsabilidade jurídica da
União perante a comunidade internacional e d) A conquista da
universalidade de valores imposta num mundo cada vez mais globalizado.
O Estado do Pará, por exemplo, segundo maior integrante da
Amazônia e do Brasil em proporções territoriais, com potencialidades que
atraem cobiças de toda sorte, abriga uma série de conflitos e violações
contra direitos humanos, muitos dos quais irresolutos, já denunciados aos
órgãos internacionais de proteção dos Direitos Humanos.
Foi por conta dessa realidade que o assassinato da missionária
norte-americana Dorothy Stang, em Anapu, provocou o primeiro pedido de
deslocamento de competência com base no citado instituto. Requerido
como grave violação a direitos humanos, o pedido não prosperou porque a
justiça estadual conseguiu agilizar o feito e o dispositivo que autoriza a
transferência de competência permanece indefinido.
Apesar do avanço em prol da afirmação dos Direitos
Humanos, o deslocamento de competência ainda se encontra inoperante,
pois ainda não há um perfil de crimes ou condutas tipificadas que possa
caracterizar a ofensa para sujeitá-la à tutela da Justiça Federal. Desse modo,
a viabilidade do deslocamento encontra-se comprometida pela falta de
critérios.
Com inspiração no direito internacional, como a que oferece
na área penal o Estatuto de Roma, acreditamos como aptos ao perfil
reclamado os crimes de: a) tráfico de drogas, b) tortura, c) homicídio
praticado contra as comunidades indígenas, d) homicídio doloso motivado
por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião
política, interesses e conflitos fundiários, e) trabalho escravo ou de
crianças e adolescentes e f) contra o meio ambiente ligado à preservação
da espécie no planeta.
Neste sentido, torna-se necessária a inclusão dos requisitos
omissão ou falha do Estado-membro ou do Distrito Federal, refletindo
erro, displicência ou excesso de prazo, para que o deslocamento obtenha
legitimidade.
Admite, também, processamento cível uma vez que o § 5º do
art. 109 prevê o inquérito de modo genérico e sem distinção, e os Direitos
Humanos podem também ser de caráter econômico, social e cultural como
emprego, educação, igualdade, matrimônio, nacionalidade, religião e
saúde.
Reclama oportunidade ao Ministério Público Estadual, ao
próprio réu, ao indiciado, a própria vítima se assim puder fazer e ao
assistente de acusação para manifestação e contraditório, como sujeitos de
direito da relação jurídica.
Sugere que os legitimados à assistência de acusação, quando
habilitados na forma do artigo 268 da lei processual penal, também possam
provocar o incidente perante o Superior Tribunal de Justiça, de modo a
impedir que à omissão da justiça das unidades federadas se some uma
eventual omissão do Chefe do Ministério Público Federal.
Mas não atingirá, como se tem dito, o princípio do juiz natural,
pois o Tribunal não estará fixado após o fato, o fato em si é que fixou o
Tribunal já fixado para crimes dessa natureza. O Juiz Federal será tão
natural quanto pré-existente, como o Juiz Estadual original, dadas as
competências designadas antecipadamente.
Não impõe supressão de competência, outra idéia equivocada,
pois se caracteriza como um sistema cooperativo (utilizado analogicamente
no desaforamento de processos e apurações de casos estaduais pela justiça
federal) restrito a configuração de erro, omissão ou conluio do ente
federativo, em harmonia aos princípios fundamentais, cláusulas pétreas, da
Dignidade Humana e da Prevalência dos Direitos Humanos. Sem dúvida
alguma, supera tradições e características da própria organização do Estado
que se redimensionou a partir da afirmação histórica dos Direitos
Humanos.
Merecendo essas evoluções, o Deslocamento de Competência
deve ser observado dentro de uma visão universalista dos Direitos
Humanos que eleva o Princípio da Dignidade Humana acima de todos os
princípios.
A Dignidade da Pessoa Humana é símbolo de respeito, de
reconhecimento e afirmação do ser humano na existência independente de
quaisquer condições estabelecidas. Valor e princípio simultâneos,
constituindo-se como um atributo da existência, inexistindo dignidade sem
pessoa, tampouco pessoa sem dignidade.
Constitui-se como a maior representação confirmada pelos
Princípios Gerais do Direito, extraindo-se desta os demais princípios
constitucionais, em privilégio da realidade do fenômeno jurídico que é a
consideração primordial e fundamental de que o homem é sujeito de direito
e nunca objeto de direito. Afirma-se como a mais importante consideração
jus-filosófica do conhecimento científico do Direito e o mais alto
fundamento axiológico.
Impõe responsabilidade do Estado, nem sempre observada, em
estabelecer garantia à autodeterminação da pessoa, mínimo invulnerável
que todo estatuto jurídico deve assegurar. Não cabe a este o direito de
ignorar, dificultar ou contrariar tal representação a título de outras
representações, porquanto o ser humano cultural, livre, pessoa,
transcendente e valorativo é pré-existente às organizações de poderes. O
ser humano necessita reconhecer que a Dignidade da Pessoa se realiza na
dimensão da coexistência, da virtude e da solidariedade.
Por esses motivos, apesar das carências do instituto,
entendemos que reafirma os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e
da Prevalência dos Direitos Humanos, reiterando a recente orientação da
Razoável Duração do Processo e da Garantia Individual de Efetividade da
Justiça.
Preserva a responsabilidade internacional do Brasil perante as
cortes e organismos internacionais (Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Organização
dos Estados Americanos e o Tribunal Penal internacional).
Protege os direitos humanos no território nacional, segundo as
obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo
Brasil. Favorece a conscientização dos Direitos Humanos na mentalidade
brasileira.
Proporciona com que as graves violações nessa área passem a
representar questões de interesse nacional, caracterizando-se como um
mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados
ou do Distrito Federal, pela Justiça da União, dentro do federalismo
cooperativo.
Serve de controle às responsabilidades primárias das
instituições locais em matéria de direitos humanos instituindo, também, da
responsabilidade subsidiária da União.
O deslocamento de competência, portanto, é um resultado da
prevalência dos direitos humanos inserida como um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil.
Os Direitos Humanos são heranças históricas e naturais da
espécie humana, sintonizadas ao inteiro fenômeno da existência. Objetivam
a coexistência na liberdade, na igualdade e na fraternidade nos termos da
dimensão filosófica, cultural e transcendental do ser humano.
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