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ALEXANDRE SILVA POROSKI CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE Lages, Santa Catarina. 2001

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ALEXANDRE SILVA POROSKI

CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE

Lages, Santa Catarina.

2001

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ALEXANDRE SILVA POROSKI

CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE

Monografia apresentada como requisito parcial à conclusão do Curso de Pós-Graduação em Segurança Social, do Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx. Orientador: Prof. Pedro R. Bodê de Moraes

Lages, Santa Catarina.

2001

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ALEXANDRE SILVA POROSKI

CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no Curso de Pós-Graduação em Segurança Social do Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx, em convênio com a Universidade do Planalto Catarinense-UNIPLAC, pela comissão formada pelos professores:

Orientador: Prof. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx

Prof. _________________________ Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx

Prof. _________________________ Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx

Lages, Santa Catarina, Agosto/2001.

2001

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SUMÁRIO

Introdução .....................................................................................................5 1. Normas Sociais e Direito Penal ............................................................... 10 1.1. Crimes e Ilícitos .......................................................................................... 11 1.2. Definições de Crime .................................................................................... 14 1.3. Intento Criminoso ........................................................................................ 16 2. Evolução das Penas e do Direito de Punir ............................................. 20 2.1. O período da Vingança Privada .................................................................. 21 2.2. O período da Vingança Divina .................................................................... 22 2.3. O período da Vingança Pública .................................................................. 24 2.4. Os Magistrados e os Tribunais. As Prisões ................................................ 28 3. Os. Sistemas Penais: A Humanização das Prisões ............................... 31 3.1. Sistema Penal Brasileiro ............................................................................. 35 3.2. A Reforma do Código Penal e a Execução das Penas ............................... 36 3.3. Execução Penal Autônoma ......................................................................... 39 3.4. A Lei de Execução Penal ............................................................................ 40 Referências Bibliográficas .......................................................................... 42

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“O ser humano tende a adaptar à sua conduta ou comportamento social em algo que esta colocado acima da sua individualidade e de seu individualismo”.(Ramagem Badaró).

Introdução

Positivamente e dogmaticamente, este é o discurso completo que o

Estado-Legislador estabeleceu, soberanamente e harmoniosamente para o

Estado-Julgador: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta

social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e

conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,

conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime...”.

Buscando combater, reprimir, conter ou diminuir condutas humanas

criminalizando-as, ainda que rotulando tipos penais já existentes com outros

nomes – nomen juris! – v.g. hediondos, de maior gravidade, de especial

gravidade, restringindo possibilidades menos rigorosas no cumprimento das

penas e ou modificando-as, substituindo-as, alterando-as em qualidade e ou

quantidade com apenas normas de Direito Penal, tenho para mim que é o

absurdo dos absurdos, uma inconseqüência como competência de apenas um

dos Poderes da República Federativa.

Medite-se neste exemplo: é considerado crime hediondo tanto o

consistente na subtração de um real e de uma ficha de ônibus quanto o é o

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praticado por quem realiza a conduta de, com resultado morte, subtrair imensa

fortuna transportada por um carro pagador.

Repugna-se a idéia de que o Estado-Legislador pretenda cuidar da

segurança pública e apregoe que está agindo contra a impunidade valendo-se,

unicamente, de seu Poder Legiferante. Se no Estado Democrático de Direito o

fundamental é a garantia da liberdade individual, não podemos, ou melhor, custa-

nos compreender, embora não nos recusemos a tanto, que isso se faça com o

instrumento que se pretende seja o adequado, o Direito Penal.

Com as normas incriminadoras só se pode aumentar a possibilidade de

maior criminalidade e de mais possibilidades de um maior número de criminosos,

inclusive os que permanecem nas famosas zonas cinzentas, ou ignorados, ou

desconhecidos das camadas sociais influentes e dos grupos de interesse.

De outro enfoque, repudia-nos aceitar a idéia de que o Poder Julgador,

expressão terminológica que entendemos mais caracterizadora que Poder

Judiciário, quanto à investidura para a entrega jurisdicional, no universo do Direito

Penal, bem esteja instituído, basicamente para punir – dura lex sed lex.

Necessitamos de Justiça Penal? – Não! – Precisamos de prisões (ainda

que nelas se trancafiem, em grande maioria, somente pobres, miseráveis,

desamparados, etc. para reeduca-los e ressocializá-los!)? – Não! – O crime

existe? – Poderia inexistir, já que ele existe porque o Poder Legislador assim quer

(sempre pensando que ele é invulnerável, pois a lei por ele feita o tem por

inviolável).

Está na hora de serem criados novos engenhos para esconjurarmos o

sistema penal vigente e, mais do que isso, para que fiquem limitados ao menor

usos possíveis os modelos existentes para o resgate das sanções penais

privativas de liberdade. Não tenhamos dúvida de que os instrumentos que

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concretizam as ideologias do aparelho punitivo vigente não oportunizam, não

conseqüenciam, não acarretam nenhuma expectativa de bem-estar e de paz

social a ninguém.

Sigamos admitindo que toda e qualquer conduta que seja rotulada de

“crime” não deixa de continuar sendo fenômeno social e normal inevitável, muitas

das vezes episódico, inerente à condição do ser humano, cada vez mais fraco e

oprimido.

Prega-se que a pena ressocializa, que a reclusão reeduca, não se trata

apenas de um paradoxo, de uma contramão; trata-se de um paradoxo, de uma

contradição, trata-se de uma insuportável mentira. (Res)socializa-se pela prática

reiterada de atos vitais, sadios, no seio de uma sociedade livre e consciente;

(re)educa-se em um ambiente necessariamente melhor do que naquele e aquele

em que foi praticado o “crime”. Na verdade não se quer ressocializar, não se

pretende reeducar, visa-se castigar, quer-se é punir; prega-se desde as primeiras

incursões científicas ensaiadas pelos adeptos da Escola Clássica, como

justificativa de uma resposta a quem pecou, ou melhor, “criminou”.

Nem me engana a prédica de que pela pena se expia uma culpa; nem me

convence que a pena seja meio de reparação formal de dano causado. Mesmo

assim, persiste a aceitação sentimental de que a vingança oficial, por se

apresentar como sendo legal, satisfaz à sociedade. Essa, hipocritamente, que

sempre retribuição, imediata, apenas para compartilhar, olvidando-se de que,

personagens em cena, à evidência, sob o impulso da emoção e da

inconseqüência da paixão, sentenciando, nas circunstâncias e pelas

circunstâncias, a seu modo, o próximo ator ou autor pode estar em seu meio.

Ainda: se com todas as condutas incriminadoras com penas rigorosas,

severas, longas e aviltantes; se os efeitos são sempre negativos e se não

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ensejam qualquer freio positivo, ao menos para o apenado, tenho para comigo

que o único objetivo da pena é o de servir de punição, ou seja, de penação e que

o ser humano que “criminou” seja exemplarmente apenado, vale dizer-se

castigado.

Não se tem dúvida de que ao ingressar em uma penitenciária, ou

estabelecimento oficial de castigos, o criminoso Ticius, que era um cidadão, e, na

cela, na clausura punitiva, não vira frade, vira cisco, transforma-se em bode e, ao

sair, nem mais é Ticius, sendo apenas egresso ou regresso, pois se educou,

passando a ser, provavelmente, remendado e nada recomendado, já que não

teve como se emendar e nem se remendar, e agora, recomendar-se.

Luz, mais luz! – gritou o cego e moribundo Goethe. E nós, sapientes,

cientes, conscientes, o que pretendemos? – Clamamos? Proclamamos? Ou,

hipócritas, convocamos, almejamos e ansiamos por uma sociedade (vida?) mais

coerente, harmônica, pacífica e justa. todos somos iguais, sendo,

reconhecidamente desiguais, precisamente por causa da Lei.

Muito já se tem dito e ouvido ou escutado, e escrito e lido a respeito de

“classe dominante”, poder, contrato social, cessão ou renúncia de certos direitos

em troca de certas garantias... Resistimos e procuramos sempre justificar,

opomos e temos em mente sempre submeter; reivindicamos, que é nossa meta a

nossa sobrevivência. Cada um de nós é o “juiz criminal” do outro e por isso nos

dizemos: “Eu sou justo, inocente”. Do outro, ao outro, o outro é o mal, o mau, o

erro, o pecado, o criminoso, não sete vezes sete, mas até setenta vezes sete.

Então, nada de pacificação porque desejamos que o conflito seja apenas

visto, tido e enfrentado como um conflito e que, sendo causa, gere outro conflito:

a Lei e a Pena, que cada um de outrem é acusador, julgador e executor, sem

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dulgência, sem clemência, pois que sabemos de direito, de consciência de legem

habemus e do que mais.

Diante desta breve reflexão, reconhecendo a possível adjetivação da

veemência, nos limites de nossa contingência, concentremo-nos no seguinte

enfoque: o Direito Penal é a mais aflitiva de todas as criações do homo sapiens; a

Pena, tal como admitida pelo homo sapiens, em que se tem o Legislador, é a

mais inconseqüente solução.

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1. NORMAS SOCIAIS E DIREITO PENAL

O indivíduo raramente tem consciência da extensão do seu comportamento

que é governado por normas sociais. Isto é particularmente verdadeiro nas

modernas sociedades industriais onde tantos comportamentos são optativos; o

indivíduo exerce uma escolha relativamente livre, dentro dos vastos limites

impostos pelas regras sociais. As normas, entretanto, existem – apesar da

latitude de que provêm – e formam a estrutura da sociedade.

Sociólogos, freqüentemente, classificam as normas em quatro tipos

principais: modo de pensar e hábitos, Leis Costumeiras, usos e o Direito Positivo.

Esses tipos são rudes, mas convenientes. Modo de pensar e hábitos são aquelas

regras sociais impostas por tal controle social informal como o ridículo, ou a

proscrição. Como todas as normas, modo de pensar e hábitos envolvem um

imperativo moral, um sentimento de obrigação, um sentimento de “dever”; mas no

caso de modo de pensar e hábitos o sentido de obrigação é relativamente fraco.

Elas não nascem deliberadamente, mas aparecem aos poucos num processo de

crescimento inconsciente. Costumes são muito similares a modos de pensar e

hábitos e são distinguíveis principalmente pelo fato de envolverem uma maior

insistências na sua observância. Uma violação do modo de pensar e hábitos

pode despertar leve censura; uma violação dos costumes suscita forte indignação

moral.

As leis costumeiras envolvem um novo elemento, pois estas são normas

aplicadas pela comunidade como um todo ou pelos representantes formalmente

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escolhidos pela comunidade. A determinação da culpa do acusado e punição

dele não mais é deixada ao capricho individual – o grupo social apodera-se da

questão e enfrenta o transgressor. Finalmente, temos o Direito Positivo. Como a

Lei Costumeira, ele envolve a ação da comunidade, mas pode ser destacada pelo

fato de ser formalmente instituído. Um chefe, um rei, um conselho dos chefes de

uma tribo, ou uma Assembléia Legislativa promulgam as leis. Estes quatro tipos

de regras sociais constituem o sistema normativo – a rede espalhada de

regulamentos que reveste o mundo chamado de realidade dupla: o que deve ser

e o que é na realidade.

Hoje, o sistema normativo, que nós entendemos ser o Direito Positivo,

aparece principalmente em forma de Constituições Federal e Estadual. O Direito

Costumeiro, por outro lado, é constituído de conceitos, princípios e costumes de

longa data desenvolvidos através dos tempos e trazidos e modificados pelos

colonizadores. Estas regras legais, conhecidas como Direito Consuetudinário no

sistema legal, são aplicadas pelos Tribunais apesar de não terem sido decretadas

por órgão governamental. Embora tenha o Direito Positivo, sofrido um

considerável crescimento nos tempos modernos, e grande parte do Direito

Consuetudinário tenha-se transformado neste campo do direito, o Direito

Costumeiro continua a prover normas sustentadas pelo poder do Estado par o

controle do comportamento social.

1.1. Crimes e Ilícitos

Uma divisão fundamental separa as regras legais de nossa sociedade em

duas grandes classes: Penal e Civil. A lei civil diz respeito aos ilícitos – infrações

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cometidas contra o indivíduo. A lei penal se refere a crimes – o mal entendido

contra a sociedade como um todo. Esta divisão, que parece tão simplesmente de

relance, é, na realidade, extremamente complexa. Em primeiro lugar, muitos atos

considerados como crimes claramente envolvem uma ofensa cometida contra um

indivíduo. Crimes típicos, tais como roubo e estupro, obviamente, constituem

injúria a uma pessoa em particular e somente indiretamente ameaçam a

sociedade como um todo. Em segundo lugar, muitos atos ilegais podem ser

tratados ou como crimes ou como delitos cíveis, dependendo das circunstâncias

do caso. O adultério, por exemplo (embora seja raramente considerado como tal)

mas oferece bases para medidas civis de repressão.

É verdade que, na grande maioria dos casos, que aparecem diante dos

tribunais, não há confusão entre um crime e um delito. As medidas legais civis

geralmente se iniciam através de uma “queixa” feita por pessoa privada e

terminam como uma “sentença” proferida pelo juízo a fim de fazer restituição.

Os procedimentos ou medidas penais começam com uma “denúncia”, pelo

menos nos casos mais sérios, e terminam com uma “condenação” que implica em

uma pena, se o indivíduo acusado do crime é considerado culpado.1

Nos procedimentos penais, as regras de evidência são mais rigorosas do

que aquelas de medidas civis; a liberdade e, às vezes, a vida do réu estão em

questão. E nas medidas penais deve ficar provada a culpa do réu “além de

qualquer dúvida razoável”, enquanto nos procedimentos cíveis os padrões de

prova não são muito rigorosos. A confusão, então, entre o que é um crime e o

que é um delito cível não aparece perante os tribunais. Ao invés, a confusão vem

à tona quando consideramos a questão fundamental: que atos os legisladores

considerarão como crimes?

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A designação de uma ato como crime pelas leis é mais do que uma

questão de aplicação de um rótulo oficial, é um processo social de longo alcance.

Os marxistas alegam que a lei penal não é senão outra arma das classes

governantes para a exploração do proletariado, particularmente com referência à

lei penal que se ocupa da propriedade. Outros tem asseverado que muito de

nossa legislação penal é irracional; o público torna-se moralmente indignado e

atenua suas emoções em vingança legalizada. Na verdade sempre os

legisladores estão aprovando leis. Estas leis são na sua maior parte, modo de

atenuação das emoções e os legisladores estão inteiramente cientes deste fato.

Nenhuma das teorias acerca das origens da lei esta completamente errada,

mas todas são inadequadas. Pode ser verdade que a inimizade tradicional e

sangrenta entre famílias pode destruir uma sociedade primitiva precariamente

equilibrada no limite da sobrevivência, e a comunidade, se quer sobreviver, deve

interceder e acomodar os desentendimentos. Todavia, as necessidade da

sobrevivência social podem dificilmente explicar muitos dos atos agora

considerados como crime – tais como o jogo ou crueldade para com os animais.

Pode ser verdade que poderosos indivíduos na sociedade angariem a ajuda do

Estado na proteção de seus interesses por meio das leis penais. Contudo,

argumentar como Proudhon que propriedade é roubo – que o rico protege suas

espoliações apelando para os tribunais suprimirem os invejosos – é ignorar a

aceitação generalizada de que a propriedade é desigual em muitas sociedades, e

deixar intocável muitas das injustiças com as quais o Direito Penal se relaciona.

Pode ser verdade que muitos institutos de direito repressivo são sinais da emoção

de uma comunidade incitada, embora muita lei seja criada como resultado de

reflexão sóbria. Em resumo, não podemos estar satisfeitos com simples

1 Crimes mais sérios são geralmente classificados como delitos graves; crimes menos sérios são

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explanação global porque certos atos são considerados pelo Estado como crimes.

O Direito Penal cresceu e carrega a marca de épocas históricas nas quais se

desenvolveu, e os atos que os homens estão querendo julgar como injúrias ao

Estado mudam como muda a estrutura social.

1.2. Definições de Crime

Pode ser tomado como princípio básico sociológico que o homem não mais

obedece a regras que considere eticamente errada. Ou, para exprimir de outra

maneira, podemos dizer que afinal de contas é impossível assegurar

concordância pela simples coação – deve haver algum grau de confinamento das

normas: as demandas dos outros devem tornar-se demandas que o indivíduo

coloca em si mesmo. A bela simplicidade deste princípio não deve cegar-nos

pelo fato de que os homens acharão freqüentemente razões éticas para a

sustentação do que devem fazer. No que tange ao Direito Penal isto tomou a

forma de busca para uma absoluta base moral das regras legais. Os partidários

deste ponto de vista sustentam que crime é a violação de alguma lei eterna dada

pela natureza do homem, um sentido moral intuitivo ou os comandos de Deus. E,

tentando responder à questão “O que é um crime?” devemos estar livres do fluxo

dos valores humanos, do capricho dos advogados, ou dos argumentos de

filósofos do Direito. Como Morris Cohen salientou, entretanto, este ponto de vista

é difícil de se manter. Existe uma distância da exata equação entre o desejo

divino, como é apresentado pelos teólogos, e o conteúdo do Direito Penal; nem

todas as violações das leis morais constituem crimes, a moralidade inata mostra

mencionados como contravenção.

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mudanças marcantes através dos tempos, e a consciência moral da espécie

humana raramente provê regras suficientemente definidas para a regulamentação

dos conflitos humanos; e a idéia de uma natureza imutável com uma escala fixa

do certo e errado não se ajusta aos fatos.

A tentativa de achar definições para “crime” e “o criminoso”, conceitos

independentes de leis arbitrárias, aparece com aspectos modernos, entre alguns

estudantes do comportamento social, como um esforço de equacionar “criminoso”

e “anti-social”. Urge que criminologistas evitem a restrita categoria legal de crime

e construam uma teoria científica acerca da conduta injuriosa para com a

sociedade. Crime, então não deve ser a mera violação de regras legais que

variam no tempo e espaço. Ao invés, crime deve ser definido como qualquer

conduta que vai de encontro ao bem estar da sociedade, pois, somente agindo

desta maneira, podemos desenvolver proposições que tenham validade universal.

Este argumento tem muito para recomendar-se naquilo que nos força a examinar

a relação existente entre comportamento, que é definido pela lei como criminoso,

e comportamento que é classificado como anti-social pelos sociólogos. Muitos

estudiosos, cuidadosamente indicam os riscos que circundam esta posição: ela

convida a julgamentos de valor subjetivo; ao contrário, substitui a vaga

classificação de comportamento anti-social para a mais precisa categoria de

crime; e que é talvez o mais importante, está apta a fazer os sociólogos

esquecerem que todas as regras sociais são “relativas, provisórias e variáveis”.

O Direito Penal não representa os julgamentos morais finais de uma

sociedade. Ao revés, é um conjunto de regras para a coordenação do

comportamento social, composto no calor de emoções fugazes e fria

racionalidade, algumas vezes proibindo o que a maioria dos homens acha

moralmente repreensível e, outras vezes, sujeitas a amargas disputas. Na

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ocasião serve a interessado grupo limitado e, geralmente esforça-se para

proteger a segurança e o bem estar da comunidade como um todo. Não deve

surpreender-nos que um crime – uma violação dessas regras – é complexo e

difícil de explicar.

1.3. Intento Criminoso

No exame da natureza do crime deixamos de mencionar um componente

que é de importância crucial. Até aqui falamos de um ato criminoso - uma idéia

patente do comportamento proibido pelo Estado e sujeito a sanções penais. De

fato, todo crime é composto de dois elementos: um ato criminoso e uma intenção

criminosa. O último refere-se à chamada "consciência pesada" (mens rea) ou

intenção de cometer um delito qualquer; e, de acordo com um princípio básico do

Direito Penal, esta intenção deve estar presente antes que se possa dizer que um

crime foi cometido. Com poucas exceções, um indivíduo não pode ser detido e

responsabilizado criminalmente por aspectos de sua conduta que não desejou

nem pretendeu.

O Direito Penal reconhece um número de situações nas quais o indivíduo

pode ser visto como desprovido de intenção criminosa e, portanto, isento de

responsabilidade criminal. 1) O acusado pode alegar que o ato errado ocorreu

por acidente, e se o acusado estava agindo com o devido cuidado e envolvido por

ato lícito ele é absolvido; 2) Existem provisões legais que negam a

responsabilidade penal abaixo de dezoito anos;3) O acusado pode argumentar

que cometeu o ato ilegal sob coação ou compulsão; 4) Pode-se argumentar que o

acusado ignorava ou estava enganado acerca dos verdadeiros fatos, se os fatos

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foram como ele acreditava, ele teria agido de maneira legal; 5) O acusado pode

alegar que agiu em legítima defesa quando ameaçado com sérias ofensas físicas;

e 6) Pode-se argüir ainda que ele vinha sofrendo de uma forma de insanidade que

lhe tornava impossível considerar criminoso o seu intento.

Estas negações da responsabilidade criminal - algumas vezes conhecidas

com inumeráveis qualificações e refinamentos, mas em geral todas são dirigidas à

mesma idéia: antes que o Estado possa impor punição ao indivíduo que cometeu

um ato ilícito, deve ser mostrado que tal ato foi um atentado voluntário para violar

a lei penal. Como disse o magistrado Holmes: "Mesmo um cachorro sabe

distinguir quando tropeça e quando leva um pontapé". O Estado não pode sentir

menos quando sofre uma injúria.

Aqui esta evidente uma peculiar corrente filosófica no que diz respeito ao

homem e sua natureza. O Direito Penal insiste em que há atos nocivos que são

desejados e atos nocivos com falta deste elemento; e que o castigo é inútil ou

errado quando aplicado no último caso, mas apropriado no primeiro. Naquilo em

que o castigo não deve ser cego e selvagem ato de vingança, mas, ao contrário,

um meio de desencorajamento e reforma, a sua imposição pode ser justificada

somente então pode a ameaça de futuras punições influenciá-lo quanto à escolha

entre o certo e o errado. Se o indivíduo não exerce a escolha, se não controla

seu comportamento, a punição não tem outra conseqüência senão a de impor-lhe

dor e sofrimento.

Estas teorias legais da conduta humana tem sido sujeitas a ataques de

várias Escolas. Muitos tem argumentado que o fato de um indivíduo, premeditada

e espontaneamente, escolher o curso de ação criminosa é bastante enganoso.

O crime deve ser seguido a um conflito ou impulso inconsciente sobre o qual o

indivíduo não tem controle; ou o crime deve ser atribuído ao meio social do

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indivíduo que dá origem a propósitos, atitudes e valores que o conduzem a um

comportamento ilegal. Em nenhum dos casos o indivíduo pode ser

responsabilizado intencionalmente por sua conduta criminosa, uma vez que é em

grande parte uma criatura cujas forças estão além do seu controle. Deste ponto

de vista, o conceito de intento criminoso é simplesmente um anacronismo jurídico

que se interpõe no caminho da investida racional e científica à prevenção do

crime e à reforma do infrator. A sociedade moderna, pela retenção da

importância sobre o mens rea como um necessário componente de um crime,

continua a sustentar um quadro obsoleto do criminoso como deliberadamente

viciado, perverso, ou corrupto. Se é injusto punir um homem por ato que cometeu

por acidente, é também injusto punir um homem por ato causado por uma

personalidade deformada que tem sua raiz na comunidade ou na família.2

No entanto, este ponto de vista de Direito Penal, sobre intento criminoso

tem sido severamente criticado pela apresentação da insanidade como

escapatória - um termo sardonicamente descrito por um escritor como sendo "um

meio psicológico tão vago que sua aplicação se restringe somente à esfera legal".

É freqüentemente argumentado que os métodos dos tribunais em apurar a

capacidade mental do indivíduo são inadequados; que a interpretação da lei

pelos estados psíquicos é irremediavelmente antiquada; e que a alegação de

insanidade esta abusada ou violada não somente pela execução ou o envio para

prisão de indivíduos que deveriam ser mandados a instituições psiquiátricas,

como também deixando em liberdade indivíduos que deveriam ter sido punidos.

Existem difíceis e variadas controvérsias nestas argumentações sobre o

intento criminoso, que vão dos ideais da justiça às questões empíricas do fato.

2 Podemos entender este ponto de vista, de forma modificada, na tentativa corrente de punir a família do

delinqüente juvenil; é argumentado que os pais do infrator juvenil são, em última análise, responsáveis por

sua conduta.

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Nossa intenção aqui não é determinar estes argumentos; devemos esperar em

nossa discussão da causa do crime tanto quanto possamos esclarecer a matéria

em seu todo. Neste ponto, o importante é que o conjunto de regras, que

chamamos Direito Penal, contém implícita e explicitamente proposições teóricas

acerca do comportamento humano.

A própria definição de crime assenta-se em suposições de atividades da

mente humana. Uma vez que a opinião do homem sobre si mesmo não é

estática, mas mudada pelas experiências dos tempos e descobertas da ciência, o

Direito Penal está ligado á sociedade pelo conhecimento e pela crença, assim

como também pelos valores morais. O estudo científico do crime, portanto,

desempenha um duplo papel com respeito ao Direito Penal. Por um lado ele

investiga as origens dessas regras, a relação entre elas e a estrutura social, as

causas e conseqüências de violações dessas normas, e o controle e prevenção

do comportamento criminoso. Por outro lado, o conhecimento adquirido pelo

estudo científico do crime finalmente reverte ao Direito Penal para criar novas

versões das regras, novas concepções da natureza do crime.

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2. EVOLUÇÃO DAS PENAS E DO DIREITO DE PUNIR

No período que antecedeu o surgimento da civilização humana, o homem

vivia no chamado Estado de Natureza, em grupos que se achavam mais ou

menos espalhados na superfície dos continentes, em diversos estágios de

desenvolvimento, isto é, havia uma pura e simples busca de satisfação das

necessidades básicas mais prementes, como alimentação, abrigo, defesa e

reprodução. Era uma visão até paradisíaca do homem convivendo em pequenos

grupos familiares, ao largo de conflitos e disputas que não tivessem relação

imediata àquelas questões básicas da sobrevivência.

Hobbes (1588-1679) descrevia na sua magistral obra Leviatã3, uma visão

mais realista e crítica desse estado de vida semi-selvagem — que gerava o que

deliberou chamar Direito de Natureza — e concluiu que esse mesmo direito de

natureza, é também causa constante de animosidade e conflito. Isto porque “não

há nenhum homem que não possa fazer temer o próximo e nem existe alguém

que seja tão fraco e incapaz de se impor ao grupo” (Nielsen Neto). A luta pelo

poder e os conflitos desta decorrente encontram aqui o seu nascedouro e

acompanham o homem ao longo de sua caminhada, desde sempre até o estágio

atual da civilização humana.

3 “O direito de natureza, que os autores geralmente chamam de jus naturale é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida, e, conseqüentemente, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” (Leviatã, 1, Cap. XIV).

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2.1.O período da Vingança Privada

Com o passar do tempo, crescem as populações e os indivíduos formam

ajuntamentos cada vez maiores e diante da escassez de alimentos, ou na disputa

por um abrigo ou pela posse de uma companheira, surgem os conflitos de

interesses mais acirrados, onde cada qual reivindica aquilo que considera de seu

direito. É uma noção ainda rudimentar de direito ou senso de propriedade e

impulso de ação no sentido de obter àquela satisfação que não se detém diante

de qualquer obstáculo, conduzindo a excessos, gerando novos conflitos, numa

sucessão interminável.

Contemporaneamente a esta fase, principia a delineação do chamado

sentimento religioso, ou seja, o homem, intuitivamente, detecta a formação de

uma “diretriz transcendente, sobrepondo-se mesmo à noção de sociedade, a

conduta religiosa” (Badaró, 1973). No entanto, inquieto por natureza, sempre em

busca de novas perspectivas, vivenciando novas experiências e situações, o

homem não vincula necessariamente à sua conduta ao fator transcendental,

atendendo mais diretamente as suas necessidades básicas imediatas.

É ainda nesta fase que encontramos o indivíduo, que teve um direito

violado ou uma pretensão frustrada, tomando nas mãos, o poder de fazer valer o

seu direito. Prevalece uma concepção individualista de que o direito de cada um

sobrepõe-se aos demais, O direito violado reclama pronta reparação, enquanto

que uma pretensão nem sempre há de ser necessariamente justa para

desencadear a persecução da satisfação. Esta é uma visão que se mostra

equivocada, por que sujeita a satisfação do direito ao arbítrio de uma das partes,

já que esta satisfação muito freqüentemente pode desencaminhar-se para o

excesso, resultando novamente numa situação de desequilíbrio e violência ao

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direito. É a fase da vingança privada4, onde cada qual faz prevalecer seu direito

ou pretensão por seus próprios meios e entendimento. Este período compreendia

várias fases, descritas por Odete Maria de Oliveira:

“a) Vingança Individual Muitos autores apontam a vingança individual como a forma mais remota da manifestação da pena. Era uma reação puramente instintiva do ofendido (...). b) Vingança Coletiva Posteriormente, com a organização ainda primitiva do clã e do grupo imbuída de um espírito de solidariedade e interesse comum na proteção da coletividade, esta se colocava ao lado do vingador (...) c) Vingança da Paz Social (...) O membro do mesmo grupo que cometia um delito era expulso da tribo ou da comunidade da paz, sem armas nem alimentos e ninguém podia auxiliá-lo, mas podia persegui-lo. Era atingido, também seu patrimônio. d) Vingança de Sangue (...) vingança pelo sangue do crime praticado. O delito era praticado por membro de outro grupo, por um estranho. e) Vingança Limitada I) Talião material “Oculum pro oculo – dentem pro dente” II) Talião Simbólico (...) podia ser aplicado a todos os crimes (...) uma nova modalidade de pena de grande expressão, porém de menor rigor. f) Composição (...) o delinqüente podia comprar a impunidade do ofendido ou de seus parentes, com dinheiro, armas, ou utensílios e gado, não havendo, então, sofrimento físico, pessoal, mas uma reparação material proporcionalmente correspondente” (in op. cit. p. 3/6).

2.2. Período da Vingança Divina

O fortalecimento dos grupos humanos a partir de laços comuns

(consangüíneos, lingüísticos, territoriais, religiosos, etc.), propicia o surgimento de

uma identidade comum, e esta identidade de igual forma propicia a difusão de

noções e conceitos de direitos comuns a todos os elementos integrantes deste

grupo. É a fase germinal do Estado, pois no dizer de Lenin (1870-1924), “o Estado

é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado

4 “O direito de castigar não é mais que a necessidade natural da defesa. A mesma exercida pelo homem quando é atacado pelas feras” (Lombroso, in Lúomo delinquente in rapposto all antropologia, alla giurisprudenza ed alla psichiatria, vol. III, parte III).

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aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem ser

objetivamente conciliados” (O Estado e a Revolução).

Cada grupo assim identificado por tais características, tende hierarquizar o

exercício desses direitos, primeiro, internamente, entre seus integrantes já mais

ou menos divididos em classes, ao tempo que procura sobrepor o direito do grupo

sobre outros grupamentos com os quais mantenha algum tipo de relação,

amistosa ou não. No entanto mesmo estas noções de um direito embrionário se

acham impregnadas de conceitos e visões que lhe empresta cada indivíduo,

como reflexo coletivo da conduta individual, pois “todo ato social é reflexo e é a

expressão de nossa personalidade” (Badaró, 1973).

A imposição e o acatamento destas noções de direito ou normas de

conduta (norma agendi), resultam na cristalização de uma norma jurídica

(praeceptum juris), nascida do que mais tarde os romanos viriam denominar de

“consuetudo”. Nesse sentido, o aforisma de que o costume5 tem força de lei

(consuetudo parem vim habet cum lege). É o nascer da norma jurídica, já nesta

fase dotada das suas características ainda hoje imperantes de bilateralidade,

generalidade e coercitividade, facultando a quem exerça o poder no grupo fazer

executar e respeitar estas normas. Implicitamente nasce a definição do crime6 7

como um fenômeno eminentemente social que é a violação da norma jurídica

vigente. Mais tarde, definições mais apropriadas seriam formuladas pelos

representantes das mais variadas correntes filosóficas e escolas penais que se

sucederam ao longo do processo evolutivo da ciência penal.

5 “O costume é, pois, o resultante da ação conjunta e igual dos indivíduos como coletividade. Um produto indecomponível e comum, sendo os indivíduos a simples expressão das forças essencialmente sociais” (Badaró, p. 79). 6 “O crime é toda ação que se julgou dever ser proibida por causa do mal que produz ou tende a produzir” (Bentham, in Principles of Legislation). 7 “A antiga escola utilitária definia o crime como – “toda ação nociva que deve proibir-se, ou simplesmente uma ação proibida pela lei”(Badaró, p. 79).

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A inexistência de uma autoridade ou poder central que detivesse uma

competência definida para conter os abusos e excessos e aplicar o direito,

ameaçava semear desordem total nesses grupamentos humanos.

Surgem em cena os sacerdotes, os xamãs, os feiticeiros ou que

denominação tivessem, dizendo-se emissários da vontade divina, e passam a

regular a aplicação do direito em determinadas situações, avocando-se nesse

respaldo divino a competência para punir a prática do crime. Surge também a

necessidade de a norma jurídica descrever a conduta tipificadora do crime ou

violação a alguma outra lei. Não havia distinção entre culpa ou dolo, aplicando-se

a punição de forma invariável. Se, anteriormente, a punição regia-se pela

chamada “Lei de Talião” (olho por olho, dente por dente...), nesta nova fase cada

conduta típica era contemplada com uma sanção específica, cuja graduação ou

intensidade seria definida pelo oráculo ou por outra manifestação supostamente

de origem divina. Vivia-se a fase da Vingança Divina, pois “o delito era uma

ofensa à divindade que, por sua vez ultrajada, atingia a sociedade inteira (...)

agora se tratava de uma vingança divina” (Oliveira, 1984), Como o poder dos reis

era tido como de origem divina, o delito ofendia também ao rei e senhor.

2.3. Período da Vingança Pública

Ao longo de todo esse período, a norma jurídica vem ganhando contornos

sempre mais nítidos. Gradativamente perde o caráter divino e volta-se mais para

os crimes cometidos contra o homem, o homicídio, os crimes contra o patrimônio,

as violências e as fraudes. Ganha ainda conteúdo formal ao ser escrita, e assim

também a norma jurídica recebe clara distinção sobre tratar-se de matéria penal

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ou civil. Muitas vezes esparsas, seja na tradição oral dos sacerdotes-juízes ou

dos governantes ou ainda em manuscritos diversos e livros sagrados, passam a

ser compiladas e sistematizadas, dentro de um ordenamento que visava manter-

lhes a forma e unicidade das descrições das condutas, como se registram nos

mais antigos e famosos códigos legais conhecidos: Código de Hamurabi, Código

de Manu e as Leis Mosaicas, escritas na Torah - o atual Pentateuco, contido na

Bíblia.

Igualmente a sanção retributiva à violação recebe uma definição, como cita

Oliveira “etimologicamente, o termo pena procede do latim (poena), porém, com

derivação do grego (poine) significando8 dor, castigo, punição, expiação,

penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança e recompensa” (in

op. cit., p.2).

Com o avanço da civilização, os crimes cometidos contra a divindade,

decrescem de importância e freqüência, na mesma proporção em que progridem

o conhecimento humano e os fatos tidos sobrenaturais ou divinos, passam a ser

encarados como fenômenos naturais ou de causas puramente humanas.

Igualmente, a figura do homem ganha destaque, e a violência contra o mesmo ou

seu patrimônio assume papel de maior relevância. Estamos no limiar do período

da Vingança Pública.

Há esse tempo, a sociedade de há muito evoluiu da fase do homem em

estado de natureza para uma sociedade que exige de cada indivíduo o sacrifício

de uma parcela de seus direitos em favor do bem comum, mas, sobretudo

motivado ainda pela necessidade de sobrevivência. Beccaria (1735-1793)

8 “Em sentido amplo e geral, significa qualquer espécie de imposição, de castigo ou de aflição a

que se submete a pessoa por qualquer espécie de falta cometida. Desse modo, tanto exprime a correção a que se impõe, como castigo, à falta cometida pela transgressão a um dever de ordem civil, como a um dever de ordem penal... No sentido civil corresponde à multa ou imposição pecuniária ou... uma reparação material ao particular pela falta cometida contra si” (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense,2000).

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descreve de forma sucinta, mas completa, esse fenômeno: “Fatigados de viverem

apenas em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de

uma liberdade cuja incerteza de a manter tornava inútil, sacrificaram uma parte

dela para usufruir o restante com mais segurança” (Dos delitos e das penas, p.

14).

Estamos numa sociedade que — sem o saber — rege-se por princípios

contidos nos moldes da teoria contratualista “formulada por Epicuro, instituída por

Lucrécio e Horácio e renovada por Marcílio e Grocio, que encontrou nas páginas

de Hobes, uma completa ilustração”.

A autoridade pública se fortalece, o Estado torna-se uma entidade cada vez

mais presente na vida dos indivíduos, conceitos como nacionalidade e cidadania

e outras formas de identidade ganham consistência. Forte, o Estado toma a si o

direito de aplicar a pena que antes ou estava nas mãos da vitima ou de sua

família ou do sacerdote-juiz. O Estado exerce tal prerrogativa nas pessoas do

soberano, o qual ainda acumulava o encargo dos trabalhos da administração.

Mas o ser humano conserva uma inata propensão a exceder-se no

exercício do poder e o despotismo atirava outra vez a sociedade no caos do qual

buscava emergir. O temor do caos, da desordem é que, segundo Beccaria, leva o

homem a sacrificar uma parcela de sua liberdade. Mas a parcela é bem

pequenina, já que “cada qual apenas concorda em por no deposito comum a

menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o necessário para empenhar

os outros em mantê-lo na posse do restante”. É o somatório das parcelas de

renuncia da coletividade que legitima o poder do soberano ou de quem exercita

o poder. O pensador milanês assevera: “A reunião de todas essas pequenas

parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir.” (in op. cit. p. l5).

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Seu pensar encontra eco em Thomas Hobes (1588-1679), para quem a

pena

“é como um “Mal” infligido pela autoridade pública ao delinqüente com o fim de “melhor preparar a vontade dos homens para a obediência das leis”. Acrescenta Hobes que a pena não é uma vingança, “senão um simples ato de hostilidade, ato que deve ser contido dentro de certos limites” (Badaró, 1973, p.24).

Esta linha de pensamento encontra também adeptos entre os precursores

do moderno pensamento jurídico, partindo da obra de Caetano Filangieri (1780), o

qual se associa ao pensamento de John Locke (1632-1704), para quem “a pena

na teoria contratual consiste na perda de um direito, correspondente ao que haja

sido violado pelo delito”. Logo, nos seria lícito concluir juntamente com Badaró

que “a lei não é nada mais do que a expressão do pacto social, toda violação a lei

é uma ação contrária ao pacto social e dirigida contra os direitos fundamentais

que tal contrato defere ao cidadão”.

Esta conclusão nos remete, ainda, à constatação de que, na essência, o

contratualismo preconiza moderada aplicação da Lei de Talião, como podemos ler

na obra de Emmanuel Kant (1712-1778), citado por Badaró para quem “o JUS

TALIANDI, bem compreendido, poderá ser ótimo meio para se determinar a “justa

qualidade”, e a “justa quantidade” das penas.

Ao longo da história, as penas sempre tiveram um caráter punitivo que

primava pela crueldade como meio de satisfazer ou ao desejo de vingança do

particular ou o desagravo da divindade ou do soberano ofendido e, mais adiante,

o desejo próprio do corpo social de reaver-se a um estado anterior a violência

desencadeada pelo delito cometido. Estas punições iam desde a simples pena

de morte, passando por inúmeros suplícios e torturas, muitas vezes atingindo

além do autor do delito, também sua família e não raro também o seu patrimônio,

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que poderia ser confiscado em favor do templo, do Estado ou do particular

ofendido.

2.4. Os Magistrados e os Tribunais. As Prisões.

O surgimento do humanismo e novas teorias que revolucionaram o

pensamento, resgatando o papel central do indivíduo no meio social contribuiu

para uma gradativa substituição das penas mais gravosas, como a capital ou o

degredo, para outras de intensidade variável adequada a cada caso em particular,

aqui cabendo apreciar o dolo e a culpa, concepções do direito moderno. As leis

tornam-se mais complexas e abarcam sempre maiores parcelas da atividade

humana, muitas vezes tornando impossível que o próprio soberano seja o

aplicador da lei. E mais: deve o aplicador ater-se aos estritos limites da própria lei.

“O magistrado, que é parte dessa sociedade não pode com justiça aplicar a outro

partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei”

(Beccaria, in. op. cit. p. 16).

Os tribunais passam a ter relativa autonomia. Os magistrados são

investidos em poderes que o Estado lhes confere e em seu nome fazem aplicar a

lei aos casos concretos. O Estado, na figura do soberano, comparece ante o

tribunal exigindo a reprimenda ao infrator. Porém, muitas vezes os estritos limites

legais são transpostos ao livre desejo dos julgadores ou por influencia do

soberano. As leis recebem interpretações dissonantes e particulares. Este estado

de coisas gerava profunda inquietação entre os pensadores como Montesquieu

(1689-1755), que traz ao lume sua teoria da divisão dos poderes em Legislativo,

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29

que elabora as leis, Executivo, que as aplica e Judiciário que dirime duvidas e

controvérsias e julga as causas.

Seu pensar projeta-se muito à frente, influenciando fortemente a obra de

Beccaria que questionava profundamente a natureza dos delitos e da sanção

retributiva que o Estado deveria aplicar e os mecanismos envolvidos no processo.

Em dar ao lume sua maior obra (L’Esprit des Lois), escreveu:

“Efetivamente, em caso de delito, existem duas partes: o soberano, que diz ter sido violado o contrato social; e o acusado, que nega essa violação. É necessário, portanto, que exista entre ambos um terceiro que venha decidir a contestação. Essa terceira pessoa é o magistrado, cujas decisões são sem apelo e que deve, apenasmente, esclarecer se dá delito ou não.” (in op. cit. p. 16).

No entanto, mesmo abolidos os castigos físicos supliciantes, a tortura,

degredo, penas infamantes e outras do gênero e a criminalidade não tendo se

retraído, deparou-se ao Estado como um grave problema a ser enfrentado: qual a

punição eficaz? quais os meios de sua execução e ainda o custo despendido

pelo aparelhamento estatal, na punição e execução da pena?

Em vários lugares as prisões, cárceres em que se lançavam os infratores

da lei a espera do veredito do Estado-Juiz, quase sempre situadas junto aos

palácios dos governantes ou nos templos, passaram a ser local onde davam

cumprimento a reprimenda recebida. No médio oriente, estas prisões eram fossas

cobertas por grades, na Roma antiga, os cárceres estavam no subsolo do paço

imperial, mas sempre fisicamente ligados ao foco do poder local. Com o advento

da era cristã, a prisão assume característica efetiva de sanção autônoma, isto é, o

infrator podia ser condenado à pena de prisão. Mas também podia assumir um

caráter meramente acessório ou à pena de prisão se podia acrescer algum

suplício, tormento ou condição agravante.

Necessidades específicas de cada Estado foram muitas vezes

determinantes na aplicação de penas de prisão com trabalhos forçados, ou pena

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perpétua, celas muradas, grilhões ou outras formas requintadas de suplício a

criminosos que certamente teriam recebido condenação à pena capital, não fosse

a interferência da Igreja Católica, disseminando o princípio cristão de valorização

do homem.

Assim, o infrator da lei penal, além de outras punições, ainda passou a

sujeitar-se a prestação de serviços, primeiro ao Estado e, num estágio mais

recente, também a terceiros. Os registros históricos apontam o trabalho forçado

em regiões insalubres como minas de sal, pedreiras, por exemplo, ou ainda o

infamante e cruel trabalho nas galés, passando, em períodos bem mais recentes,

por confinamento em campos de trabalhos forçados (“gulags” russos) ou campos

de concentração e trabalho durante as guerras, seja na Alemanha

(aprisionamento e extermínio de judeus, ciganos, homossexuais) ou nos Estados

Unidos da América (confinando japoneses).

Um longo caminho foi percorrido pelo aprisionamento para consolidar-se de

pena acessória em pena autônoma, muito embora já fosse citado nos mais

antigos escritos, como o Código de Manu, que recomendava fossem as prisões

colocadas em locais públicos para que os apenas ficassem ainda expostos à

execração pública. Na antiga Grécia, Platão pregava a substituição de várias

penas graves pela prisão, passando pelos calabouços que antecediam a arena do

circo de Roma e encontrando na Idade Média um período áureo, com as

masmorras dos castelos feudais abarrotadas de presos em condições terríveis,

como por exemplo, nas inúmeras bastilhas de França, no período imediatamente

antecedente à Revolução, mas, “só no século XVIII é que foi reconhecida como

pena definitiva em substituição à pena de morte”9.

9 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 32.

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3. OS SISTEMAS PENAIS: A HUMANIZAÇÃO DAS PRISÕES

Se o advento do Humanismo ocasionou um certo abrandamento nas

penas, sobretudo pela substituição da pena capital pela prisão, as condições das

prisões permaneciam inalteradas desde a mais remota antigüidade. Ainda são

verdadeiros depósitos de condenados ou pessoas a espera de julgamento, sem

critérios e sem nenhuma condição de salubridade, antros infectos, onde nem

sempre havia alimento suficiente, somente logrando sair desses locais quando os

detentos são levados a executar trabalhos penosos.

Na verdade, predominava nesse período a concepção de que ao conde-

nado a punição devia recair de forma mais contundente possível, e os conceitos

de dignidade humana estavam longe de encontrar aplicação em relação a esses

excluídos do grupo social.

Somente às vésperas do século XIX os estabelecimentos penais foram

estudados seriamente, iniciando na Inglaterra com John Howard publicando seu

livro revolucionário para a época, “State of Prisons in England and Walles” (1777).

Preconizava Howard “um sistema penitenciário baseado no recolhimento celular,

reforma moral pelas religiões e trabalho diário, com as necessárias condições

higiênicas e alimentares.”10 Sua luta resultou na construção pelo governo inglês

de pelo menos três estabelecimentos prisionais que obedeciam à sua concepção.

Percebemos aqui uma nítida preocupação que ganha corpo em vários

segmentos sociais em tornar menos duras as condições de vida do apenado,

10 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 34

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objetivando-se um provável ideal de reajustamento do indivíduo ao grupo do qual

fora excluído por infringir as regras do pacto social. No dizer de Foucault, “o

criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o

pacto, é, portanto inimigo da sociedade inteira...”. A punição assume além do

caráter repressivo, uma característica preventiva ao desestimular a prática de

crimes, dosando cuidadosamente a quantidade de pena. “É preciso punir exata-

mente o suficiente para impedir”.11

Foucault em sua admirável obra “Vigiar e Punir” (l975), detecta o imperativo

de reabilitar o apenado que se acha presente nas novas idéias que surgem,

sobretudo na Europa, e que somente será possível de ser atingido se a pena

obedecer a uma rígida dosimetria e quantificação, pois “uma pena que não

tivesse termo seria contraditória: toda a restrição por ela imposta ao condenado e

que, voltando a ser virtuoso, ele nunca poderia aproveitar, não passariam de

suplícios”.12

Mas não bastava que o apenado fosse segregado, recluso. Teria que sentir

os efeitos plenos da penalidade que lhe fora cominada. Perde até mesmo a

privacidade nos moldes das casas prisionais concebidas por Bentham, descritas

em “Teoria das Penas e das Recompensas” (1818): o Panóptico, que consistia

em construções em forma de anel, tendo ao centro uma torre da qual se exerce

completa e cerrada vigilância sobre todas as celas dispostas em derredor, no anel

periférico. Por efeitos de luz e contraluz, já que cada cela é aberta à frente e

atrás, é possível vigiar os mínimos movimentos do recluso. “Daí o efeito mais

importante do Panóptico: induzir no detento o estado consciente e permanente de

visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”.13 O detento se

11

Foucault, Michel. in op. cit. p. 85 12

Foucault, Michel. in op. cit. p. 97. 13 Foucault, Michel. in op. cit. p. 177.

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sabe vigiado, mas de onde se encontra não pode saber se o vigia olha para ele

ou para algum de seus companheiros de prisão. O modelo é tão inusitado para a

época, que Foucault especula se não teria Bentham buscado inspiração no

famoso Zoológico construído por Le Vaux, em Versalhes.

Mas o aspecto que importa ao nosso estudo, diz respeito à questão do

trabalho que era imposto ao detento. O trabalho era obrigatório, tendo como

objetivo o desenvolvimento de aptidões e potencialidades do recluso, preparando-

o para uma volta ao corpo social, onde deveria reabilitar-se e tornar-se produtivo.

A fim de que não sofresse influências perniciosas no recinto da prisão, as

conversas entre detentos, quando permitidas, obedeciam a rígidas normas de

vigilância e controle.

Em contraposição, em 1790, surge nos Estados Unidos, mais precisamente

em Filadélfia um novo sistema prisional conhecido como celular ou “solitary

confinement”, no qual o detento permanecia totalmente recluso, em absoluta

solidão, perdia o direito de usar nome, recebia apenas um número. Igualmente,

permanecia em absoluta ociosidade. Os idealizadores do sistema inclusive

recomendavam uma alimentação que consistia em papa de milho e melado o que,

acreditavam, purificava o sangue e, conjugado ao silêncio absoluto e leitura da

Bíblia, levaria ao remorso purificador da alma. Os registros constatam

elevadíssimo índice de mortes, doenças, demência e suicídios entre os detentos

submetidos ao chamado sistema pensilvaniano.

Em Nova Iorque, no ano de 1821, dá-se a conhecer um sistema

preconizado por Auburn, que conserva algumas características do modelo de

Pensilvania, como o silencio absoluto entre os detentos, que somente podem falar

com os guardas, com permissão destes e em voz baixa. Mas uma fundamental

diferenciação reside no fato de que os grupos são levados a interagir, o trabalho é

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regra obrigatória, com alvorada às 05:30 da manhã, quando o detento principiava

pela higiene pessoal, seguindo-se arrumação da cela. Em seguida, dirigia-se para

as oficinas onde trabalhava até por volta de 20:00 horas em absoluto silêncio.

Também as refeições decorriam em silêncio e a quebra do mutismo era punida

com chicotadas.

Odete Maria Oliveira, in op. cit. p., assim compara os dois sistemas: “Enquanto que o sistema de Filadélfia objetivava a transformação do homem criminoso em bom e de alma pura através do arrependimento, levado pela reflexão, o sistema de Auburn pretendia condicionar o apenado pelo trabalho, disciplina e mutismo. Ambos, porém, só faziam degenerar o homem”.14

Mas os ideais humanistas ganhavam força e na Europa o coronel espanhol

Montesinos Y Molina implanta um sistema que objetivava a reabilitação plena no

detento. O trabalho era regra obrigatória, e surge aqui a figura do trabalho

remunerado do preso. O número de evasões era considerado baixo para os

padrões então vigentes.

No outro lado do mundo, na Austrália, um sistema passou a vigir desde

1846, sob a orientação do capitão da Real Marinha Inglesa, Alexander

Maconochie. Preconizava a reabilitação e implantou um sistema progressivo sob

forma de vales, pelos quais o detento recebia vales que lhe antecipavam o final

da pena, segundo seus méritos, ou os perdia, quando descumpria as normas

estritas da casa de detenção.

O sistema de Maconochie, chamado “Mark System” encontrou similar na

Irlanda, onde Walter Crofton ampliou o sistema progressivo, permitindo ao detento

sair para trabalho externo, permitia conversas entre os grupos e preparava para a

volta à atividade produtiva quando finda a penalidade.

14 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 42.

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35

Este foi, sem dúvida, um dos mais avançados sistemas conhecidos, tendo

inclusive influenciado grandemente a legislação penal brasileira que, com ligeiras

modificações ainda hoje o adota.

3.1. Sistema Penal Brasileiro

O sistema penal brasileiro acompanhou as diversas fases evolutivas das

penas e dos sistemas de execução penal no restante do mundo a partir do

descobrimento e colonização pelos portugueses, aqui se refletindo, naturalmente,

as tendências correntes na Europa.

O Código Penal em vigor, datado de 1940 com inúmeras posteriores

alterações, foi redigido com fundamento na Escola Positivista esposada pelo

então ministro da Justiça Francisco Campos, após receber valiosas contribuições

de juristas renomados, todos também filiados a esta corrente de pensamento,

como Vieira de Araujo, Galdino Siqueira, Evaristo de Morais, Bulhões Pereira,

Vieira Braga, Narcélio Queiroz, Nelson Hungria, Roberto Lira e Alcântara

Machado, que relatou o projeto e emprestou-lhe redação final.

Assim, já na Exposição de Motivos ao novo Código Penal, Francisco

Campos justificava:

“Coincidindo com a quase totalidade das codificações modernas, o projeto não reza em cartilhas ortodoxas, nem assume compromissos irretratáveis ou incondicionais com qualquer das escolas ou correntes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele os postulados clássicos fazem causa comum com os postulados da Escola Positiva”.

Em esposando esta visão, o Código Penal brasileiro contempla o sistema

progressivo de cumprimento das penas de prisão, todas temporárias, nas

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36

modalidades de reclusão e detenção. A reclusão é a mais rigorosa e sua

execução obedece ao cumprimento de quatro fases distintas: o preso cumprirá

período inicial de segregação e isolamento, que não pode exceder a 3 (tres)

meses, podendo, a seguir, trabalhar no interior do estabelecimento penitenciário.

Segue-se um período de prisão mais leve, em que é permitido ao recluso

trabalhar dentro ou fora do estabelecimento. Nesta fase poderá ser transferido

para uma colônia penal agrícola ou industrial ou estabelecimento similar. Por fim,

o livramento condicional.

Nas penas de detenção, destinadas à punição dos crimes menos graves,

não existe o período inicial de isolamento, mas o livramento condicional é

previsto. Em qualquer das duas modalidades de execução da pena privativa de

liberdade, o trabalho do preso é obrigatório.

3.2. A Reforma do Código Penal e a Execução das Penas

Em 1969 a legislação penal, com o advento do Ato Institucional n° 5,

promulgado pelo governo de exceção, sofreu algumas modificações, o mesmo

ocorrendo em l.977, com a Lei n° 6.416, mas só em l984 procedeu-se uma

efetiva reforma parcial do Código Penal brasileiro, incorporando-se algumas

novidades e operando correções de falhas e preenchendo lacunas existentes na

codificação anterior vigente.

Na Exposição de Motivos à reforma da Parte Geral do Código Penal, o

Ministro da justiça Ibrahim Abi-Ackel assevera:

“Apesar desses inegáveis aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica ao delito, a rejeição social dos apenados

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37

e seus reflexos no incremento da reincidência, s sofisticação tecnológica que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, é fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século”.

Já aqui, no prólogo da própria codificação penal, temos o reconhecimento

dos nocivos efeitos do ambiente reinante na casa de detenção sobre o apenado.

Abi-Ackel enfatiza que “uma política criminal orientada no sentido de proteger a

sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de

reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada

vez maior do cárcere”.

Também o regime de cumprimento das penas privativas de liberdade

ganha contornos mais nítidos e mesmo mais rígidos. O regime fechado passa a

ser cumprido em estabelecimentos de segurança máxima ou média, enquanto

que o regime semi-aberto será cumprido em colônia penal agrícola ou industrial

ou estabelecimento similar. O regime aberto será cumprido em albergue ou

instituição adequada.

Textualmente, o projeto fixa as condições de trabalho impostas a todos os

detentos, indistintamente: “O trabalho, amparado pela Previdência Social, será

obrigatório em todos os regimes e se desenvolverá segundo as aptidões ou oficio

anterior do preso, nos termos das exigências estabelecidas”.

O artigo 34 do Código Penal estabelece:

“Art. 34. O condenado será submetido, no inicio do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução. § 1° O condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno. § 2° O trabalho será em comum dentro do estabelecimento, na confor-midade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena. § 3° O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas.”“.

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E ainda o artigo 35 estabelece o trabalho obrigatório entre as normas do

regime semi-aberto:

“Art. 35. Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto. § 1° O condenado fica sujeito ao trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. § 2° O trabalho externo é admissível bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.”“.

Idêntica disposição se aplica ao regime aberto (albergue):

“Art. 36. O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado. § 1° O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.”“.

Por fim, o novo estatuto preconiza a manutenção do regime progressivo de

cumprimento da reprimenda, mediante a progressão para regime mais brando

conforme recomende a índole e atitudes do preso. A partir do regime fechado,

que é a parcela mais severa do período de cumprimento da penalidade, a

progressão outorga devolução de parcelas de liberdade anteriormente suprimidas,

tudo objetivando o reingresso ao convívio social do elemento, até então

segregado.

É possível, no entanto, haver regressão para regime mais severo, em caso

de infração às regras do novo regime para o qual tenha progredido ou pela

superveniência de nova condenação que, somada às penalidades já aplicada,

pela quantidade, determine cumprimento de parcela em regime mais severo.

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3.3. Execução Penal Autônoma.

Como se viu, há uma profunda preocupação em minimizar os efeitos

danosos da prisão sobre a personalidade do preso e os reflexos em sua vida

futura, quando de seu retorno ao almejado convício social. No entanto, as

alternativas, embora numerosas, nem sempre se mostram as mais adequadas ou

eficazes a prestar-se na pretendida reforma do sistema penal. Esta angustiosa

expectativa ganha contornos globais, como o descreve Foucault: “Conhecem-se

todos os inconvenientes da prisão e sabe que é perigosa quando não inútil.

Entretanto, não “vemos” o que pôr em seu lugar.” E conclui, desalentado: “Ela é a

detestável solução, de que não se pode abrir mão.”

Esta preocupação data de várias décadas no Brasil e em inúmeros outros

países. Segundo Mirabete (1997), nesta busca de autonomização da execução

da pena

“podem ser referidos como expressivos os seguintes diplomas: lei penitenciária Nacional, Argentina (1958); Código de Execução das Penas, Polônia (1969); Normas Sobre o Ordenamento Penitenciário, Itália (1975); Lei de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, República Federal da Alemanha (1976); lei sobre Execução das Penas Privativas de Liberdade, da República Democrática Alemã (1977); e lei Geral Penitenciária, da Espanha (1979)15. No Brasil, a Constituição de 1824 já se havia inserido alguns dispositivos

que antecipavam uma política de humanização nas condições carcerárias. O

mesmo deu-se com as Constituições seguintes (1.934, 1.946 e l.967), apesar de

que já em 1.933 intentava-se emprestar autonomia à Execução Penal, libertando-

15

MIRABETE, Julio Fabrini. Execução penal. Comentários à Lei n° 7.210, de 11-7-84. S. Paulo. Atlas.

1977. p. 24.

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a da condição de simples parte do direito processual com a edição do Código

Penitenciário da República, em memorável trabalho de lavra de Candido Mendes,

Heitor Carrilho e Lemos de Britto.

Outras tentativas foram levadas a efeito por Oscar Stevenson (1.953),

Roberto Lyra (1.963), José Carlos Moreira (1.970), e em 1.981, quando foi

instituída uma Comissão para elaborar o anteprojeto da Lei de Execução Penal.

3.4. A Lei de Execução Penal

Diante da sua extrema complexidade, discute-se na doutrina a natureza da

execução penal a fim de se definir exatamente sua posição, métodos e limites.

Simultaneamente por ocasião da promulgação da reforma da Parte Geral

do Código Penal, através da Lei 7.209, deu-se também a promulgação da Lei n°

7.210, ambas de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal no

Brasil, preconizando em seu artigo primeiro, além da execução das disposições

contidas na sentença condenatória, a execução de políticas que permitam a

“harmônica integração social do condenado e do internado”16.

Ao determinar que a execução penal “tem por objetivo efetivar as

disposição da sentença ou decisão criminal”, o dispositivo registra formalmente o

objetivo de realização penal concreta do título executivo constituído por tais

decisões. A segunda é a de “proporcionar condições para a harmônica

integração social do condenado e do internado”, instrumentalizada por meio da

16

Lei de Execução Penal (7.210, de 11-07-84): “Art. 1° A execução penal tem por objetivo efetivar as

disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do

condenado e do internado.”

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oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de

segurança possam participar construtivamente da comunhão social.

O sentido imanente da reinserção social, conforme o estabelecido na lei de

execução, compreende a assistência e ajuda na obtenção dos meios capazes de

permitir o retorno do apenado e do internado ao meio social em condições

favoráveis para a sua integração, não se confundindo “com qualquer sistema de

tratamento que procure impor um determinado número e hierarquia de valores em

constraste com os direitos da personalidade do condenado.

A execução penal é uma atividade complexa, que se desenvolve nos

planos jurisdicional e administrativo.

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42

Referências Bibliográficas

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