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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARLEIDI MOCELIN CRIANÇAS COM SINAIS DE DESATENÇÃO/HIPERATIVIDADE: O IMAGINÁRIO ABSTRAÍDO DA FLUIDEZ DOS RÓTULOS VITÓRIA/ES - 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MARLEIDI MOCELIN

CRIANÇAS COM SINAIS DE DESATENÇÃO/HIPERATIVIDADE:

O IMAGINÁRIO ABSTRAÍDO DA FLUIDEZ DOS RÓTULOS

VITÓRIA/ES - 2008

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MARLEIDI MOCELIN  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CRIANÇAS COM SINAIS DE DESATENÇÃO / HIPERATIVIDADE:

O IMAGINÁRIO ABSTRAÍDO DA FLUIDEZ DOS RÓTULOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da profª Dra. Sonia Lopes Victor.

VITÓRIA/ES JUL. 2008

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A Otávio, meu menino. Fonte de inspiração,

Sentido da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

A Dirceu P. Zucatelli, pela dedicação, apoio e incentivo constantes.

À minha mãe, por ser minha referência de força e fé.

A Sonia Lopes Victor, pesquisadora de espírito aberto, por ter acreditado neste projeto e por ter se tornado grande companheira na jornada da pesquisa.

A Denise Meyrelles de Jesus, pelo exemplo de ser professora/pesquisadora.

A Hiran Pinel, por despertar o desejo pelo mestrado em educação.

A Cláudio Roberto Baptista, por gentilmente aceitar fazer parte deste trabalho, gentileza que, aliás, é sua marca pessoal.

A Débora Almeida de Souza, que se revelou uma ótima parceira durante o mestrado, além de uma grande companheira de pesquisa.

Às minhas outras companheiras de pesquisa, Marileide, Renata e Marcela, pelas trocas sempre valiosas e profícuas.

A Lucia Tedoldi, pelo entusiasmo, criatividade e por suas preciosas sugestões.

A Sandra Tedoldi, por sua disponibilidade, gosto pela pesquisa e pela valiosa contribuição metodológica.

A Gilcéia Lima Gonçalves, pela delicadeza na correção textual.

A Marta Alves, pelas trocas de informações.

A Dirciana Zucatelli, pelo apoio técnico. Às estagiárias Evanesca e Justina, por suas observações apuradas e valiosas colaborações. A todos os profissionais, funcionários e alunos da escola pesquisada, pela colaboração efetiva neste trabalho e por me acolherem e indicarem caminhos na realização desta pesquisa. Ao menino André, que, por seu jeito de ser/estar no mundo, tanto me ensinou no desenrolar da pesquisa e tão bem representou outros tantos meninos e meninas que na sua resistência acabam se tornando vítimas de rótulos que os cerceiam e muitas vezes os impedem de vivenciar adequadamente o seu processo de escolarização. A vocês, obrigada!

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RESUMO

Este estudo analisa o processo de escolarização de crianças com sinais de desatenção/hiperatividade no contexto da educação infantil, a partir de uma discussão fundamentada ns conceitos de Foucault, da psicanálise e da abordagem histórico-cultural. Por serem conceitos bastante dúbios, desatenção e hiperatividade são tratados a partir do termo “sinais” para evitar rotulações. Por meio da pesquisa colaborativa, busca identificar dispositivos que possam problematizar as concepções e as práticas pedagógicas oferecidas às crianças. A perspectiva é trabalhar no cotidiano da prática pedagógica da escola, reunindo as suas diversas personagens – professora, pedagogas, estagiárias e alunos –, no intuito de desconstruir conceitos estigmatizantes e imobilizadores de um fazer pedagógico. O material narrativo examinado indica que as práticas pedagógicas na educação infantil buscam controlar e classificar sua clientela, estabelecendo modelos de ação que têm o intuito de “desenvolver” a criança, preparando-a para o ensino fundamental. Entretanto, não vê a atenção, por exemplo, como função que precisa ser estimulada e desenvolvida. Constata-se que a prática colaborativa se constitui num dispositivo fundamental para a prática pedagógica inclusiva.

Palavras-chave: Desatenção. Hiperatividade. Pesquisa colaborativa. Educação infantil.

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ABSTRACT

This study analyses the process of the school period of children with supposed signals of inattentiveness / hyperactivity in the context of the elementary education. Foucault’s concepts, of the psychoanalysis and of the historic-cultural boarding base this discussion. As these terms are quite dubious; inattentiveness and hyperactivity are treated as from the acceptation of “supposed signals” to avoid labeling. Through the collaborative research, it searches to identify mechanisms that can make problematic the conception and the pedagogic practices offered to the children. The perspective is to work in the daily of the pedagogic practice of the school, joining its several personage – teacher, pedagogues, apprentices and children – in the intuit of demolishing stigmatizing and immobilizing concepts of a pedagogic “do”. The narrative material examined indicates that the pedagogic practices in the elementary education search to control and classify its clientele, establishing models of action that have the intuit of “developing” the child, preparing itself to the secondary education. However, it doesn’t see the attention, for example, as an activity that needs to be stimulated and developed. We find out that the collaborative practice constitute itself in a fundamental mechanism to the inclusive pedagogic practice.

Key words: Inattentiveness. Hyperactivity. Collaborative research. Elementary Education.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Expectativas infantis sobre a escola.................................................Figura 2 – A perda da infância de Postman..................................................... Figura 3 – A infância a partir da Modernidade................................................. Figura 4 – Vivências infantis atuais.................................................................. Figura 5 – A monotonia escolar....................................................................... Figura 6 – Irresistível necessidade de brincar................................................. Figura 7 – A Formigadinha............................................................................... Figura 8 – A infância da Formigadinha............................................................ Figura 9 - A realidade da fantasia.................................................................... Figura 10 – A Formigadinha vai à escola......................................................... Figura 11 – O desencanto com a escola I....................................................... Figura 12 – A Formigadinha se desencanta com a escola.............................. Figura 13 – O “adoecimento” da Formigadinha I............................................. Figura 14 - O “adoecimento” da Formigadinha II............................................. Figura 15 – A mudança na proposta escolar................................................... Figura 16 – O resgate da alegria..................................................................... Figura 17 – A escola de todos......................................................................... Figura 18 - Escola: lugar de aprender e ser feliz I........................................... Figura 19 – Escola: lugar de aprender e ser feliz II......................................... Figura 20 – O processo de estigmatização I.................................................... Figura 21 - O processo de estigmatização II................................................... Figura 22 – A produtividade invadindo a infância............................................ Figura 23 – A escola produzindo o “adoecimento” I........................................ Figura 24 – O desgaste relacional.................................................................. Figura 25 - A escola produzindo o “adoecimento” II........................................ Figura 26 – Docilidade e obediência: negação ao ser criança I...................... Figura 27 - Docilidade e obediência: negação ao ser criança II...................... Figura 28 – Resistência I................................................................................. Figura 29 – Resistência II................................................................................ Figura 30 – O desencanto com a escola II...................................................... Figura 31 – A desatenção................................................................................ Figura 32 – Princípio 1º....................................................................................

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Figura 33 - Princípio 2º.................................................................................... Figura 34 - Princípio 3º.................................................................................... Figura 35 - Princípio 4º.................................................................................... Figura 36 - Princípio 5º.................................................................................... Figura 37 - Princípio 6º.................................................................................... Figura 38 - Princípio 7º.................................................................................... Figura 39 - Princípio 8º.................................................................................... Figura 40 - Princípio 9º.................................................................................... Figura 41 - Princípio 10º..................................................................................

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SUMÁRIO

UM PEDAÇO DE MIM...................................................................................

1. INTRODUÇÃO............................................................................................

2. POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DE DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS........................................................

2.1 AS CONTRIBUIÇÕES FOUCAULTIANAS............................................... 2.2 AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL...... 2.3 AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM PSICANALÍTICA...................

3. A ESCOLARIZAÇÃO DE SUJEITOS COM SINAIS DE DESATENÇÃO/ HIPERATIVIDADE..............................................

3.1 (IN) DISCIPLINA ESCOLAR: ALGUMAS DEFINIÇÕES E A VISAO DOS EDUCADORES..................................................................... 3.2 A ESCOLA PODE ESTAR PRODUZINDO SUJEITOS INDIS- CIPLINADOS?........................................................................................... 3.3 A INFÂNCIA ATUAL E A ESCOLA..........................................................

4. INVESTIGANDO A EDUCAÇÃO INFANTIL....................................... 4.1 A NATUREZA DO ESTUDO...................................................................... 4.2 A ESCOLA................................................................................................. 4.3 OS PARTICIPANTES DA PESQUISA...................................................... 4.3.1 O grupo de estudos........................................................................ 4.3.2 O grupo de trabalho........................................................................ 4.4 A TRAJETÓRIA E OS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA..................... 4.4.1 Primeiras aproximações................................................................. 4.4.2 Observações participantes............................................................ 4.4.3 Os encontros de formação continuada......................................... 4.4.4 Análise dos dados...........................................................................

5. O CASO ANDRÉ - UMA HISTÓRIA DE MENINO............................. 5.1 A FAMÍLIA................................................................................................. 5.2 O MENINO................................................................................................. 5.3 A ESCOLA................................................................................................. 5.4 O “ADOECIMENTO”................................................................................. 5.5 SITUANDO O ESTUDO DO CASO A PARTIR DA FORMAÇÃO CONTINUADA........................................................................................... 5.6 O TERCEIRO ENCONTRO DE FORMAÇÃO...........................................

6. CONSTRUINDO UM PROJETO COLABORATIVO......................... 6.1 O GRUPO DE TRABALHO....................................................................... 6.2 A ESCOLA: TERRA DO SEMPRE X TERRA DO NUNCA...................... 6.2.1 A terra do sempre: o espaço-território.......................................... 6.2.2 A terra do nunca: o espaço-imaginário......................................... 6.3 A PROFESSORA: BRUXA MÁ OU FADA MADRINHA...........................

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6.4 MARCOS - OUTRO PERSONAGEM DA HISTÓRIA................................ 6.5 AULAS DE ARTES E EDUCAÇÃO FÍSICA: ONDE FICAM A IMAGINAÇÃO E O MOVIMENTO?........................................................... 6.6 AS ESTAGIÁRIAS: ANJOS DA GUARDA............................................... 6.7 AS PEDAGOGAS E SUA FALTA DE TEMPO PARA PLANEJAMENTO...................................................................................... 6.8 O PROCESSO COLABORATIVO.............................................................

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 7.1 ALGUNS ASPECTOS RELATIVOS ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA.................................................................... 7.2 O LÚDICO NA EDUCAÇÃO INFANTIL.................................................... 7.3 O NÃO OUVIR AS CRIANÇAS................................................................. 7.4 PENSANDO A SALA DE AULA UM ESPAÇO MAIS AGRADÁVEL: “cintilando o espaço com pó mágico da terra do nunca”....................

8. REFERÊNCIAS...........................................................................................

APÊNDICES.....................................................................................................

APÊNDICE A - Formulário direcionado aos Profissionais da Educação do CMEI ....................................................................................

APÊNDICE B - Tabulação das respostas fornecidas pelos profissionais do CMEI ao grupo de pesquisa da UFES para a organização da proposta de formação continuada.....................................

APÊNDICE C - Cronograma de atividades desta pesquisa........................... APÊNDICE D - Documentação fotográfica do CMEI ......................................APÊNDICE E - Cronograma dos encontros de formação continuada e suas

respectivas temáticas............................................................. APÊNDICE F – Termo de Autorização............................................................ APÊNDICE G - Solicitação de autorização para utilização das páginas do

livro “A FORMIGADINHA”......................................................

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UM PEDAÇO DE MIM

Uma menina igual a mil Que não está nem aí

Tivesse a vida pra escolher E era talvez ser distraída

O que ela mais queria ser (Chico Buarque)

Organizar os dados e compor este texto exigiu inicialmente sistematizar questões

relativas à minha vivência profissional como psicóloga. Fragmentos da história de

vida da pesquisadora, ao buscar compreender sua história, resgatando o sentido-

sentido (PINEL, 2000) de outras histórias.

Convivo, desde 1999, com as queixas de pais, professores e pedagogos sobre

crianças com “problemas de comportamento”, trabalhando numa escola de

educação infantil, ensino fundamental e médio, como psicóloga escolar. Implicada

nesse espaço, percebo o quanto é complexo desmistificar que questões

comportamentais nem sempre são indícios de problemas que precisam ser

encaminhados aos serviços de saúde.

Como psicóloga, falo de um lugar. Não um lugar neutro, incontaminado; pelo

contrário, é um lugar impregnado pela visão médica, e é-me difícil desabitar essa

perspectiva. Se consigo fazê-lo, é por muito esforço; e é esse esforço que procuro

implementar como formadora de professores no curso de Pedagogia e como

pesquisadora do contexto escolar. Usando as palavras de Bujes, “sou tão produzida

pelos discursos que tenho a pretensão de comentar, como todas as hipotéticas

crianças que são por eles descritas e constituídas” (2002, p.15). Também não tenho

a ilusão de poder me afastar radicalmente dessa visão, haja vista que nela me

constituí psicóloga. Entretanto, por mais que perceba tais amarras, sinto que posso

trabalhar no sentido de desconstruir esse discurso medicalizante e discutir outras

possibilidades de olhar esse processo.

Como pesquisadora, busco o sentido inverso. Em 2001, comecei a me dedicar

sistematicamente ao estudo desses problemas inespecíficos apresentados pelas

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crianças e deflagrados no contexto escolar. Pesquisava por conta própria, escrevia

artigos, e com isso algumas idéias foram se estruturando.

Já era professora de graduação desde 1997, mas em 2006 comecei a atuar no

curso de Pedagogia e então pude, na formação desses professores, começar a

perceber a distância existente entre suas concepções, crenças e valores,

carregados de idealismos acerca da Educação, e as suas práticas concretas,

cotidianas, envolvidas numa rotina “dura” e assoberbada.

Então, a pesquisadora quis e quer redimensionar no discurso escolar este

atravessamento médico, psicologizante, procurando romper com o empoderamento

desse discurso sobre os profissionais das escolas. Nesse sentido, é preciso

possibilitar à equipe escolar protagonismo para pensar e repensar suas práticas

pedagógicas.

O mestrado em Educação possibilitou a consolidação de algumas idéias. Em 2006,

participando da disciplina “Estágio em Pesquisa”, do Programa de Pós-Graduação

em Educação, pude me aproximar mais do contexto da educação infantil e

compreender que as questões do processo de escolarização dessas crianças

começam a se enviesar desde aí. Percebi que o modo de conceber a infância é

fundamental para compreender a pedagogia que se pensa para ela. Mudei algumas

bases do projeto e, no início de 2007, comecei um estudo exploratório com um

levantamento de dados e informações, em um Centro Municipal de Educação,

localizado num bairro de Vitória/ES, com o objetivo de aprofundar as questões

relativas às crianças com sinais de desatenção/hiperatividade na educação infantil.

Nesse contato, também fui percebendo que o modismo da “Hiperatividade”, ou do

“TDAH”, tinha chegado à educação infantil. E ficava me perguntando: o que pode

estar gerando tudo isso? Comecei a ler matérias em revistas e jornais e percebi um

aumento da divulgação dessa temática nos meios de comunicação de massa;

percebi o quanto palestras sobre esse assunto agradavam ao público; enfim, percebi

que havia um intenso e perigoso movimento em torno da temática. Perigoso porque,

na absoluta maioria das vezes, o assunto era tratado como um transtorno

comportamental, catalogado nos manuais internacionais de doenças, e não se

falava com a mesma freqüência sobre o porquê de ele ter-se tornado tão popular

nas escolas e na vida moderna de um modo geral. Ou seja: por que ninguém

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questiona as práticas educacionais tradicionais sendo impostas a crianças que

parecem se mostrar mais ativas agora, com mais acesso à informação, com mais

dinamismo em suas vidas, com mais argumentos em suas falas, mais seletivas em

sua atenção etc.?

É um fenômeno deflagrado na escola, mas que ganha, muitas vezes, uma

conotação médica. É mister ter em mente que essa perspectiva clínico-terapêutica é

uma construção histórica que vem se disseminando ao longo dos séculos. O sujeito

que é tido como diferente, fora da norma, do padrão convencional/estabelecido, é

levado a tratamento para que possa ser readaptado ao convívio social.

Na escola, o lugar do psicólogo suscita dilemas e indagações. São muitas as

possibilidades de atuação, mas, enquanto profissional, ele deve fugir às demandas

da "psicologia de gabinete" escolar. É o que está no imaginário das pessoas: que o

psicólogo deve avaliar o aluno, aplicar testes psicológicos, produzir um diagnóstico,

encontrar no indivíduo algo que justifique os problemas e encaminhá-lo de volta à

sala de aula carregando esse "rótulo". Assumir essa postura significa atender a uma

demanda e legitimar, com o poder e o status que goza a psicologia, esse discurso

vigente de responsabilizar o aluno.

Então, entrei neste projeto com uma determinada postura que rompesse com esse

olhar médico-psicológico tão arraigado. Durante o processo, tentei me firmar no que

prega Baptista, quando escreve que “devemos conter o nosso pragmatismo, frear

nossa tendência às respostas, explorar de maneira crítica nossa própria experiência,

reconhecer nossa dolorosa e contínua implicação” (2006, p.29). Ao final, pude

perceber o quanto essa experiência havia me modificado. Meu olhar agora,

enriquecido pelos atravessamentos de tantos outros olhares, já me permite habitar

um lugar em que posso ver o indivíduo em suas idiossincrasias, permeado e

constituído por toda a rede de significações (familiares, escolares, sociais e

culturais) que o atravessa.

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1. INTRODUÇÃO

As crianças conquistaram o direito de entrar pelos portões da escola, mas ainda não conseguiram, apesar de toda sua resistência, de sua teimosia em querer aprender, derrotar o caráter excludente da escola brasileira...

(MOYSÉS, 2001, p.58)

É muito provável que, na trajetória profissional de um educador, este se depare

algumas vezes com crianças cujos comportamentos lhes desafiem em sua

autoridade de professor, num lugar onde isso é sagrado – a escola. Explico melhor.

Crianças que se desligam facilmente daquilo que está sendo proposto ou mesmo

que se movimentam inadequadamente, desafiando as regras da escola, estão sendo

cada vez mais notadas no conjunto dos alunos. E, na escola, a autoridade docente

no espaço de sala de aula é chamada aqui de sagrada porque manter a ordem, ter o

domínio da sala, levar todos a um lugar comum... são idéias recorrentes no campo

educacional.

Essa evidência está deixando professores e outros profissionais da escola à beira de

um “ataque de nervos”. O trabalho pedagógico, pontilhado por essas situações, é

marcado muitas vezes por grande frustração.

Atualmente, no contexto social e escolar, muitas dessas crianças vêm ganhando

denominações - desatentas, hiperativas, indisciplinadas, “sem limites” -, numa

tentativa de categorizá-las, classificá-las ou mesmo nominá-las, para que, de alguma

forma, se possa exercer sobre elas algum controle. Explicações médicas se

popularizaram ao longo do século XX sem, entretanto, conseguir precisão sobre os

sinais de desatenção/hiperatividade.

Tudo começou em meados do início do século XX. Estudos com crianças que

sobreviveram a uma epidemia de Encefalite e apresentavam como seqüela

comportamentos de inquietação, desatenção, impaciência etc. sugeriram que tais

manifestações seriam advindas de uma “Lesão Cerebral Mínima” e concluíram que

crianças com essas mesmas manifestações comportamentais, ainda que sem causa

determinada, deveriam também possuir alguma lesão cerebral.

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Esse é o início do mal entendido. Comportamentos de hiperatividade e desatenção

passaram a ser uma questão médica, com a busca das causas no próprio corpo da

pessoa.

Alguns estudos realizados após a Segunda Guerra Mundial, com pessoas vitimas de

traumas cerebrais, constataram que prejuízos de qualquer parte do cérebro

frequentemente resultavam no aparecimento de desatenção, inquietação e

impaciência. Esses estudos reforçaram a idéia anteriormente já levantada de que

crianças com tais sintomas tiveram, em algum momento, alguma lesão cerebral.

Com o passar do tempo, as dificuldades em provar a existência de alguma lesão

cerebral provocaram mudanças importantes nos focos das pesquisas, na

conceituação, nos tratamentos etc. Devido às controvérsias relativas à ausência de

uma lesão no sistema nervoso central, o termo “Lesão Cerebral Mínima” cede lugar

à “Disfunção Cerebral Mínima” (COLLARES & MOYSÉS, 1992).

As denominações recebidas são variadas e foram se substituindo ao longo do

tempo: Lesão Cerebral Mínima (Strauss e Lehtinen, em 1947); Síndrome do Impulso

Hipercinético (Laufer, em 1957); Disfunção Cerebral Mínima (Grupo de Estudos

Internacionais de Oxford, em 1962); Reação Hipercinética da Infância (Associação

Americana de Psiquiatria, em 1968); Síndrome Hipercinética da Infância (OMS/CID-

9, em 1978); Distúrbio Deficitário da Atenção - com ou sem Hiperatividade

(Associação Americana de Psiquiatria, em 1980); Distúrbio de Hiperatividade por

Déficit de Atenção (Associação Americana de Psiquiatria, em 1987); Déficit de

Atenção/Hiperatividade (Associação Americana de Psiquiatria, em 1993);

Transtornos Hipercinéticos (OMS/CID-101, em 1993); Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade (Associação Americana de Psiquiatria, em 1994).

Observa-se que, a partir da década de 50, estrutura-se o conceito de uma “síndrome

hipercinética”, ou seja, hiperatividade, desatenção, impulsividade e outros sintomas

passaram a compor, no interior da medicina, uma entidade clínica passível de

tratamento medicamentoso. Embora tenham sido feitos muitos estudos e mesmo

tendo havido avanço tecnológico significativo em termos de exames neurológicos,

não foi constatada nenhuma alteração orgânica. Inclusive o uso de drogas no

1 Organização Mundial de Saúde/Classificação Internacional de Doenças. 10.ed.

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tratamento do “Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade” (TDAH)2 era feito a

partir da constatação empírica de que algumas crianças melhoravam com o uso de

calmantes e outras, paradoxalmente, melhoravam com o uso de estimulantes

(SUCUPIRA, 1985).

No interior da própria medicina, a partir da década de 80, começou a haver um

movimento crescente que discute a validação do conceito (SUCUPIRA, 1985).

Portanto, não há consenso sobre o TDAH no que tange ao tratamento. Não há um

exame seguro para detectá-lo, suas causas são amplamente especulativas e suas

manifestações são relativas aos olhos do observador.

Mas, mesmo se tratando de conceito com problemas teórico-metodológicos,

atualmente, os estudos e as pesquisas continuam sustentando o postulado

orgânico-biológico do quadro. É um conceito diagnóstico amplamente aceito, o mais

prevalente dentre todos os transtornos neuropsíquicos da criança, segundo a

literatura americana, sem, entretanto, ser um conceito seguro, pois seu uso (desuso)

é muito questionável.

Gostaríamos aqui de retomar algumas das pesquisas que vêm sendo produzidas

nas escolas e que apontam para índices muito altos no que se refere a crianças

desatentas/hiperativas.

Os estudos de Werner et al. (2003) sobre a prevalência3 de TDAH numa escola

pública revelam dados alarmantes. Esses pesquisadores estudaram todos os alunos

das classes de alfabetização à quarta-série de uma escola, totalizando 403 alunos.

Na primeira etapa, as professoras e os pais preencheram um questionário

padronizado baseado nos sintomas do DSM-IV4. Num segundo momento, os alunos

com triagem positiva foram submetidos a uma rigorosa anamnese, a uma avaliação

baseada nos sintomas do DSM-IV, ao preenchimento de questionário psicossocial e

a exames físicos e neurológicos completos, para averiguar alguma outra doença ou

comprometimento que pudesse causar os mesmos sintomas.

2 Aqui escolhemos essa terminologia por ser a mais popular atualmente. 3 Número total de casos existentes numa determinada população e num determinado momento temporal. 4 DSM é uma sigla do original em inglês, "Diagnostic and statistical manual of mental disorders", utilizada na edição em português.

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Dos 403 alunos avaliados na primeira etapa, 108 tiveram triagem positiva, e destes,

101 alunos, de 21 turmas diferentes, foram avaliados na segunda. Os resultados

apontaram uma prevalência de 17,1%, ou seja, 69 alunos (45 meninos e 24

meninas). O número é bem mais alto do que o anunciado pelo DSM-IV (3 a 5% das

crianças em fase escolar). Por que tanta disparidade? Os autores mencionam nesse

estudo outros resultados de outras investigações, igualmente altos, como é o caso

do estudo de Guardiola (1994, apud WERNER et al., 2003), que em sua tese de

doutorado intitulada “Distúrbio de hiperatividade com déficit de atenção: um estudo

de prevalência e fatores associados em escolares de 1ª série de Porto Alegre”,

apresenta índice de 18%.

Do que esses números nos falam? A despeito da preocupação estatística ou da

fidedignidade dos dados analisados, é espantoso. Será que a escola está sendo um

meio ambiental deflagrador e potencializador das características desse transtorno?

Podemos analisar essa questão ainda por outro aspecto. O próprio surgimento da

psicopedagogia, historicamente, denota um tamponamento no que diz respeito ao

processo do insucesso escolar, servindo, juntamente com a psicologia, como

instrumento de legitimação desse “adoecimento”, desviando assim a

responsabilidade do mesmo para o indivíduo, isentando, dessa forma, o sistema

educacional. Lajonquière (1999) chama de “processos de psicologização do

cotidiano escolar” a essa inundação das idéias de cunho psicológico nas práticas

docentes e nos fundamentos pedagógicos. Os testes, encaminhamentos,

remanejamentos, enfim, mostram o esvaziamento do ato educativo.

Aqui, talvez fosse oportuno perguntar: para que diagnosticar? Para saber qual o

melhor remédio? Isso nos faz pensar que classificação de doenças serve para

atender aos interesses dos laboratórios farmacológicos e, talvez, também para

facilitar a vida dos médicos que, dizendo o que a criança tem, atendem aos anseios

de sua família. E daí? O que fazer com isso? Será que os médicos sabem que

muitas famílias esperam ansiosamente um diagnóstico para corporificar seu bode

expiatório para que os outros possam se sentir mais "normais"?

Esses dados são assustadores e alarmantes, pois significam que, dentre 100 alunos

de uma escola, 15 a 18 apresentam comportamentos hiperativos. E o que significa

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ser hiperativo? O que é um aluno com TDAH? O que representa esse aumento no

índice?

Nota-se que houve uma evolução nas terminologias, mas ainda hoje temos que

conviver com a nebulosidade que envolve esses termos. No entanto, se existe a

polêmica, também existe a necessidade de falarmos dela. Essa temática tem sido

vista em dois extremos: o das pessoas que acreditam piamente na existência do

transtorno e o das pessoas que, porque não acreditam, não a tomam para estudá-la.

Aqui assumimos a temática como uma possibilidade de reflexão e uma possibilidade

de desconstrução do conceito. Para desconstruir um conceito, é preciso estudá-lo.

Se tomarmos o caminho das terminologias adotadas pelo próprio Ministério da

Educação (MEC), podemos também nos deparar com a citada nebulosidade. Até

2003, o Censo Escolar do MEC trazia uma categoria de alunos, com Necessidades

Educacionais Especiais (NEE), denominada “Outras”. Categoria essa em que

constava um número excessivo de alunos, quer em nível municipal, quer em nível

federal. Em 2004, essa categoria foi suprimida, aumentando significativamente o

número de alunos contados na categoria “Condutas Típicas”5.

Mas o termo “Condutas Típicas” é vago e sob esta categoria qualquer um pode ser

enquadrado, dependendo da percepção do professor. Atualmente, é notória a

facilidade com que se rotulam crianças como “Condutas Típicas”. Corroborando esta

afirmação, dados nacionais podem ser comparados. Dados do INEP/MEC,

organizados no Censo Escolar 2006, quanto ao fluxo de matrículas na Educação

Especial de alunos com Condutas Típicas, mostram uma evolução no número de

matrículas de 79.850, em 2005, para 95.860, em 2006, em todas as modalidades de

ensino. Esse dado representa um aumento significativamente maior que qualquer

outra NEE. Em Vitória (ES), no ano de 2007, havia 1.181 alunos matriculados na

Educação Especial. Destes, 396 estavam classificados como Condutas Típicas

(33%). Dito de outra forma, um terço de todos os alunos da Educação Especial está

na categoria Condutas Típicas.

5 Esta terminologia utilizada pelo MEC é empregada para classificar um grupo de alunos que apresenta dificuldades de adaptação escolar por manifestações condutuais peculiares de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos, que ocasionam atrasos no desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem e prejuízo no relacionamento social.

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Pensamos, então, em propor um recorte que coloque em foco as crianças que

apresentam sinais de desatenção/hiperatividade, cujo propósito é evidenciar, por

meio dos dilemas que as cercam, um cotidiano escolar que historicamente nos fala

de marginalização, preconceitos e fracassos. Se precisamos falar em educação

inclusiva para essas crianças, é porque são também elas vítimas de uma educação

excludente, dentro de um contexto de educação para todos.

O realce que ora buscamos vem ao encontro de tantos outros anseios, de tantos

outros pesquisadores que, como eu, procuram fendas onde possam se enfiar para

abrir novos caminhos e, com eles, novas possibilidades que conduzam à

transformação de práticas educacionais/sociais excludentes.

É imprescindível que os estudos que abordem essa temática denunciem também o

que vem acontecendo nas escolas em termos de encaminhamento aos serviços de

saúde dessas crianças.

A Folha de São Paulo (15 jan. 2006) publicou uma matéria tratando desse assunto,

que enfatiza alguns exageros quando o encaminhamento recai somente para o lado

clínico. A pesquisa divulgada pelo Instituto de Defesa do Usuário de Medicamentos

constatou que, entre 2000 e 2004, a venda de Ritalina (Metilfenidato), a droga mais

usada nos tratamentos para crianças diagnosticadas com TDAH, cresceu 940%. Tal

situação também pôde ser percebida na cidade de São José do Rio Preto (SP),

conforme consta em matéria do jornal “O Estado de São Paulo”, de 02/10/06, onde o

consumo de Ritalina triplicou em três meses, levando a Secretaria de Saúde a criar

um protocolo de orientação sobre o diagnóstico e o tratamento de TDAH. Segue

trecho da matéria:

Em três meses, triplicou na rede municipal de saúde de São José do Rio Preto (SP) o consumo de Ritalina (...) A Secretaria de Saúde da capital elaborou um protocolo com orientações sobre diagnóstico e tratamento do TDAH para os médicos da rede municipal. O objetivo é evitar o consumo exagerado (...) Outro município do Estado não só fará o mesmo, como ampliará sua aplicação (se referindo a Ribeirão Preto) (...). “Observamos que a escola tem problemas com as crianças agitadas e encaminham para o neurologista”, diz a coordenadora de Saúde Mental do município, Denise Donida.

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O número de “casos” estranhamente vem aumentando nas salas de aula e o número

de encaminhamentos para profissionais da saúde também, o que revela o caráter

higienista ou eugenista da educação, quando educadores recorrem com freqüência

ao campo da saúde para sanar dificuldades geradas no processo pedagógico, ou

seja, a medicalização6 das questões pedagógicas.

Atualmente, podemos perceber um desdobramento deste procedimento, que talvez

pudéssemos denominar de farmacologização. Grosso modo, é o uso sob prescrição

médica, por parte de um grande número de alunos, especialmente do ensino

fundamental, de remédios “controlados”7 como solução para manifestações de

comportamentos “diagnosticados” como Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade. Sobre esse transtorno, como se pode perceber, a literatura

é predominantemente médica e são escassas as pesquisas realizadas no Brasil.

Falta ainda aprofundamento no que tange a essa proliferação nos meios escolares,

em uma perspectiva que extrapole a visão meramente médico-psicológica da

questão.

A revista Nova Escola, maio de 2004, traz como destaque da capa: “Falta de

atenção: um teste para você descobrir se o seu aluno precisa ou não de tratamento”.

Lendo a matéria, que traz inclusive os critérios diagnósticos (em que praticamente

todos nós nos encaixamos, diga-se de passagem), necessariamente somos levados

a refletir o quanto os professores e pedagogos estão sujeitos ao modelo clínico. A

matéria poderia, mas não explora, por que nossas crianças estão tão

desinteressadas pela escola; pelo contrário, reforça a construção de um conceito

que coloca no aluno as razões de seu insucesso na escola.

Essa desconstrução precisa acontecer desde a educação infantil. Lamentavelmente,

nesse espaço, as crianças perdem parte de sua infância quando são postas na

categoria de alunos. E nessa categoria precisam cumprir os mesmos ritos, no

mesmo tempo, em espaços ordenados, fixados a uma rotina rígida, construída para

organizar, mas que prende a todos como uma grande teia. As crianças que fogem

das regras, das normas, tornam-se um grande incômodo e, dentro do modelo clínico

6 Termo criado por Ivan Ilich, em 1975, indicando a invasão da medicina em um número cada vez maior de áreas da vida social, independente de haver sintomas graves. 7 Refiro-me mais, neste caso, à Ritalina, medicamento mais utilizado pelos médicos.

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(que ainda hoje inspira algumas práticas escolares), devem ser encaminhadas aos

serviços de saúde e, muitas vezes, rotuladas como tendo “hiperatividade”.

Essa situação pôde ser percebida num estudo exploratório feito em um CMEI de

Vitória-ES, em 2006, e pôde ser vivida em outro, também em Vitória-ES, em 2007,

quando fizemos um levantamento, junto aos seus profissionais, a fim de

conhecermos as demandas daquela escola para a elaboração de uma proposta de

formação continuada.

A pesquisa, denominada “Sobre inclusão, formação de professores e alunos com

necessidades educacionais especiais no contexto da educação infantil”, da

professora Sonia Lopes Victor, do PPGE/UFES, coordenadora do projeto, durou

todo o ano de 2007.

Foi uma proposta apresentada aos profissionais do CMEI, em março de 2007, que

trazia como objetivo central: “Analisar as interações, as mediações pedagógicas,

que acontecem dentro de uma instituição de educação infantil, e a relação entre

família e os profissionais da escola ao compartilharem o cuidado/educação da

criança com necessidades educacionais especiais”. E, mais especificamente, o

projeto propunha “buscar coletivamente possibilidades às práticas pedagógicas,

utilizando como via para a formação de professores a pesquisa-ação colaborativa, a

fim de potencializar ações voltadas ao enriquecimento do trabalho docente, no

sentido de promover a inclusão das crianças com necessidades educacionais

especiais” (VICTOR, 2007).

Tal pesquisa englobava outros projetos mais específicos: “O pedagogo e a inclusão

na educação infantil”, da mestranda Débora Almeida de Souza; “O professor

especialista na educação infantil”, da mestranda Marileide Gonçalves França; “A

formação do autoconceito nas crianças com NEE, na educação infantil”, da

mestranda Marcela Gama da Silva; “Inclusão escolar e o pátio na educação infantil”,

da mestra Renata Imaculada de Oliveira.

A partir do resultado do levantamento inicial realizado junto a esse CMEI, e tendo

sido mostrado uma elevada preocupação desses profissionais pela questão da

desatenção/hiperatividade, decidi realizar ali também o meu projeto de pesquisa, na

época intitulado “O processo de inclusão de crianças com sinais de

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desatenção/hiperatividade na educação infantil”, que foi inicialmente previsto para

ser realizado na cidade de Guarapari-ES, onde resido.

A idéia era envolver as profissionais do CMEI (de ASGs8 à diretora) em torno de

uma formação continuada em que todas as pesquisadoras também participavam.

Em paralelo, os projetos particulares de cada uma eram conduzidos no sentido de

contemplar problemas mais específicos e dilemas que emergem da prática

pedagógica dos professores, promovendo o desenvolvimento profissional das

envolvidas e nutrindo uma base única de dados, com reuniões semanais de estudo,

discussão e trocas de informações. Assim, todos os projetos foram desenvolvidos de

forma entrelaçada.

O processo de formação continuada foi pensado concebendo a escola como uma

organização que aprende. E para que a aprendizagem organizacional ocorra, não

basta que os membros aprendam individualmente. Faz-se necessário considerar a

escola como um “ambiente organizacional”, no qual seus membros pensam e agem

de modo similar e coerentemente entre si (MIZUKAMI et al, 2002).

A escola onde esse estudo foi realizado pertence ao Sistema Público Municipal de

Educação Infantil, e está localizada num bairro da Zona Norte do município de

Vitória, no Estado do Espírito Santo, cuja população é de nível sócio-econômico

considerado médio-baixo. Vários bairros são atendidos por essa escola, dentre eles:

Antonio Honório, Maria Ortiz I e II, Solon Borges, Jabour, Bairro República. Foi

inaugurada em 1995 e tem como “missão” expressa em seus documentos: “Cuidar,

Educar e Brincar”. No ano de 2007, havia 630 crianças/discentes, na faixa etária de

6 meses a 6 anos, matriculadas em 26 turmas, distribuídas nos turnos da manhã e

tarde.

Assim, a demanda explicitada pelos profissionais do CMEI, por meio do instrumento

inicial, veio ao encontro de meu próprio interesse. Portanto, a escolha da escola não

foi aleatória. (Vide Apêndice A, p.259 - questionário)

Feito esse levantamento em abril de 2007, constatamos que a grande maioria

desejava saber mais sobre o que eles denominaram “TDAH” ou

“desatenção/hiperatividade”, porque entendiam que uma boa parcela de crianças

8 Auxiliar de Serviços Gerais.

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daquele CMEI possuía esses comprometimentos. Isso nos apontou para um espaço

aberto a essa discussão e possibilidades de pensar a problemática dentro do

cotidiano escolar. (Vide Apêndice B, p.261 – respostas tabuladas)

Esse fato me motivou a delinear o projeto de pesquisa do mestrado naquele lugar. A

partir daí, passei a delimitar o foco de pesquisa, com o objetivo de pensar em

dispositivos no sentido de contribuir para problematizar as concepções e as práticas

pedagógicas dos professores sobre e para aqueles alunos com sinais de desatenção/hiperatividade9 no contexto da educação infantil.

Este estudo busca, então, suscitar o debate acerca do processo de inclusão de

alunos que apresentam, como Necessidade Educacional Especial (NEE), sinais de

desatenção/hiperatividade, bem como refletir sobre a construção sócio-histórica

desses conceitos com vistas a problematizar sua construção e trazer o debate sobre

a popularização perigosa que ele vem ganhando nos últimos tempos, especialmente

no âmbito educacional. Nesse espaço, esses alunos são matriculados naturalmente,

mas em suas trajetórias escolares, não raro, percebemos constantes transferências

de salas, turnos, escolas, quando a convivência na sala de aula se torna algo

insuportável. Isso nos remete ao momento histórico que vivemos, em que:

Além da meta de escolarização de crianças de classes populares, fenômeno típico desse recente momento da história humana, passa a ser defendida a meta de que a escola deve atender a todas as crianças, inclusive aquelas consideradas ‘diferentes’, em função de deficiência ou desvantagens várias (BAPTISTA, 2006, p.7).

O contexto educacional brasileiro, acompanhando a sociedade de um modo geral,

vem passando por rápidas e profundas mudanças no que se refere à sua

organização como um todo. A educação inclusiva é parte dessas transformações e

vem sendo posta como aporte de um movimento de resistência à exclusão social

porque, ao questionar a educação oferecida aos que são chamados NEE, está

questionando a educação oferecida a todos, na medida em que apregoa que esse

atendimento diferenciado deve ser oferecido na escola regular.

9 Essa terminologia foi criada durante a realização desse trabalho, com a finalidade de evidenciar a fragilidade teórica do conceito e porque não pretendemos, em nenhum momento, trabalhar com as crianças a partir de um diagnóstico.

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Por outro lado, a estrutura em que se configura a escola ainda está moldada para a

visão tradicional do ensino, ou seja, a escola está organizada para que todos

aprendam no mesmo tempo, sob as mesmas condições, atendendo a padrões

avaliativos comuns, segundo os preceitos da homogeneização. É, assim, uma

máquina de ensinar, vigiar e hierarquizar os alunos, levando-nos a concluir que

pouca coisa mudou com relação à estrutura escolar atual, que classifica os alunos

para selecioná-los.

No cenário das escolas, ainda encontramos aqueles que não aceitam a inclusão,

com uma concepção de ser professor como aquele que dá aula, independentemente

de quem é o aluno que está em sua sala de aula; outros a aceitam ou por obrigação

legal ou mesmo por compaixão, vendo os alunos como aqueles que precisam estar

ali para se socializar; há também os que aceitam e encaram-na como desafio,

mostram interesse em um trabalho diferenciado, norteado pela aprendizagem dos

alunos e em como ela se dá. Existem muitos outros, mas não queremos aqui ficar

analisando todos os tipos de concepções dos professores acerca da inclusão.

O que existe em comum, na grande maioria dos discursos dos professores, é o fato

de não se sentirem preparados para lidar com o aluno NEE. E aí nos deparamos

com os alunos que ora pretendemos analisar, aqueles com sinais de

desatenção/hiperatividade, para os quais também se mostra o professor

despreparado para lidar.

Percebemos que as maiores dificuldades apresentadas no contexto escolar para

lidar com o diferente, seja ele quem for, são as relativas ao acolhimento/aceitação,

às estratégias pedagógicas e curriculares e as relativas à organização

administrativa/estrutural, que são instâncias, a nosso ver, integradas e mutuamente

influenciáveis.

Mesmo com discursos circulando pela escola ainda muito segregadores, é visível

que o movimento ocasionado pela educação inclusiva vem provocando muito a

escola a se (re) pensar e a rever suas práticas.

Quem são os alunos NEE? Dados os entraves em relação às terminologias

utilizadas para caracterizar alunos com sinais de desatenção/ hiperatividade, faz-se

oportuno situarmos o que, legalmente, é definido como NEE.

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A Resolução nº 2, art. 5º, publicada no Diário Oficial de 11 de setembro de 2001,

aponta que esses alunos são os que apresentam, durante seu processo

educacional:

I - dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitação no processo de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares, compreendidas em dois grupos:

a) aquelas não vinculadas a uma causa orgânica específica, b) aquelas relacionadas a condição, disfunção, limitação ou

deficiência; II - dificuldades de comunicação e sinalização diferenciada dos demais alunos, demandando a utilização de linguagens e códigos aplicáveis; III - altas habilidades/superdotação, grande facilidade de aprendizagem que os levem a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes.

A Declaração de Salamanca emprega o termo “necessidades educativas especiais”

a “todas as crianças e jovens cujas necessidades decorrem de suas capacidades ou

de suas dificuldades de aprendizagem”. Portanto, apresentar NEE não significa,

necessariamente, ter uma deficiência física e/ou intelectual, pelo contrário, não

prende o termo a nenhuma situação específica.

Bueno (2005, p.39) também defende que o termo “necessidades educacionais

especiais” não se restringe à população com deficiências.

Cabe, então, aos profissionais da escola buscar coletivamente adotar uma política

inclusiva voltada às necessidades emergentes no processo educacional de seus

alunos, de forma que pensem tais necessidades e sejam capazes de identificar os

tipos de apoios necessários e possíveis, de acordo com o contexto educacional

vivido. E que a escola como um todo possa organizar os processos pedagógicos

para atender à diversidades de seu alunado.

Na sociedade excludente em que vivemos, o olhar social dirigido àquele que não se

enquadra no padrão estabelecido pode ser pernicioso. As regras sociais de

comportamento são definidas e impostas de acordo com o grupo social, suas regras

e valores, criando, dessa forma, os conceitos de normal e anormal. Logo, aquele

que não se enquadra no padrão estabelecido é visto como sujeito “deficiente”,

“retardado”, “problemático” etc.

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Segundo Amaral (1994), cada grupo social, na tentativa de garantir a harmonia

coletiva, constrói regras sociais, normatizações que devem ser seguidas por todos.

Aqueles que porventura, por questões raciais, comportamentais ou físicas, violam

essas normas passam a ser denominados “anormais, excepcionais ou desviantes”,

sendo excluídos, de forma parcial ou não, do convívio da coletividade. São muitas as

possibilidades de se rotular esses indivíduos. Nesse caso específico, os rótulos

oscilam entre alguém que possui uma condição que precisa de tratamento

médico/psicológico por ter um transtorno comportamental, até alguém que, mal

educado, não recebeu da família os limites necessário à convivência grupal.

Nunes et al. (1998, p.89) constatam que, quando esse indivíduo é rotulado

socialmente e todo seu comportamento passa a ser compreendido dentro da

premissa da anormalidade, isso influencia sua auto-imagem e sua visão de mundo,

que também passam a ser vistas da mesma forma, e, dessa forma, “(...) tudo que ele

fizer ou disser será considerado como um exemplo das supostas características de

seu quadro patológico.”

Assim, quando tratamos de inclusão, notamos que as tensões que são geradas não

se devem às crianças com NEE, que apresentam deficiência. Não observamos

tensão para mudar as práticas pedagógicas, mas sim mudanças no que se refere a

atendê-las, como, por exemplo, a necessidade da estagiária para o aluno. A própria

pedagoga da manhã, Rose, nos disse certa vez: “essas crianças são umas

bênçãos”. Isso porque, por elas, as escolas podem receber mais ajuda da Secretaria

Municipal de Educação (SEME). Os alunos com problemas de comportamentos é

que causam as maiores tensões, conforme foi constatado. E, na entrevista com a

profissional da SEME, analisada mais adiante no texto, realmente se colocam alguns

obstáculos para atender aos pedidos das escolas, como, por exemplo, a exigência

de laudos, pelo fato de que essa demanda é muito maior do que as possibilidades

do sistema, segundo a profissional responsável nos informou.

Neste trabalho, concebemos a educação inclusiva como um movimento de

resistência às diversas configurações excludentes com que a sociedade e a escola

muitas vezes se revestem, de modo a fomentar mudanças atitudinais estabelecidas

em relação àqueles que apresentam NEE, na busca de um novo paradigma sócio-

educacional, que considere a diversidade inerente à condição humana. Ao

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percebermos apenas tentativas isoladas de mudanças nas práticas pedagógicas e

na dinâmica com que o processo educativo é pensado, podemos supor uma

exclusão velada sendo imposta.

A partir da dialética inclusão/exclusão, que traz em si a “ambigüidade constitutiva da

exclusão” (SAWAIA, 2004, p.8), minha perspectiva de análise recai sobre os

meandros dessa forma de ser/estar na escola, da criança que apresenta sinais de

desatenção/hiperatividade, que, quase sempre, provocam a geração dos

“diagnósticos”10, os quais, por sua vez, geram os encaminhamentos que promovem

a busca de “soluções” para fora dos muros escolares. Nossa análise, a partir de seu

referencial teórico-metodológico, pretende fomentar a discussão em torno das

práticas pedagógicas avalizadas por crenças e valores que alimentam preconceitos

e estigmas em relação a elas, contornando esses vieses e levando para dentro da

escola a reflexão acerca dessa problemática.

A dialética exclusão/inclusão ganhou sentido, em algumas análises feitas em relação

à escola, de que a inclusão combateria a exclusão, ou que os excluídos que

estavam fora da escola, pela inclusão, poderiam ganhar seu legítimo espaço dentro

da escola, o que acabaria com a exclusão. Não é bem assim. Dentro da escola

existem muitos mecanismos excludentes, como as prescrições (profecias), os

“diagnósticos”, os encaminhamentos etc. Assim, se pudermos tornar mais visíveis

essas lógicas excludentes ocultadas pela naturalização desses processos, podemos

promover a inclusão, que ainda assim habita a dialética inclusão/exclusão, já que

não são categorias em si, mas categorias aqui entendidas como indissociáveis.

Nesse sentido, pretendemos investigar como são vivenciadas as relações

interpessoais com essas crianças, considerando algumas redes de significações que

atravessam os processos pedagógicos de ensino por eles experienciados (PINEL,

2000) no cotidiano escolar, com vistas a pensar possibilidades que ampliem suas

potencialidades e assegurem sua permanência e sua aprendizagem na escola.

No Brasil, a inclusão escolar de alunos com NEE, inicialmente, ganhou a conotação

específica de deficiência. Portanto, houve a instituição da inclusão escolar atrelada

10 Neste estudo, considero o termo diagnóstico, sem aspas, como a palavra expressa pela área da saúde e, com aspas, para as impressões informais de pais e professores acerca do comportamento da criança.

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diretamente à Educação Especial. Mas, neste texto, pretendemos tratar NEE como

um termo que engloba várias categorias (inclusive a deficiência), até mesmo a de

crianças que, por determinados comportamentos, têm dificuldade em se adequar

aos padrões e regras escolares, sem deixar de considerar, por outro lado, as

questões inerentes à própria escola, como instituição provocadora dessas

condições.

A escola de educação infantil vem se configurando mais como um espaço de

reprodução do “modelo escolarizante” do ensino fundamental, do que propriamente

um lugar com características próprias. “(...) Os efeitos da adoção de um modelo que

não reconhece o lúdico como forma de participação e produção cultural da infância,

são destacados quando se investiga o cotidiano” (VAZ, 2004). Além disso, as

atividades, repetitivas e xerocadas, ensinam às crianças mais sobre como se

adaptar à monotonia da vida escolar, do que propriamente algo que lhes seja de

interesse aprender (ESTEBAN, 1993). Isso em muito me lembra Mafalda, de Quino.

Fonte: QUINO, 1993, p.68 Figura 1 – Expectativas infantis sobre a escola.

Portanto, aqui estamos falando da padronização de um sujeito “com sinais de

desatenção/hiperatividade”, porém sem desconsiderar que é um sujeito polêmico,

pois sua NEE não é tão tácita. Ao contrário, está inerente à relação estabelecida no

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contexto escolar. Se a escola fosse pensada dentro de outra perspectiva, se não

atendesse a essa padronização, será que esse aluno teria uma Necessidade

Educacional Especial?

A escola é aqui entendida como espaço de lutas e criações, e não meramente como

reprodutora social, em todos os níveis. E, por acreditarmos numa escola realmente

para todos, onde a diversidade seja compreendida como condição humana, pondo

em xeque as práticas preconceituosas e discriminatórias, propomos este trabalho

compreendendo as tensões e conflitos provocados pela diferença, e não uma razão

que justifique sua existência.

As escolas do município de Vitória recebem alunos com necessidades educacionais

especiais desde 1991. De lá para cá, algumas tentativas de organizar esse

atendimento foram pensadas, chegando até o modelo atual, em que professores

especialistas vão regularmente às escolas prestar seus atendimentos a esse grupo

de alunos, que também deve ter suas necessidades educacionais atendidas em sala

de aula comum. Os professores especialistas dividem-se de acordo com suas

especialidades em: deficiência visual, auditiva e mental. Esse é o direcionamento

das políticas públicas para a educação especial/inclusiva nesse município. Mas o

professor especialista em deficiência mental também vem sendo chamado pela

escola a atender aos alunos com problemas comportamentais, muitas vezes

preterindo crianças com autismo e síndrome de Down, como foi observado no CMEI

pesquisado. Se essa prática rompe com o que está instituído por um lado, mostra,

por outro, que esses problemas vêm sendo pensados, sobretudo pelos profissionais

da escola, como problemas de saúde, ou seja, emitindo encaminhamentos para que

professores especialistas em educação especial (na escola) e/ou profissionais da

saúde (fora dela) os atendam.

Essa pode parecer apenas mais uma das tantas grandes questões que a escola

atravessa atualmente, em tempos de inclusão, mas que pode nos levar a reflexões

acerca desta instituição, a escola. Espaço de embates, onde a lógica da

homogeneidade vem perdendo cada vez mais terreno, a escola é também espaço

de contradições. Os professores são chamados a confrontar valores que eles

próprios foram levados a constituir ao longo de toda a sua história, num modelo de

escola que aprisiona para “libertar”, que exclui aquele que não se enquadra para que

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ele venha a se “incluir”, que usam estratégias de domínio para conseguir submissão,

enfim, são grandes e profundas as contradições.

Se educação inclusiva é educação de qualidade para todos os alunos, com NEE ou

não, aqueles que estão na escola e não se adaptam a ela acabam sendo percebidos

como “alunos de inclusão” e, portanto, buscam-se “neles” aspectos cognitivos,

físicos, psicológicos que justifiquem atendimento diferenciado. É assim transformado

o aluno que não se adapta às condições organizativas e acadêmicas da escola em

aluno com NEE. Desse modo, precisamos ter claro de que inclusão estamos falando

quando nos propomos a tratar desse assunto e quem são os alunos com NEE,

oficialmente.

É necessário ressaltar que o aluno que estamos destacando ora pode se encaixar

na categoria de alunos com NEE, ora o discurso crítico o encaminha à condição de

aluno “típico”, que apresenta condições diferenciadas em função da própria escola.

Esta pesquisa trata do processo de inclusão de alunos que apresentam NEE em

decorrência dos sinais de desatenção/hiperatividade, numa dimensão microssocial.

Nesse sentido, busca trilhar sendas que nos permitam aproximar das concepções,

práticas discursivas da escola, das suas atitudes cotidianas, das relações sociais,

enfim, de como se engendram práticas nesse processo de escolarização, bem como

apontar, junto com os profissionais da escola, possibilidades para lidar com essas

questões, nesse contexto.

Estamos partindo do pressuposto de que os sinais de desatenção/hiperatividade se

cristalizam nos alunos a partir de práticas instituídas na escola, como, por exemplo,

atividades repetitivas, xerocadas, paradas etc. Entendemos que o excesso de

atividades pode estar provocando em algumas crianças inquietude, rebeldia,

desatenção, por não se acoplarem às suas necessidades pelo novo, pelo

movimento, pela fantasia, pela brincadeira, próprias, aliás, de sua idade.

Reconhecemos que os aspectos mencionados acima podem se somar às questões

escolares, contribuindo para evidenciar sinais de desatenção/hiperatividade. Sendo

assim, optamos pela investigação das questões que permeiam a construção da

subjetividade, a partir das relações estabelecidas entre professora-aluno da

educação infantil, já que deste, embora ainda pequeno, é exigido um padrão

disciplinar condizente com os padrões escolares.

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Para tanto, apostamos num referencial teórico-metodológico que prioriza as

questões do disciplinamento (Foucault), que observa as relações educacionais como

mediadoras do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, sobretudo o

pensamento e a linguagem, como reguladores do comportamento, e a atenção

(Vygotsky); e, ainda, nos arcabouços teóricos da psicanálise, que busca um

aprofundamento dos aspectos subjetivos da relação professora-aluno.

Como nos diz Jerusalinsky (1999), a escola, do ponto de vista da representação

social, é uma instituição por onde circula a normalidade social, ou seja, estar na

escola é ocupar o lugar de criança. E como complementa Kupfer (2000), ocupar

esse espaço pode contribuir para a estruturação psíquica do sujeito. Dessa forma, a

degradação dessas relações ali estabelecidas, provocada pelos comportamentos

infantis inapropriados, pode pôr em risco o próprio desenvolvimento infantil.

Pensar, assim, na constituição “normal” do sujeito, escapando da visão

médico/clínica, não é meramente uma questão de estilo. Trata-se, antes, de

respeitar a base teórica que sustenta este trabalho, pois, antes de compreender

essas crianças como portadoras de “déficits” ou de “transtornos”, as concebe como

sujeitos influenciadores e influenciados do/pelo seu processo de escolarização e de

vida.

Tendo por base as proposições desses diferentes estudos, pautamo-nos no seguinte

problema de investigação: que dispositivos podem ser pensados no sentido de contribuir para problematizar as concepções e as práticas pedagógicas dos professores sobre e para aqueles alunos com sinais de desatenção/ hiperatividade, no contexto da educação infantil?

Dessa questão central, subdividimos algumas questões menores que nos importam

investigar:

• Que comportamentos das crianças dão ao professor sinais de

desatenção/hiperatividade?

• Como são produzidos os “diagnósticos” no contexto escolar?

• A existência de um diagnóstico pode efetivamente contribuir para o trabalho

docente?

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• Como é o desdobramento dos encaminhamentos dessas crianças junto à

SEME de Vitória/ES?

• Como o trabalho colaborativo pode deflagrar processos de mudanças nas

práticas pedagógicas com essas crianças?

Propomos, assim, algumas alternativas de reflexão sobre as questões inerentes à

inclusão educacional dessas crianças, com vistas a problematizar as próprias

práticas da educação infantil, enquanto espaço fundamental de desenvolvimento e

aprendizagem das crianças e ainda como espaço de constituição da subjetividade a

partir da relação com os outros.

Acreditamos que a inclusão escolar tem muitos obstáculos ainda a serem

enfrentados e vencidos, especialmente quando falamos em termos de Brasil, porque

imersos, que estamos, numa sociedade marginalizante e competitiva, regida pelo

“princípio do mérito” (GENTILI, 1998), em que aos pobres é oferecida “uma pobre

educação” (BIANCHETTI & FREIRE, 1998, p.40) - é difícil percebermos essa

ideologia de mercado regulado pela competição, que iguala as oportunidades para

aqueles que têm condições desiguais de alcançá-la, e invade e penetra o campo

educacional da mesma forma. E, lembrando Ferraro, “não há como não reconhecer

à escola brasileira voracidade e eficiência enquanto máquina de exclusão escolar.

Apenas, é necessário acrescentar que, por mais longe que possa levar a sua

autonomia, a escola é tanto mais excludente quanto mais o é a sociedade à qual

serve” (1999, p.18). Para tanto, é preciso lutar para que os preceitos de igualdade

não se equiparem aos de homogeneidade.

Então, a escolha por tratar de um tema polêmico, que nos impõe trabalhar na

dimensão da subjetividade humana, coloca-nos a necessidade de situar a discussão

dentro das instâncias coletivas e públicas, sem esquecer que, como em todo

comportamento humano, também a ação pedagógica é imbuída de valores e

crenças que, muitas vezes não evidentes, são os impulsionadores dessa ação. É a

dimensão dos significados e dos sentidos. Se buscamos tornar as práticas

pedagógicas mais reflexivas, mais conscientes, mister é desvelar esta dimensão.

Conforme aponta Sacristán (2002, p.14), esta necessidade ganha impulso quando

enveredamos pelo caminho da diversidade mostrando que “(...) esse exercício

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‘crítico’ de desvelar é mais importante e urgente porque se trata de área

especialmente contraditória e ambígua.”

Entretanto, como lembra também Sacristán, a organização escolar tem o objetivo de

“salvaguardar o comum”, renunciando ao individual e aceitando padrões

compartilhados por todos. Então, lidar com a diversidade em sala de aula pode se

tornar um problema. Como ele afirma, “os professores podem ver a diversidade

como um ajuste pessoal desigual dentro das normas disciplinares e do trabalho

escolar” (p.19) e quanto maior o distanciamento em relação à norma, ao padrão,

maiores as chances do fracasso, da repetência. “Ampliar a tolerância de variações

significativas em relação às normas equivale, para muitos, à deterioração da

qualidade” (2002, p.20).

Trabalhar na diversidade coloca-nos diante de uma grande questão. Estamos num

momento de consolidar inclusão de todos nos espaços escolares, mesmo que nos

defrontemos com muitas dificuldades de ordem material, estrutural e humana para

garantir o acesso e a permanência dos alunos com deficiências na escola. Embora a

discussão ainda esteja muito presa a essas garantias, acredito que seja hora de

também discutirmos o fato de que a inclusão é de todos, não se refere só às

pessoas com deficiência, a estes ou àqueles. Se assim não for, corremos o risco de

introduzirmos novos manejos para aqueles que possuem necessidades

educacionais especiais e continuarmos com as velhas práticas de exclusão. A

inclusão deflagra os mecanismos camuflados de exclusão que se alastram pelos

espaços escolares e pelas mentes que os habitam.

Constatamos que esse movimento igualdade/diversidade precisa ainda, em muito,

ser desmistificado em nossas mentes. Conforme Santos (2001), precisamos lutar

pela igualdade quando esse direito nos é tirado e pela diferença quando a igualdade

tende a nos descaracterizar.

As práticas pedagógicas destinadas às crianças com sinais de

desatenção/hiperatividade são questionadas quando se buscam seus aparatos na

crença de um suposto transtorno ou mesmo na crença de uma falta de limites (des)

oferecida pelos familiares dessas crianças, na responsabilização de aspectos sócio-

afetivos de ordem familiar, como a violência doméstica, o abandono, bem como os

demais problemas que hoje atingem as famílias, o que as tornariam indisciplinadas

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na escola. Dessa forma, procuramos desvelar essas crenças e fomentar o

surgimento de outras possibilidades no trabalho docente, com uma professora da

educação infantil.

O estudo foi organizado em cinco capítulos assim descritos: no primeiro capítulo, a

escola é mostrada como produtora de comportamentos sociais e enfocada a partir

de suas estruturas básicas de funcionamento - conteúdos compartimentados,

espaços físicos esquadrinhados, horários delimitados e também do espaço de

disciplinamento e de produção de comportamentos desejáveis para a sociedade

capitalista, desde a educação infantil.

No segundo capítulo, retomo a escolarização dos sujeitos indisciplinados. Destaco

que, para haver o controle desses sujeitos, foi nomeado ou rotulado que esses

alunos têm um transtorno. Nessa premissa, esse aluno deve ser tratado fora da

escola, o que revela a dificuldade da escola em lidar com essas crianças.

O terceiro capítulo traz a trajetória da pesquisa, pontuando alguns vieses da prática

pedagógica na educação infantil e identificando alguns pontos nevrálgicos que

provocam a degradação da relação professora e aluno.

No quarto capítulo é focalizado o caso do menino André11, como símbolo

representativo do foco deste estudo.

Um projeto colaborativo foi se delineando a partir da aproximação contextual dos

dilemas enfrentados pela professora e compõe o quinto capítulo. A construção

desse projeto foi marcada pela tentativa de estabelecer uma aproximação entre os

saberes da Psicologia e da Pedagogia, propiciando um espaço de reflexão na e para

a ação e potencializando os conhecimentos produzidos no interior da escola como

estratégias para uma prática pedagógica inclusiva.

Ao longo do texto algumas (in) coerências poderão ser desveladas, afinal, além de

sermos sujeitos do conflito e da incoerência, também tratamos de tema polêmico em

sua existência mesma, construída sócio-historicamente. E talvez justamente aí

resida sua relevância: por tratar-se de tema polêmico, enviesado fortemente por uma

concepção médica, acaba não recebendo o aprofundamento necessário na

perspectiva pedagógica. 11 Todos os nomes das pessoas que fizeram parte da pesquisa são fictícios.

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2. POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DE DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS

2.1 AS CONTRIBUIÇÕES FOUCAULTIANAS

Se a presença enigmática da infância é a presença de algo radical e irredutivelmente outro, ter-se-á de pensá-la na medida em que sempre nos escapa: na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a soberba de nossa vontade de saber), na medida em que suspende o que podemos (e a arrogância da nossa vontade de poder) e na medida em que coloca em questão os lugares que construímos para ela (e a presunção da nossa vontade de abarcá-la). Aí está a vertigem: no como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas do nosso saber e do nosso poder.

(LARROSA, 1998, p.232)

Utilizando-nos do aporte teórico de Foucault, buscamos reunir os seus conceitos

fundamentais para a compreensão da problemática que ora examinamos. Além dele,

recorremos à abordagem histórico-cultural, no que tange aos conceitos de atenção e

auto-regulação do comportamento, e à abordagem psicanalítica quanto à

subjetividade inerente à relação professora-aluno e quanto à questão dos

encaminhamentos aos serviços de saúde de crianças que apresentam problemas na

área comportamental.

O atendimento à criança de 0 a 6 anos, no Brasil, existe há mais de um século e

com ele acompanharam-se as transformações do conceito de infância, engendradas

pelos discursos científicos e institucionais, que acabaram por transformar a criança

em um sujeito/objeto cultural inserido em um amplo projeto de constituição do sujeito

moderno.

Ao tomar a infância como um sujeito/objeto cultural, pretendemos realçar como o

sujeito infantil é fabricado pelos discursos institucionais, pelas formulações

científicas e pelos meios de comunicação de massa.

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Veiga-Neto (2000) fala do processo de constituição das identidades infantis como

parte de um projeto mais amplo - sempre frustrado e frustrante - de constituição do

sujeito moderno: “[um] sujeito entendido como uma unidade indivisível - que tem

num ‘eu profundo’ a sua essência de sujeito - quanto como uma unidade que é

única, singular, e que o diferencia de qualquer outro sujeito”.

Para tal empreitada, busco no pensamento de Michel Foucault elementos que

possibilitem dar sentido às nossas indagações, haja vista que as relações entre

adultos e crianças são marcadas pela vontade de poder dos primeiros sobre as

últimas, correlato a uma vontade de saber que engendrou o quadro atual de saberes

sobre a criança. A invenção da infância, bem como a sua manutenção, se deu por

essas vontades. Para entender como estas relações de poder e de saber

“atravessam” o corpo infantil é interessante recorrer a Foucault:

Temos que admitir que o poder produz saber (...); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder. (...) não é a atividade do sujeito do conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o saber-poder, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis de conhecimento (FOUCAULT, 1996, p.30).

Portanto, a constituição da infância moderna é examinada a partir de sua associação

à continuada elaboração de um discurso, do passado e do presente, sobre o que

significa “ser criança” e como opera de forma correlata um corpo de saberes sobre o

sujeito infantil e um conjunto de dispositivos que acabam por constituir um

significado hegemônico na compreensão deste conceito “infância”. Nossa escolha

teórica ganha especial sentido porque a preocupação central de Foucault foi de

“estudar o modo pelo qual um ser humano torna-se sujeito” (FOUCAULT, 1995,

p.232). Ao seguir suas formulações, torna-se mais fácil entender como o sujeito é

produzido no interior de articulações de poder/saber.

A infância é uma invenção da Modernidade. Foi somente a partir do século XVI que

as crianças tornaram-se sujeitos de relevância social e política. Ariès (1981) mostrou

que a consolidação de um significado moderno para a infância ocorreu apenas em

meados do século XVII e que antes havia a concepção de continuidade cíclica e

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inevitável entre as diferentes idades. A infância, portanto, estava inscrita na ordem

mais geral do desenrolar da vida.

Antes do século XVII, as classes escolares recebiam crianças de diferentes idades,

os jogos e brincadeiras eram comuns a todas as faixas etárias e os temas sexuais

não eram ocultados das crianças. Nobreza e pobreza, pessoas de diferentes idades

conviviam e realizavam em conjunto as mais diversas atividades. Assim, pode-se

dizer que é a burguesia que traz o isolamento da família e esta, em conjunto com a

escola, retira a criança da sociedade dos adultos, enquanto um deles.

Nesse sentido, Ariès (1981) compreende a escolarização como um processo de

enclausuramento de meninos e meninas, concepção que, no nosso entender, o

aproxima das idéias de Foucault (1987), quando discute o processo de

individualização do louco, do delinqüente, do doente e da criança. O poder

individualiza e se apropria dos corpos por meio das fiscalizações, observações e

medidas comparativas. Ambos os autores compreendem que dentro do sistema

disciplinar estão presentes a vigilância constante e as sanções.

Ariès (1981) critica a escola, afirmando que esta, no início dos tempos modernos,

tornou-se:

(...) um meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual, de adestrá-las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos (Ibid., p.165).

Vemos aí a aproximação entre os conceitos de infância e disciplina. Com o

aparecimento da escolarização, as crianças já não eram mais consideradas como

brinquedos encantadores, mas frágeis criaturas de Deus, que precisavam ser

preservadas e disciplinadas. A disciplina era vista como um instrumento de

aperfeiçoamento moral e espiritual.

As mudanças ocorridas no início dos tempos modernos, como o aumento das

populações urbanas, a crescente divisão do trabalho, a organização capitalista da

acumulação de bens e, posteriormente, a organização dos estados nacionais, entre

outros, concorrem para novas formas de organização social, política e econômica,

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que correspondem a sutis transformações no modo como os sujeitos são

percebidos, categorizados, diferenciados e (com) formados (BUJES, [on line] 2000).

Foucault (1997), por seu conceito de bio-poder, mostra como o controle, antes

exercido pelas ameaças de morte, passa a ser exercido sobre a vida. Esse poder

sobre a vida, como descrito pelo autor, desenvolve-se, a partir do século XVII, em

duas direções complementares: a do “corpo máquina” e a do “corpo espécie”. Sobre

o corpo máquina, exerce-se o adestramento: reforçando suas aptidões, explorando o

máximo de suas forças e habilidades, garantindo sua integração em sistemas de

controle eficazes e econômicos. Esse é o momento da instituição das disciplinas

como procedimentos de poder para obter corpos dóceis e úteis. O corpo espécie

refere-se ao exercício do poder num âmbito mais amplo: a proliferação da espécie,

os nascimentos e as mortes, a saúde das populações, o crescimento demográfico

ou sua contenção. Essa é a época em que são dadas as condições necessárias

para o surgimento da diferenciação entre adultos e crianças, numa operação que

constitui a justificativa para a intervenção familiar e para a educação

institucionalizada.

Segundo Foucault (1997), o bio-poder é um conjunto de técnicas que se dissemina

pelo corpo social, passando a ser utilizado pela escola, família, exército, polícia,

medicina etc., garantindo relações de dominação essenciais para a expansão do

capitalismo.

Diante dessas novas configurações de sociedade e de família, consolidam-se as

instituições educacionais modernas, dentre elas as encarregadas das crianças

pequenas. Assim, o surgimento das instituições de educação infantil, na segunda

metade do século XVIII, configura-se, para muitos autores, como um novo

“sentimento de infância”. “A educação da infância insere-se, pois, neste conjunto de

tecnologias políticas que vão investir na regulação das populações, através de

processos de controle e de normalização” (BUJES, [on line] 2000).

A infância passa, então, a ser um campo privilegiado de intervenção social, bem

como de exercício de poder e de saber. E a educação infantil, tal como a

concebemos atualmente, pode ser compreendida como “uma aliança estratégica

entre os aparelhos - administrativo, médico, jurídico e educacional - devidamente

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assessorados pelo saber científico, que tem por finalidade o governo da infância, a

fabricação do sujeito infantil” (BUJES, idem).

Os corpos e as mentes infantis, ao se tornarem objetos de estudo científico,

propiciaram o surgimento de novas formas de educação que se instituíram para a

criança pequena. A infância tornou-se um domínio de interesse sobre o qual se tinha

vontade de saber. O corpo da criança constituiu, a partir do século XVIII, um foco de

poder-saber.

O sujeito pedagógico é entendido por Larrosa (1994) como o resultado de uma

articulação entre os discursos que o nomeiam - discursos que se pretendem

científicos - e práticas institucionalizadas que o capturam, representadas, no caso da

educação infantil, pelas práticas desenvolvidas nela.

As crianças têm sido vistas e produzidas pelos discursos que se enunciam sobre

elas: discursos médicos, antropológicos, psicológicos, pedagógicos etc. “Tais

discursos constroem para elas uma posição de sujeito ideal, um sujeito universal,

sem cor, sem sexo, sem filiação, sem amarras temporais ou espaciais (...)” (BUJES,

idem).

Podemos inferir, assim, que os significados dados à infância são uma construção

social e, portanto, dependem de um conjunto de possibilidades que se conjugam em

determinado momento histórico, organizado socialmente e sustentado por discursos

nem sempre homogêneos e estáveis. Não são resultantes de um processo de

evolução, mas modelados no interior de relações de poder e representam interesses

manifestos da Igreja, do Estado, da Sociedade Civil. Sofrem, dessa forma, as

influências da religião, da medicina, da psicologia, das famílias, da pedagogia, da

mídia... Contudo, tais significados não são estáveis nem únicos e as linguagens que

usamos, ao mudar constantemente, são indicativas da fluidez e da mutabilidade a

que estão sujeitos.

Portanto, em que pesem todas as fragilidades dos significados, a sociedade busca

constantemente estratégias e táticas para fixar certos sentidos, através das

coerções dos discursos tomados como “verdadeiros”.

A base filosófica que sustenta ainda a constituição da infância moderna, segundo

Bujes (2000), é a “criança natural” presente nas concepções de Kant e Rousseau.

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Conhecer essa concepção ajuda-nos a entender o sentido de ser criança na

Modernidade, uma infância marcada por características próprias, que a distinguem

da idade adulta. Por isso, faz-se necessário identificar alguns dos discursos que se

esmeraram em veicular uma verdade sobre a criança e destacar sua conexão com

algumas práticas de fabricação da infância moderna.

Para Varela (1995, p.50, apud BUJES, 2000): “A insistência nesta ‘criança natural’,

em suas potencialidades criativas e expressivas, supôs ‘uma infantilização das

crianças pequenas e, progressivamente, das crianças em geral’ (...)”.

Esta definição da infância, que prevê atributos e características, ou mesmo o que é

tipicamente infantil, como interesses e tendências naturais que se manifestam dadas

as condições propícias ao seu aparecimento, é um dos inventos da Pedagogia (que

será reforçado posteriormente pelo saber psicológico).

Dessa forma, ao se conceber a criança como um produto biológico em evolução, um

agente de progresso, alcançava-se um distanciamento das explicações religiosas ou

míticas da realidade. A ciência, substituindo a religião, é vista como instrumento de

libertação. As forças do progresso estão, neste caso, ao lado da ciência e da

“natureza”. Em consonância com essa lógica, o caráter “natural” da criança e de seu

desenvolvimento mostra a importância que passa a ser dada tanto ao seu patrimônio

hereditário quanto às experiências vividas no seu ambiente, o que possibilita a

emergência de uma ciência do indivíduo.

A criança passa, assim, a ser objeto de estudo da ciência e dos aparatos de

normalização. O resultado é uma ciência pedagógica baseada no modelo de um

desenvolvimento que ocorre naturalmente e que pode ser observado, normalizado,

regulado (WALKERDINE, 1998).

Bujes (2000) posiciona a idéia de criança natural com dois desdobramentos que

estão ainda hoje muito presentes nas nossas representações do sujeito infantil: o da

criança raciocinante - ou sujeito cognitivo - e o da criança inocente. No primeiro, o

sujeito infantil é colocado primordialmente na posição de aprendiz, com uma

tendência natural à curiosidade, à investigação, à experimentação, com uma

progressão em suas capacidades de raciocínio que se dá de uma forma quase que

mágica, estando implícito que quanto menos interferência, melhor. O segundo vem

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associado à idéia de infância ameaçada, sempre a ponto de desaparecer, e que

precisa ser defendida das vicissitudes do mundo adulto. Conforme Ariès (1998), a

idéia de inocência está ligada a dois tipos de atitude e comportamento em relação à

criança: protegê-la dos problemas e da sexualidade do mundo adulto e fortalecer o

seu caráter pelo uso da razão, num movimento contraditório: para preservá-la é

preciso ao mesmo tempo torná-la mais velha (JENKINS, 1998). Na perspectiva

apresentada por Ariès, estão fortemente imbricadas as duas condições: a da

inocência e a da cognição. Portanto, cabe aos adultos a autoridade e o poder sobre

elas que, como criaturas inocentes, precisam ser guiadas pelos adultos. Assim,

torna-se responsabilidade destes tanto definir os valores morais para os mais jovens

quanto impor a eles os limites do que pode ser conhecido.

Conforme nos aponta Foucault (1997), a infância, historicamente, tem se mostrado

uma categoria instável, que deve ser regulada e controlada e, portanto, as suas

representações ganham visibilidade pela ação de um poder disciplinar que opera

para regular o conhecimento sobre ela.

Essas representações – modernas –, ao serem tomadas como universais e a-

históricas, encobrem diferenças de gênero, classe, raça e têm servido para sustentar

um corpo de conhecimentos especializados produzidos, práticas de vigilância e

controle sobre os sujeitos infantis, bem como ampliar o papel social da classe

educada, com fins de controle sobre a cultura da infância (JENKINS, 1998, apud

BUJES, 2000).

2.2 AS CONTRIUIÇÕES DA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

Um dos pontos de convergência da abordagem histórico-cultural encontra-se com a

teoria foucaultiana é justamente a infância a partir da perspectiva histórica.

Pensando em novas possibilidades de olhar para essas crianças, apoiamo-nos na

abordagem histórico-cultural de Vygotsky com o intuito de compreender que a

atenção e a auto-regulação, bem como todas as outras funções psíquicas

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superiores, são desenvolvidas no ser humano a partir de suas relações com o meio

que o cerca. Portanto, quando pensamos em crianças com sinais de

desatenção/hiperatividade, temos que necessariamente responder à seguinte

questão: o que a educação infantil tem feito para desenvolver essas funções em

suas crianças?

A abordagem histórico-cultural permite que enxerguemos o sujeito infantil não como

um indivíduo “puro”, mas como um sujeito de suas relações sociais. Assim, o outro é

necessário à compreensão de nós mesmos, visto que é sempre a partir das relações

que constituímos nossa subjetividade, nas diversas instituições das quais

participamos ao longo de nossa vida. “Todas as funções psíquicas superiores são

relações internalizadas de ordem social, são o fundamento da estrutura social da

personalidade” (VYGOTSKY, 1988, p.151). Dito de outra forma, não é a condição

orgânica em si que o indivíduo tem ao nascer que determina ou explica seus modos

de se relacionar com os outros, embora atualmente saibamos das predisposições

ocasionadas por determinados quadros, mas as relações sociais estabelecidas ao

longo da vida é que dão embasamento a seus modos de agir, pensar, sentir,

relacionar-se.

Assumindo a perspectiva de que os modos de funcionamento mental se constituem

nas relações dialógicas com os outros, permeadas por signos e significações que

“desenham” sentidos, pautamo-nos na idéia de que a dimensão psicológica é

engendrada por significações e discursos que delineiam ações e práticas. Conforme

escreve Góes:

O homem significa o mundo e a si próprio não de forma direta, mas por meio da experiência social. (...) Assim, a formação do funcionamento subjetivo envolve a internalização (reconstrução, conversão) das experiências vividas no plano intersubjetivo (GÓES, 2002, p.98).

Esta autora esclarece ainda que, como escreveu Vygotsky (1989), a vida social está

organizada para as condições do desenvolvimento humano típico. Todas as práticas

sociais, os instrumentos, a disposição dos ambientes estão projetados para o tipo

biológico estável do homem. “Assim, o desenvolvimento atípico não favorece o

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enraizamento na cultura de modo direto” (GÓES, 2002, p.100), carecendo, portanto,

de mediações sistematizadas e intencionais.

O conceito de mediação semiótica proposto por Vygotsky (1988) tem como premissa

que todas as funções psíquicas superiores, como o pensamento, a linguagem, a

percepção e a atenção, são estabelecidos primeiramente entre as pessoas

(interpsíquicas), para assim serem internalizadas (intrapsíquica). Nessa abordagem,

torna-se sem sentido compreender os sinais de desatenção, hiperatividade e

impulsividade como manifestações de um organismo individual, desconsiderando o

contexto onde emergem as interações e as manifestações comportamentais.

Todas as funções do desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, entre pessoas (interpsicológicas), e depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos (VYGOTSKY, 1988, p.64).

Nessa abordagem, compreendendo a auto-regulação do comportamento das

crianças como o processo que vai sendo constituído e engendrado a partir de

relações intersubjetivas, em contextos de interação, a presente pesquisa propõe-se

a deslocar o eixo de análise do indivíduo para o de relações interpessoais,

evidenciando os contra-sensos promovidos pelos diagnósticos, bem como sua

repercussão sobre os comportamentos desses sujeitos.

Vygotsky foi quem forneceu as bases para a elaboração de uma teoria psicológica

considerando os processos psíquicos superiores constituídos a partir das inter-

relações do ser com o mundo que o cerca. "(...) A corrente histórico-cultural concebe

o psiquismo humano como uma produção social, resultado da apropriação, por parte

dos indivíduos, das produções culturais da sociedade através da mediação dessa

mesma sociedade” (PINO, 1991, p.132).

No modelo histórico-cultural, o ser humano é concebido como um sujeito constituído

intrinsecamente por relações sociais, culturais e históricas. Esse modelo estabelece

uma nova compreensão da relação epistemológica sujeito-objeto. Enquanto o

modelo mecanicista enfatiza o objeto e o modelo organicista privilegia o sujeito, o

modelo histórico-cultural estabelece o princípio da interação dialética entre sujeito e

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objeto e o pressuposto de que essa interação é necessariamente mediada pelas

significações do grupo social.

A perspectiva histórico-cultural encontra nessa temática um amplo espectro de

possibilidades de compreensão, a partir da idéia de que o ser humano se humaniza

na cultura e que a escola, no contexto sócio-educacional estabelecido, engendra nos

sujeitos, atravessados pelas relações ali firmadas, modos de ser/estar no mundo.

O desenvolvimento humano torna-se, para Vygotsky (1988), um processo complexo

que se distancia das funções fisiológicas e dos órgãos sensoriais e passa a ser

mediada pela ação simbólica nas relações sócio-culturais do sujeito.

A atenção se desenvolve gradualmente, sendo regulada por processos de controle

voluntário, conforme vai acontecendo o desenvolvimento do indivíduo. Ao longo de

seu desenvolvimento, este passa a ter uma atenção voluntária, que lhe servirá como

suporte para que possa internalizar elementos a ele relevantes. É um processo que

se dá na interação meio/indivíduo e que não impede que os mecanismos de ação

involuntária continuem presentes/atuantes pela vida afora.

O ser humano está sujeito a uma crescente quantidade de informações provenientes

do meio em que vive. Nem todas elas, no entanto, serão captadas e somente

algumas serão internalizadas pelo "filtro" em que nós deixamos passar apenas

aquelas que nos fazem sentido, que nos interessam. Se assim não fosse e

internalizássemos toda e qualquer informação, haveria um caos interno.

Para Vygotsky (1987), a linguagem é o principal fator mediador simbólico entre o eu

e o mundo, entre as estruturas biológicas e as referências do mundo real. Ocupa

papel de destaque porque, além do papel constitutivo e estruturante do sujeito,

também é a mediação que transforma as estruturas concretas da realidade, pelo

processo de internalização, no mundo simbólico construído por cada um, através

dos significados e dos sentidos formados pela interpretação da realidade.

Vygotsky (1988) faz menção a várias funções da linguagem ao longo de sua obra. A

função reguladora da linguagem, no entanto, merece aqui certo destaque, já que

está vinculada ao conceito de mediação semiótica, e no presente estudo nos serve

para compreender o papel do outro na auto-regulação do comportamento.

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Como explica Werner, junto com a função planejadora e organizadora da linguagem,

“a criança passa a dominar a possibilidade de regular, com o uso da fala, a atividade

visível de manipulação de objetos, para solução de problemas. Aqui está a gênese

da regulação do próprio comportamento” (WERNER, 1997, p.50).

Rey (1987, p.6, apud WERNER, 1997, p.51) afirma que "ao internalizar a fala do

outro, a criança adquire, então, modos de auto-regulação e passa a orientar-se num

novo plano consciente-volitivo”. E que este nível de regulação “caracteriza-se pela

participação ativa do sujeito na direção de execução de seu comportamento através

de fins conscientemente estabelecidos".

Outro aspecto a ser considerado nesse processo é que a unidade básica dos signos presentes na fala está na sua significação afetivo-cognitiva. Portanto, a função reguladora da linguagem, para emergir, depende de determinada carga afetiva presente na dinâmica dialógica.

Neste enfoque histórico-cultural, cabe-nos o desafio de compreender o papel da

atenção como um dos processos psíquicos superiores, juntamente com a memória,

o pensamento e a auto-regulação da conduta, já que a desatenção é considerada

por muitos autores como cada vez mais presente nas salas de aula.

É oportuno ressaltar que, mesmo sendo a natureza social da atenção (voluntária) de

certa forma reconhecida (implícita ou explicitamente), isso não significa que ela e

suas alterações sejam examinadas por esse ângulo. No caso dessas crianças, vê-se

uma tendência em se buscar no substrato fisiológico explicação para as possíveis

causas de suas alterações. Mais polêmicos ainda são os critérios utilizados para

estabelecer os sinais que indicam clinicamente a presença de uma desatenção, os

quais não levam em conta aspectos fundamentais da gênese de qualquer função

psíquica superior.

Ao contrário das abordagens naturalistas (mecanicista e organicista), na perspectiva

histórico-cultural de Vygotsky, a atenção é considerada na sua dimensão semiótica,

pois é constituída e profundamente afetada pelo uso de signos.

E, como esclarece Werner (1997, p.134), a atenção/desatenção “é parte de um

sistema dinâmico de conexões e relações entre várias funções e se modifica ao

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longo do desenvolvimento da criança”. Isso porque, pelos pressupostos

vygotskyanos, a linguagem introduz mudanças qualitativas na forma da atenção e

transforma-a radicalmente, inclusive na sua relação com as outras funções

psíquicas.

Pensando na atenção como parte de um sistema psíquico único - que engloba a

memória, a percepção, o pensamento verbal, a representação simbólica das ações

compartilhadas - que emerge a partir do uso de signos, não há possibilidade de se

estabelecerem analogias com a atenção natural dos animais superiores, que

dependem, primariamente, de necessidades instintivas.

Diante dessa premissa, torna-se necessário repensar os sinais que representariam

alterações de atenção nessas crianças, bem como verificar a possibilidade de

relacioná-los ou não a processos patológicos subjacentes.

A linguagem, para Vygotsky, tem como importante função regular o comportamento.

(...) concebemos a atividade intelectual verbal como uma série de estágios nos quais as funções emocionais e comunicativas da fala são ampliadas pelo acréscimo da função planejadora [no sentido de regular, organizar a ação]. Como resultado a criança adquire a capacidade de engajar-se em operações complexas dentro de um universo atemporal. (...) As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais (VYGOTSKY, 1988, p.31).

Esta função, diga-se, é alcançada e desenvolvida não meramente pelo uso da

palavra ou outro signo, mas por sua significação, num contexto social. Então, esta

função sobre a ação, tanto na sua expressão "externa" (comportamento) quanto

"interna" (afetivo-cognitiva), passa por um processo de transformação que,

inicialmente, tem ação e linguagem separadas. Com o desenvolvimento da criança,

a linguagem vem acompanhada de diversas maneiras de ação, até quando fala e

ação se tornam um amálgama: a linguagem, então auto-orientada, passa a dirigir e a

organizar a ação.

Vygotsky (1988, p.27) diz sobre auto-regulação do comportamento: "Antes de

controlar o próprio comportamento, a criança começa a controlar o ambiente com a

ajuda da fala. Isso produz relações com o ambiente, além de uma nova organização

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do próprio comportamento". E ainda: "(...) as atividades adquirem um significado

próprio num sistema de comportamento social (...)" (p. 33).

Na interação dialógica estão presentes, para além dos elementos intersubjetivos, os

significados dos enunciados comunicativos e, mais importante, a atribuição de

significação pelo outro.

O comportamento das crianças com excessiva desatenção e agitação tem um forte

impacto sobre o comportamento do professor em relação à classe como um todo. Os

problemas com atenção são menos percebidos que os de agitação pelo professor,

que reage a eles também de forma diferente. No processo interativo, o professor

regula-se em função do aluno. É impossível o professor ficar neutro na relação com

seus alunos. Ele influencia e é influenciado pelo comportamento de cada um. Ao

invés disso ser desconsiderado ou até negado, deveria ser tratado como fator

indispensável para a compreensão do comportamento e dos processos mentais dos

alunos.

Parece haver, subjacente aos sinais de hiperatividade, uma necessidade grande do

outro para a regulação do próprio comportamento e para a realização de

determinadas tarefas. Pelo exposto, um dos fatores que dificultam o processo de

auto-regulação talvez seja o significado atribuído pelos interlocutores, ou seja, ao

longo das experiências vividas, a criança vai internalizando modos de regulação

inadequados, impróprios às exigências sociais.

Essa inadequação, pelas falas dos muitos profissionais da escola de educação

infantil pesquisada, em muito se deve ao fato de que esses comportamentos

desestruturam a rígida organização da aula e da escola. Os comportamentos de

desatenção e hiperatividade são muitas vezes percebidos pelo professor como

rebeldia à sua autoridade ou mesmo como doença.

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2.3 AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM PSICANALÍTICA

A abordagem psicanalítica é trazida a essa discussão para subsidiar aspectos como

os referentes à relação professor-aluno (adulto-criança) e para discutir a questão

dos encaminhamentos aos serviços de saúde de crianças que, por não se

adequarem aos padrões escolares, são tidas como doentes.

Buscamos as interfaces dessa abordagem com a histórico-cultural e, delas, com o

aporte teórico foucaultiano, no sentido de embasar todos os aspectos que

pretendemos realçar, mostrando que, em certos pontos, elas se complementam.

Um desses pontos, crucial para todo o entendimento da perspectiva que ora

traçamos, é a crítica à crença pedagógica do desenvolvimento natural da

aprendizagem e da moralidade infantil, que coloca a centralidade da atividade do

aluno no discurso psicopedagógico, e implica, na realidade, uma tendência de

renúncia ao ato educativo.

Para Lajonquière (1999), a crença no desenvolvimento das potencialidades naturais

da inteligência e da moralidade leva a educação escolar a algumas ilusões frente ao

dimensionamento da ação pedagógica, que suscitam o questionamento da

legitimidade da intervenção do professor no processo da atividade infantil. Ao

renunciar à diferença que se estabelece entre o adulto e a criança, na tentativa de

eclipsar os saberes e a autoridade do adulto para uma pretensa relação de simetria,

o que se observa é uma gradual e histórica tendência de renúncia ao ato educativo.

Essa renúncia pode se apresentar sob muitas roupagens. Destacamos, nesse ponto,

os encaminhamentos aos serviços de saúde como uma das mais evidentes.

QUANDO A CRIANÇA É ENCAMINHADA

Porque na verdade a gente faz o seguinte: a gente encaminha um ‘mooonte’ de criança pro psicólogo, aí chega lá o psicólogo pergunta assim: “qual é o problema?”, “ah, o problema é isso, isso e isso”. Quer dizer, as mães não mandam, não percebem que a criança tem algum problema, pra elas o filho é normal. A escola que diz: não, ele tem alguma... ou é hiperativo, ou ele é agressivo... aí a escola: ‘não, mãe, será que dá pra você levar no psicólogo’, aí chega lá: ‘não sei

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porque que mandou, foi a professora que mandou’ (PROFESSORA CÁSSIA, 24 set. 2007).

Schaffer e Barros (2003) apontam o número excessivo de alunos encaminhados

pela escola para atendimento psicológico. Ao analisarem os motivos dos

encaminhamentos, percebem que os problemas são mais concernentes à área

comportamental do que de aprendizagem. Desses encaminhamentos, ressaltam

duas situações polarizadas (na maioria dos encaminhamentos): ou o aluno é

descrito negativamente quanto ao seu comportamento (não atende ordens, não tem

limites, não realiza as tarefas etc.) e ao mesmo tempo é descrito positivamente no

aspecto cognitivo e de aprendizagem ou pelo menos de modo não problemático; ou,

ao contrário, o aluno é descrito positivamente quanto ao comportamento ou pelo

menos não problemático e, ao mesmo tempo, negativamente no aspecto cognitivo e

de aprendizagem (é esforçado, meigo, dedicado, calmo, mas é lento distraído, não

interpreta, não entende...).

(...) O aluno dócil e bem comportado também apresenta um excedente que não é suportado pela escola, qual seja: ele é apático, não aprende. Comportamento de mais e aprendizagem de menos? Na situação anterior, o que se encontrava comprometido era o comportamento esperado e não necessariamente o aspecto cognitivo. Menos comportamento, mas muita esperteza? (SCHAFFER & BARROS, 2003, p.71).

Quando o problema é relativo à conduta do aluno, campeão de encaminhamento,

segundo Souza (2002), as dificuldades invadem o campo relacional e aspectos

psicológicos específicos da pessoa do professor e do aluno são deflagrados. Zanella

(2003) aponta que os encaminhamentos, quando são mais detidamente analisados,

revelam: "dificuldades de relacionamento com colegas e/ou professores;

comportamento inadequado em sala de aula, seja porque calado ou falante demais;

indisciplina, "transtornos" familiares; e assim por diante” (p.20). Revelam ainda

comportamentos ou características desses sujeitos que se afastam das expectativas

do professor, geralmente muito marcados pelo modelo de aluno das camadas

médias da população. Desses, muitos recebem o "diagnóstico" informal de

"hiperativos" mostrando a apropriação indevida de uma terminologia tão pouco

precisa do campo médico, sem que, nessa discussão, sejam inseridas outras

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questões como a relação que se estabelece com ele, por exemplo. Zanella aponta

que "... não é possível falar em dificuldades de aprender sem considerar as

condições do ensinar, o contexto no qual essas atividades acontecem, bem como as

condições e características dos sujeitos que as engendram e dos muitos outros que

com estes convivem" (ZANELLA, 2003, p.22).

Souza (2002) também investigou o processo de encaminhamento de crianças e

adolescentes aos serviços de atendimento psicológico. Descobriu que o motivo mais

freqüente dos encaminhamentos é o que os educadores denominam problemas de

aprendizagem atrelados a problemas atitudinais (26%), seguido daqueles com

somente problemas de aprendizagem (24%) e somente problemas de conduta

(19%). Assim, “69% das crianças apresentam problemas na aprendizagem ou

atitudes consideradas inadequadas em sala de aula” (p.180). Os meninos são mais

encaminhados por problemas de atitudes, enquanto as meninas mais por problemas

de aprendizagem. As queixas (motivos de encaminhamentos) são, na grande

maioria, atribuídas às crianças e revelam um processo de escolarização em que

O educador tem muita dificuldade em ensinar essa criança, não sabe como lidar pedagogicamente com questões ligadas ao processo de alfabetização, principalmente das crianças ingressantes, com muitas expectativas em relação a ler e escrever. As histórias de repetência confirmam essa dificuldade em ensinar, produzindo uma criança desinteressada, distraída e agressiva (SOUZA, 2002, p.183).

Machado ([on line] 2004a) propõe uma discussão muito interessante acerca dos

encaminhamentos para avaliação psicológica dos alunos da rede pública. Apresenta

como questões: “Quais os critérios para encaminhar uma criança para avaliação

psicológica? O que investigar em sala de aula? Como redigir essa investigação? Em

que medida o diagnóstico da saúde auxilia o fazer pedagógico? Como esses laudos

podem interferir no trabalho pedagógico? Até que ponto o professor precisa da

avaliação psicológica para poder trabalhar com a criança? O que fazer quando o

relatório psicológico tem um conteúdo que não coincide com o que conhecemos da

criança? Por que os laudos são tão parecidos? Qual a diferença, para o trabalho do

professor, de uma avaliação que revele deficiência mental de outra que fale de

distúrbio global de desenvolvimento?” E os professores querem saber: “O que esse

aluno tem?” “Qual o problema dele?”, “Como trabalhar com ele?”.

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O QUE REVELAM OS LAUDOS

Seus estudos também revelam que os laudos psicológicos geralmente são muito

parecidos em seus aspectos e relatos. "Desconsideram as diferenças, reduzem os

sujeitos a funcionamentos padrões, realizando trabalhos que enquadram o sujeito

em uma estrutura na qual fica parecendo que o sujeito é determinado apenas por

questões intrínsecas e familiares” (MACHADO, 2004). Os laudos, não raro,

desconsideram o lugar no qual o sintoma está sendo gerado. São relatórios que não

estabelecem pontes com o cotidiano escolar e, portanto, isentam o fazer

pedagógico. Ao desconsiderar esse processo de produção do sintoma, mostra uma

concepção de sujeito tratado como objeto. E as diferenças são deixadas de lado, e o

processo em que foram se constituindo também, ou seja, o processo de

subjetivação que se engendra nas práticas vivenciadas.

(...) Ao pesquisarmos o processo de produção da queixa escolar, de um sintoma, de um afeto, buscamos os saberes e as práticas nos quais essa queixa, sintoma ou afeto, foi engendrado. Para quê? Para podermos pensar em maneiras de intervir na produção daquilo que nos é encaminhado (MACHADO, [on line] 2004a).

Os relatórios ou laudos psicológicos também trazem, com freqüência, descrições de

fatos ou ocorrências da vida dos sujeitos, sem apresentar as relações disso com os

problemas que eles apresentam como alunos. Entretanto, se não vai haver uma

intervenção nas relações nas quais o sujeito se constitui, ao apontar isso como fator

causal, o laudo apenas irá reforçar e rotular o que já existe. Não raro, surgem laudos

calcados no senso comum, sem critérios e clareza do que se afirma, produzindo

estigmas e justificando a exclusão escolar.

A estereotipia da linguagem utilizada, a mesmice das frases, conclusões e recomendações trazem-nos à mente a imagem de um carimbo - os laudos falam de uma criança abstrata, sempre a mesma. O fato de invariavelmente aprovarem (laudare significa aprovar) a crença dos educadores de que há algo errado com o aprendiz mostra uma significativa convergência das visões técnico-científicas e do senso comum (PATTO, [on line] 2006.).

Os laudos, segundo essas pesquisadoras, são elaborados, normalmente, a partir de

testes. O exame psicológico tem nos testes o fundamento de suas conclusões. E os

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testes são passíveis de crítica em muitos sentidos; seja pelo conteúdo das provas,

seja pela conceituação de inteligência que os embasa, seja pela situação de

testagem etc. Os testes transformam-se em um artifício do poder, que transforma a

criança em vítima do seu próprio resultado.

A maioria dos psicólogos que emite laudos psicológicos a respeito das crianças com dificuldades escolares desconhece a força desse instrumento no meio escolar. Como avaliou Patto (2002), ao estudar casos de multirrepetentes, a avaliação de um profissional de psicologia "sela destinos". O laudo psicológico é um parecer técnico, entendido como um instrumento definitivo que atribui as verdadeiras causas de um determinado problema psíquico. Alguns psicólogos acreditam tão cegamente nesse instrumento a ponto de escrever em suas avaliações que a criança é "definitivamente deficiente mental leve". As conseqüências da utilização desse instrumento na escola são as mais diversas, mas, em geral, todas elas contrárias ao fortalecimento do aprendizado e reforçadoras da estigmatização já sofrida pelas crianças na escola (SOUZA, 2004, p.29-30).

A essência dos testes está pautada numa concepção de ciência que os engendra e

numa visão ideológica que os sustenta. Assim também são os laudos psicológicos,

que não trazem em seus conteúdos nenhuma menção das dificuldades que as

crianças enfrentam para se escolarizarem. Isso porque estão pautados numa

concepção de homem, de ciência e de sociedade que não lhes permite compreender

o comportamento escolar dessas crianças como parte de uma instituição de ensino,

cuja lógica é preciso conhecer para compreender o significado desse

comportamento; que não lhes permite ver que o ensino público historicamente é

marcado pelo descaso com a escola para o povo; que não lhes permite pensar em

professores mal remunerados, desvalorizados e frustrados, que transformam seus

alunos em "bodes expiatórios" de suas mazelas; também não permite perceber que

a vida escolar não é estanque dessa realidade que a atravessa na forma de prática

e processos pedagógicos e administrativos produtores de dificuldades de

aprendizagem. Além disso, corroboram com as relações pessoais na escola,

autoritárias e produtoras de estigma e exclusão. E, esquecendo-se da ausência

freqüente de professores nas salas de aula e suas constantes trocas ao longo do

ano, ainda assim explicam a defasagem da aprendizagem e seu inevitável impacto

na auto-estima da criança como problemas dela, decorrentes de distúrbios

localizados nela.

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Machado ([on line] 2004a) defende que tanto “a demanda da educação para a saúde

deve ser repensada, assim como a prática da saúde para com a demanda escolar”.

Nesse sentido, é necessário que os serviços psicológicos criem “dispositivos que

movimentem aquilo que se apresenta cristalizado no interior da escola”. Dessa

forma, o papel do psicólogo deveria ser, primeiramente, o de buscar no interior da

escola as hipóteses sobre a produção dos problemas.

E ainda lança a questão: "O que se quer ao encaminhar uma criança para avaliação

psicológica?" Talvez se espera que venham orientações sobre como lidar com a

criança, ou que ela seja medicada para ficar mais calma. Mas, normalmente, esse é

um processo frustrante. Machado aponta que existem maiores possibilidades de

êxito se o psicólogo vai até a escola conversar sobre o aluno. "Nessas conversas,

retomamos a história escolar do aluno, as estratégias já tentadas, as várias versões

sobre o aluno. É no grupo de professoras que os encaminhamentos devem ser

discutidos" (MACHADO, [on line] 2004a). Do grupo emergem muitas possibilidades e

fica sempre a questão: "Por que os saberes produzidos em um certo coletivo se

encontram tão enfraquecidos?" E dessa vem outra: Por que, mesmo quando se

geram essas oportunidades, algumas professoras preferem não se manifestar,

parecem temer se expor e isso revela uma característica muito comum nas escolas:

"a dificuldade em se ter controvérsias, desacordos, discussões, contradições".

"Essas dificuldades nos revelam a importância de considerarmos os processos de

subjetivação que se produzem no coletivo". Assim, indagamos, junto com Machado:

"Como fortalecer o grupo de professoras para o enfrentamento de discussões que

geram intensas controvérsias?" (MACHADO, [on line] 2004a).

A psicologia, infelizmente, vem contribuindo muito para esse processo de

psicologização porque, a despeito de se perceber como uma ciência comprometida

com os direitos humanos e com as forças sociais que atuam sobre eles, ainda está

muito presa à estrutura psíquica do indivíduo, focalizando a busca nele das raízes

dos problemas educacionais por que passa.

A cultura em que estamos inseridos mostra uma escola que encaminha aqueles que

não se enquadram nas normas, julgando-os doentes, para serviços de saúde que

desconsideram a trama institucional na qual o encaminhamento é engendrado, o

que reforça a depositação de saberes nos especialistas, retirando esses saberes do

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professor. Machado ([on line] 2004b) aponta para práticas que "desconsideram que

a inclusão não se dá incluindo os corpos das crianças nas classes regulares. A

inclusão se dá quando se devolve ao coletivo aquilo que foi individualizado no corpo

do sujeito". Os "processos de subjetivação são desconsiderados por educadores e

especialistas".

Essa prática de atendimento à queixa escolar, que a interpreta apenas como

manifestação de conflitos emocionais vividos pela criança, guarda implícita uma

concepção teórica de que essas crianças têm seqüelas advindas da pobreza: déficit

cognitivo, famílias desestruturadas, carência afetiva (FRELLER, 1993, p.27, apud

SOUZA, 2004, p.32).

QUANDO O LAUDO VOLTA PARA A ESCOLA

A resultante do encaminhamento e de um posterior laudo que chegue à escola não

é, em si, boa ou má. Não se trata de apenas afirmarmos que o encaminhamento

revela a estagnação do professor diante de algum problema. Trata-se do que é

pensado em torno disso. Qual a intenção do professor ao encaminhá-lo? Não é o

laudo que é bom ou mau, é o que será feito/pensado a partir dele. "O problema é

que certas práticas potencializam a diferença ser vivida como negação, como algo

qualitativamente inferior" (MACHADO & SOUZA, 2004, p.45). É insano pensar que o

diagnóstico puro e simples vai definir o que é melhor ou pior para uma dada pessoa,

da mesma forma que um sintoma, por mais orgânico que seja, pode ser vivenciado

pelo sujeito de infinitas formas diferentes.

Sobre o diagnóstico, então, o que nos interessa pensar é que, no contexto

educacional, ele até poderia servir como auxílio na estruturação de algumas

adaptações e estratégias, mas, de forma alguma, deveria ser usado para patologizar

o processo educacional da criança, seja minimizando as expectativas quanto ao seu

sucesso escolar, seja deixando-a de lado, desistindo dela, porque o diagnóstico

sozinho não muda comportamento. De qualquer forma, temos que reconhecer que

para a absoluta maioria dos professores da escola ele é importante. Saber quais as

conseqüências que ele pode trazer para a trajetória de vida acadêmica dessas

crianças é ainda uma incógnita.

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Collares & Moysés (1996) abordam essa questão quando mostram que um

diagnóstico pode servir de álibi para o professor se eximir de culpa no processo de

fracasso escolar de seus alunos.

Kassar (1995), de outro modo, ressalta que o problema existe e afeta o desempenho

da criança na esfera educacional e social e desconsiderá-lo pode ser uma forma de

contribuir para o não desenvolvimento de todo o potencial educacional dela.

Não ignoro esses relevantes aspectos segregadores, ideológicos e limitantes do diagnóstico escolar, tampouco desconsidero trabalhos como Goffman (1980), que nos apresenta a pesada carga social do estigma. No entanto, a questão é que a ausência desse processo "oficial" dentro da escola cede lugar a outro processo classificatório. O diagnóstico parece sempre existir, ou seja, a não existência do diagnóstico “oficial” não implica a sua não existência de fato. Contrariamente, fortalece a prática de um procedimento similar, de maior abrangência com o mesmo poder de força, que a chamarei lei de diagnóstico “prático” (KASSAR, 1995, p.41).

Realmente, a ausência de um diagnóstico (oficial) pode abrir espaço para esse

"diagnóstico" proveniente da experiência do professor e isso ainda pode contribuir

para colocar o aluno em situação mais contraditória e constrangedora, que

certamente tem impactos na sua aprendizagem escolar. O diagnóstico empobrece,

anula, cerceia a singularidade e a potencialidade humana.

De certa forma, o fato de termos alunos com os mais diversos comprometimentos

circulando pelas escolas contribui para além de todas as outras benesses, para que

a produção da exclusão que se promove no interior da escola esteja realçada e

posta "em xeque". "O desafio que temos é criar rupturas na lógica que intensifica a

exclusão social e que submete os sujeitos às leis da melhor competência, das

categorias e das medições" (MACHADO, [on line] 2004b).

Muitas vezes, as dificuldades apresentadas pelas crianças produzem nos professores a sensação de eles não estarem preparados para trabalhar com a presença dessas crianças na sala de aula, ou a sensação de os problemas familiares serem tão intensos que não dá para ensinar certas crianças. Neste território no qual as dificuldades nos paralisam, essas dificuldades têm servido para isso mesmo: paralisado. E, fica parecendo que somente seria possível movimento, crescimento, desenvolvimento, mudança, criação, se houvessem as ilusórias condições ideais. Conhecemos também essa produção - estar fixado no que seriam as condições ideais acreditando que aquilo que acontece não deveria acontecer. Esse pensamento é

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ideológico, o que ocorre não é acidental, o fracasso é engendrado no cotidiano. As deficiências secundárias, produzidas pelo medo, preconceito, estigma e receio, como alguns autores já nos relataram (Amaral), podem prejudicar mais do que as restrições das deficiências primárias e trazem à tona as questões do processo de produção de subjetivação e das relações de poder e de saber (MACHADO, [on line] 2004b).

No geral, o grupo de professores apresenta como característica o receio de se

expor, de gerar controvérsias, de criticar e ser criticado, o que faz com que muitas

vezes as reuniões sejam burocratizadas, sem reflexão, sem crescimento. Parece

que também no professor existe o mecanismo de culpabilização que atinge os

alunos, visto serem ambos frutos dos processos de individualização das sociedades

capitalistas, que culpabilizam os sujeitos por seus fracassos, pautados em causas

individuais.

QUANDO SE ENCONTRAM A SAÚDE E A EDUCAÇÃO

Machado ([on line] 2004b) mostra que, historicamente, a forma como esta relação

vem se dando tem promovido vácuos, não aproximações.

Psicólogos compactuam com a exclusão quando trabalham desconsiderando o funcionamento do território no qual a exclusão se engendra, realizando avaliações baseadas em padrões de normalidade criados por testes psicológicos e redigindo relatórios sobre os sujeitos apresentando o que ‘falta’ na família, o que ‘falta’ na escola, o que ‘falta’ nos professores, o que ‘falta’ nas crianças. (MACHADO, [on line] 2004b).

E, continua: "Os profissionais da Saúde têm se encontrado com a Educação por

diferentes caminhos". Um deles é por fora da escola, em clínicas e centros de

atendimento em trabalhos com crianças com comprometimento severos, psicóticas e

autistas. Outro, pelo interior da escola, quando são chamados a atuar. Nesse trajeto

está o encaminhamento para avaliação psicológica e o retorno vem, normalmente,

em forma de relatório ou laudo, que por ter sido elaborado à distância, sem

interlocução com os profissionais da escola, acaba agregando muito pouco valor, ou

mesmo gerando rótulos devastadores.

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Nesse sentido é que um trabalho que envolvesse o grupo de professores para

nomear e discutir situações em torno de “crianças indisciplinadas”, que

desaguassem em projetos relacionados à produção da indisciplina, seria necessário.

Sair do corpo do sujeito para o contexto em que se constitui é fazer o movimento

inverso, ressalta Foucault (1980), e fortalecer os profissionais da instituição para um

resgate da sua função pedagógica. "A construção de uma relação da saúde com a

educação na qual não domine a busca de um diagnóstico individualizado no corpo

da criança, e sim um trabalho no qual os profissionais da saúde, juntamente e com

as educadoras, problematizem as práticas escolares" (MACHADO, [on line] 2004b).

A medicina, a psicologia e outras ciências da saúde, constituídas nos padrões da

ciência moderna, como aponta Foucault (1980), estendem sua normatividade a

todas as áreas da vida humana, colocando-se como detentores de um saber capaz

de resolver os problemas que afligem a sociedade. Esse processo é denominado

“medicalização” e por ele todos os problemas da vida humana têm se transformado

em questões de ordem biológica, individual.

Moysés (2001), ao investigar essa questão, descobre que as radiografias de crânio

feitas em crianças entre 5 e 14 anos correspondem a 73% dos exames, enquanto

apenas 27% é relativo a crianças com idade abaixo de 4 anos, segmento que

corresponde à maioria das consultas.

Junte-se a esses dados o fato de haver um excesso de encaminhamentos de

crianças em idade escolar a neurologistas; supõe-se que esses exames estejam

sendo pedidos para crianças que apresentam problemas na esfera do

comportamento e da aprendizagem escolar. É bastante incongruente se pensarmos

que “a radiografia do crânio está indicada em traumatismos, alterações de forma e

tamanho do crânio, suspeita de infecções congênitas e de hipertensão intracraniana”

(MOYSÉS, 2001, p.85). “O eletroencefalograma é um exame classicamente

destinado à elucidação de crises convulsivas, só devendo ser solicitado quando

existe história ou suspeita de convulsão (...)”.

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado (FOUCAULT, 1996, p.164).

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O processo de medicalização da aprendizagem implica que crianças em idade

escolar estejam sendo submetidas a exames com o objetivo de avalizar aquilo que

estes exames não são capazes de avaliar. “(...) em um jogo ritualístico, o médico

solicita exames que não comprovam a doença que a criança não tem” (MOYSÉS,

2001, p.94). Ou seja, os testes são artifícios utilizados para justificar as

desigualdades, já que a desloca para a pessoa, tirando-a da sociedade. Tornam-se,

então, uma das formas de materializar o preconceito.

Canguilhem (1982) aponta que a necessidade de se estabelecer uma norma única

como a adequada pode ser compreendida dentro de dois paradigmas sobre saúde\

doença: saúde e doença como momentos distintos de uma mesma norma, e saúde

e doença como constituindo normas distintas. “O paradigma positivista entende que

saúde e doença são momentos distintos de uma mesma norma, diferenciando–se

apenas por aspectos quantitativos. Saúde e doença são, nesse paradigma, iguais

em essência, pertencendo à mesma norma.” (MOYSÉS, 2001, p.115). Assim, a

doença passa a ser quantificada, bem como a saúde, e passam a ser definidas por

uma medida. A normalidade estatística é transformada em normalidade individual. A

anormalidade se estabelece em relação ao que falta ou ao que excede à norma

estabelecida. Os testes de inteligência são pensados dentro dessa concepção para

identificar e mensurar as diferenças individuais. O problema não é interpretar a

média como a norma, mas tratar a norma como “divina”.

Canguilhem contrapõe-se ao paradigma positivista, que entende saúde e doença

como “momentos de uma mesma norma, isto é, diferentes apenas por aspectos

quantitativos, ao construir uma concepção vinculada ao paradigma dialético. Neste

paradigma, saúde e doença pertencem a normas distintas; isto é, embora existam

diferenças quantitativas, o que realmente as distingue são qualidades” (MOYSÉS,

2001, p.120).

Neste paradigma, entender de saúde não significa entender a doença ou mesmo

sobre como se adoece. Estudando as doenças, não dá para entender sobre saúde.

“Um traço humano não seria normal por ser freqüente; mas seria freqüente por ser

normal, isto é, normativo num determinado ‘gênero de vida’” (CANGUILHEM, op.cit.,

p.126). Os paradigmas sobre saúde/doença – o positivista e o dialético – diferem

radicalmente. No paradigma dialético, defendido por Canguilhem, não dá para

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entender a doença partindo da saúde, nem vice-versa. Ele diz: “O normal não é um

conceito estático ou pacífico, e sim um conceito dinâmico e polêmico. (...)

Normalizar, é impor uma exigência a uma existência, a um dado, cuja variedade e

disparidade se apresentam, em relação à exigência, como um determinado hostil,

mais ainda do que estranho” (op. cit. p.211).

O essencial nisso tudo é um questionamento na forma de olhar uma pessoa, um

aluno, ao submetê-la (o) a uma avaliação. Este olhar normalmente recai sobre o que

lhe falta em direção a uma norma. Este olhar precisa ser subvertido. Há que se

buscar uma subversão do próprio olhar, do lugar de onde se olha e do que se

pretende olhar. “Perceber os limites do olhar talvez coloque limites ao classificar...”

(MOYSÉS, 2001, p.123).

(...) impõe-se aos excluídos a tática das disciplinas individualizantes; e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é “leproso” e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão (FOUCAULT, 1996, p.176).

Toda essa discussão vem permeada pelo lugar de onde se olha, pelo modo de

olhar, enfim, pelo “olhar clínico”. Foucault, em sua obra “O nascimento da clínica”,

discute a constituição desse olhar, iniciado no final do séc. XVIII e início do séc. XIX,

inicialmente pela medicina, constituindo as raízes epistemológicas de todas as

outras ciências da saúde, derivadas dela.

Entender o que está impregnando este olhar, histórica e institucionalmente, torna-se

de vital importância para este trabalho, que busca compreender os atravessamentos

dele em outros campos de saber, como o escolar.

O “olhar clínico” provém, historicamente, da “medicina classificatória”. Segundo

Foucault (1980), antes de ser pensada no corpo, a doença é hierarquizada em

famílias, gêneros e espécies. Para ele, a medicina classificatória constitui a forma de

pensamento médico que precede cronologicamente o método clínico, tornando-o

historicamente possível. Nela, a doença tem uma essência que é perturbada pelo

doente (e até mesmo pelo médico), que acrescenta a ela suas disposições,

idiossincrasias, seu modo de vida. Para chegar à patologia, segundo Foucault

(1980), o médico deve abstrair o doente, já que ele “atrapalha” a manifestação da

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essência da doença. Se o médico não abstrair essas contingências para atingir a

essência da doença, se não se mostrar obediente à ordenação ideal da nosologia,

também “perturbará” a doença. Conforme Moysés, “o olhar do médico deve dirigir-se

não ao corpo concreto do doente à sua frente, mas a intervalos, lacunas e

distâncias, em que aparecem” (2001, p.142). Pautando-se nessas idéias, não é

difícil perceber a eterna busca por objetividade e neutralidade da medicina, que

transforma a relação médico-paciente numa relação sujeito-objeto. Para atingir essa

neutralidade, precisa neutralizar o “doente”, olhá-lo enquanto abstração, não

enquanto concretude.

A medicina avança enquanto conhecimento vital da sociedade e, no séc. XIX, amplia

sua ascendência também para a normalidade, além da questão da saúde/doença de

que vinha se ocupando até então. Nota, entretanto, Foucault (1980), que se ampliou

a troca de informações sobre as doenças mas quase nada avançou em relação ao

doente. Essa mudança dá à medicina, com o total aval da sociedade, espaço para

que se ocupe de todas as relações do homem com a natureza e com os outros

homens, ou seja, um papel normatizador da vida do ser humano. Esse projeto de

medicalização da sociedade guarda seus reflexos até hoje, dois séculos depois.

O olhar clínico veio se constituindo ao longo do tempo e simboliza um olhar que

sabe e decide. Para tal, isola, agrupa, classifica, reconhece semelhanças e

diferenças, pautando-se nos conceitos de “normalidade” e de “desviante”. Continua

a abstrair o doente em suas peculiaridades, em sua forma de perceber a si e à

doença, enfim, considera a doença como um fator genérico, afastando de seu olhar

tudo o que possa “perturbar” esse genérico. Assim, a medicina ainda não resulta do

encontro do médico com o doente.

A psicologia, bem como todas as outras “ciências da saúde”, tem seu fundamento no

método clínico. No processo de “diagnóstico” da criança, para avaliá-la, precisa-se

abstraí-la de sua vida, do seu contexto, das “perturbações”, para poder olhar apenas

para sua “doença”. Nesse processo, desconsideram-se seus desejos, seus sonhos,

suas necessidades, suas possibilidades concretas, enfim, sua condição de sujeito

historicamente determinado. Não raro, negam-lhe a voz para que fale de si, de sua

vida, para que, assim, não se constitua como sujeito.

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E é esse o olhar que recai sobre a aprendizagem, ou seja, os problemas da vida, as

condições de vida são transformadas em causas das doenças, dos distúrbios de

comportamento, de aprendizagem etc. "O que escapa às normas, o que não vai

bem, o que não funciona como deveria... tudo é transformado em doença, em um

problema biológico, individual” (MOYSÉS, 2001, p. 176).

O comportamento, segundo Moysés, é o primeiro, entre as categorias mencionadas,

a ser tomado como objeto biológico. Isso é compreensível se pensarmos que a

escolarização era destinada exclusivamente às elites e qualquer comportamento

desviante logo demandava ser controlado. O modelo de homem saudável,

estatisticamente definido, era o padrão a que todos eram confrontados. "A

normalidade estatística, definida por freqüências e um raciocínio probabilístico, não

por acaso coincide com a norma socialmente estabelecida, é transformada em

critério de saúde e doença" (2001, p. 178).

A impressão que se tem é que não há solução para esse impasse: o aluno é

rotulado pela escola ou pelo profissional da saúde. Em qualquer das possibilidades,

o problema é do aluno, está nele.

Assim se mostra a outra face da escola, a face da exclusão. Exclusão daqueles que

não estão aptos para atender aos anseios da sociedade capitalista: indivíduos

dóceis e com desempenho acadêmico adequado. A escola atua pelo que o sistema

espera e, assim, a exclusão acontece oficializada pela escola.

A exclusão começa a ser configurada na "previsão" que se tem sobre desempenho

escolar do aluno, desconectada de qualquer avaliação mais específica, que vem

carregada de preconceito, que se mostra nas ações e na fala, repleta de termos

técnicos e carregada de cientificidade e legitimidade inquestionáveis. À família cabe

a estranheza de descobrir que o filho tem uma doença até então desconhecida e a

ela não resta alternativa a não ser se fiar nessa "profecia".

Fechando esse item, fechamos também o capítulo na expectativa de ter ficado claro

que esse entrelaçamento teórico só é possível porque as abordagens teóricas

expostas concebem o sujeito infantil como aquele que se constitui na relação. Dessa

articulação, depreende-se que a subjetividade está sempre presente nas relações

sociais e se constitui nelas. E, como nos aponta Foucault (1987), toda prática de

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objetivação traz junto uma prática de subjetivação. Desse modo, produz-se algo e

isso produz um sujeito que entende esse algo naturalmente, ou seja, é preciso que

crianças sejam objetivadas como alunos especiais para que alcancem

programações especiais de ensino e subjetividades que a vejam como tal.

Entretanto, a naturalização com que passam a ser vistas cristaliza procedimentos e

impede que novas alternativas possam ser buscadas.

No espaço ocupado atualmente pela educação infantil, crianças com sinais de

desatenção/hiperatividade estão sendo objetivadas como portadoras de um

adoecimento que precisa ser tratado fora da escola; e essas práticas engendram

subjetividades acerca delas.

Em síntese, a produção teórica referente à educação infantil tem sido fortemente

marcada pelas questões referentes ao desenvolvimento infantil. Sem deixar de

considerá-lo, voltamo-nos, neste estudo, mais especificamente para as relações

estabelecidas no contexto da educação infantil, deflagradoras de estigmas e

preconceitos acerca das crianças com sinais de desatenção/hiperatividade. Essas

crianças não são aqui alvo de diagnóstico ou intervenção clínica. São pensadas por

meio de um recorte teórico que busca contribuir lançando alguns questionamentos

sobre as práticas pedagógicas destinadas a elas, já que a literatura disponível a

esse respeito ainda é escassa e, primordialmente, de cunho médico.

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3. A ESCOLARIZAÇÃO DE SUJEITOS COM SINAIS DE DESATENÇÃO/HIPERATIVIDADE

Tendo em vista que esses sujeitos são, muitas vezes, reduzidos a uma visão de

sujeitos indisciplinados, e considerando que “hiperatividade” e “indisciplina” são

conceitos distintos, atenho-me neste ponto a tecer algumas considerações acerca

das intersecções dessa problemática com a questão da indisciplina.

3.1 (IN) DISCIPLINA ESCOLAR: ALGUMAS DEFINIÇÕES E A VISÃO DOS EDUCADORES

Partimos de algumas definições para situarmos melhor o problema. Procurando o

sentido do termo “disciplina” no Novo Dicionário Aurélio, encontramos definições

como “1. regime de ordem imposta ou mesmo consentida. 2. ordem que convém ao

bom funcionamento de uma organização. 3. relações de subordinação do aluno ao

mestre. 4. submissão a um regulamento(...)”(FERREIRA, 1999, p.239). “Indisciplina”,

por sua vez, vem definida como “(...) procedimento, ato ou dito contrário à disciplina”

(1999, p.384).

Para Silva (2004), o termo indisciplina é quase sempre empregado para designar

todo e qualquer comportamento que seja contrário às regras, às normas e às leis

estabelecidas por uma organização. No caso da escola, significa desrespeitar suas

regras e normas.

Segundo Araújo (2002, p.217), disciplina é “entendida a partir do respeito que as

pessoas têm pelos instrumentos normativos criados para regular as relações dentro

das instituições sociais”. Mas, ele continua, “existe muita diferença se tal respeito é

obtido de forma impositiva ou se advém de uma decisão consciente de cada pessoa

que decide cumprir determinada regra (...)”.

As discussões sobre disciplina/indisciplina invadiram as escolas nas últimas

décadas, incluindo a educação infantil. Esse fenômeno é visível não só pela

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observação direta nas escolas, mas também pelo número de publicações que vem

sendo lançadas nesse período, sobre essa temática. Temos observado também

que, paralelamente a esses conceitos, idéias sobre limites aparecem nas práticas

pedagógicas.

A dissertação de mestrado intitulada “Concepções e práticas de educadores acerca

de disciplina e limites na educação infantil: um estudo de caso” (SCHICOTTI, 2005)

concluiu que os educadores de crianças de zero a seis anos pesquisados

compreendem os conceitos de limites e disciplina como sinônimos. Por sua vez, a

indisciplina foi traduzida principalmente como “falta de limites”, sendo que as idéias

de falta e desrespeito ao outro também aparecem bastante associadas a essas

questões. Concluiu ainda que, com relação às práticas, não há um respaldo teórico

que as oriente. As ações educativas parecem permeadas por práticas mais

democráticas que envolvem o diálogo ou as “combinações” e aquelas tradicionais,

tais como: “broncas”, castigos, reforços. Entretanto, nos casos mais difíceis de

indisciplina ou falta de limites predominam as ações repressivas.

Na educação infantil, assim como no ensino fundamental, os educadores estão

reiteradamente queixando-se da falta de limites ou da agressividade exacerbada das

crianças, o que nos leva a supor que os profissionais da educação estão

encontrando muitas dificuldades com essas questões.

Autores como Lajonquière (1996), Vasconcellos (2000), De La Taille (2001) e Aquino

(2003) afirmam que os profissionais da educação têm se preocupado bastante com

as questões que envolvem a disciplina e o limite.

Aquino sugere que essa preocupação sempre existiu, porém é somente a partir da

década de 1990 que essa temática passou a ter maior visibilidade, caracterizando-

se como um obstáculo ou empecilho ao trabalho pedagógico. Mas, quais as razões

dessa mudança?

Por certo, é difícil responder a essas questões. No entanto, alguns autores, como

Sarmento (2001, p.18), vêm tentando sugerir algumas respostas. Este autor diz que

a indisciplina está relacionada às rupturas e contradições sociais que “(...)

encontram nos modelos relativamente estáticos de socialização da escola condições

pouco favoráveis à integração das diferenças dos alunos (...)”. Dessa forma, ele

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considera que vivemos uma crise educacional que desafia a escola, questiona o

sentido da ação educativa e afeta também o estatuto social da infância.

Segundo De La Taille (2001), nos últimos anos, a sociedade e os educadores em

geral têm se interessado por questões relativas à moralidade humana, tais como:

violência, ausência de limites, autoridade e disciplina. Em outro momento, De La

Taille (1996) não descarta o efeito das transformações históricas nas práticas

escolares e defende ser importante conhecer o lugar que a escola, a criança, o

jovem e a moral ocupam hoje na sociedade.

Na literatura existente, encontramos muitas definições para os conceitos de

disciplina ou indisciplina. Destacamos alguns para uma breve reflexão: “(...) uma

atitude de desrespeito, de intolerância aos acordos firmados” (REGO, 1996, p.86),

transgressão e agressividade (SOUZA, 2004), licenciosidade (FREIRE, 1989),

“desconhecimento das normas ou revolta contra elas” (DE LA TAILLE, 1996, p.10).

Sobre o conceito de limite, De La Taille (2001), em sua obra “Limites: três dimensões

educacionais”, mostra que a palavra limite tem sido empregada com muita

freqüência, porém o seu uso tem estado restrito à idéia de imposição, ou melhor, ao

sentido restritivo de não ultrapassar certas fronteiras. Ampliando essa noção, esse

autor enfoca o conceito baseando-se em três sentidos: limite enquanto algo que

deve ser transposto para alcançar um determinado nível de excelência, ou seja, a

superação das dificuldades e deficiências a fim de atingir um ideal; limite com

significado restritivo, que seria a fronteira que não deve ser transposta, ações que

não podem ser executadas em nome do bem-estar e do desenvolvimento dos

indivíduos; e, limite no sentido de preservar a intimidade, de reservar-se e de criar

barreiras para não ser invadido, de ter seus próprios segredos, algo que a criança

precisa aprender para alcançar a maturidade. Para o autor, os três sentidos são

essenciais para que a criança se desenvolva.

Em suma, esses três modos de compreensão estão ligados a uma definição geral

que é “limite remete à idéia de fronteira, de linha que separa territórios. Se existe um

limite, é porque há pelo menos dois continentes, concretos ou abstratos, separados

por essa fronteira" (DE LA TAILLE, 1996, p.12).

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Mas, na escola, a palavra limite tem sido freqüentemente associada à falta, às

regras que não podem ser infringidas, às ações que não podem ser executadas, ou

aos desejos e impulsos que devem ser refreados.

Aquino (1996) e Xavier et al (2002), entre outros autores, enfatizam que as maiores

preocupações com a disciplina/indisciplina parecem estar entre os educadores que

trabalham com adolescentes e pré-adolescentes.

Buscar discutir essa temática na educação infantil pode trazer alguma contribuição

para essa etapa da vida escolar, que ainda é muito pouco conhecida na sua função

educativa.

3.2 A ESCOLA PODE ESTAR PRODUZINDO SUJEITOS INDISCIPLINADOS?

O que é perceptível é que o fato de a educação infantil ter adquirido esse caráter

educativo, na sua evolução entre cuidar/educar, traz a preocupação de que ela se

assemelhe cada vez mais ao ensino fundamental, ignorando as necessidades da

criança pequena.

Segundo Kishimoto (1999), persiste, desde tempos passados, a priorização na pré–

escola das atividades ligadas à preparação para o ensino fundamental, como a

escrita e a leitura, em detrimento das brincadeiras e dos jogos:

A função da escola como preparatória para o ensino fundamental, presente desde os tempos passados, deixou de lado a criança, preocupou-se com o conteúdo a adquirir, esquecendo-se que existem processos apropriados de aprender e desenvolver que antecedem o letramento e que acontecem no amplo espaço que cerca a criança, que ultrapassa o estreito limiar de uma sala de aula (...) (KISHIMOTO, 1999, p.2).

Xavier et al (2002) analisaram as práticas pedagógicas desenvolvidas em classes da

pré-escola e das séries iniciais do ensino fundamental numa escola municipal de

Porto Alegre. As autoras verificaram que as crianças da educação infantil recebem

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um atendimento diferenciado, com maior interação entre professora e aluno e entre

as próprias crianças, existindo mais momentos de lazer e de ludicidade.

Embora não tenham especificado, nessa obra, as diferenças entre essas duas

modalidades de ensino quanto às normas disciplinares, apresentam uma conclusão

geral afirmando:

As normas disciplinares são muito mais utilizadas com a finalidade de tentar resolver problemas de comportamento do que de promover práticas de vivências democráticas (...). Acaba por se privilegiar, em sala de aula, a busca do silêncio, da imobilidade, da ordem, que é o que tradicionalmente a escola sempre fez (XAVIER, 2002, p.35).

Kishimoto (1999) fez uma investigação sobre a forma de organização do espaço

físico das pré-escolas municipais de São Paulo, no intuito de discutir o espaço da

sala de aula e as práticas pedagógicas. Ela chegou à conclusão que essas

instituições não levam “em conta o espaço físico, os materiais e a arquitetura da

escola” (p.6). Mostra nesse estudo que, geralmente, “o brincar” é interditado e que

há uma presença constante de filas, apontando a necessidade de disciplinar as

crianças:

É muito comum observar-se cenas em que as crianças cantam sentadas em suas cadeiras. Músicas que falam do corpo e pedem movimentação, exigem a imobilidade e o silêncio e retratam o desejo do adulto do controle do corpo (KISHIMOTO, 1999, p.5).

Outro estudo bastante interessante no que se refere à interação entre as crianças e

o papel dos educadores na facilitação das brincadeiras é o de Wajskop (1997).

Trata-se de um estudo de caso etnográfico, realizado numa sala de pré-escola

localizada na região central da cidade de São Paulo. A autora verificou que a

instituição utilizava de forma restrita o tempo e o espaço para tal finalidade e que de

um modo geral cerceava a curiosidade das crianças.

As conclusões de Wajskop aproximam-se das de Kishimoto. Ambas as pesquisas

detectaram o papel disciplinador dos educadores e as limitações dos espaços, do

tempo e do brincar nas escolas de São Paulo.

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Não pretendemos, neste trabalho, nos aprofundar teoricamente nas concepções

teóricas que sustentam os conceitos de disciplina/indisciplina. Não ignoramos a

importância dos estudos piagetianos quanto ao desenvolvimento moral, nem os

estudos psicanalíticos quanto à manifestação de conteúdos reprimidos que a

indisciplina pode estar revelando. Entretanto, optamos por analisar estas questões

para além de uma perspectiva moral, individual ou patológica.

Por tal razão, apoiamo-nos em Santos (1997), quando considera o contexto mais

amplo de uma sociedade envolta em crise, provocada por intensas transformações

e, assim, contextualiza os sentidos e significados das demandas de disciplina para

essa sociedade.

3.3 A INFÂNCIA ATUAL E A ESCOLA

Pesquisadora: - Você quer aprender a escrever? André: – Não. Pesquisadora: - Não? Mas, olha, e o videogame? Como você vai ler as instruções do videogame? André: - Não precisa, tem seta. Trecho de um diálogo entre uma das pesquisadoras do grupo e a criança foco desse estudo.

Será, então, que as crianças de hoje estão se comportando diferentemente em

relação à escola? Alguns autores vêm se dedicando à busca de compreensão sobre

a infância do passado e do presente. É um assunto tão discutido na atualidade que

alguns autores, como Postman (1999), acreditam que um aumento de publicações

sobre a infância pode estar representando o desaparecimento dessa etapa da vida.

Postman, assim como Ariès, partilha da compreensão de que a infância é um

artefato social e não uma categoria biológica. Em sua obra, o autor discute como as

tecnologias interferem nas representações desse conceito. Ele cita a prensa

tipográfica, criada no século XV, por Gutenberg, como um evento que ajudou a

construir o conceito de infância, pois criou um ambiente propício para o surgimento

da infância moderna, já que possibilitou a difusão dos livros e conseqüentemente o

acesso à leitura, oportunidade que na Idade Média era restrita a uma pequena

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parcela da população. A mudança da oralidade (meio de comunicação predominante

na Idade Média) para a difusão da leitura e escrita possibilitou a invenção dessa

etapa da vida. Isso porque a alfabetização criou também a demanda pela construção

de escolas e estas separaram os adultos das crianças. Ser adulto passou a ser uma

realização simbólica, uma conquista possibilitada pela alfabetização. Desse modo,

diferentemente da oralidade, a escrita e a leitura exigem certos esforços e

habilidades, tais como: quietude, imobilidade, contemplação, comedimento,

adiamento das satisfações, preocupação com a clareza e a lógica. Segundo

Postman (1999, p.60-1), “é por isso que, a partir do século dezesseis, professores e

pais começaram a impor uma disciplina bastante rigorosa às crianças.”

É, portanto, notável a associação que faz dos conceitos de infância, disciplina e

educação. Ou seja, para tornar-se um adulto, era necessário disciplina ou uma

aprendizagem especial, era necessário ter controle da própria natureza e intimidade

com o mundo das letras.

Naquela época, era também muito evidente um sentimento de vergonha, aspecto

que o autor trata como fator diferenciador entre adulto e criança. Ele diz que uma

sociedade que não possui essa noção bem desenvolvida não faz diferenciação entre

os papéis de adulto e de criança. Ligado a ele está a existência dos segredos,

daquilo que não pode ser dito, que deve ser escondido dos mais jovens:

informações relativas à sexualidade, dinheiro, morte, doença, enfim, de questões

cruciais da vida adulta.

Atualmente, a mídia eletrônica pode estar fazendo desaparecer a idéia que tínhamos

a respeito das crianças. Por essa perspectiva, a infância é um construto da

organização simbólica e comunicacional da sociedade. Portanto, para esse autor,

essas questões, atualmente, não são escondidas das crianças contemporâneas,

devido ao fácil acesso que hoje temos às informações. Além disso, tais informações

são veiculadas principalmente por meio de imagens, ou seja, a leitura não tem sido

um requisito essencial para sabermos dos “mistérios” da nossa sociedade.

Desse modo, Postman defende que o nosso ambiente informacional elétrico tem

uma grande responsabilidade pelo desaparecimento da infância. Observando as

mudanças que vêm ocorrendo em nossa sociedade desde a invenção de Morse,

inventor do telégrafo, o autor discute como as crianças atuais estão vivenciando as

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mesmas questões que circundam os mais velhos: trabalho, competição, sexualidade

e violência. Assim, a partir do momento que meninos e meninas vivenciam os

mesmos problemas da vida adulta, tendo acesso aos diversos tipos de informações,

eles deixam de constituírem-se como um grupo separado.

Fonte: QUINO, 1993, p.100 Figura 2 – A perda da infância de Postman.

Coadunando esses aspectos com o conceito de infância trazido da Psicanálise por

Lajonquière (2003), temos que a infância é conceito passível de diversas

representações sociais, dependendo do momento histórico e do local. Trata-se,

portanto, de “subverter o paradigma inerente às psicologias do desenvolvimento,

que reduzem o devir infantil ao progresso mais ou menos inelutável de um saber

natural encarnado no organismo” (LAJONQUIÈRE, [on line] 2003).

Desse modo, lembra esse autor, “o homem sonha-se a si mesmo e, assim, inventa-

se sempre outro” (2003). Na Modernidade, passou a não esperar dos deuses e

partiu em busca de seus desejos no mundo terreno. Operou sobre si mesmo e com

isso esculpiu aos poucos uma nova silhueta para a infância. “A infância moderna,

essa espécie de sonho que o homem passou a sonhar para si, é um ponto numa

trama contraditória de ilusões e, portanto, encerra em si mesma uma tensão de

equacionamento delicado” (LAJONQUIÈRE, idem).

Na infância foi depositado, a partir da Modernidade, todo o conjunto de desejos ao

qual aspirava o ser humano, ou seja, um mundo no qual imperasse a liberdade, a

igualdade e a fraternidade. O adulto passou a esperar que a criança vivesse um

tempo melhor e se dedicou a instalar tal idéia na cabeça dela.

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Fonte: QUINO, 1993, p.204 Figura 3 – A infância a partir da Modernidade.

Realmente, se pararmos para refletir sobre aquilo que caracterizava a infância de

antigamente (a existência de segredos, o mundo da fantasia, a proteção dos

problemas dos adultos etc.) e compararmos com a vida da maioria das crianças

atuais, podemos sugerir que elas não estão mais vivenciando a infância, enquanto

conceito construído pela Modernidade.

Fonte: QUINO, 1993, p.232 Figura 4 – Vivências infantis atuais.

Steinberg e Kincheloe (2001) defendem posição parecida. Entendem que a infância

tradicional terminou em 1950 e hoje as denominadas crianças pós-modernas são

vistas usualmente como mais rebeldes, porque elas “(...) não estão acostumadas a

pensar e agir como criancinhas que precisam da permissão do adulto para tal”

(p.34).

Dessa forma, a escola e a educação vêm carecendo também de transformações

mais profundas. A escola deixa de ser apenas um local de repasse de informações

para ser “(...) um lugar onde o pensamento é formado, onde a compreensão e a

interpretação são engendradas” (p.35).

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Fonte: QUINO, 1993, p.158 Figura 5 – A monotonia escolar.

Elkind (2004) escreve que atualmente as crianças são pressionadas a crescer

depressa ou são incentivadas a adquirir habilidades precocemente. Essa nova

concepção de infância ele resume na metáfora do “Supergaroto”, que é a criança

competente para lidar com todas as vicissitudes da vida. O Supergaroto, para Elkind,

é uma invenção social construída para aliviar a culpa dos pais que não têm tempo

para cuidar da infância.

Mais especificamente na educação infantil, podemos refletir que mais do que formar

o pensamento, as crianças precisam de um tempo. E esse tempo não pode ser

dirigido para prepará-las precocemente para um futuro competitivo, como apregoam

muitas instituições, principalmente as privadas, mas criar uma existência em que

seja possível a amizade, as brincadeiras, o contato com o belo e a natureza.

Televisão, computador, videogames, espaços restritos, apostilas padronizadas

parecem compor a maioria de suas experiências, atualmente.

Compreender a contemporaneidade é algo complicado porque se trata do hoje e não

temos ainda um distanciamento que nos permita uma análise mais segura. Desse

modo, ao procurar compreender os sentidos desse atual aumento de queixas sobre

disciplina e limites na contemporaneidade, demandas e dificuldades que não

aparecem somente em nosso caso específico de investigação - uma instituição de

educação infantil – mas que estão presentes no todo, buscaremos paralelamente

obter uma compreensão dessa unidade, representada pela escola, pelos seus

atores sociais e pelas suas práticas.

O todo e a unidade são aqui compreendidos a partir da perspectiva sócio-histórica

para a qual o contexto social e econômico tem total interrelação com a unidade, que

não é passiva ou receptora deste. Pelo contrário, nessa perspectiva, há uma relação

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dialética de ambas as partes. Assim, o psiquismo do sujeito é constituído pelas

relações sociais que estabelece e é, ao mesmo tempo, agente de transformação

dessa mesma realidade (FURTADO, 2001).

A compreensão do momento em que vivemos é buscada por muitos autores. Santos

(1997) analisa a contemporaneidade como um período de intensas transformações.

Para ele, vivemos uma fase de transição em torno dos paradigmas e também no

plano societal global, em que o momento atual pode ser caracterizado por

transformações muito rápidas na vida econômica, social e política.

Santos (1997) reflete sobre a nossa sociedade utilizando os princípios da regulação

e da emancipação. Ele defende a tese de que o projeto da Modernidade se esgotou,

visto que algumas de suas promessas se cumpriram em excesso e outras nem

chegaram a realizar-se. Para ele, na medida em que a Modernidade tornou-se

dependente das realizações do capitalismo, tornou-se também obsoleta. O equilíbrio

existente entre os pilares da regulação e emancipação dissolveu-se e o mercado

tem assumido uma posição fundamental. Tudo se transformou em mercadoria com a

vigência do neoliberalismo.

Outro aspecto relativo à questão da contemporaneidade são as mudanças que

principalmente alteraram nossas concepções de tempo e espaço. Passamos por um

verdadeiro desmanche de fronteiras espaço-temporais, segundo Justo (2001), o que

possibilitou a constituição de subjetividades que se caracterizam pelo

desenraizamento e pela movimentação constante. A diluição dos limites espaço-

temporais é constantemente incentivada pelo surgimento de novas tecnologias e

pelas características do próprio sistema econômico, e tem se tornado uma das

marcas da atualidade. Essas mudanças na sociedade têm sido associadas ao

neoliberalismo. Desse modo, julgamos necessário fazer uma discussão sobre esse

conceito, que costuma ser utilizado para compreender a economia atual, bem como

a sua influência sobre a infância e educação, aspectos que já foram trabalhados por

alguns autores como Ghiraldelli Jr. (2002) e Arce (2001).

O neoliberalismo pode ser compreendido como um ideário ou ideologia que tem

fundamentado a economia e as relações sociais como um todo. Dentre as suas

principais características está a diminuição da participação do Estado no incentivo e

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proteção dos direitos sociais, ou seja, a defesa do Estado-mínimo. O mercado passa

a ser o regulador de toda a vida social.

Ghiraldelli Jr. (2002) diz que o indivíduo transformou-se em sujeito-consumidor, cuja

subjetividade-identidade está centrada no corpo e não mais na consciência: “(...) o

sujeito se reduz ao corpo e a consumidor, e o próprio corpo se transforma em objeto

de consumo (...)” (p.37). Sobre a infância, ele diz que sua noção modifica-se porque

ser criança define-se em possuir um corpo que consome coisas de criança. Já a

escola tornou-se uma empresa, com objetivo de adestramento e treinamento dos

corpos-consumidores.

Arce (2001) reflete sobre a influência dos pressupostos neoliberais e pós-modernos

na formação de professores de educação infantil. Para essa autora, as políticas

neoliberais incentivam uma formação de professores que não valoriza uma formação

teórica sólida, o que impedirá o futuro profissional de assumir um compromisso

social ou de propor mudanças significativas na educação. Ela faz várias críticas às

tentativas de aligeiramento, bem como às propostas de formação inicial feitas em

serviço e limitadas ao saber-fazer. Para ela, o professor não pode ter seu

desenvolvimento profissional limitado à sua prática, isso seria uma exacerbação do

pragmatismo e do utilitarismo.

O projeto da Modernidade ainda embasa os fundamentos da instituição escolar e,

segundo Ghiraldelli Jr. (2002), concedeu à criança o estatuto de indivíduo,

conferindo-lhe uma identidade própria, diferente do adulto, embora atualmente essa

concepção de infância venha sofrendo transformações.

Em Foucault (1992) encontramos a interligação dos conceitos de disciplina e

Modernidade. Veiga-Neto (2006) denuncia que a Modernidade é uma lógica

ambígua, que implica a domesticação da diferença, a desigualdade e a exclusão. O

autor enfatiza que os problemas advindos da escola - tais como, sujeição dos corpos

e mentes, disciplinamento, desigualdades - são vistos como um preço a pagar pela

tentativa de alcançar os ideais da Modernidade. Em suma, tudo isso, para o autor,

“(...) faz parte das próprias condições de possibilidade do funcionamento da escola

moderna e da fabricação do sujeito moderno” (p.192).

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Foucault (1987) detalha a metamorfose dos métodos punitivos pelos quais as

pessoas estiveram sujeitas. Ele mostra como o suplício ou o sofrimento físico

aplicado ao criminoso foi substituído pela privação da liberdade, uma estratégia de

poder. Ele esclarece que, antes de a burguesia se tornar a classe politicamente

dominante, o poder estava concentrado na figura do soberano. Os criminosos não

participavam do julgamento e toda a investigação a respeito do crime era realizada

em segredo, pois o direito de punir estava nas mãos do soberano. É somente a

partir do século XVIII que a punição passa a ser uma defesa da sociedade. Guirado

(1996), baseada em Foucault, afirma que em cada época vai existir uma

determinada estratégia de poder. Na Modernidade, a estratégia predominante é o

poder disciplinar, ou seja, o poder deixa de concentrar-se em lugares específicos e

torna-se disperso, difuso, microfísico.

A partir dos pressupostos foucaultianos, é possível inferir que a escola sempre se

preocupou com a questão disciplinar. Atualmente, entretanto, devido às tantas

transformações que estamos sofrendo, como apontado por todos os autores aqui

mencionados, é preciso refletir sobre que caminhos devemos buscar para a

educação infantil diante de tantos desafios.

A seguir, trato da trajetória da pesquisa, pontuando alguns vieses da prática

pedagógica na educação infantil e procurando esses caminhos apoiada pelos

autores selecionados para esse referencial.

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4. INVESTIGANDO A EDUCAÇÃO INFANTIL

4.1 A NATUREZA DO ESTUDO

Nossa investigação caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, que

teve sua origem a partir de outra pesquisa, maior, também de natureza qualitativa,

que traz como abordagem a pesquisa colaborativa.

Neste trabalho foram buscados os elementos que compõem as diversas situações

analisadas, em suas interações e influências recíprocas, resguardando a

complexidade das relações ali estabelecidas

Segundo Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa qualitativa caracteriza-se por ocorrer

em um ambiente natural de coleta dos dados, pela apreensão das perspectivas dos

mais diversos participantes e pelo contato direto e prolongado do pesquisador com o

ambiente e com a situação que está sendo investigada. Além disso, não havia

hipóteses a serem confirmadas e sua trajetória e encaminhamento, bem como as

conclusões, foram emergindo com o transcorrer da pesquisa. Ainda em acordo com

o que propõe esses autores, o pesquisador qualitativo preocupa-se mais com o

processo do que com o produto, procurando retratar a perspectiva dos participantes.

Dessa forma, essa investigação, inicialmente, estudou a realidade de um CMEI, no

que concerne às relações estabelecidas com as crianças que apresentam sinais de

desatenção/hiperatividade em seu cotidiano e procurou dar sentido ou mesmo

interpretar alguns fenômenos de acordo com os significados que possuem para as

pessoas implicadas nesse contexto. O objetivo foi o de melhor compreender os

comportamentos e o processo mediante o qual as pessoas constroem significados,

assim como descrever em quê eles consistem.

Decidimo-nos, na abordagem metodológica, pela pesquisa colaborativa (MIZUKAMI

et al, 2002), já que essa abordagem melhor representava nossa postura dentro do

CMEI e melhor atendia aos anseios da equipe de profissionais-alvo do estudo. Além

disso, tem papel importante na ressignificação de práticas educativas que promovam

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a inclusão escolar, propiciem a reflexão e gerem o crescimento mútuo e o

desenvolvimento profissional de todos os envolvidos.

Pretendíamos conhecer esse cotidiano e as concepções trazidas à tona em relação

a essas crianças. Desse modo, buscamos apreender os diferentes pontos de vista

desses agentes educativos, utilizando, inclusive, técnicas associadas à etnografia:

observações participantes, entrevistas e consulta de documentos12 (ANDRÉ,

1995).

As entrevistas seguiram um modelo semi-estruturado, possibilitando que questões

fossem retiradas e/ou acrescentadas conforme a necessidade e permitindo ao

entrevistado maior liberdade em suas colocações.

(...) na entrevista a relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de influência entre quem pergunta e quem responde (...) na medida em que houver um clima de estímulo e de aceitação mútua, as informações fluirão de maneira notável (LUDKE & ANDRÉ, 1986, p.33).

As entrevistas buscaram compreender as percepções dos profissionais da educação

sobre suas práticas pedagógicas, dos pais sobre o processo de escolarização de

seus filhos e das próprias crianças sobre as vicissitudes de ser/estar criança com

esses rótulos. A análise das informações colhidas procurou situar, de modo geral, a

realidade educacional dessas crianças na educação infantil.

A proposta era de alcançar um maior grau de interação com o objeto de estudo,

tendo o que é essencial na coleta e análise dos dados. Segundo Sato e Souza

(2001), a convivência prolongada com a instituição pesquisada é uma estratégia

importante. Assim, durante o período de coleta de dados, procuramos nos

familiarizar com a escola, convivendo com as diversas pessoas que faziam parte

daquele cotidiano.

Esta pesquisa se iniciou a partir de duas vertentes: a pesquisa exploratória e o grupo

focal. A pesquisa exploratória ocorreu no primeiro semestre de 2007 e o grupo focal,

realizado a partir da formação continuada, ocorreu de junho a outubro de 2007. Foi

12 Nesse caso, não realizamos “análise documental”, mas uma consulta documental.

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desenvolvida ao longo de quase um ano e teve como instrumentos/procedimentos

metodológicos:

1. O grupo de profissionais em formação continuada em serviço (grupo focal)

como fomentador das questões relativas à inclusão na educação infantil;

2. Observações sistemáticas dos mais diversos ambientes do CMEI, feito por

todo o grupo de pesquisadoras, alimentando um único banco de dados (Diário

de campo);

3. Entrevistas com professoras, pedagogas, diretora, pais, profissional da

Secretaria de Educação;

4. Consulta à documentação dos alunos;

5. Grupo de trabalho.

Os encontros de formação continuada, as entrevistas e as reuniões do grupo de

trabalho foram registradas por áudio-gravação. As observações e diálogos

estabelecidos no seu transcorrer foram anotados no diário de campo e, em

momentos específicos, foram feitas áudio-video-gravações.

Nomeia-se Diário de Campo a um caderno no qual procurávamos registrar nossos

sentimentos e impressões, bem como a rotina da instituição, o dia-a-dia das

educadoras, as relações interpessoais, sem perder de vista nosso objeto de

pesquisa. Foi um tempo de dialogizar, em mim, a psicóloga – pesquisadora, já que

por muitas vezes as profissionais da escola me requisitavam como psicóloga, e eu

tentava delimitar meu espaço de pesquisadora.

Tura (2003, p.195) afirma que, concomitantemente à familiaridade que o

pesquisador deve ter com a realidade investigada, é muito importante a capacidade

de estranhamento, compreendida como a habilidade “(...) de se surpreender com o

que parece corriqueiro (...)”. Ou seja, questionar aquilo que está cristalizado,

naturalizado pela instituição é um exercício investigativo fundamental.

A partir dos encontros de formação continuada, das observações participantes e das

entrevistas, cada pesquisadora passou a, num segundo momento, se aprofundar no

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seu processo individual de investigação. O eixo cronológico do desenrolar da

pesquisa pode ser percebido no cronograma delineado no Apêndice C (p. 263).

Mantivemos, entretanto, o grupo de estudos semanais, realizado na UFES, em que

se discutiam as questões pertinentes à rotina do CMEI e se dividiam dados

encontrados, problematizando-os e alimentando um único banco de dados.

Como já dito na introdução, esta pesquisa ocorreu interligada a outros processos

simultâneos de pesquisa, na mesma escola. Foi um processo riquíssimo de trocas,

reflexões e muito aprendizado. Poderia mesmo dizer que nos aproximamos de uma

visão sistêmica daquela instituição, no sentido de que pudemos confrontar muitos

olhares sobre um mesmo fenômeno: a inclusão na educação infantil.

4.2 A ESCOLA

Também se disse na introdução deste texto que a escolha do CMEI que abrigou

esse estudo foi pautada na demanda explicitada pelos profissionais daquela

unidade. Uma maioria dos profissionais consultados por questionário apontou, para

os encontros de formação continuada que estávamos propondo, a temática de

desatenção/hiperatividade como a preferida a ser estudada.

O CMEI está localizado na zona norte da cidade de Vitória/ES e atende a

comunidades de nível sócio-econômico considerado médio-baixo. É um espaço

muito bem cuidado, limpo e arejado. Possui um pátio coberto, onde acontecem

diversas atividades, como exposições de fotos, festas comemorativas, música, entre

outras; e um pátio externo, onde as crianças ficam na hora do recreio, sem acesso a

brinquedos, brincadeiras dirigidas são raras, e, de modo geral, não há muito que

fazer, a não ser correr e brincar com a areia que fica em um de seus cantos.

“É um espaço cinza e bege. (...) Não é enfeitado, desenhado, colorido, parece uma escola de ensino fundamental” (DIÁRIO DE CAMPO, maio/2007).

Cinza, por causa do chão de cimento, e bege a cor de seus muros. Alguns desses

espaços estão retratados no Apêndice D (p.265).

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Possui, ainda, na lateral das salas, um “solário” de puro concreto: corredor largo,

onde as crianças têm acesso a suas salas por uma porta, mas também sem

atrativos artísticos ou lúdicos, com algum tipo de equipamento ou brinquedos.

O CMEI está dividido em salas de aula de tamanhos regulares e espaço suficiente

para o número de crianças; uma sala muito pequena onde está instalada a

biblioteca, que tem seu uso mais focado para a exibição de filmes (semanal); uma

sala de informática, que não abriga suas reais funções, servindo para agregar

múltiplos espaços, por exemplo, sala de apoio e almoxarifado; e salas para a

diretora, para as pedagogas, para as professoras, uma secretaria, um refeitório

amplo e arejado, com cozinha anexa.

4.3 OS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Como já explicitado, a delimitação do nosso campo de investigação teve início em

março de 2007, durante nossa participação na pesquisa “Sobre inclusão, formação

de professores e alunos com necessidades educacionais especiais no contexto da

educação infantil” (VICTOR, 2007), realizada no Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES), na linha de

pesquisa “Diversidade e práticas inclusivas”. Essa pesquisa buscou, a partir do

diálogo e da cooperação entre pesquisadores e profissionais da escola, aprofundar a

discussão acerca da educação inclusiva na educação infantil.

Desse modo, estavam envolvidos como participantes dessa pesquisa maior:

Do CMEI - o grupo de professoras, as pedagogas da manhã e da tarde, a diretora,

as assistentes de serviços gerais (ASGs), todas participantes do grupo focal (ou de formação), e as crianças com NEE, que apresentavam alguma deficiência ou não.

Da UFES – a professora Sonia Lopes Victor (coordenadora do projeto), as

mestrandas Débora, Marileide, Marcela e eu, e a mestra, que participou do projeto

como voluntária, Renata (grupo de estudo).

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Os participantes desta pesquisa específica (realizada por mim) foram, além do grupo

focal (na fase inicial), as duas pedagogas da tarde (uma responsável pelas crianças

de 0 a 3 anos e a outra pelas de 4 a 6 anos), a professora Cássia e as estagiárias,

graduandas em Pedagogia, Evanesca e Justina, compondo o que aqui

denominamos grupo de trabalho. Outros profissionais foram envolvidos ao longo do

processo, como as professoras de Artes e Educação Física, mas, por dificuldades

nos horários, esse envolvimento foi mais indireto.

Aqui se faz necessário tecer algumas considerações iniciais sobre o grupo de

estudos e sobre o grupo de trabalho, que oportunamente serão mais comentados.

4.3.1 O grupo de estudos

A coordenadora do projeto, a participante voluntária e as mestrandas reuniam-se

semanalmente, às quintas-feiras, pela manhã, em encontros com aproximadamente

quatro horas de duração.

Eram momentos de trocas de informações e atualização de dados, mas também,

principalmente, de buscar, nos aportes teórico-metodológicos da pesquisa crítico-

colaborativa, a sustentação de nossas ações. Não só nos debruçávamos sobre os

passos dados, avaliando-os, como também planejávamos, em conjunto, as próximas

ações.

A auto-reflexão crítica e coletiva (CARR & KEMMIS, 1988) de nossas práticas

acalmava nossos anseios e nos permitia atuar colaborativamente de modo mais

fundamentado.

4.3.2 O grupo de trabalho

A proposta, acolhida pelas profissionais do turno vespertino (pedagogas e

professoras), deu origem à formação do grupo de trabalho, que ainda contou com a

participação de duas estagiárias da UFES.

Esse grupo se reunia semanalmente, às segundas-feiras, por sugestão das

pedagogas e professoras, por ser um dos dias de planejamento da professora. Os

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encontros tinham duração média de duas horas e tinham como maior foco os

percalços nas práticas pedagógicas da professora e das pedagogas.

Normalmente, no fim da tarde, depois desses encontros, fazíamos reuniões – eu e

as estagiárias – para estudo e discussões de questões da pesquisa, utilizando-nos

de textos e estudos similares. Ao fim do estágio, elas teriam que produzir um artigo

científico como requisito para aprovação. Combinamos que não deixaríamos essa

tarefa para o final de ano; e fomos discutindo e escrevendo o texto a partir desses

estudos semanais.

Em ambos os grupos, o foco das discussões esteve centrado nas questões que

emergiam da prática educativa. Mas a nossa premissa era promover, de forma

colaborativa, a articulação dialógica e indissociável entre teoria e prática. Como

dizem Carr e Kemmis: “(...) se todas as teorias são produto de alguma atividade

prática, por sua vez, toda atividade prática recebe orientação de alguma teoria”

(1988, p.125).

4.4 A TRAJETÓRIA E OS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA

4.4.1 Primeiras aproximações

Em março de 2007, a partir de alguns encontros com a direção e equipe pedagógica

da escola, época em que pudemos perceber as maiores demandas, as maiores

angústias das pessoas/profissionais que ali atuavam.

A escola estava naquele momento passando por um processo de repensar o seu

Projeto Político Pedagógico, já que o anterior, de 2004, não continha menção às

questões inerentes à inclusão. A equipe pedagógica pensava em palestrantes que

pudessem contribuir trazendo reflexões sobre como lidar com as questões

fundamentais enfrentadas pelo professor e nos propusemos a ajudar no que fosse

possível.

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Ainda nesses primeiros encontros, por um instrumento simples de sondagem

(questionário), levantamos, junto às professoras e pedagogas, as maiores

demandas do CMEI, além de mapear temas para a formação continuada. Esse

levantamento inicial fez transparecer uma demanda, por parte da maioria das

educadoras deste CMEI, por discussões sobre “hiperatividade”, “falta de limites”,

“indisciplina”, antes que soubessem de meu objeto particular de estudo. A idéia de

minha inserção foi, então, corroborada por essa manifestação de interesse.

O nosso grupo de pesquisadoras estranhou o número de profissionais da escola que

manifestava interesse por essa temática porque já tínhamos conhecimento que ali

estavam matriculadas várias crianças com necessidades educacionais especiais,

que apresentavam deficiência.

Apresentamos a elas, então, uma proposta de trabalho com as três pesquisadoras

atuando em conjunto (nesse momento, Sonia, Débora e eu) e, partindo dos

interesses do grupo de profissionais da escola, foi estruturado um delineamento para

os encontros de formação, contemplando a temática básica da educação inclusiva.

Dentro dela, fomentamos discussões que permitissem ao professor em formação

desconstruir a noção de que crianças distraídas e agitadas possuem,

necessariamente, um transtorno ou doença, e que esses quadros podem ser

produzidos ou acentuados pela própria escola. Se esses quadros são tratados como

doença, são vistos como inerentes ao aluno, que fazem parte dele, portanto, nada a

sua volta pode resolver isso, a não ser um tratamento. Assim sendo, na escola,

apenas algumas iniciativas isoladas vão sendo pensadas/produzidas para essa

problemática. Por outro lado, essas crianças ganham muita visibilidade porque

desestruturam a rotina escolar; no entanto, outras crianças com NEE que

apresentam deficiências acabam sendo deixadas à margem, por não apresentarem

comportamentos de indisciplina e de agressividade. Todas essas questões foram

sendo cuidadosa e gradualmente problematizadas com o grupo em formação,

provocando muita discussão e reflexão.

Num primeiro momento, a pesquisa teve finalidade primordialmente exploratória, na

medida em que as questões cruciais da escola foram sendo colhidas por uma

aproximação oficial, com a chancela da universidade, que propunha uma formação

continuada dentro da perspectiva da inclusão, mas sem a conotação de curso. Um

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espaço de trocas e discussões, embasadas teoricamente, com assuntos propostos

pelos próprios professores interessados.

A escola, representada pela sua diretora e pedagogas, acena positivamente à nossa

proposta e é-nos explicitado que os professores teriam interesse em participar da

formação.

“As pedagogas manifestam também sua impressão de que a cada ano a demanda de crianças com NEE cresce e que os pais estão mais exigentes com seus direitos, mas que a escola se sente ‘impotente’ por não saber como conduzir esses problemas e como efetivamente fazer a inclusão acontecer” (DIÁRIO DE CAMPO, março/2007).

Parece que nesse trecho as pedagogas não estão se referindo às crianças com NEE

que apresentam deficiências, mas sim às com Condutas Típicas (sobretudo aquelas

que apresentam sinais de desatenção/hiperatividade), porque logo em seguida elas

nos informam que atualmente a escola tem matriculados cinco alunos pela manhã e

três à tarde com NEE que apresentam deficiências, além de muitos casos de

Condutas Típicas. Mostram-se com muitas indagações sobre o porquê de tantas

crianças estarem apresentando, cada vez mais cedo, problemas comportamentais

tão graves e ressentem a falta de parceria com as famílias. Nesse momento,

aparece a ligação confusa, sempre presente, entre crianças com Condutas Típicas e

crianças com falta de limites em seus comportamentos, conforme fala da pedagoga

Nair: “As crianças estão pedindo ajuda, clamando por alguém que lhes dê limites”.

Desse primeiro encontro, ficou marcado um outro para a apresentação desse projeto

e dos subprojetos ligados a ele, para os professores do CMEI, do turno matutino.

No segundo encontro, foram apresentados a todo o grupo de professores os

projetos de pesquisa que pretendiam empreender no CMEI. Entre os participantes

dessa reunião, notou-se visível receptividade (acenos afirmativos de cabeça) quanto

às idéias ali expostas, deixando-nos entender que éramos muito bem vindas.

Uma professora sugeriu a inserção dos professores do turno vespertino e demais

professores que não tinham naquele ano alunos com NEE por deficiência, mas que

quisessem participar; e outra professora sugeriu a inserção dos profissionais de

apoio e as estagiárias da Prefeitura Municipal de Vitória, devido ao fato de também

atuarem no atendimento desses alunos; e uma das pedagogas sugeriu a inserção

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das quatro profissionais especialistas da PMV, que iniciaram recentemente seu

trabalho no CMEI.

As pesquisadoras acataram essas sugestões, ficando o grupo formado pelas

profissionais atuantes no CMEI que tivessem interesse em discutir as questões

relativas à inclusão na educação infantil. Ficou também acordado que seria

encaminhado ao CMEI um formulário onde as profissionais interessadas poderiam

propor temáticas de seu interesse para serem abordadas nos encontros de

formação.

Nesse contexto, começamos a nos aproximar mais e mais das intrincadas questões

que circulavam entre as profissionais do CMEI. Numa das reuniões de reformulação

do Projeto Político Pedagógico (PPP), ouvimos de uma das pedagogas da manhã:

“As crianças com necessidades especiais são até nossas bênçãos porque através delas temos recebido profissionais especializados. Essas crianças não são nossos problemas. Os ditos normais estão vindo cada vez mais sem limites” (DIÁRIO DE CAMPO, 14/05/07 - reunião de PPP).

Nessas falas, fomos compreendendo que os maiores incômodos vividos no cotidiano

das atividades pedagógicas eram os relativos a essas crianças e não às crianças

com NEE que apresentavam deficiências, pois, nas diversas reuniões de discussão

do PPP, ficou muito evidenciado que era preciso ampliar a discussão sobre as

regras de convivência, sobre a disciplina/indisciplina, ou falta de limites, como eles

falaram. Ficamos com a impressão de que as crianças com NEE que apresentavam

deficiências não ocasionavam o mesmo incômodo, pelo menos não explicitamente,

porque ainda eram insipientes os esforços e iniciativas dos profissionais para

encaminharem essa demanda.

Algumas crianças que mais incomodavam a rotina rígida do CMEI foram alvo de

nossas observações iniciais e uma delas foi ganhando mais destaque, por razões

que oportunamente são esclarecidas. Em julho de 2007, ocorreu a transferência

dessa criança para o turno da tarde. A mudança nos surpreendeu porque não

sabíamos desse desejo da mãe, que alegou estar insatisfeita com o trabalho feito

pela professora da manhã e também que precisava dar mais atenção ao filho,

colocando-o em turno alternado com a outra filha. Ao atender ao desejo da mãe,

pareceu-nos que essa mudança não foi pensada pela escola, que apenas obedeceu

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a critérios administrativos de vaga, não levando em consideração o grupo, a

professora, enfim, as complicações que essa mudança poderia gerar.

Ao ser surpreendida por essa informação, fiquei diante de um dilema: permaneceria

com o projeto pela manhã e continuaria o trabalho, que a essa altura já estava bem

delineado, ou seguiria para a tarde, a fim de acompanhar mais de perto as

implicações disso para a criança e para a escola? Preferi seguir para a tarde. Pesou

em minha decisão o pedido das duas pedagogas da tarde, aflitas com os problemas

condutuais dos alunos que, segundo elas, eram muito mais proeminentes até do que

os da manhã. Pesou também, nesse momento, o meu envolvimento com aquele

aluno em especial, pois já conhecia um pouco de sua história, e o pouco que

conhecia me mobilizava.

No início do mês de agosto, iniciei minha aproximação com as profissionais e com

os alunos da tarde. No primeiro encontro com as pedagogas desse horário, Carmen

e Nair, retomamos a idéia de fazermos um grupo de trabalho para pensar as

questões disciplinares tão pungentes, segundo as profissionais da escola, pensando

nas implicações e repercussões da vinda dessa criança para a tarde, e, por

conseqüência, das outras crianças com comportamentos similares. Esses encontros

serão tratados mais adiante.

Durante o trabalho de campo, André, a criança que ilustrou este estudo, fez-se

presente. Constituiu-se num personagem que, ao mesmo tempo, se diferenciava

muito das outras crianças, mas as representava em muitas medidas. Ele nos ajudou

a compreender como é gestada, no imaginário institucional, a subjetividade, a norma

e o padrão, de um lado, e o desvio e a doença, do outro.

4.4.2 Observações participantes

Direcionamos nosso trabalho às demandas da escola, sem perder de vista,

entretanto, nossa pretensão de trabalhar na perspectiva da diversidade, ou seja, nos

movimentos da escola para garantir a inclusão e a escolarização de todos os alunos.

No início do estudo exploratório, em abril de 2007, tinha como foco de interesse

analisar como as crianças que apresentavam sinais de desatenção/hiperatividade

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eram percebidas no contexto da educação infantil. Logo os nomes começaram a ser

citados. Eram crianças mais agressivas e/ou mais rebeldes as que mais

incomodavam. Logo transpareceram as implicações familiares e os problemas

médicos como as causas possíveis para esses males. Passamos a um processo de

observações mais sistematizadas, em todos os espaços do CMEI, no turno matutino.

Era realmente difícil distingui-los a um primeiro olhar porque algumas das salas de

aula observadas eram excessivamente barulhentas e desorganizadas. Quando uso

palavras como estas, não pretendo mostrar que o silêncio e a organização sejam

condições para a aprendizagem. Mas nesses casos, especificamente, a desordem

desestruturava o ambiente. As crianças gritavam, as professoras gritavam, as

crianças não conseguiam esperar sua vez e as professoras não conseguiam

organizar as falas. A agitação de todos, na maior parte do tempo, era visível. Então,

sem nos deixar impregnar pelas indicações desses profissionais quanto às crianças

com esses sinais, iniciamos uma observação pura e simples. Logo algumas crianças

começaram a se fazer notar: Sávio, Jonas e André. Minhas observações levaram-me

a três crianças, inicialmente, e depois a somente uma delas, o que pretendo explicar

melhor a seguir.

“Sávio me chamou a atenção por ser excessivamente calado e por transparecer que estava em ‘outro mundo’. Ele tem olhar vago e perdido. Esforça-se muito para copiar e tentar acompanhar o ritmo das outras crianças, mas vez por outra se pega, ou é pego, vagando, sonhando acordado, em cenas que só ele conhece” (DIÁRIO DE CAMPO, 22/05/07).

Sua professora me disse certa vez, quando ele tentava lhe mostrar uma tarefa feita

depois de muita insistência dele: “esse ‘viaja’, só vive no mundo da lua”. Passei a

observá-lo mais e percebi que ele tinha sérias dificuldades em copiar palavras do

quadro, dificuldades motoras para escrever, dificuldades para manter a atenção no

que estava sendo proposto, mas nunca vi ninguém atuando com ele, perto dele, com

ele. Ele era invisível, pois não causava problemas. Faltava muito à escola e não

pude saber se era por questões familiares e/ou porque sua vinda para a escola era

tão improdutiva, que suas ausências nem eram notadas. Lamentei por ele.

Outro menino que me cativou a atenção foi Jonas, com seu olhar vivo, intenso e

alegre. Era resistente aos pedidos da professora, preferia brincar sozinho e

desenhar, sua distração favorita. Os lápis que a professora dispunha para escrever,

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ele usava para batucar na mesa. Todas as imagens e desenhos lhe serviam de

inspiração para desenhar. Comecei a ficar muito incomodada com as faltas

recorrentes dele ao CMEI, então fui investigar. Descobri que, com a licença médica

de sua professora, a professora substituta pediu à mãe que não o levasse à escola

quando ele estivesse mais agitado. Tentei intervir junto à professora, junto à direção

e equipe pedagógica. Chamei a mãe. Soube então que seu caso estava sendo

encaminhado para uma avaliação junto a especialistas da APAE. Questionei essa

postura, solicitei à professora especialista que atua no CMEI que tentasse então um

encaminhamento ao atendimento psicológico, já que, visivelmente, sua mãe

mostrava necessitar de apoio. Essa criança, por ter tido três convulsões no início do

ano, estava sendo medicada com remédios anticonvulsivantes e isso estava fazendo

dela uma criança com deficiência intelectual.

A terceira criança que “saltou” adiante das minhas observações foi André. André é a

criança de olhar astuto, curioso, raivoso em muitos momentos, que parece colocar

no olhar todos os seus sentimentos; ele fala quando olha. Ele era, nessa época,

considerado a criança mais problemática daquele CMEI, segundo falas dos mais

diferentes segmentos da escola: diretora, pedagogas, professoras, assistentes de

serviços gerais.

André acabou sendo a inspiração para este estudo, mas não ele em si. A escolha de

me deter apenas nele teve como determinantes as muitas ausências das outras

crianças, a sua mudança para o turno da tarde, em julho, e, principalmente o fato de

ser ele sempre apontado como o maior problema da escola, rótulo que me

incomodava deveras. Além disso, a escolha por ele foi pautada no fato de ele reunir

todas as características que marcavam as outras crianças, e que tanto

incomodavam a escola: desatenção, hiperatividade, agressividade, rebeldia,

tendência a hiperfocar determinadas temáticas não se interessando pelo resto,

tendência muito forte à fantasia, entre outras.

Logo me chamou a atenção a forma deliberada com que desacatava as ordens da

professora. Por tal comportamento, tinha mais visibilidade que o aluno cego,

matriculado na mesma turma, diante da professora. Depois de um tempo de

observações e verificando que André não ficava muito tempo em sua sala de aula,

comecei a me deslocar também. Nesse ponto, já não me atinha mais à rotina das

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salas que pretendia observar, mas sim às crianças que supostamente13 (por suas

professoras) apresentavam sinais de desatenção/ hiperatividade

Para dar seguimento ao meu projeto específico, busquei uma aproximação sensível

dos diversos personagens que me eram apontados nessa “categoria”.

Participando também dos encontros de formação continuada, fui percebendo, junto

com todo o grupo de pesquisadoras, a dimensão do problema causado por essas

crianças nesse contexto. Esse fenômeno marcou grande parte das nossas

discussões no grupo semanal de estudos que fazíamos na universidade, o que

também influenciou a estruturação do planejamento dos encontros de formação.

Todo o grupo de participantes da formação tinha apenas impressões negativas de

André.

Passamos a descrever os processos que se engendravam na escola, assim como

os efeitos produzidos por eles. Observávamos as crianças apontadas pelas

professoras e pedagogas como tendo necessidades educacionais especiais e as

práticas a elas direcionadas nos mais diferentes contextos e situações escolares.

O realce recaía sempre nas crianças, e eram muitas, cujos comportamentos eram

tidos pelas professoras como sinais de desatenção/hiperatividade. Então, as

crianças enquadradas oficialmente ou oficiosamente nessa categoria me eram

apontadas. Comecei a observá-las mais detidamente.

Assim, o objeto desse estudo foi se delineando a partir das demandas emanadas

pelos profissionais da escola. Foi se firmando o meu compromisso ético de estar

naquele lugar, de fazer proposições, de ouvir as angústias que a todo momento

emergiam e de buscar junto algumas possibilidades.

Houve momentos em que fui solicitada a me pronunciar como psicóloga, houve

momentos em que queriam de mim respostas. Em todos esses momentos o meu

discurso foi no sentido de levar aquelas profissionais a um repensar de suas

práticas. Foi ainda no sentido de desmistificar a idéia de que o profissional da

psicologia tem todas as respostas, ou pelo menos as respostas que os professores

13 O termo “supostamente” vem aqui destacado por tratar-se de afirmações verbais proferidas pelos profissionais da escola em relação às crianças sem terem, entretanto, laudos ou diagnósticos médicos formais.”

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esperam, e de, num trabalho conjunto, pensar em possibilidades outras que

estivessem ali, dentro da escola, e não num consultório, como se aquela criança

específica estivesse doente. Dessa forma, era premissa do meu trabalho buscar

devolver ao professor sua força potencializadora, com alternativas pedagógicas que

ocupassem o lugar dos encaminhamentos aos serviços de saúde.

Embora o meu lugar fosse um entrelugar, e mesmo não pertencendo àquele grupo,

fizemos propostas para que o grupo recuperasse o seu lugar de força e de

conhecimento. É certo que não existe um caminho único, verdadeiro e universal,

mas quando o grupo se propõe a refletir...

Nesse primeiro momento da pesquisa, foram feitos registros das observações e

conversas informais com os diferentes profissionais da escola, bem como

observações mais sistematizadas de algumas crianças que apresentavam

problemas comportamentais mais configurados. Nessa fase, estive na escola em

média duas vezes por semana, durante 3 meses.

Ao mesmo tempo em que me dedicava às observações, muitas impressões

começaram a se evidenciar nos encontros de formação continuada e as que se

referem mais a este estudo são comentadas a seguir.

4.4.3 Os encontros de formação continuada

Os encontros de formação continuada tiveram início em 11/06/07 e, inicialmente,

eram semanais, sempre às segundas-feiras, logo após o encerramento das

atividades letivas, de 18 às 20h30min. Depois passaram a ser quinzenais, a pedido

da própria escola, para não haver conflito de horário com as reuniões de PPP,

conforme cronograma dos encontros e quadro das temáticas no Apêndice E (p.269).

Optamos por dar destaque ao terceiro encontro, que foi o momento em que,

sistematicamente, tentamos desconstruir o conceito de “Hiperatividade” enquanto

um transtorno aplicável a qualquer criança que apresenta comportamentos

estereotipados.

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Então, em comum acordo com o grupo de participantes, o grupo de pesquisadoras

atuou como fomentador dos debates, ao mesmo tempo em que apresentava

questões teóricas que os sustentavam.

Como todo o grupo de pesquisadoras também estava envolvido em observações

sistemáticas nos mais diversos espaços do CMEI, as discussões não se atinham à

teoria, mas também não caíam num empirismo puro. As situações relatadas eram

normalmente presenciadas e/ou conhecidas do grupo de pesquisadoras, o que

tornava as questões muito bem situadas. É certo que havia avanços e retrocessos

no processo de compreensão das questões mais complicadas da inclusão, mas o

movimento das discussões provocava o envolvimento de todos ali presentes, que,

por mais tímidos que fossem, não ocupavam a posição de meros expectadores, vez

por outra participando e colocando-se nas suas opiniões. E havia também as

participantes mais atuantes – as pedagogas –, principalmente as da tarde.

No decorrer dos encontros, as principais demandas da escola foram se

evidenciando. Depois do primeiro encontro, percebemos que a angústia dos

profissionais do CMEI estava muito mais direcionada às crianças com problemas

comportamentais, do que às crianças com NEE por deficiência. Isso nos preocupou

demais, porque foi ficando muito evidente que estas não causam tumulto, não

perturbam a ordem e, portanto, estavam se tornando meio invisíveis, ou visíveis

somente às professoras especialistas e estagiárias, o que foi muito discutido em

nossos encontros. Ao longo do ano, fomos percebendo que até esse espaço elas

estavam correndo o risco de perder, porque até as professoras especialistas da área

de Deficiência Mental eram requisitadas para prestar atendimento às crianças que

apresentavam problemas de comportamento. As principais demandas do CMEI,

então, estavam relacionadas à prática pedagógica com os alunos com necessidades

educacionais especiais em sala de aula, mas, como já mencionado, com uma

ênfase muito grande sobre os problemas comportamentais das crianças.

Nitidamente, elas incomodavam muito mais do que as crianças com NEE por

deficiência.

O grupo de participantes mostrava, expressamente, interesse por ações práticas que

os ajudassem a controlar melhor os alunos. Nós, entretanto, pontuávamos as

questões mais relevantes e tentávamos devolvê-las ao grupo, promovendo uma

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reflexão coletiva. Muitas vezes, lançávamos de volta ao grupo as mesmas

perguntas, forçando para que eles pensassem em seus próprios problemas, no

intuito de mostrar que o próprio grupo deveria se potencializar para, em conjunto,

atuar sobre os problemas. Como uma das pedagogas da tarde sempre falava:

“Como poderíamos tornar uma criança com NEE uma criança da escola, e não

apenas da professora da turma em que ela está matriculada?”

Como pesquisadoras, tínhamos clareza de que não poderíamos nos limitar a uma

questão puramente metodológica, mas sabíamos que uma análise mais

aprofundada de determinadas questões era de ordem.

Nóvoa (1997), quando discute as relações entre a formação continuada de

professores e a profissão docente, ressalta a necessidade de se desenvolver nessa

formação de professores a prática da reflexão, considerada como meio de

construção de saberes e identidade profissional.

A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional (NÓVOA, 1997, p.25).

Essa trajetória que a pesquisa foi tomando revela uma opção por analisar as queixas

e concepções de educadores de educação infantil em relação à “agressividade”, à

“falta de limites” ou à “indisciplina” dos alunos, supostamente tidos como sinais de

desatenção/hiperatividade, não numa perspectiva individual, localizando as

dificuldades na criança, na família ou no professor. Ao contrário, procuramos estudar

como as transformações na educação de crianças pequenas e a própria concepção

de infância são engendradas historicamente, o que pode, associado à influência da

medicina sobre a sociedade, estar contribuindo para a popularização de um

equívoco.

Por outro lado, praticamente toda a literatura que trata de questões disciplinares na

escola traz, atualmente, prescrições de que o professor deve ser mais flexível em

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relação à disciplina, objetivando uma relação professor-aluno mais democrática,

elaboração conjunta das regras das salas (combinados), enfim, mais diálogo.

Todavia, em nossas observações, percebemos que o que estava norteando essa

relação na instituição estudada era o confronto constante, sendo que as práticas

ligadas à disciplina e aos limites caracterizam-se principalmente pelo uso de

sermões, de ameaças ou, como denominaram algumas educadoras, pela utilização

das “chantagens”.

Em diversos momentos, tentávamos potencializar os profissionais ali atuantes como

aqueles que, por suas posturas e concepções frente à educação de crianças

pequenas, é que poderiam construir novas posturas e práticas diante da proposta de

inclusão de alunos com NEE. Tínhamos também a pretensão de sair de discursos

meramente teóricos e tentar, junto ao grupo, pensar nas crianças reais e concretas

ali matriculadas e nos dilemas vividos por eles no processo de educação delas.

A formação proposta, então, foi pautada em teorias focalizadas no professor como

ser reflexivo, baseadas nos estudos de Nóvoa (1997), Schön (1997), Zeichner

(1997), entre outros, que valorizam o conhecimento produzido no cotidiano escolar.

Foi uma proposta de formação que não partiu apenas de uma reflexão sobre a ação.

“(...) acreditar neste discurso e apoiá-lo é decretar o fim de nossa profissão, é aceitar

que nos tornamos cada vez mais dispensáveis diante do aparato tecnológico que

hoje possuímos para transmissão de informação” (ARCE, [on line] 2001).

Arce denuncia que a proposta de formação de professores para a educação infantil

defendida pelo MEC é extremamente nociva, pois

(...) escamoteia a descaracterização do papel do professor como um intelectual, por meio da ‘elevação’ do mesmo à categoria de prático-reflexivo, o RCNEI escamoteia o esvaziamento do conhecimento na escola, vendendo a falsa idéia de que o respeito a uma pseudo-diversidade cultural e a redução da educação escolar ao aprender a aprender garantiriam ao aluno a capacidade de construir seu próprio conhecimento no contato com os "modernos" meios de circulação de informações (ARCE, [on line] 2001).

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Portanto, o que propúnhamos era uma reflexão advinda da prática, mas ancorada

em preceitos filosóficos e teórico-metodológicos, eximindo-nos do que a autora

critica, que é justamente uma formação pragmática e utilitarista.

Segundo Mizukami et al (2002), diante do cenário contemporâneo, em que novas

exigências, preconizadas pelas reformas educacionais, são postas aos professores,

quer sejam os elevados padrões acadêmicos a serem alcançados pelos alunos cada

vez mais cedo, quer seja redimensionando o papel do professor frente à diversidade

de formas de ser/estar aluno na sala de aula, é necessário assumir a escola como

uma comunidade de aprendizagem.

(...) os professores precisam fazer parte de uma ampla comunidade de aprendizagem que constitua fonte de apoio e de idéias. Necessitam, assim, de oportunidades para experimentar aprendizagens compatíveis com as exigências de políticas públicas e para observar práticas de ensino que auxiliem todos os alunos em suas aprendizagens significativas (MIZUKAMI et al., 2002, p.73).

Desde o início dos encontros, sugerimos às participantes que pensassem nas

crianças que para elas poderiam significar grandes desafios. Algumas pessoas

começaram a falar no nome de André, matriculado no grupo 6 (seis anos), da

professora Tatiana, que era caracterizado por todos ali como um aluno hiperativo.

Rapidamente, todos concordaram que ele representa “o maior problema da escola

hoje”. Alguns profissionais ali presentes do turno vespertino que ainda não o

conheciam, perguntavam sobre ele.

A professora Tatiana, que acompanhou André até a metade do ano, mostrou-se

muito participativa nos encontros de formação. Parecia ler os textos com atenção,

parecia querer saber mais sobre inclusão e principalmente sobre como agir com as

“crianças impossíveis”, como ela mesma disse. Mostrava-se sempre muito crítica em

relação aos familiares delas, o que, aliás, era compartilhado pela maioria absoluta

das outras profissionais ali presentes. Questionava seus comportamentos de

criança, como a indicar que era de fato um problema médico e que assim deveria

ser tratado.

A professora Tatiana dispôs-se a relatar um pouco da história de André. Ela diz: −

“Eu penso que todos na escola concordam que ele precisa de tratamento médico.

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No ano passado, ele foi diagnosticado como criança hiperativa, começou a tomar

medicação, mas logo parou porque perdeu o plano de saúde; entrou na escola sem

nenhuma medicação” (PROFESSORA TATIANA, 11/06/07).

De acordo com essa professora, André chega na sala “incorporando um

personagem”, o que ela acredita ser conseqüência de longas horas, em casa, que o

aluno passa em frente ao computador, televisão e videogame, idéia também

defendida pela pedagoga Rose.

Diz ainda: – “Ele não se concentra, incomoda os colegas e é extremamente

agressivo; suas brincadeiras se restringem a bater nos colegas. Não faz atividades,

a não ser com a professora de apoio, que coloca ele sentado entre as pernas e lhe

propõe uma atividade de curta duração. (...) Coloco a rotina no quadro, mas ele foge

da rotina, dos combinados; ele não respeita. Então digo para os alunos: vamos fingir

que André não está aqui e vamos fazer a atividade; nesse momento, André atira os

brinquedos nos colegas... Ele não tem limite nenhum, nenhum, nenhum... “

A pedagoga Rose diz que, no pátio, ele bate em todos os colegas e que são raros os

momentos de atenção. “É difícil se comunicar com o aluno, pois ele não fixa os olhos

no adulto, não presta atenção, está em outro mundo”.

Necessário é retomarmos aqui algo já dito: a perspectiva histórico-cultural nos

ensina que o ser humano se humaniza na cultura e que a escola, no contexto sócio-

educacional estabelecido, engendra nos sujeitos, atravessados pelas relações ali

firmadas, modos de ser/estar no mundo. E, ainda, que a criança se desenvolve de

acordo com as possibilidades que o seu convívio com os outros lhe oferece e

envolve a total interação entre os indivíduos para que isso se dê. Se é difícil a

comunicação com a criança, é preciso questionar que tipo de comunicação está

sendo proposta.

Com esse cenário, começamos a reunir elementos que nos ajudaram a construir o

estudo do caso de André. Percebemos que havia muitas implicações nesse caso e,

notadamente, que a relação das profissionais da escola com a família estava muito

degradada. A todo momento a família era questionada, mas quando havia contato

com ela, a conversa se restringia a descrever todos os comportamentos

equivocados de André e a querer saber como estava o seu tratamento médico.

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Antes de passar ao estudo, algumas considerações sobre a entrevista que foi feita

com a mãe, em agosto de 2007, merecem ser pormenorizadas.

A mãe chegou muito atrasada para a entrevista, mesmo que eu houvesse deixado-a

muito à vontade para definir o melhor horário. Parecia tensa, apressada, rígida,

como alguém que está prestes a ser atacado. Foi logo me dizendo que poderia

apenas ficar alguns minutos porque já estava quase na hora da saída de André.

Depois de me apresentar melhor a ela, realcei meu intuito de compreender os

problemas que ela vinha tendo com a escolarização de André. E, conforme nossa

conversa foi se desenrolando, fui compartilhando o interesse por seu filho.

Informei a ela mais detalhes sobre o meu projeto e lhe solicitei autorização14 para

prosseguir no estudo do caso. Ela consentiu. A partir de algumas colocações que eu

fui fazendo, ela foi mudando de postura, sentando-se mais relaxada na cadeira.

Passou a falar mais à vontade, revelando os detalhes de sua vida com o marido, dos

problemas de relacionamento entre os dois e dele com André, de suas dificuldades

em compreender o que essa e outras escolas lhe apontavam como problemas.

Ela confessou que jamais havia ouvido, nas escolas em que ele estudou, nada de

positivo sobre ele, e que as pedagogas “pegavam no pé” para que ela não deixasse

o filho sem tratamento. Percebi que ela tinha uma visão negativa da escola tanto

quanto a escola dela. Percebendo isso, realcei o empenho das profissionais que

também estavam envolvidas naquela idéia.

Analisando sua postura diante da escola, percebemos o quanto estava difícil

conseguir sua colaboração, mas, mesmo assim, sentimos que a partir daquele

momento ela se desarmou, porque se mostrou muito aberta ao que estava sendo

proposto. A iniciativa visava a que ela visse a escola de forma mais positiva e que

passasse isso para André.

Tentamos muitas vezes estabelecer esse mesmo contato com o pai, que nos

assegurou que viria, mas nunca veio, sempre alegando não poder se ausentar do

trabalho.

14 A autorização consta no Apêndice F (p. 271).

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4.4.4 Análise dos dados

Diante do acúmulo muito grande de dados e informações colhidas (não só por mim,

mas também pelas outras pesquisadoras do grupo), a análise, conforme nos indica

Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998), foi sendo feita num processo contínuo, a

partir dos diversos relatos colhidos, identificando categorias, tendências, relações,

desvendando-lhes o significado. O transcorrer do processo de coleta de dados foi

evidenciando algumas temáticas recorrentes, que constituíram interpretações e

geraram novas questões (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1998).

A narrativa, tanto oral como escrita, tem sido apontada como uma possibilidade de

abordagem de conhecimentos produzidos pelos professores no âmbito da sua

prática.

Vaz, Mendes e Maués (2001, p.6, apud OLIVEIRA, 2006) trazem uma definição da

narrativa que engloba o narrador. Segundo eles, “Ao narrar algo o narrador vai

encadeando casos como contas são presas a um fio para formar um colar” e, desse

modo, a forma como são escolhidas e entrelaçadas as informações denota as

concepções e valores do narrador.

A narrativa é, assim, uma forma de acessar os conhecimentos produzidos pelos

professores no âmbito de sua prática. Esses autores citados por Oliveira (2006)

esclarecem, ainda, que os conhecimentos docentes são elaborados a partir de

experiências práticas, teóricas e pessoais, sendo muitas vezes marcados por uma

“racionalidade prática”. São conhecimentos, portanto, que apresentam

“características singulares e se expressam nas ações cotidianas de seu trabalho”

(OLIVEIRA, 2006).

A narrativa, como instrumento de investigação, possibilita a caracterização, a

compreensão e a representação de concepções e valores construídos a partir de

uma prática. O narrador recolhe os relatos, seus mesmos e dos outros, e transforma

isso, ainda outra vez, em experiência a ser relatada. “(...) Diante da matéria-prima –

experiência sua e de outros – constrói uma forma particular de conceber essa

experiência, envolve-a de sentimentos e sentidos próprios” (OLIVEIRA, 2006).

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Com base nessas considerações, interessa-nos, no âmbito deste estudo, analisar

algumas possibilidades da narrativa a fim de compreender o modo pelo qual alguns

profissionais de um CMEI de Vitória/ES elaboram sua prática docente/pedagógica

em função de crianças que apresentam sinais de desatenção e hiperatividade.

Os dados foram colhidos durante todo o ano de 2007 e tecidos a partir processos

múltiplos de ação: os diários de campo, os relatórios das observações participantes,

as narrativas verbais no grupo de estudos, provenientes do grupo de pesquisadoras;

as discussões/reflexões produzidas no grupo de trabalho, no grupo de estudos, nos

encontros de formação continuada e nas entrevistas, produzidas no CMEI, além de

relatos por escrito da professora e pedagogas. E, ainda, na entrevista realizada na

Secretaria de Educação de Vitória, setor de educação especial.

Propusemo-nos a estabelecer processos compartilhados entre todos os envolvidos

na pesquisa, o que redundou nas várias modalidades de relatos. Desenvolvemos

uma investigação baseada na colaboração, com foco em questões teóricas e

práticas que foram emergindo ao longo do processo.

Era evidente a necessidade que as profissionais do CMEI tinham de exprimir suas

questões relativas aos processos de escolarização dessas crianças. Mesmo com a

falta de tempo e a correria que envolvia o dia-a-dia da escola, os relatos eram

sempre muito extensos e envolviam fatos acontecidos, discussões sobre as famílias,

considerações sobre a dinâmica do funcionamento do CMEI e, principalmente,

divagações sobre o porquê de as crianças estarem a cada ano mais agitadas e

desatentas em relação à escola.

A partir dessas temáticas, ressaltando as peculiaridades dos relatos e suas relações

com o processo de reflexão acerca da própria prática no CMEI, colocamos o desafio

de refletir sobre elas.

A trajetória que o processo investigativo foi tomando revelou as questões e as

possibilidades da formação continuada de professores, na perspectiva da pesquisa

colaborativa, bem como que essa modalidade de pesquisa tem papel importante na

ressignificação de algumas práticas educativas que promovam a inclusão de todos

na escola.

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5. O CASO ANDRÉ – UMA HISTÓRIA DE MENINO

Quando iniciamos o trabalho no CMEI, não tínhamos uma criança específica a ser

focada. No decorrer das observações, e depois, no primeiro encontro da formação

continuada, André emergiu como o protótipo da criança que significava ali “o maior

problema do CMEI”.

Mas, é preciso dizer, outras tantas crianças nos chamaram a atenção e,

inicialmente, foram definidas também como alvo deste estudo. Iniciamos um trabalho

de observações sistematizadas também com elas, entrevistamos seus pais e

conversamos com suas professoras. Entretanto, com a mudança de André para a

tarde, vimo-nos numa encruzilhada.

Optamos por seguir com André no turno vespertino. Particularmente, eu já estava

bastante envolvida por ele. Todo o projeto teve que ser repensado, pois também

envolvia a participação das pedagogas e das estagiárias. A troca culminou com o

pedido das pedagogas da tarde de que o grupo de pesquisadoras trabalhasse

também com os casos daquele turno, o que aliou a vontade à necessidade expressa

por elas. Mas ainda havia uma questão de fundamental importância: a professora da

sala para a qual André fora encaminhado não podia participar dos encontros de

formação continuada e, portanto, não sabíamos se haveria interesse dela em

participar desse processo. Perguntada, a professora mostrou-se bastante favorável,

o que concretizou nossa intenção.

Assim, detivemo-nos mais em André: mente inquieta, incontrolável, indomável,

dominada pelo fascínio das suas próprias fantasias. Pensamento voando tão longe

que não se permitia doutrinar.

Fonte: QUINO, 1993, p.162 Figura 6 – Irresistível necessidade de brincar.

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A seguir, aspectos que destacamos para compor o personagem principal desta

história. Utilizaremos algumas páginas do livro infantil “A Formigadinha15” (figuras 7,

8, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19), para fazer um contraponto e mostrar que a

história de André na escola está longe de ser só dele.

Figura 7 – A Formigadinha.

5.1 A FAMÍLIA

Pesquisadora: − André, vem me mostrar um desenho. Peço que me fale a respeito.

Ele diz: − “Esse é o menino que orava a Deus e Deus mandava para ele uma família: pai, mãe e irmãos”.

Pesquisadora: − “Quem é esse menino?”

Ele responde: − “Sou eu mesmo”.

André nasceu em 24 de agosto de 2000. Os pais já moravam juntos há um ano,

quando a mãe engravidou, porque o marido queria muito ser pai. Então, era uma

15 A autora, Rossana Ramos, gentilmente nos deu autorização para tal, conforme correspondência que consta no Apêndice G (p. 272).

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criança aguardada e tudo transcorria bem até o quinto mês de gestação, quando foi

feito ultrasson e descobriu-se que se tratava de um menino. Segundo informações

da mãe, antes de nascer, ele já tinha a sua existência negada pelo pai, que queria

uma menina. Assim, o pai, antes atencioso e carinhoso, passou a agredi-la verbal e

fisicamente. Ao nascer, a vida familiar ficou ainda pior, pois as agressões à mãe e

ao filho eram constantes.

MÃE: − Ele queria muito ter um filho. Eu não queria, eu não estava no momento. Eu já estava preparada, porque eu acho que mulher já nasce preparada pra isso, mas não queria naquele momento. Eu não tinha terminado os meus estudos, eu trabalhava. Mas ele queria muito um filho, e aí a gente resolveu ter. Ele queria muito uma menina. O sonho dele era ter uma menina. Então até o quinto mês de gestação foi uma maravilha, ele dava muito carinho, conversava com o bebê na barriga; depois que eu fiz a ultrassom e ele ficou sabendo que era menino, ele mudou totalmente o comportamento. (...) Eu encostava nele e ele pedia pra desencostar.

A mãe decide se separar, porque, segundo ela, “estava insuportável”, já que o pai

batia muito em André.

MÃE: – Ele me agredia verbal e fisicamente até 8 meses. Então, mas eu suportava porque eu gostava dele na época, gostei dele até o André completar 2 anos, 1 ano e meio; aí, quando André completou um ano e meio, eu separei dele porque ele batia muito no André, e não era bom, porque uma criança pequena não entendia nada. Então eu resolvi separar dele. Aí fiquei um ano separada dele.

Eles ficam um ano separados, mas durante esse tempo ele a seguia, impedia que

falasse com as pessoas na rua, agredia-a em público. Achou por bem voltar (“melhor

não ser em público”).

Ao aceitar o retorno, a mãe impôs a condição de cessarem as agressões físicas a

André. Assim, o pai, quando queria corrigi-lo, falava com a mãe e passou a ignorar a

existência dele, agindo como se ele não existisse, impedindo-o de estar nos

mesmos lugares que ele, como, por exemplo, para assistir televisão.

MÃE: − Ele não tem paciência com o André. Ele é assim... como é que vou te explicar? Ele mantém uma distância muito grande do André. Se a gente está na sala sentado e o André chega pra falar alguma coisa comigo, porque o André conversa muito alto, aí se ele chega pra falar e a gente tá assistindo alguma coisa, aí ele fala: “Ah, vai pra lá André, vai pro seu quarto”. Então, aonde a gente está, se André chegar, ele quer que o André se retire. Então, não tem como, às vezes eu tenho que ficar com André no quarto dele,

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assistindo o que ele gosta, fazendo as coisas que ele gosta no quarto dele, pra não atrapalhar o outro. Ah, é muito complicado...

Outra gravidez ocorreu, dessa vez de uma menina, que nasceu em 2005. Esse

nascimento parece marcar ainda mais a separação afetiva entre André e o pai.

André teria a “família ideal”: pai, mãe e filhos, juntos num mesmo lar, casa própria,

pai empregado, sustentando a família, enquanto a mãe cuida da casa e dos filhos. O

pai é mecânico e a mãe é manicura, mas, como ela afirma, não pode sair pra

trabalhar porque o marido não permite isso, então atende a algumas poucas clientes

que vão a sua casa. Eles têm escolaridade em nível de ensino fundamental.

MÃE: − Eu não concordo com isso. Você desprezar uma criança, pelo fato dela não ter vindo como você planejou. Mas aí o que se pode fazer? Aí tá. Aí, começou as agressões contra mim, o nosso casamento nunca foi mais o mesmo, sempre tumultuado, sempre briga, sempre discussão.

Pareceria uma família “estruturada”, como se costuma dizer no senso comum.

Estrutura que esconde, entretanto, grande desconforto entre seus membros: a mãe

oscila entre querer/não querer se separar do marido, conforme trecho descrito a

seguir; o pai se mostra extremamente afetuoso com a filha e extremamente

agressivo com o filho, segundo relato da mãe, já que ele se negou a conversar

conosco.

Ela o define assim:

MÃE: − “Ele não bebe, não fuma, todo mundo acha ele um ótimo marido. Porque não falta nada dentro de casa, tem tudo do bom e do melhor. Tudo que o André quer ele tem, apesar dele não ter... você olhar assim, você vê que ele não gosta muito. Ele fala que ama do jeito dele, mas pra mim isso não é amor. Não falta nada, mas falta o mais importante, que é o carinho, a atenção, o amor, o afeto e que pra mim isso é fundamental.

Ao mesmo tempo em que defende esses preceitos, a mãe também oferece a ele

instabilidade, quando deixa transparecer, em alguns momentos, que às vezes pensa

em mandar André para morar com os avós, por causa de suas dificuldades com ele

em casa. Talvez para aliviar sua posição de ter que estar no meio dos dois.

Não é possível compreender André sem conhecer sua história. Sua trajetória,

singular, é marcada pelo contexto em que se insere nesse grupo familiar, pela forma

como tem conseguido assegurar sua existência, pelas práticas pedagógicas que lhe

são dirigidas, enfim, por todo o macro-contexto que ele influencia e é influenciado.

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Ele marca e é marcado pelo seu redor mais imediato (família, escola, amigos,

colegas de sala, televisão, games); mas também pelo contexto maior (cultura,

economia, sociedade, crenças e valores).

5.2 O MENINO

Figura 8 – A infância da Formigadinha.

André é ligeiro, não gosta de fazer sempre as mesmas coisas. É ativo e apreende

muito bem o que ocorre ao seu redor. Mostra-se muito persistente, não se

entregando diante das vicissitudes da sua vida, enfrentando-as cotidianamente. A

violência que sofre, quer enfrentá-la e como não possui armas, cria imaginariamente

e luta combates incessantes, tentando vencer a todo momento como se esse fosse

o sentido de sua existência: SER MENINO.

Nos primeiros meses de nossa observação, tinha constantemente no rosto uma

expressão de raiva, o corpo rígido e o andar muito apressado, como se fosse uma

marcha. Parecia sempre pronto ao duelo. Fazia “cara de mau” para se impor ou se

defender e diante de qualquer tentativa de tentar contê-lo, ele inclinava o corpo para

se desvencilhar e fugir.

Deparamo-nos então com André, um ser complexo, marcado pelas circunstâncias,

condições e por todos os eventos vivenciados, sendo ele mesmo parte desse todo.

Um menino tão vívido, contador de histórias mirabolantes, tão cheias de ação, em

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que combates terríveis são travados. Tem sua própria lógica para produzir

significados, o que faz também ressignificar os eventos vividos, dando a eles

explicações muito peculiares:

“André entra fugindo de alguém na sala de informática. Quando questionado, ele se justifica: é que eu ataquei a caneta em Marcos e ele atacou a caneta em mim” (DIÁRIO DE CAMPO, 06/08/07).

Enfim, André mostra outra lógica – não descrita nos manuais – que fere a proposta

pedagógica das escolas.

É um menino que apresenta inquietação, com movimentos breves, imprudentes e

pouco controlados, sobretudo quando está em estado de agitação ou perturbado

com alguma idéia. Assume frequentemente modalidades estereotipadas de

comportamento, dando a impressão que representa animais ferozes ou super-heróis

sedentos por justiça. Mostra claramente ser uma das crianças mais cheias de

imaginação da turma, pois transforma esta imaginação em temas para as suas

brincadeiras favoritas na hora do pátio, quando então usa os colegas como

partícipes, sendo a eles designado o papel de seres perigosos que precisam ser

combatidos.

“Parece que vem crescendo a sua dificuldade em lidar com esses componentes; suas manifestações de raiva vêm se tornando mais complexas à medida que as pessoas reagem com firmeza e ele mergulha ainda mais fundo na fantasia de estar sendo perseguido, o que o faz reagir ainda mais fortemente” (DIÁRIO DE CAMPO, 05/06/07).

Na verdade, esse é o maior desafio que as crianças enfrentam: distinguir entre

realidade e fantasia. O papel dos adultos, nesse sentido, é ajudá-las a fazer tal

distinção e a melhor forma de fazer isso é permitir que “vivam” suas fantasias.

Viver a fantasia não significa permitir que as realizem com os outros, ou seja,

expressem o que estão vivenciando sem fazer de fato. Ensinar a diferença entre

pensar e fazer é fundamental, mas só se consegue isso se o próprio adulto não

confundir realidade e fantasia; quer dizer, se o adulto souber que o fato de a criança

ter fantasias de atos violentos não necessariamente a levará a ser uma pessoa

violenta. Se o adulto pensar que brincar, ver televisão e jogar games é igual à

violência verdadeira, então isso contribui para que a criança também confunda, o

que põe em risco todo o trabalho a ser feito com ela para que aprenda a diferenciar.

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Essa é a essência de ajudar às crianças a dar sentido a entretenimento, brinquedo e jogos violentos: saber diferenciar o significado que têm para as crianças e para nós. É preciso deixá-las aproveitar a fantasia como fantasia, ao mesmo tempo que lhes ensinamos a realidade. Também precisamos ver nossas fantasias como fantasias, nossos medos simplesmente como medos, e diferenciá-los claramente da relação real de nossos filhos com a violência (JONES, 2004, p.129).

Então, é preciso esclarecer que a violência de faz-de-conta precisa ser

compreendida pelos adultos como uma manifestação própria da infância, mas que

precisa ser elaborada pela criança enquanto fantasia, distinguindo-a da realidade. E

isto se faz pela mediação dos adultos.

Os sinais de busca pelo poder André mostra também em sala de aula. Gosta muito

da lousa, parece mesmo querer assumir o lugar de professor: “Quem mal criar, a

carinha vai desmanchar; quem mal criar duas vezes, não vai na fábrica de

chocolate” (ANDRÉ, 05/06/07).

Gosta muito de brincar com as outras crianças, mas também facilmente elabora

mentalmente brincadeiras onde ele atua ativamente sozinho. Quando está com as

outras crianças, não segue um padrão. Pode ser cordato ou exigente, pode ser

cordial ou arrogante, sorridente ou carrancudo. Brinca de faz-de-conta por grandes

períodos de tempo e mergulha nessa fantasia com extrema facilidade, parecendo ter

mais dificuldade em habitar a realidade. É muito curioso e interessado em conhecer

coisas novas, aliás, tudo que é novo o atrai. Ele tem esse desejo.

Nas brincadeiras, André mostra-se muito concentrado e criativo. “Ele pega um

brinquedo de montar e me chama para brincar com ele, me pede pra sentar junto

dele e por si só, quando em uma palavra faltava uma letra, ele colocava uma parte

de baixo para tampar e usava como a letra que faltava” (EVANESCA, 28/08/07).

Mostra, assim, que seu desagrado não é puramente pelas atividades, mas sim pelas

atividades desconectadas de uma conotação lúdica.

No ato de brincar, o menino produz um espaço para organizar seus sentimentos,

emoções, desejos, modos de pensar e solucionar problemas etc.

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Sua mãe diz que fora do CMEI ele não brinca, não conhece brincadeiras tipo pique-

esconde, pique-pega, pique-bandeira, brincadeiras de antigamente que as crianças

costumam brincar em pequenos grupos na rua. “Porque ele é de poucos amigos. Na

minha rua não tem garotada na rua, entendeu? (...) eu não venho na pracinha com

ele. Só em casa mesmo”, diz a mãe. Eu, então, lhe pergunto sobre suas

brincadeiras em casa. Ela parece querer se esquivar porque, com toda certeza, já

ouviu muito das profissionais da escola que deve deixar seu filho o dia todo jogando

videogame. Então, ela responde assim: “Ele brinca de boneco, de carrinho, ele

assiste desenho... videogame ele joga de vez em quando, ele não joga muito. (...) os

jogos dele são assim: Scooby Doo, não tem jogo de luta, tudo assim, de nave, essas

coisas assim”.

Fonte: QUINO, 1993, p.99 Figura 9 – A realidade da fantasia.

A mãe define um corte na relação dela com ele, quando do nascimento da irmã.

MÃE: − Porque quando eu não tinha a menina, a gente brincava muito junto. A gente ia pro campo, soltava pipa; eu e ele, porque eu sou pai e mãe. Eu sempre fui pai e mãe. Então a gente pegava a bicicleta e ia pra praia, nós dois de bicicleta. Levava bola... chegava lá, brincava de bola, soltava pipa, jogava bolinha de gude, tudo eu. Entendeu? Agora está mais difícil, mas eu vou tentar fazer isso ainda.

Nesse aspecto, frisamos muito a importância desses momentos com ele, mas

também a importância de ele se relacionar com pequenos grupos de amigos fora da

escola, para que pudesse interagir num ambiente menos tumultuado. Pedimos

também que ela observasse melhor as brincadeiras dele e mediar adequadamente,

em caso de surgir alguma inconveniência, como bater ou não respeitar as regras do

jogo. Ela parece concordar.

Sobre a passagem dele para o período da tarde, a mãe esclarece:

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MÃE: − Eu não estava dando atenção a ele, em relação a minha pequena. Porque os dois ficavam no mesmo horário. Então, à tarde, ela queria que eu ficasse com ela o tempo inteiro. Ela não deixava eu ensinar o dever de casa pra ele. Se eu fosse abraçar ele, ela entrava no meio. Então estava aquele ciúme. (...) E também porque eu estava vendo que o ensino de manhã não estava bom. Não estava acompanhando, entendeu? Porque ele não fazia nada. Nossa! Ele tinha uma preguiça, ele não tinha aquela vontade de fazer as coisas, não estava legal. E isso a professora influi muito nisso (Agosto, 2007).

5.3 A ESCOLA

Figura 10 – A Formigadinha vai à escola.

André ingressou na pré-escola com um ano e meio e, segundo informações da mãe,

depois de um ano passou para outra escola e ficou lá até os quatro anos. A família

mudou-se nessa época e ele ficou dos quatro aos cinco anos e meio sem ir à escola.

Ao completar seis anos, ingressou numa outra escola e, no início de 2007, foi

matriculado nesta escola atual.

A mãe parece bem confusa ao falar da história escolar de seu filho, o que nos faz

investigar melhor a ficha de matrícula dele. Nela constatamos que foi feita em

26/10/2005, no Jardim I, e renovada em 27/10/2006, no Jardim II. No relatório de

avaliação semestral, feito pela professora sobre ele, no final de 2005, consta: “O

André apesar dele ter sido matriculado neste CMEI no final de outubro. Ele nunca

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frequentou este CMEI”. Ainda, na ficha de matrícula não consta nada assinalado no

quadro referente às necessidades educacionais especiais.

A pedagoga Nair nos disse que ele já havia passado pelos três CMEIs da região. E

que em todos eles a família não suportou o nível de reclamações. “Aí trouxe pra nós;

então nós estamos com o desafio”.

Ao ser perguntada sobre o porquê da troca de escola, a mãe respondeu:

MÃE: − A pedagoga de lá... nossa! Ela pegava muito no meu pé. Ela queria laudo médico, ela queria tudo referente à vida do André.

Esse comentário dela nos permitiu confirmar que o comportamento de André não

incomodava apenas a escola atual. Nas informações trazidas da escola anterior, no

prontuário do aluno, consta “criança inquieta e hiperativa”.

A história da escolarização de André é confusa. Na escola atual, seu prontuário não

contém todas as informações, os relatórios estavam espalhados entre as pedagogas

e muitas informações verbais sobre seu processo de escolarização eram

desencontradas. No relato da mãe sobre esse aspecto, ela mostrou-se bastante

confusa ao detalhá-lo. Algumas informações sobre sua situação escolar foram

colhidas a partir dos relatórios escritos pelas professoras e pedagoga. O primeiro

relatório, referente ao período de março a maio de 2007, vem assinado pelas

professoras de sala, de Artes e de Educação Física, além da pedagoga Rose.

Consta nele:

É um aluno inteligente, com boa oralidade, destacando-se na pintura e traços firmes de seus desenhos. Escreve seu nome, conhece o alfabeto e alguns numerais. Encontra-se na fase pré-silábica, fazendo relação letra/fonema, porém com desenvolvimento comprometido por apresentar inquietação, falta de concentração e irritabilidade. Seu comportamento é hiperativo. Não conclui as atividades propostas ou quase sempre se nega a fazê-las. Se levanta o tempo todo, mexe nos brinquedos e interrompe os trabalhos de sala. Não respeita os combinados nem acompanha a rotina da escola. Está sempre fora de sala e do grupo de trabalho até mesmo nas aulas de educação física. Às vezes é muito agressivo com os colegas, representando algum personagem com movimentos bruscos sem se importar com as solicitações das professoras. Não consegue controlar sua ansiedade quando deseja algo (...).

No início do ano de 2006 o aluno apresentou os mesmos problemas de comportamento com significativas melhoras após tratamento médico. Contamos hoje com profissionais que em alguns momentos atendem crianças com necessidades especiais no interior da escola

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o que tem contribuído muito com o trabalho de sala de aula. Oferecemos variadas situações de aprendizagem com atendimentos individualizados, onde André tem respondido satisfatoriamente nesses pequenos espaços.

Neste ano a escola realizou algumas reuniões com a família solicitando a continuidade do tratamento. Aguardamos ansiosos por resultados para acompanharmos de forma mais adequada o problema (grifo nosso) (RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO, maio/2007).

O segundo relatório do semestre é o mesmo, xerocado, e assinado apenas pela

pedagoga Rose, o que revela que não houve qualquer alteração da situação dele no

CMEI.

No relatório feito pela professora Tatiana, referente ao primeiro semestre de 2007,

consta:

Mantemos uma rotina diariamente na intenção de organizar os horários, dias para realização das atividades, organização do espaço sala de aula e materiais expostos, respeitando considerando as idéias das crianças, sabendo-se que quando as crianças compreendem como o processo foi construído, sentem que fazem parte deste trabalho de forma integral.

No decorrer do primeiro semestre, fizemos várias tentativas, usamos estratégias na intenção que André percebesse e entendesse a finalidade do espaço CMEI. Eu, enquanto educadora, somado ao corpo docente da escola, procurei através de intervenções pedagógicas contribuir com o processo de escolarização do mesmo (RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO, ago./2007).

A escola, como lembra Foucault (1996), sustenta-se num mecanismo rígido de

submissão às regras. Se André fosse submisso, não incomodaria, mas ele é desses

meninos que não se curvam facilmente, não aceita a submissão.

Num dia qualquer, igual a tantos outros, André é convidado a realizar uma tarefa,

que lhe é apresentada como tarefa, não como brincadeira, desafio, ou algo que pode

ser muito legal de ser aprendido. Ele fica pouco tempo diante da folha xerocada. Ele

parece não ter muita atenção quando a atividade não lhe faz algum sentido. E esse

seu modo de ser no mundo parece ser de desinteressado, de alguém que só faz o

que quer, quando quer etc.

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Fonte: QUINO, 1993, p.143 Figura 11 – O desencanto com a escola I.

O menino na escola está totalmente imbricado com o seu modo de ser menino. A

escola é um dos poucos espaços, diferentes do seu lar, que ele habita. Nesses

espaços, indistintamente, ele produz suas brincadeiras, fantasias, agressividade...

seu desejo circula, desejoso de ser desejado. Todo ser humano busca ser desejado,

querido, amado. A acolhida parece ser um possível caminho para a inclusão escolar

menos dolorosa.

Num dos encontros da formação continuada, a professora de Artes conta a todos

que propôs uma releitura do livro ‘Os três pontinhos’ e, segundo ela, André foi o

único que colocou o menino em cima de uma pedra. Todo mundo colocou o menino

no chão, ele colocou o menino sobre a pedra, dentro de uma lagoa. Tudo está

colorido, menos o menino.

Professora de Artes: Pinta o menino;

André: − Não, o menino não é colorido;

Professora de Artes: − Mas o menino está sem roupa; (Ele desenhou a roupa)

Professora de Artes: − Tá legal, só falta uma cor, pro menino ficar mais alegre;

André: − Não, ele não tem cor; (Pintou o desenho todo, menos o menino).

Pensando sobre a história de André, em seus poucos anos de uma existência

marcada pela negação e pela rejeição à sua existência enquanto menino, podemos

perceber que ele luta para marcar esse seu lugar de menino, mas sem alegria e com

muita solidão. Retira-se do contato e marca sua existência pela ausência de cor.

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Numa de nossas primeiras observações dele na escola, reparamos que André

gostava, pelo menos nessa época, muito do quadro de giz, mas isso não era

explorado. O trecho a seguir resume bem como ele se posicionava perante as

exigências da escola.

“As crianças estão fazendo uma atividade e André desenha no quadro. Ele diz que está fazendo um jacaré (na atividade que as crianças estavam fazendo havia um desenho de jacaré para elas tentarem escrever a palavra e contar as sílabas). A professora o ameaça de lhe tirar o recreio se ele não for fazer. E ele não cede. Ela informa que faltam trinta minutos para acabar a aula. As crianças vão se levantando pra mostrar o que estão fazendo para a professora, que se mantém quase todo o tempo em sua mesa, organizando as folhas. As crianças começam a terminar sua tarefa, enquanto André continua desenhando no quadro e emitindo alguns sons de bichos na floresta. Ela pergunta:

- Então, o que você decidiu? Ele responde: - Não quero fazer dever. - O que você veio fazer aqui? - É que eu acordei muito cedo. - Todos nós acordamos cedo, eu acordei cedo. Posso falar com sua mãe sobre o seu comportamento? (Ele a ignora e continua desenhando no quadro).

Depois diz para sua turma (imitando a professora): - Pessoal, esse é o livro de mal criação. Quem mal criar, a carinha vai desmanchar. Quem mal criar duas vezes, não vai na fábrica de chocolate.

Depois de um tempo nessa brincadeira, diz: - Tia, hora do pátio! Ela responde: - Só quem terminou vai para o pátio.

As crianças começam a ir para o pátio, ele faz movimento de ir. Ela pergunta: - Você merece ir ao pátio? Ele se recosta na parede, como a pensar uma estratégia para sair dali. Mas ela diz: - Você vai, mas depois vai ficar vinte minutos lá atrás para fazer.

Quando ele sai, ela se aproxima de mim e me relata: O maior problema dele é a agressividade; ontem mordeu a professora de Artes. Ontem ele estava ‘atacado’. A diretora levou ele para a sala de vídeo, chegou a orar por ele, porque é como se ele tivesse possuído... derrubou umas caixas que ficam empilhadas lá... é como se tivesse possuído, o rosto se transforma. Parece que incorpora um personagem de desenho animado. Ainda falou pra mãe que eu é que prendi ele. A mãe coloca ele como vítima.” (DIÁRIO DE CAMPO, 05/06/07).

O trecho citado a seguir, extraído da dissertação de mestrado de Colodete (2004), é

estranhamente idêntico ao que ora estou descrevendo, e a menina, alvo de seu

estudo, também tem um “diagnóstico” de TDAH. As semelhanças nos servem para

reafirmar e denunciar o adoecimento provocado pela escola.

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Outro mimeografado ia ser distribuído e Hyngridi astutamente disse: ‘Outra vez?’, referindo-se à compulsão dos professores e professoras em usar exercícios mimeografados, o que provoca desinteresse discente. A professora não quis entender as críticas e falou: ‘Você nem sabe o que é a tarefa!’. A atividade é olhar um desenho completo (pipa, fusca e casa) e completar outro com o que está faltando. Na casa desenhada pela professora, Hyngridi fez mais uma janela. Ela definitivamente ousa e se permite ser dona do saber, que sobrevive graças às suas interferências criativas (COLODETE, 2004, p.163).

Vendo outras histórias, tão similares, e conhecendo outras crianças em outras

escolas, suas dinâmicas tão parecidas, ainda me questiono:

“Muitas vezes chego mesmo a me questionar: será que ele é mesmo o errado nessa história toda, ou será que as outras crianças é que são submissas demais?” (DIÁRIO DE CAMPO, 11/09/07).

Figura 12 – A Formigadinha se desencanta com a escola.

André exibe a sua resistência de múltiplas formas. Ora ele se opõe aos exercícios

xerocados da professora e às atividades para a tal Mostra Cultural16; outras vezes se

muda para um mundo outro e se transfigura em um poderoso guerreiro que combate

os inimigos; outras vezes, ainda, mostra sua intelectualidade sobre assuntos que as

outras crianças ainda não dominam, causando certo impacto nos adultos e

16 Mostra Cultural é um evento programado para o fim do ano, em que é mostrada toda a produção do aluno ao longo do ano.

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mostrando com isso que não está alienado ao que se passa ao seu redor. “André

fala dos movimentos de translação e rotação da terra, explicando-me direitinho como

acontece. Ao lhe perguntar onde viu, ele responde que na televisão” (EVANESCA,

18/10/07). Há ainda as vezes em que foge da sala de aula quando a atividade é para

ele enfadonha.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.

Professora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

André: − Mas eu não sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não diz o que eu não posso fazer.

Enfim, em muitos momentos ele é enfrenta(dor), não aceitando passivamente as

adversidades presentes na sua vida. Trava verdadeiras batalhas, cotidianamente

vivenciadas, e o seu lúdico, dessa forma, parece mantê-lo lúcido o bastante.

Atrevidamente, questiona os procedimentos pedagógicos e o poder da professora.

De outro lado, mostra-se interessado e totalmente desarmado, aberto, quando lhe

convidam a uma boa história ou a uma atividade que lhe guarda sentido.

“Certa vez, acompanhei André pelos corredores e percebi que ele queria entrar na sala de 4 anos. Peço licença para entrar com ele na sala, onde a professora está contando uma história. André se deita de bruços, com os braços sob o queixo e fica muito atento. A primeira história é sobre coelhinhos, que eles gostam de comer cenouras. André levanta a mão para falar que gosta de comer cenoura também e começa a pular agachado como a imitar um coelho. O conteúdo da história é bem simples, apropriado para crianças bem pequenas, mas ele se mantém atento e participativo. Em seguida, essa professora conta uma história de ursinho. Pergunta às crianças o que ele come. André diz: ‘carne, pessoa...’ ele chega a se erguer sobre os próprios joelhos de tanto que quer participar. Quando termina essa sessão de histórias, ele sai. Entra na sala de outra professora (6anos). Ela está sozinha porque as suas crianças estão no pátio. Ele pede pra brincar com um robô, ela deixa, mas pede que depois traga de volta. Volta pra sala em que estava anteriormente e diz: ‘esse robô bate com a cauda, é um bicho meio esquisito, e tem vários inimigos, se transforma e lança bolas de fogo’. André brinca muito bem com as crianças pequenas. Mas, quando a professora pede para que todas as crianças guardem os brinquedos para irem ao pátio, André diz: ‘Eu não’. E sai.” (DIÁRIO DE CAMPO, 26/06/07).

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Numa outra observação:

“André brinca no chão com outras cinco crianças. Percebo que ele está brincando com um “Power Rangers” amarelo, com uma menina. Dobra a calça de um boneco e faz diversas atividades como se o “Power Rangers” morasse lá. Ele fala: “Olá, pessoal!”, como se fosse o boneco que estivesse falando. Interage nas brincadeiras com os outros. Depois diz: “Minha querida, o jantar está pronto”. Permaneço ali por aproximadamente 25 minutos e durante esse tempo André brinca bem” (DIÁRIO DE CAMPO, 03/07/07).

Um terceiro episódio ilustra os problemas da escola com André.

“Chego à sala da professora Tatiana, que me diz que André bateu na cabeça de uma outra criança e depois saiu da sala. Pergunto se gostaria que eu fosse ver onde ele está, ela diz que sim. Saio pelos corredores e o encontro andando rápido e com feições de nervosismo e, talvez, raiva. Eu o chamo para ir para sua sala, ele diz que não e nem pára para me ouvir. Eu vou atrás dele devagar e ele volta. Digo a ele que Tatiana está contando história, ele vai até a porta e decide entrar. Ela olha pra ele sorrindo e o chama para entrar, diz que já está terminando, mas que vai resumir para ele. Ele entra, senta-se bem no cantinho, com ar de chateado. Ela continua contando a história normalmente e não faz o resumo neste momento. Parecia que a história também não estava despertando o interesse das outras crianças, que se agitavam o tempo todo. A história falava de um macaco que queria dar um golpe. Depois de algum tempo, André pega um outro livrinho e começa a folheá-lo. Depois propõe que Tatiana conte aquela história. Ela pede o livrinho, ele lhe entrega esperançoso, mas ela não conta. Ele pergunta quem é o “Mioco” (personagem da história que ela estava contando). Ela termina nesse momento a história e começa a resumir para André, tentando a ajuda dos colegas, que a essa altura já bagunçam bem o ambiente. André não presta atenção, diz que não quer ouvir tudo, que só quer saber quem é Mioco. Ela termina e chama as crianças para fazerem a atividade relativa à historinha, ele fala “eu não” e sai da sala; ela não intervém” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/07/07).

Nas observações dele na escola, a rotina de André era vagar buscando turmas onde

estivesse ocorrendo contação de histórias, brincadeiras, momentos de pátio, o que

incluía sua própria turma, onde só permanecia nesses momentos. Um desconforto

generalizado se instalara no CMEI por conta dele.

Já no início de nossas observações, a relação da professora Tatiana com André

estava bem degradada. A professora não tentava aproximações com ele, permitia

que ele saísse quando queria da sala de aula, parecia desanimada por não

conseguir intervir positivamente com ele. Ele não se preocupava em agradá-la.

Corria pela sala, falava alto, não respeitava aquilo que lhe era pedido e passou a

sair cada vez mais e por mais tempo da sala de aula.

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Na sala de aula, André se opõe às atividades, sempre dizendo: “é chato”. De outra

forma, interessa-se por jogos, origami, histórias, fantoches, gosta muito quando as

atividades são dinâmicas e interativas. Sempre participou muito delas em todos os

momentos por nós presenciados. Ele consegue fazer seu nome e realizar as

atividades quando se dedica a fazê-las. Gosta muito de pintar e foi elogiado algumas

vezes pela professora de Artes, devido à sua criatividade. Quando solicitado a

participar de atividades comuns, opõe-se mostrando sua resistência, ou fazendo de

qualquer jeito para acabar logo ou saindo da sala sem fazer alarde.

Mesmo sendo apontado como um dos maiores problemas da escola, as práticas

dirigidas a ele, como também a outras crianças com problemas de comportamento

similares, eram sempre as mesmas: tirá-lo do pátio quando batia, falar-lhe sobre

como é feio bater nos amiguinhos, trancá-lo numa sala até que se acalmasse,

chamar a mãe para que ela o levasse pra casa mais cedo e também para que

tomasse alguma providência (a mais comum, pedir que o levasse ao médico),

mandar pedir desculpas ao colega, alvo de sua “agressão” etc.

Essa rotina para ele não representava problema, pois já se acostumara a ela: pedia

desculpas mecanicamente, acenava como que concordando com as falas dos

adultos, talvez para que cessassem logo, ou mesmo as ignorava nitidamente. Esses

mecanismos tacitamente não surtiam efeito sobre ele, apenas acentuavam o rótulo

de criança-problema, que ele já vinha trazendo da escola anterior, levando-o

também para o período da tarde.

Como a conversa não resolvia, porque ele simplesmente não atendia e saía

andando pelo CMEI, muitas vezes era retirado dos lugares. Os adultos tentavam

comunicar-se com ele da única forma que ele parecia entender naquela ocasião:

mostrando-lhe os limites físicos concretos. André parecia entender a noção de limite

apenas corporalmente. Era preciso contato físico com ele para tirá-lo de situações

de brincadeiras perigosas (como, por exemplo, subir em árvore, atirar pedras) ou em

que agredia algum colega. Era visto aos olhos das outras crianças como o causador

de todos os problemas, o que acabava fazendo com que só se aproximassem dele

para pedir que batesse em alguém por eles, o que reforçava ainda mais seu

estigma.

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“Percebo uma criança solicitando a André que bata em uma outra criança que lhe batera antes, como se ele, nesse momento, fosse seu defensor. Ele até vai em direção à criança, mas no caminho tem sua atenção desviada por outra brincadeira e segue outra direção. Isso diz algo da agressividade que dizem que ele tem” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/07/07).

A homogeneização, mecanismo que, segundo Foucault (1995), objetiva o controle e

é exercido através de outros mecanismos, de ordem disciplinar, é um dos grandes

obstáculos à inclusão escolar. Mostra-se, no meio escolar, como atividades que

esquadrinham o tempo, o espaço, os movimentos, as atitudes de alunos,

professores, pedagogos, diretores, e impõem a todos atitudes de submissão e

docilidade. Porém, ainda segundo Foucault, da mesma forma que a escola tem esse

poder de dominação, que não tolera bem as diferenças, ela é também marcada por

formas de resistência que se insurgem contra as normas e imposições. Como nos

diz Aquino:

Compreender essa situação implica aceitar a escola como um lugar que se expressa numa extrema tensão entre forças antagônicas. (...) O professor imagina que a garantia do seu lugar se dá pela manutenção da ordem, mas a diversidade dos elementos que compõem a sala de aula impede a tranqüilidade da permanência nesse lugar. Ao mesmo tempo que a ordem é necessária, o professor desempenha um papel violento e ambíguo, pois se, de um lado, ele tem a função de estabelecer os limites da realidade, das obrigações e das normas, de outro, ele desencadeia novos dispositivos para que o aluno, ao se diferenciar dele, tenha autonomia sobre o seu próprio aprendizado e sobre sua própria vida (AQUINO, [on line] 1998).

O que mais incomoda a todos não é a sua fuga da sala de aula, mas sim o seu

enfrentamento. Então, assim ele se mostra: assertivo e agressivo; o que parece lhe

fornecer a energia necessária para manter e sustentar sua luta interna/externa, num

cotidiano em que essa é sua marca central, mas que traz junto seu esforço e

criticidade.

Ele deseja saber. Entretanto, necessita que reconheçam suas diferenças e que se

planeje uma intervenção para ele no seu grupo. Para desejar estar ali, necessita de

contatos efetivos, em que possa exercitar sua autoconfiança. Ele não aceita não ser

desejado e foge da sala. Ao lugar de imobilidade que lhe tentam impingir, ele

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responde com suas fugas. E, ao assumir posturas de resistência, o seu

enfrentamento se traduz em doença, que a todos imobiliza, pela espera de um

especialista. Mas ele não se vê assim. Luta por sua sanidade.

5.4 O “ADOECIMENTO”

Uma criança, vivenciando todo esse contexto de violência física e psicológica, é

matriculada na educação infantil com um ano e meio de idade. Logo é constatado

nele um problema, ele é diferente. É encaminhado a um neurologista que

diagnostica “Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade”.

MÃE: − Sempre foi agitado demais. Pula, corre o tempo todo dentro de casa. Ele era assim. Aí o médico fez o eletro. Aí deu TDAH, não é isso? TDAH. Um negócio assim.

Figura 13 – O “adoecimento” da Formigadinha I.

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Figura 14 – O “adoecimento” da Formigadinha II.

André passou a ser medicado. Segundo a mãe, foi medicado até os quatro anos. “Aí

agora (junho/2007), de tanto a pedagoga daqui (do CMEI) também insistir, eu levei

ele no neurologista e ele passou um remédio pra ele, o dogmatil; também é gota”.

O recurso mais utilizado pelas escolas, nesses casos, é encaminhar para um médico

ou psicólogo, que ratifica o diagnóstico já produzido nelas, o que vai consolidando o

processo de rotulação desse sujeito.

Recorremos a Pichon-Riviére (1988) para dar sustentação à nossa impressão de

que, cedo demais, André foi colocado na posição de bode-expiatório da família.

(...) porta-voz dos conflitos e tensões de seu grupo imediato – a família. Mas é, também, por isso, o símbolo depositário dos aspectos alienados de sua estrutura social, o porta-voz de sua insegurança (...) é o porta-voz por intermédio do qual se manifesta a situação patológica, que afeta toda a estrutura (PICHON-RIVIÈRE, 1988, p.16).

Com o rótulo de doente, portador de Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade, passou a ser ele o fiel depositário dos problemas familiares.

Porém, não só dos problemas familiares. Parece que na escola ele também acaba

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recebendo mais do que aquilo que lhe é devido, como se pode notar no relatório

escrito que a professora Cássia fez a nosso pedido.

Nestes meses tive momentos de verdadeira vontade de ‘chutar o balde’, ‘jogar a camisa’ e deixar este problema para a escola resolver, pois, depois que recebi André, meus momentos de planejamento com a pedagoga acabaram, desta forma me sinto como que sozinha com um ‘problema’ que não consigo resolver (PROFESSORA CÁSSIA).

Dois aspectos gostaria de ressaltar sobre esse trecho: o primeiro deles se refere ao

fato de que, pelo que constatamos, os momentos de planejamento não eram

perdidos por causa de André, mas sim pelo excesso de atividades a serem

preparadas para as crianças produzirem para a Mostra Cultural. O segundo é que a

professora contava com um grupo que, no momento desse relato, já estava com ela

com uma proposta colaborativa, envolvendo outras cinco pessoas.

Nossas observações mostraram que nas práticas da educação infantil uma

subjetividade desviante é atribuída às crianças que não correspondem aos padrões

esperados, que passa a justificar tudo aquilo que não vai bem. Por outro lado,

também percebemos que as crianças resistem a essas marcas, imprimindo sua

singularidade à subjetividade que lhe atribuem. Por tais comportamentos, são

taxadas de “indisciplinadas”, por não corresponderem às expectativas de um bom

comportamento.

“André joga bola com outros meninos da turma. De repente, bate num colega. Pouco tempo depois, bate de novo, sem nenhuma razão aparente, no mesmo colega. Uma pessoa que acompanha as crianças no pátio (ASG) pega o garoto no chão e diz: ‘Você não tem mão, não, garoto?!’, como a querer que ele revidasse. Ele só corre, não pára, imita animais com urros. Estapeia uma menina que passa por ele. Outra pessoa do apoio aponta para alguns garotos reunidos num lado e diz: ‘Olha lá, estão se juntando para bater nele’. Ninguém intervém. Mas, não parece que estavam reunidos para isso. Depois, André parece imitar um touro. Derruba um outro menino, que bate com muita força a cabeça no chão. A estagiária tenta contê-lo, ele foge. Depois de um tempo, ela volta acompanhada de um homem (ASG) para ‘prendê-lo’. Retiram-no para fora do pátio, preso pelos dois braços” (DIÁRIO DE CAMPO, 05/06/07).

Nesse mesmo dia, findo o intervalo, encontro-me com a professora Tatiana no

corredor. Ela diz: “Ele tá lá com o pessoal do Corpo Técnico-Administrativo (CTA),

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mas é um absurdo a mãe não ser chamada e ser obrigada a levá-lo num

neurologista”.

Começo, então, a recolher os primeiros indícios das características de André, que

informam aos profissionais da escola que ele tem um transtorno comportamental,

neste caso o TDAH.

A diferença passa a ser considerada como uma deficiência, algo que “falta” à criança

para que atinja a norma. Dessa forma, a educação infantil mostra voracidade em

diagnosticar o “problema da criança” apartada das relações vividas em seu

cotidiano.

Figura 15 – A mudança na proposta escolar.

Nossa proposta era de caminhar no sentido contrário. Escolhemos André e nessa

escolha estávamos apostando na idéia de que seus problemas de comportamento,

que obviamente estavam atrelados aos seus problemas familiares, tornavam-no um

sujeito singular, mas que poderia encontrar nas relações estabelecidas na escola um

espaço de aceitação e transformação dessas suas características.

Propúnhamos questionar os rígidos padrões escolares que veladamente excluem

aqueles que não se enquadram.

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Figura 16 – O resgate da alegria.

Propúnhamos, ainda, resgatar o lúdico, o jogo, o faz-de-conta, como as bases

fundamentais em que a educação infantil deve se dar, respeitando a cultura infantil

em suas especificidades. Não esquecendo que qualquer proposta de mudança de

prática pedagógica tem mais êxito se sua condução for marcada pelo afeto que, por

muitos meios, pode ser manifestado, desde a escuta atenta até gestos de carinho e

palavras de incentivo. A relação professora e aluno, quando marcada pelo afeto,

conduz ao conhecimento e ao respeito, bases em que a educação inclusiva se

apóia.

Figura 17 – A escola de todos.

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Figura 18 – Escola: lugar de aprender e ser feliz I.

A linguagem, o diálogo e a expressão dos sentimentos foram a forma como

pensamos que, na escola, a criança poderia encontrar os canais para expressar seu

mundo interno, suas fantasias e idiossincrasias.

Figura 19 – Escola: lugar de aprender e ser feliz II.

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Sem tomar a criança como objeto de intervenção ou diagnóstico, André foi

considerado como um sujeito que tem sua existência marcada pela rede de relações

vividas diuturnamente nas instituições em que está inserido.

O estudo do caso de André mostrou que, ao ser visto

(...) A partir de um padrão, este transforma em deficiência, moral ou psicológica, da família e, por conseguinte, da criança, tudo aquilo que não corresponde ao esperado. Por meio do disciplinamento que controla, identifica e contribui para classificar e comparar uma criança à outra, engendra-se uma subjetividade em que a singularidade da criança aparece como algo desigual (VAZ, 2004, p.10).

Por meio do estudo mais aprofundado deste caso, foi possível constatar como a

prática normativa é engendrada. Ao focar o desvio, a criança é excluída, nutrindo o

preconceito e o estigma em relação às crianças que não se enquadram. É a norma

servindo para justificar a inadequação da clientela ao ensino e à escola.

Desse modo, essa é a história de um menino que aprendeu a resistir na escola e na

vida.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

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sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Professora Cássia: − Por que você não respeita as regras?

André: − Eu não sei as regras.rofessora Cássia: − A lista está afixada lá no quadro.

sei ler.

Professora Cássia: − Mas eu li pra você.

André: − Lá não dizque eu não posso fazer.

Fonte: QUINO, 1993, p.362-3

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Figuras 20 e 21 – O processo de estigmatização I e II. 5.5 SITUANDO O ESTUDO DO CASO A PARTIR DA FORMAÇÃO CONTINUADA

Quando iniciamos o processo de formação continuada no CMEI, propusemos aos

participantes que, se todos concordassem, poderíamos entrelaçar o estudo e a

discussão dos textos (que já haviam sido selecionados no grupo de estudos para

respaldar os anseios que eles nos haviam mostrado no instrumento inicial de

sondagem) com um trabalho mais diretivo em torno das crianças que representavam

um desafio maior em seu processo de escolarização. André foi a criança mais

citada, conforme já dito. Pensamos, então, em construir, em conjunto, um projeto

educativo para ele, que envolvesse toda a sua turma e que servisse de parâmetro

para a elaboração de outros projetos educativos para as outras crianças com NEE.

Houve concordância geral.

Ao longo dos encontros de formação, fomos recolhendo algumas falas que mostram

tentativas de compreensão/explicação para os comportamentos de André.

• “Ele tem uma relação complicada com os pais; a mãe é extremamente intolerante,

agressiva, não reconhece os problemas do filho. A mãe demonstra instabilidade,

conflito pessoal, não traz estabilidade nem para ela, nem para o filho. O pai, por

sua vez, não tem paciência e por isso evita contato com o filho. Sendo assim,

André tenta fugir do mundo real que é duro, então se refugia no seu mundo

imaginário” (PEDAGOGA NAIR).

• “Quando ele quer participar, ele faz duas produções enquanto o resto faz meia (...)

ele faz muito bem, pinta muito bem (...) ele consegue conquistar a atenção de

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todos. Ele está atento o tempo todo, mesmo quando não está participando da

atividade” (PROFESSORA DE ARTES).

• “A mãe diz que em casa o aluno não tem problema, só na escola. Assim, temos

que ser competentes para dar conta de André. Outras vezes a mãe diz que é

problema genético, pois todos na família do pai são assim. Já orientamos a mãe

para levá-lo ao neurologista para ter um acompanhamento médico, mas ela recusa

dizendo que não tem condições financeiras para tal” (PEDAGOGA ROSE).

• Uma professora, em alta voz, exclama: “Ela não tem medo que a escola negue o

filho não? Se ela nega que o filho é transtornado, e aí?”

• “Eu tenho uma idéia para ela, o integral. Coloca na escola integral, se o problema

dele é ficar no videogame” (Fala de uma professora).

• “Ele só consegue ser afetuoso quando eu entro no mundo imaginário dele. Nesse

instante, ele se transforma fisicamente e responde ao que eu pergunto”

(PROFESSORA TATIANA).

• “Todo mundo já tentou se aproximar dele, mas ele não permite. A gente tenta

entender ele, mas não consegue” (PEDAGOGA NAIR).

• “O maior problema dele é a agressividade. Quando sai no pátio, qualquer criança

que passar por ele, ele bate.”

• “Ele pára e estabelece contato quando se entra na dele” (PROFESSORA).

• “Eu já consegui uma vez... como ele é ansioso e persistente naquilo que ele quer...

me lembro que um dia, no horário do pátio, ele queria uma bola, mas como ele não

me dava tempo para explicar que não seria possível, porque a bola poderia

machucar outras crianças, levei André para o computador... foi a única vez que

consegui me comunicar com ele...” (PEDAGOGA).

• “Eu entrei no mundo dele... comecei a imitar os personagens que faziam parte do

desenho que ele está representando... então penso que poderia se criar momentos

durante a aula para entrar no mundo dele... inverter o papel (sei que não é fácil -

disse olhando para a professora de André), pois sempre queremos dar a aula que

planejamos...” (PROFESSORA).

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• “Mas, se a gente fizer isso, vamos incentivar ele mais ainda a ser assim”

(PROFESSORA).

• “A escola já tentou de tudo, espaço de pátio diferente, mas o que dificulta também

é a falta de profissionais, de espaços, de recursos, brinquedos para tentar fazer

algo diferente” (PEDAGOGA).

• “Algum tempo atrás, tentamos incentivar André a ter comportamentos ‘bons’.

Assim, na medida em que fazia algo bom o levávamos para o computador. Mas

paramos com tal ação porque... até que ponto estamos contribuindo para a

formação de André na medida em que nos momentos que fizesse algo agradável

recebia um reforço positivo?” (PROFESSORA).

• “Às vezes, tentamos tratar o aluno diferente, levando em consideração sua história

de vida, mas essa diferença não pode justificar ações que prejudiquem os colegas

na escola” (PEDAGOGA).

No nosso grupo de estudos, na UFES, refletimos que, passados alguns encontros

de formação continuada, a escola passou a deixar André mais solto ainda, vagando

de sala em sala, onde estivessem acontecendo atividades interessantes. Sobre essa

observação, perguntei a mim mesma:

“Será que estamos no caminho certo?” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/07/07).

Por outro lado, as discussões nos encontros de formação continuada propiciaram

sutis mudanças de posturas que revelaram uma reação completamente diferente

dele:

“Observo o pátio nesse dia. André brinca de pique com um colega. Depois começa a jogar britas nas crianças e a auxiliar de pátio, ao contrário do que era a prática geral, não grita. Ela se aproxima dele, chama sua atenção para que olhe pra ela, curva-se para conversar com ele olho no olho, ele a atende. Penso que nossas discussões nos momentos de formação continuada começam a surtir algum efeito nas práticas da escola” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/07/07).

Para dar sustentação ao que vinha sendo discutido sobre André e, por meio dele,

sobre todas as crianças com NEE no contexto da educação infantil, propusemos aos

participantes um quadro subdividido em três partes - “desafios, tensões e

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possibilidades” – para que, de forma mais ordenada, pudéssemos pensar

alternativas para André.

A professora Sônia lançou ao grupo, para aquecer a discussão, as seguintes

questões: “Que perspectivas o nosso CMEI tem para se transformar numa escola

inclusiva? O que a gente pode estar mudando no contexto desta escola que possa

estar sendo mais favorecedor para esse processo?”

E, aportando-se nos conceitos básicos, falou sobre a educação inclusiva e, dentro

desta perspectiva, sobre a questão da diversidade.

• “A diversidade na configuração humana é óbvia, é evidente, a gente não pode

negar, nós somos diversos, nós somos múltiplos, nós somos diferentes. Só que

existem pessoas que são significativamente diferentes. Pessoas que têm

características que as afastam deste padrão, desta normalidade, que é construída

também socialmente” (SÔNIA, 18/06/07).

Depois, mencionou as crianças matriculadas no CMEI que apresentavam

deficiências e outras crianças que, como André, não têm um diagnóstico fechado,

mas que precisamos pensar em possibilidade de avanço para elas, dentro do seu

processo de aprendizagem e desenvolvimento.

Como podemos pensar isso? Já que é fato que essas crianças trazem uma série de

problemas e que devem sofrer também com isso, pois têm uma série de

interferências nesse seu processo de escolarização, que não permitem que ele

possa aproveitar ao máximo dessa sua inserção, de sua matrícula, dessa sua

inclusão na escola regular. Então, nós temos uma série de configurações, não só

aquelas crianças com NEE que apresentam deficiências, mas crianças que

apresentam necessidades educacionais por diferentes motivos.

Algumas professoras lançavam suas dúvidas:

• “É uma curiosidade. Quando você fala de deficiência... hiperatividade e

superdotamento como estão categorizados?”

• “A hiperatividade... ela pode ser orgânica como também adquirida no meio?”

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As questões levantadas revelam alguns dos interesses, das dúvidas das professoras

e nos servem para planejarmos os encontros de forma a convergir as temáticas em

torno dessas questões.

Recorremos a enquadres teóricos e reflexões contextuais quando isso se fazia

necessário, como foi o caso de trazer para o grupo uma crítica ao modelo médico de

deficiência, ainda hoje tão presente na nossa relação com o diferente, já que vê a

deficiência como algo que precisa ser “curado”, precisa ser adaptado a uma

determinada situação. Isso porque percebemos, durante essas discussões, falas

muito carregadas de uma visão médico-psicológica das crianças com problemas

comportamentais.

Propusemos repensar esse modelo, em função de repensar a concepção da

deficiência, concepção que possa mostrar que o aluno tem condições de aprender,

desenvolver-se, ter avanços, não aqueles avanços que nós padronizamos, mas um

avanço ou e até mesmo retrocesso, considerando o próprio aluno como uma

referência dele mesmo.

• “Esse modelo de deficiência nos impede de pensar a deficiência como algo que

possa ser produtivo, ter potência, não ser produtivo, mas ter potência; a gente

pensa a deficiência sempre como algo que impede, que vai interromper a vida

daquela criança, ou seja, se a criança não avançou... ah! é porque é uma criança

com deficiência. Logo, a deficiência justifica o não avanço dele. (...) Por mais que a

gente queira se livrar da questão do rótulo, a gente acaba caindo nele, porque a

deficiência para gente ainda é uma incógnita, é um mito (...) que nos gera

preconceitos, discriminação, isso muitas vezes é inconscientemente, porque nós

naturalizamos (...) a idéia de que a criança com deficiência é uma criança que não

tem condições de aprender, por mais que a gente não diga isso claramente, a

gente acaba assumindo isso” (SONIA, 18/06/07).

Das questões mais gerais sobre a educação inclusiva no contexto da educação

infantil, propusemos debates mais específicos, como o que ocorreu a partir do texto

de Lygia Amaral, intitulado “Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças

físicas, preconceitos e superações”, que já havia sido distribuído aos professores

anteriormente. A partir de provocações sobre a metáfora que a autora utilizou com

animais e outros signos, fomos pontuando sobre a questão do preconceito.

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Entendemos que a compreensão deste conceito está na base da reformulação de

crenças e valores.

A pedagoga Carmen expressa bem uma tentativa de ligação das idéias até então

discutidas:

• “(...) a intenção é parar e pensar num conjunto porque depois, quando a gente está

sozinho, a gente faz igual o avestruz, enfia a cabeça na areia (...) vai tocando. A

gente está estudando casos da escola, da nossa realidade daqui, mas sozinho não

consegue chegar. Cada um precisa perceber o que o outro está fazendo. (...) a

ponte minha com esse aluno, essa postura minha (...) então, fica cada um com seu

estagiário (...) a criança ainda não é nossa, ela é da turma que ela está, ela não é

coletiva. Como romper isso? São desafios (...) é aí que eu enfiei a cabeça num

buraco e não consegui perceber como fazer diferenças (...) a gente tem que se

expor um pouquinho (...)”.

A professora Tatiana interpela: – “Ela falou assim que ela não consegue ver o aluno

da escola e sim do professor. Em determinados momentos, eu penso que, quando o

aluno está dentro de sala de aula, e nós estamos trabalhando com ele, o aluno

necessariamente é do professor, nas responsabilidades competentes a ele naquele

momento, trabalho pedagógico, disciplina. Quando sai da sala, quando não sai, em

determinados momentos, principalmente os alunos que são... que têm um

comportamento... que sai da sala de aula muitas vezes e o professor não vê, e

chega aqui no pátio correndo, começa a subir uma escada, e começa a bater em um

aluno, começa a correr, então eu acho que é questão de atitude. Nesse momento

ninguém precisa chegar e pensar: ‘nossa, o aluno de Tatiana está se acabando aqui

no pátio...’ eu acho que, nesse momento, o aluno é da escola, não interessa de

quem é. Você não tem que chegar lá e chamar a professora Tatiana pra acudir o

aluno dela. Não! Nesse momento o aluno é da escola. Então, no exemplo do

refeitório, o professor muitas vezes sai, que a maioria já terminou de lanchar (...) ele

vai pra sala dele por conta do tempo. Ficam as outras turmas, as do pré, por

exemplo (...) aí tem um aluno da outra professora (...) aí esse aluno está

indisciplinado (...) aí sim, eu venho numa postura que, de novo, né? Você é aluno de

quem? Seu professor já está na sala (...) Determinada atitude é rara nesse

momento, sem ter que ficar apontando quem é o responsável, cobrando alguma

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coisa desse profissional, entendeu? Então, acho que é questão de momento, é

questão de atitudes, considerar que o aluno é do professor ou da escola... Até

porque é difícil conhecer todos os alunos da escola. Para os pedagogos talvez não,

mas os professores, conhecer todos os alunos de todas as salas, você vai conhecer

no decorrer da vida da escola mesmo...”

Tentamos resgatar a idéia de trabalho colaborativo ao mostrar que,

necessariamente, o grupo deve pensar junto em intervenções significativas para

seus alunos.

A professora Tatiana retruca, mas mostra uma visão equivocada de trabalho

colaborativo. Ela diz: − “Isso é uma coisa que ocorre naturalmente. Quantas crianças

nós já tivemos como o André, por exemplo? Eu pesquisei quais as intervenções

tomadas, como o aluno Paulo (...) Eu resgatei materiais do ano passado, retrasado,

conheci professores que trabalharam com ele...”

Então, aproveitando a discussão, Sônia busca esclarecer mais sobre o trabalho

colaborativo: − “Essa sua busca, essas suas interações com os outros professores

foram um diferencial? Porque muitas vezes (...) o tipo de relação (...) com nossos

colegas são de repassar informações, o repasse de informações sobre o aluno (...)

de algum material (...) algumas dicas. Mas onde de fato ocorre um trabalho de

colaboração entre os profissionais dessa escola? Não no sentido assim... ah! ele

colaborou, ele me deu o material dele. Eu não tô falando disso, mas de pensar junto

possibilidades para encaminhar o processo de escolarização de André (...) A gente

está pensando ‘colaboração’ dentro de uma outra perspectiva, tentar encaminhar

gradativamente isso, fazer avaliações, fazer registros. É nessa intenção que eu tô

querendo pensar como se institui um trabalho de colaboração entre vocês.”

Mesmo com essas colocações, a professora demonstra pensar colaboração apenas

em momentos ou atitudes colaborativas: − “É, nós tivemos, eu e Nair, há pouco

tempo (...) por conta desse encaminhamento ao médico. Ele foi encaminhado e o

médico pediu um relato dele; foi aí que mobilizou um pouco todos nós. E eu relatei

alguma coisa, a professora que acompanha ele, a pedagoga, a mãe, e tudo foi

escrito. Aí que nós fomos verificar todos os comportamentos dele, os fatos que

aconteceram, foi aí que houve essa coisa comum.”

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A idéia do trabalho colaborativo não traz só essa primeira intenção - compartilhar

com o outro algumas sugestões, algumas propostas -, mas compartilhar todo o

trabalho da escola, todo o trabalho docente, no sentido de pensar sobre os alunos.

Esse aluno pode ser da escola, quando as ações que a professora está realizando

são fruto de uma proposta comum, uma proposta pensada, refletida com o grupo.

E a pedagoga Nair tenta sintetizar: − “Eu acho, então, que a gente tem duas coisas

para pensar aí: como Carmen coloca de... sobre esse preconceito que a gente tem

com essa criança e resgatar essa questão da nossa responsabilidade com essa

criança. São dois tópicos que a gente tem que estar batendo junto com o grupo

como um todo (...) Infelizmente, o grupo todo não pode estar aqui. Então, na

verdade, o que a gente precisa resgatar é isso: é a gente se abrir de fato (...) da

gente estar engatinhando nesse processo de entendimento (...) Então, tem muitas

coisas que precisam ser resgatadas. Primeiro é nos abrir de fato e colocar (...) o que

causa incômodo? Por que eu não sei fazer o que eu deveria fazer? (...) Por que eu

delego sempre ao outro e não assumo o papel também de colaborador, para além

do professor, na sala de aula? (...) Que medo nós temos? (...) O que nos impede de

ajudar? E a outra questão, do nosso papel, da nossa responsabilidade. Que

responsabilidade eu tenho na escola? Não só o professor, mas do portão pra dentro

todos somos responsáveis pelas crianças.”

Todas essas reflexões puderam mostrar que aquele conjunto de profissionais da

escola ia amadurecendo enquanto grupo. O menino André passou a ser, ao longo

dos encontros, um fio condutor da idéia de que, ao pensarmos juntos sobre um

determinado caso, podemos evidenciar os nossos interesses, as nossas

preocupações com relação a pensarmos o aluno com necessidades educacionais,

no contexto do CMEI.

5.6 O TERCEIRO ENCONTRO DE FORMAÇÃO

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Os dois primeiros encontros nos mostraram que uma forte concepção médico-

psicológica permeava os discursos dos profissionais da escola acerca das crianças

com sinais de desatenção/hiperatividade. Pensamos, então, na nossa reunião do

grupo de estudos, que precisaríamos desconstruir essas concepções e que uma das

formas de fazer isso seria mostrando um histórico da evolução do conceito médico

de “Transtorno de Déficit de atenção/Hiperatividade” e como este conceito caiu no

gosto popular e passou a ser empregado a muitas crianças com problemas

comportamentais na escola e na sociedade de um modo geral. É um conceito nada

seguro em termos de comprovação científica, mas que vem ganhando popularidade

crescente, principalmente nos meios escolares.

Utilizando-nos do texto de Ana Cecília Sucupira, “Hiperatividade: doença ou rótulo?”,

buscamos fazer um elo com a discussão que vinha sendo proposta na semana

anterior, que era justamente a questão do rótulo.

Se crianças com NEE, que apresentam deficiência, são passíveis de um preconceito

ligado às suas limitações, as crianças com sinais de desatenção/hiperatividade são

postas, muitas vezes, em situações contraditórias de preconceito: ora são vistas

como mal educadas e sem limites, ora como possuindo um transtorno mental, que

precisa de tratamento.

Uma professora fala: − “Mas a gente consegue perceber que ela é uma criança

diferente, que ela é tipo assim... ela sobra, tudo sobra, começando pelo não, porque

ela já vem de casa, os pais não sabem lidar e quando a gente começa a falar o não

(...) chega a um ponto que você não dá conta”.

Eu questiono: − “Agora, o que nos garante que ela tem hiperatividade?”

Ela diz: − “Nada. A gente só sabe que ela é diferente, mas a gente não sabe o que é

que ela tem. (...) Como esse é um transtorno que está muito popularizado, a gente

ouve falar que criança hiperativa é assim, assim, assim, ‘ah! aquele menino é

hiperativo’, vem logo na nossa cabeça”.

Eu retomo: − “Então, ele é uma criança que acaba sendo facilmente rotulado disso

ou daquilo; e independentemente da dificuldade que a gente tem de saber o que é

isso. O que eu estou querendo dizer é que ele é uma criança facilmente rotulada”.

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O preconceito em relação às crianças, no que se refere ao seu comportamento,

evidenciou-se em nossas observações de muitas formas. Um bom exemplo é o do

dia do passeio no circo. A equipe estava muito preocupada com o comportamento

de André. Pediram que as estagiárias ficassem próximas a ele para “controlá-lo”.

Para surpresa de todos, o aluno foi e voltou sentado em seu lugar, quieto, com sua

atenção voltada para o aparelho de TV do ônibus, que exibia desenhos animados,

nem mesmo se importando com o colega sentado ao lado, quando este dormiu

apoiado em seu ombro. Todos ficaram surpresos, mas não presenciei ninguém

falando disso para ele.

Uma das professoras fala: − “Mas não tem como identificar?”

A fala mostra uma grande necessidade de compreender melhor esse problema, mas

ainda pela via do diagnóstico. Eu tento questionar a forma que os médicos criaram

para diagnosticar esses casos e respondo: − “Ter, tem. Eu vou passar os critérios

pra vocês. Agora... é complicado, porque cabe ao observador...”

Uma professora fala: − “Médico, no caso”.

Eu digo: − “Você leva num médico, ele fala que tem, você leva em outro, ele fala que

não tem, porque não existem critérios seguros”.

Sônia fala: − “O médico não tem a segurança também... a própria história nos mostra

como foi organizado esse conceito”.

Professora fala: − “Uma criança pequena que dá muito trabalho, demais, demais,

demais, quer dizer, esse menino é hiperativo”.

Eu retomo: − “Na verdade, o que a gente tem? Independentemente da formação do

médico, se ele é neurologista, se ele é psiquiatra, independentemente da formação

do psicólogo, a pessoa deve conhecer a fundo a história do outro e as

características para que esse diagnóstico fique o máximo possível verdadeiro. O que

a gente tem hoje é um show de diagnósticos em que não há segurança alguma, não

há certeza alguma. Então, tem que ver até pra quem leva pra poder fazer o

diagnóstico, não é qualquer profissional que sabe.

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Professora fala: − “E cada vez cresce mais o número de crianças. Agora a Ritalina

chegou até a televisão... e eu vi uma palestra em que o médico falava que 80% das

nossas crianças... Só tem uma coisa: que as nossas crianças de hoje são diferentes,

no ano que vem vai vir mais e mais”.

Eu digo: − “Não tem como a gente negar que as crianças de hoje são diferentes.

Mas isso as torna doentes? Quem é essa criança no contexto escolar? É uma

criança difícil, que não pára quieta, perturba o andamento das atividades, mexe com

os colegas, não consegue terminar as tarefas, distrai-se com facilidade e às vezes é

também agressiva. Então o que os professores normalmente fazem? Eles recorrem

à família, pedem que a família tome alguma providência, que a família busque algum

tipo de atendimento a essa criança, porque a escola não dá conta, ela até tenta, mas

não dá conta. Sozinha pelo menos não dá”.

Professora fala: − “Porque também não é só um”.

Eu retomo: − “Exatamente. E então o que a escola faz? Pede um encaminhamento.

Existe dentro da escola uma preocupação grande em saber o que a criança tem de

fato. Essa preocupação advém de alguns fatores: primeiro, eu preciso saber o que

eu faço com esse menino, eu preciso saber como eu conduzo as atividades com ele,

a escola precisa ter essas informações. Aí a gente tem um entrave porque lá fora

nós temos também profissionais que não estão condizentemente preparados para

dar esse diagnóstico. E depois tem outra coisa: o diagnóstico pode servir para

muitas outras coisas, dependendo nas mãos de quem ele cai. Ele pode servir, por

exemplo (...) para: "ah! então ele é doente, não posso fazer nada por ele, quem tem

que fazer é o médico"; ou "ah! ele não é doente, então ele é malcriado mesmo...”

A pedagoga Carmen fala: − “Falta limite”.

Eu digo: − “Falta limite também e aí a escola pode também não fazer nada. Então,

independentemente do diagnóstico, as escolas estão cada vez mais sendo

desafiadas, já que a colega falou, e eu concordo, as crianças com estes sinais vêm

aumentando (...) Então a escola está sendo muito desafiada a fazer alguma coisa

com isso. Dentro dos padrões rígidos, disciplinares, da escola, não há muito o que

fazer, e aí o diagnóstico serve tanto para o aspecto positivo, quando ele promove a

união de pessoas em prol de uma intervenção mais afinada com o que a criança

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está precisando, ou o diagnóstico pode servir, por outro lado, negativamente,

quando a escola rotula de vez: é doente mesmo, o médico é que tem que tratar, tem

que dopar, a família é que tem que dar jeito, pôr limites... Ou negativamente,

abstendo-se de qualquer tipo de intervenção diferenciada que essa criança precisa.

Na verdade, como ela se parece em alguns momentos com uma outra criança, entre

aspas, normal, a rotulação fica sendo móvel, porque você não sabe se está lidando

com uma pessoa que tem uma necessidade educacional especial ou se ela precisa

de educação mesmo; aí mexe com as nossas concepções, independentemente de

qualquer causação desse problema, independentemente se a causa é um transtorno

ou se é um problema familiar, de conduta. O que nós estamos sendo levados a

concluir é que, independentemente do problema da criança, a gente tem que propor

uma intervenção com ela. Não dá para não fazer nada ou querer que ela seja igual,

se ela não responde às mesmas intervenções que as outras crianças da escola.”

Essa provocação à reflexão foi uma forma de colocar os membros do grupo a

repensar o papel da escola, em especial, a educação infantil. Então, no momento

em que a gente se engessa ou cruza os braços diante de um diagnóstico que venha

a especificar que o aluno tenha alguma deficiência ou uma necessidade educacional

especial, como profissionais da instituição escolar, nós temos de pensar

possibilidades para trabalhar com essa criança, desenvolver um trabalho

pedagógico com ela. Esse é o papel da escola, independente de qualquer dado que

se tenha, de qualquer diagnóstico; o diagnóstico é sempre um instrumento a mais

dentro de um processo de avaliação.

Diretora Roberta fala: − “Quando vocês trazem essa responsabilidade pra escola, a

responsabilidade é mais ampla, porque a secretaria de educação tem que prover

essas condições. E colocando o André como referência, quem conhece ele sabe

que ele precisa de ter um trabalho direcionado, uma pessoa ali ó, com ele. Pelo

menos é o que nós temos percebido. Não sei se a professora dele concorda com o

que eu estou falando, mas ele precisa de ter uma pessoa ali diretamente ligada com

ele. Ele precisa de ter uma estagiária? Uma estagiária não pra ficar ali com ele, mas

para dar o suporte à professora, pra professora poder desenvolver um trabalho

diretamente com ele (...) Então, muitas vezes nós não temos essa parceria, falta

ainda... porque, além disso (...) são crianças e crianças que precisam de ter um

trabalho mais direcionado, mais próximo, atendimento da professora mais próximo, e

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essa ajuda a gente muitas vezes não tem e aí o professor ele tenta, faz de tudo, mas

chega no limite dele, não tem condições de continuar, até de querer, querer... Agora,

até chegar colocar em prática tudo o que ele tem que fazer, precisa desse apoio...”

Eu retomo: − “É, se a gente pensar essas crianças como também com necessidades

educacionais especiais, nós vamos chegar nisto: que ela também precisa de apoio,

não sei se de uma estagiária, de outro que participe junto, mas, em alguma medida,

ela também tem uma necessidade educacional especial como uma criança que (...)

tenha outras dificuldades.”

A diretora Roberta fala: − “Aí é que vem o tal diagnóstico, que a secretaria pede o

diagnóstico, entendeu? Não. Só se tiver laudo, tem que ter laudo, senão não vem

ninguém; então, a fala da gente... a gente está pedindo socorro! A gente tem que se

fazer ouvir, né?”

A escola pensa na NEE como de responsabilidade exclusiva da Educação Especial

e da Secretaria de Educação. Não se questiona sobre as possibilidades que

poderiam surgir no próprio contexto escolar. Essa demanda projetada para fora da

escola está ancorada na “importação” de outros discursos (médico-psicologizante),

que vêm impregnando a escola com explicações sobre desenvolvimento e

aprendizagem, ou melhor, os seus reveses. A resultante desse processo é a

produção de alunos com sinais disso ou daquilo, criando conceitos que têm se

alastrado e despotencializado os limites e a possibilidades concretas da ação

pedagógica (AQUINO, 1997).

Buscamos sintetizar alguns dos fatores que vêm se somando nesse sentido,

realçando o próprio papel da educação infantil. As crianças com necessidades

educacionais especiais vêm ingressando nas escolas regulares, também na

educação infantil. Além disso, as camadas populares que antigamente eram

excluídas da escola, hoje têm seu acesso garantido nelas. A ausência desses

fatores antes tornava o aluno mais homogêneo, pois ele tinha um determinado

padrão. Para eles, havia uma formação do professor que o habilitava a lidar com

esse tipo de indivíduo, com um aluno idealizado.

Sônia diz: − “Hoje temos o paradigma da inclusão e a entrada de alunos

significativamente diferentes, Alunos que são diferentes por uma série de questões e

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que a escola e a nossa formação não têm dado conta de acompanhar esse

movimento para nossa própria formação continuada (...)”.

Professora fala: − “É um direito dele”.

Sonia retoma: − “É um direito dele, de todos os alunos, da camada popular, dos

significativamente diferentes...”

Professora fala: − “Eles são desafiantes...”

Eu falo: − “Parece que o nosso modelo escolar está se tornando muito inadequado

para as crianças da atualidade. Por isso falamos de uma rebeldia em duas versões:

as desatentas são rebeldes porque se negam a prestar a atenção naquilo que a

gente está falando, e as hiperativas são rebeldes porque se negam a cumprir as

nossas ordens. E então elas são rebeldes, desafiadoras, e elas colocam a relação

com o professor em xeque porque: Como a gente se sente diante delas?”

Professora fala: − “Impotente”.

Eu digo: − “O que mais elas nos despertam? Se a gente pega o aluno Paulo (aluno

cego), por exemplo, da turminha da Tatiana? (...) Na relação com o professor, o que

ele desperta no professor? Que tipo de sentimentos mesmo?”

A professora Tatiana diz: − “Foi o que eu falei na outra reunião; no início eu me senti

um pouco impotente mesmo. Qual é o meu papel ali na sala de aula? Eu não

conhecia Braile17. Como eu poderia estar ajudando ele nas atividades? Aí foi o que

eu falei, eu comecei a buscar...“

Eu retomo: − “Mas pela pessoa dele... você e ele, duas pessoas?”

Ela diz: − “Não sei...” (fica meio sem graça).

Eu digo: − “O sentimento que dá não seria uma mistura de afeição, de pena?”

Ela diz: − “Com certeza”.

Eu continuo: − “Agora, vamos pensar, uma criança, ainda que não seja agressiva

(...) uma criança bem agitada ou mesmo que não pára, que não obedece e que não

17 Referindo-se à sua atuação docente junto a uma criança cega.

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fica quieta, que não senta (...) o tempo todo ela te coloca em xeque. Essa criança

desperta que tipo de sentimento na gente?”

Algumas pessoas exclamam: − “Ah!”

A pedagoga Carmen fala: − “Raiva.”

Nota-se que essas crianças minam a relação professor-aluno, pois colocam o

professor à prova todo momento. É difícil essa relação se manter cordial, amigável.

E aí quando essa relação professor-aluno não é boa, o processo de aprendizagem

fica em perigo, porque ele depende desse laço afetivo para acontecer, da

importância que tem o afeto, a comunicação, a ligação professor e aluno e quanto

menor ele é mais importante essa ligação fica. Quando essa criança mina com

aqueles comportamentos, a relação professor-aluno... aí começam a acontecer as

barreiras... barreiras que são interpostas entre um e outro, que de uma certa forma

fazem com que o professor não queira aquele problema. Isso coloca na escola um

sentimento de que alguém tem que resolver o problema daquela criança lá fora, para

que ela fique melhor dentro, e esse é um dos fatores que mais complica o trabalho

com essas crianças. Na verdade, não se sabe o que fazer com ela. Aquilo que se

tenta - castigo, proibições, sermões – com freqüência, não redunda em alterações

duradouras no comportamento da criança. Algo que pode ser facilmente observado

na rotina das escolas.

Todos nós estamos sujeitos, na vida moderna, a um ritmo de vida muito acelerado.

As pessoas são requisitadas, nos centros urbanos, a prestar atenção a muita coisa

ao mesmo tempo. Por isso reclamam de seu estresse, de sua agitação, de sua

desatenção.

Uma professora pergunta: − “E aquele negócio de hiperatividade leve?”

A pergunta que ela faz demonstra como os professores e a sociedade em geral

estão tendo acesso a informações, sem, entretanto, ter o aprofundamento

necessário, o que gera possíveis falsas idéias como esta: o que seria “hiperatividade

leve”? E, da mesma forma, o que define, por exemplo, um comportamento aparecer

“bastante” ou “demais” (como é usado nos critérios para diagnóstico)? Parece que a

tal hiperatividade está nos olhos de quem vê.

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Algumas pessoas comentam casos de crianças que chegam na escola com sono

devido a esses remédios e uma das professoras fala: – “E ainda tem professor que

fala: que bom que ele está assim hoje...”.

Talvez isso realce o fato de que realmente aquela criança incomoda. E quando o

professor tem a alternativa, junto com a família, de encaminhar o aluno ao médico

para receber alguma intervenção, ele o fará, porque também conviver com uma

criança agitada, que traz uma série de complicações, é algo muito difícil. Então não

é uma culpabilização, é mostrar que esse tipo de sinais nas crianças,

necessariamente, precisa de atenção especial da escola, mas não só do professor.

Então eu falo: − “A escola é o nosso contexto de trabalho, então é a partir dela que

temos de pensar possibilidades, a partir do dia-a-dia, junto dos pares.”

Em seguida surge outra questão de uma professora: − “Tem como a criança ser

hiperativa e ser muito inteligente?”

Tento responder chamando a atenção para outra face desse problema, qual seja, as

crianças que são desatentas sem necessariamente serem hiperativas.

− “Segundo a literatura médica, a hiperatividade não interfere com a inteligência, são

duas coisas distintas (...)”, eu respondo.

Mas, de fato, quando pensamos que as crianças se distraem e, como André, por

exemplo, estão sempre em busca de algo diferente, novo, lúdico etc., elas têm maior

probabilidade de terem seu processo de escolarização afetado e são vistas,

geralmente, como desinteressadas, preguiçosas. Esse aluno não necessariamente é

percebido no grupo de alunos, pois ele não incomoda e normalmente fica debruçado

sobre os próprios pensamentos.

Surge, então, outra questão. Explico que, pelos manuais médicos, os sinais devem

estar presentes na criança antes dos sete anos de idade, visto que, se eles

aparecerem depois dessa idade, fica configurado que a criança está reagindo à

escola, porque aos sete anos começa o processo formal de escolarização dela. Mas,

se levarmos em consideração que essa formalidade do ensino tem contaminado a

educação infantil, que ainda não tem definido seu real papel, esse é mais um

indicativo que pode ser amplamente questionado.

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Será que a rotina do CMEI não pode ser repensada? Que outras possibilidades

poderíamos ter para lidar com essas crianças que chegam na escola e são crianças

significativamente diferentes daquelas que nós estávamos acostumados? Que

formação nós precisamos para lidar com ela? Será preciso uma formação

específica?

A pedagoga Carmen fala: − “(...) está sendo colocada aqui em evidência a nossa

prática em sala de aula, o quê que precisa ser feito de diferente na nossa proposta,

nossas atividades, parar de papel rodado... Vamos pensar no coletivo, integrado...

ah! Não posso. Então, existe sempre um não pra mudança. Nem que seja mínima, a

gente precisa rever (...) porque essa criança chega pra cá com muita agitação, ou

(...) mas tem muitas crianças que não têm computador, e aí como fica?”

A pedagoga Nair sintetiza bem as angústias e incoerências que permeiam o CMEI

no que se refere ao seu papel maior: − “Hoje a gente discutiu muito essas questões

(ela se refere à reunião da SEME, da qual ela e Carmen estavam regressando).

Uma pedagoga de um CMEI falando do pátio: Ah! O pátio, se vamos oferecer mais

pátio, menos pátio, nós não temos espaço... e aí a gente pensa, aí a outra: Ah! Nós

precisamos pensar no papel da escola, nós temos objetivos conceituais, nós

precisamos dar conta disso. A escola, o lugar dela é de quê? Você tem que passar

conhecimento, e aí a gente não pode pensar só em objetivos atitudinais... aí o pátio,

o refeitório... você tem objetivos em tudo. Até no momento de você sair de sala e vir

pro refeitório, de uma forma, você está ali (...) tendo objetivo (...) você não vai

oferecer o pátio do nada, de repente (...) 20 minutos, larga o menino lá. A gente

discutiu tanto essas coisas e não é fácil, (...) a gente não dá conta...”

Nessa fala, vieram-me muitas reflexões. Não podemos perder de vista que essa é

uma escola, mas a gente não pode esquecer que é uma escola de educação infantil

e a escola de educação infantil ela tem que ter uma proposta diferenciada de escola.

Se esse tempo, como a pedagoga Carmen falou, está mal usado ou usado de uma

forma que está favorecendo o surgimento de comportamentos hiperativos nas

crianças, que têm que ficar sentadas, com atividade por muito tempo, e ela não tem

essa maturidade etc... Então essa fala nos diz que temos que parar e pensar se da

forma como nós estamos conduzindo nós não estamos muitas vezes colaborando

para o surgimento dessa rebeldia (PATTO, 1999) que as crianças estão mostrando.

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O que as crianças com sinais de desatenção/hiperatividade estão nos mostrando

com esses comportamentos? Elas se negam a manter sua atenção em atividades

rotineiras e muitas vezes sem sentido, e elas se negam a permanecer sentadas e

quietas pelo tempo que se espera que ela permaneça, o que para ela é muito. Ela se

nega, ainda, a ter controle sobre o próprio corpo. Mas onde ela vai trabalhar esse

controle do corpo? Que espaço ela teria para aprender a exercitar esse controle? É

possível a ela aprender a ter comportamentos mais adequados do ponto de vista

escolar? Como isso poderia ser ensinado/desenvolvido? Que espaço a educação

infantil dá ao desenvolvimento dessas habilidades? Na escola, que tempo na

educação infantil é destinado para ela aprender a se expressar através do seu

corpo? Se pegarmos a questão do corpo, se pararmos para analisar, o corpo está

cada vez menos privilegiado no espaço da escola. A mente é que ganha espaço, o

corpo não, o corpo fica em casa, só a mente vem para a escola.

Feita essa discussão mais teórica, passamos para a apresentação de um quadro-

síntese do que havia sido falado pelos diversos participantes da formação sobre o

aluno André. O quadro foi dividido em três colunas: “desafios, tensões e

possibilidades”, conforme apresentado a seguir. No quesito “possibilidades”,

propositalmente, inserimos apenas uma, pensada pelas pesquisadoras no momento

de grupo de estudos, a partir do que já havia se mostrado nas falas, para permitir

que o grupo todo de participantes pensasse junto em outras possibilidades. A idéia

era criar um projeto educativo que evidenciasse a brincadeira da criança.

Quadro 1 - Estudo sobre o aluno André

Desafios Tensões Possibilidades Trabalhar com criança com sinais de desatenção, hiperatividade e agressividade, numa proposta inclusiva.

Professora e equipe pedagógica angustiadas;

Comprometimento do andamento das atividades;

Crianças em risco no pátio;

Relacionamento difícil escola-família;

Exposição excessiva a games;

Falta de limites no comportamento;

Tentativa constante de chamar

Trabalhar a partir dos interesses do aluno.

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a atenção para si.

Apresentei o quadro esclarecendo que, dadas as dificuldades relativas ao processo

de escolarização dele, pensássemos nele com vistas a incluir ali também as outras

muitas crianças que também apresentavam comportamentos similares.

E a pergunta foi lançada: − “Que outras possibilidades nós teríamos para lidar com

André? Que tipo de intervenções nós podemos propor para fazer um trabalho mais

adequado a essas crianças?”

Uma professora fala: − “Eu fui lá na feira do livro, sábado, e teve alguns livros lá a

respeito de robô, super-herói, está até em preto e branco, é pra xerocar, só pra

pintar. Aí eu reparei assim que tinha muitos personagens que a gente vê em

desenho animado para a gente tirar essa violência dele. Até comprei um desses”.

Interessante notar que as reflexões do grupo estavam fomentando algumas ações,

motivando as professoras a pensar algumas possibilidades, a buscar alguns

materiais, a reconhecer possibilidades em alguns materiais. Embora não houvesse

soluções explicitadas, só o fato de as professoras estarem refletindo sobre e

tentando, inclusive, obter esses materiais que pudessem ajudá-las de alguma forma

a pensar e ter outras idéias, já nos evidencia que a discussão provocou mudanças.

Uma outra professora pergunta: – “Mas o quê que passa na cabeça dele?”

Eu respondo: − “Para ele tem sentido, para nós ainda não”. Mas, quando as

pedagogas o tiram de cena porque está causando tumulto ou batendo, a impressão

é que ele reagia a isso como se isso fosse também um “ataque” que ele estivesse

recebendo, o que o fazia reagir ainda mais fortemente. Ou seja, não redundava em

nada de efetivo aplicar-lhe sermões ou castigos.

A pedagoga Nair ratifica o que eu falo em palavras e acenando afirmativamente com

a cabeça. É como se essas atitudes reforçassem ainda mais para que ele voltasse

para a fantasia. Cada vez que ele era chamado a isso, ele mergulhava mais fundo

ainda na fantasia.

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A idéia era de que as profissionais o vissem como alguém que estava muito imerso

no seu mundo particular de fantasia e que não estava encontrando, muito

provavelmente, nenhum espaço para dar significação adequada a esses conteúdos.

Uma professora diz: − “Mas, e aí, vai deixar ele socar todo mundo?”

Então eu respondi: − “É uma questão delicada”.

Encaminhamos essa discussão no sentido de frisar que, ao mesmo tempo em que

não se pode permitir isso, também não vinham adiantando as providências

tradicionais que estavam sendo tomadas, que pareciam estar reforçando a sua

agressividade diante do mundo, ao invés de diminuí-la.

Conforme nos mostra Jones (2004), uma coisa é a fantasia e a outra é a realidade.

Ensinar a diferença entre pensar e fazer é fundamental, mas só se consegue isso se

o próprio adulto não confundir realidade e fantasia, quer dizer, se o adulto souber

que o fato de a criança ter fantasias de atos violentos não necessariamente a levará

a ser uma pessoa violenta. Se o adulto confunde, a criança confunde. Porque é do

adulto que a criança assume essa referência.

Nair fala: − “A ação de André, de violência física, não vai contra o Jones. A fala do

Jones aí no livro? Porque nem sempre quem brinca com jogos violentos vai se

tornar violento”.

Sonia questiona: − “(...) Ele envolve os colegas. Muitas vezes, quando ele agride um

colega, o colega é surpreendido com um soco, com um pontapé, o colega não está

participando. Então o que a gente pode estar fazendo para que esse colega possa

dar significado à sua própria ação e aí ele poder, mais adiante, compartilhar um tipo

de brincadeira como essa, com outros colegas, não se chocando, não se batendo,

não se machucando?”

Nair fala: − “Ensinar ele a convidar?”

A professora Nilzete fala: − “Um dia eu tava no pátio e fui acudir o colega que ele

machucou. Eu perguntei: Doeu? O menino falou: Ele tava brincando, tia.”

Sonia fala: − “Eu acho que seria interessante o próprio André dizer. Por que ele

gosta de jogar videogame? Quais personagens que ele mais gosta? Mas por que ele

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gosta daqueles personagens? Que tipo de ação têm esses personagens? Vamos

tentar representar esses personagens numa folha de papel? Vamos desenhar esses

personagens? Então, propor alguma coisa pra poder junto com ele elaborar, fazendo

dessa forma uma brincadeira compartilhada, sem necessariamente machucar”.

Eu retomo: − “Como vocês pensam que a gente pode diferenciar para uma criança o

que é realidade e o que é fantasia? No nível prático, do dia-a-dia da sala de aula?

Vamos pensar? Como a gente pode ensinar isso pra uma criança?”

Uma professora fala: − “Nós podemos conversar com ele”.

A pedagoga Carmen sugere sabermos: − “Quem são esses seres que ele tanto

combate? Eu pensei em fazer bonecos dos personagens que ele mais gosta. Quem

são os amigos que ele defende e os inimigos que ele combate? (...) Fazer os

bonecos e ver o que eles têm de bom e o que eles têm de ruim (...). E os

coleguinhas têm esses traços? Então por que combatê-los?”

E assim vai-se tentando elaborar novas possibilidades, tecendo conjecturas. André,

agora, passa a ser mais do que o aluno “mais problemático da escola”, ele começa a

ser visto como criança.

Nesse momento, todos já estão bem à vontade para falar suas idéias. Uma

professora fala: − “Pra ele... ele é do bem”.

Toda essa discussão mostra muito fortemente concepções claras de bem e mal, de

certo e errado, ou seja, uma visão muito adultocêntrica projetada sobre as crianças.

Notamos que há uma desconsideração das especificidades da infância; há uma

expectativa de que a criança aja/reaja como adulto. As brincadeiras, de um modo

geral, não são analisadas dentro do imaginário infantil, mas com a conotação de um

comportamento agressivo/violento.

Propusemos ampliar a discussão um pouco mais para pensar na turma dele. As

crianças lá também têm seus personagens de referência. Então, talvez, a proposta

não é só pensar num personagem para André, mas em personagens que existem

naquela sala e são representados nas brincadeiras por todas as crianças, o que em

certa medida se repete.

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Professora fala: − “No caso, como a colega tinha falado, esse monstro, vamos supor

o “Power Rangers”; no momento do pátio é onde você pode brincar com esse

boneco, é onde você pode liberar toda sua energia, (...) naquele momento, quando

ele vai pro colega, a gente explica pra ele. Meu filho, quando ele era pequeno, ele

também gostava de brincar de “Power Rangers”. Se a gente tivesse deitado, ele

subia, pulava, vinha com tudo, mas aí é preciso direcionar não só com o André, mas

com todas as crianças (...). Então vamos fazer assim e ter um momento e na hora

que o jogo começar a ficar violento, então espera aí, tem a hora disso...”

Uma das professoras especialistas da SEME, que também participava desse

encontro, falou: − “Eu tinha pensado tentar... de repente... o professor da sala, em

comum acordo com alguns colegas, encenasse alguma brincadeira (...) Tá vendo? É

dessa forma que você age com os colegas, você não avisa (...). Fazer ele sentir na

pele. Dessa forma, eu acho que a gente consegue trazer ele pra realidade. Tá

vendo: é isso que acontece, seus colegas estavam brincando...”

Sonia questiona: − “Mas, em quê isso, necessariamente, vai nos ajudar a entender

os motivos que fazem André brincar daquela forma? O que nós queremos: tentar

controlar o comportamento de André, ou tentar entender os motivos pelos quais ele

brinca dessa forma?”

A professora especialista fala: − “Porque na realidade ele faz isso pra chamar a

atenção mesmo. Ele não sabe... vamos supor assim, brincar de outra maneira.

Vocês tinham falado... ele só fica naquela realidade dele. Então, a partir do momento

que ele começa também (...) a realidade dos outros, ver outro tipo de brincadeira...

Mas pra isso ele vai ter que aprender uma coisa, ele vai ter que ter um pouco de

limite. Porque ele é todo descontrolado, ele tem que ter um pouco de limite, tipo

assim “fechando um pouquinho o cerco dele” e não é direto que ele vai lá arrebentar

um, arrebentar outro toda vida. Então um espaçozinho pra ele ali, devagarinho ele

vai...”

A professora Tatiana questiona: − “Você (referindo-se a mim) disse que o normal é a

criança não conseguir separar a fantasia da realidade...”

Eu completo: − “Quando ela é menor... mas, quando ela vai crescendo ela vai

habitando lá e cá, ele ainda não...”

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Ela continua: − “Vou fazer um comparativo com a minha turma, 23, 22 crianças... só

uma criança, ele, não saber fazer essa separação. Eu, pessoalmente, acho que foge

um pouco da minha condição enquanto... foge um pouco da minha competência

entender o motivo que ele não consegue desassociar. O que eu gostaria de ver, tirar

daqui, seriam formas de trabalhar com ele em sala de aula. De que forma eu posso

trazer o André à atenção, a trabalhar, a fazer as atividades (...)”.

Essa fala reitera o aprisionamento a um padrão de normalidade que tem a sua

referência nos outros da mesma turma. Se o aluno não corresponde, então ele ou

sua família tem problemas. Também nos remete a questionar o perfil do professor-

pesquisador, quer dizer, o professor ainda espera que lhe forneçam uma técnica,

que reduz e direciona a ação docente, em vez de ser ele mesmo o pesquisador de

suas incógnitas e de suas práticas.

E, ainda, como poderíamos compreender que não faz parte das competências do

professor de educação infantil saber o porquê uma criança não dissocia realidade e

fantasia? Na realidade, isso faz parte do processo de desenvolvimento de qualquer

criança e o jogo, por exemplo, que é atividade fundamental da cultura infantil, está

previsto no currículo da educação infantil como temática central.

Quanto à questão da técnica, Baptista propõe reflexão interessante sobre o “mito da

técnica”, em que nos vai mostrando que essa idéia de normatizar, descrever esse

sujeito como “anormal”, ainda não é uma idéia totalmente remota, ou seja, ainda

está presente hoje. O professor ainda acredita que existe uma técnica específica

que poderá ajudá-lo com um determinado aluno, quando sabemos que a ação

docente é muito mais do que uma técnica. “Perturbam-me as leituras simplificadoras

que transformam a inclusão em um método pedagógico” (BAPTISTA, 2006, p. 22).

Eu retomo: − “Se você me permite, eu te faria uma colocação. O problema do André

é não conseguir fazer essa separação, enquanto os coleguinhas dele já sabem. O

problema do aluno Paulo é não enxergar. Então trata-se, nesse sentido, de uma

mesma situação. São duas crianças com duas necessidades educacionais

especiais. Então, quando você fala assim: “eu não me sinto”, “eu não sei”, “eu não

tenho como fazer”, fico pensando se nada pode ser mudado também para eles.

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Pensando André como alguém com NEE, tentamos frisar a idéia de que também

para ele deveríamos pensar em práticas que o ajudem a diferenciar realidade e

fantasia, brincar e bater. Observando os motivos que o levam a brincar daquela

forma, a eleger aqueles personagens, poderíamos ir concluindo junto, dentro de uma

proposta para a turma, colocando essas necessidades de André como um elemento

de um determinado projeto, de uma determinada ação pedagógica.

Eu digo: − “Na verdade, qualquer intervenção que a gente pense pra ele, só pode ter

chance de sucesso se for pensada a partir da problemática dele. Se você for pegar

uma outra criança, aqui mesmo do CMEI, que tenha também essas características,

se você tentar fazer com ela essa mesma intervenção, provavelmente, não vai

resultar em muito sucesso, porque uma característica que eu acho que ficou bem

clara pra todo mundo é essa dificuldade do controle. Só que no caso dele essa falta

de freios tem uma motivação, tem um sentido pra ele. Qualquer coisa que a gente

pense de formas de trabalhar com ele em sala de aula, de mantê-lo atento às

atividades, qualquer dessas intervenções tem que partir da problemática dele, do

porquê é assim, do sentido que ele dá pra essas brincadeiras, que pra ele nem é

brincadeira, é muito sério, a gente vê como brincadeira, ele está lá tão imerso

naquilo que pra ele aquilo é a realidade”.

Tatiana fala: − “Esses dias eu tava contando história, história de conto de fadas,

principalmente, eu contei a história “Aladim e a lâmpada mágica”. Ele sentou... toda

vez que eu conto história ele participa muito, principalmente se é conto de fadas,

algo... aí ele participou atentamente. De vez em quando ele interrompe. Aliás, ele

sempre interrompe... pra dar a opinião dele em relação (...) ele não consegue ouvir a

história sem interromper. Ele fica assim: “Professora, professora, professora...” até...

Eu tenho que parar e ouvir senão ele não deixa eu continuar. Aí, quando terminou a

história, eu falei assim: Se vocês tivessem uma lâmpada mágica, o que vocês

pediriam ao gênio? Se vocês pudessem fazer alguns pedidos... Aí as crianças

foram falando tudo coisa real, uma casa, uma casa com piscina, uma bola de

futebol... Ele falou assim: eu queria três videogames. Eu perguntei: três André? Ele

falou assim: Três, um pro meu pai, um pra minha irmã e outro pra mim, porque

assim eles não vão me incomodar, querer jogar o meu jogo.

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Uma professora propõe: − “São 22, 23 alunos... buscar dentro disso. O André, por

exemplo, gosta de games que nem todos os coleguinhas conhecem... tirar um tempo

pra ele explicar aquilo ali, colocar o outro também pra explicar o que gosta, procurar

na turma o que cada um mais gosta e, através disso, dar o tempo pra ele explicar

qual é a brincadeira dele...”

Outra professora interrompe: − “Lógico que quando a criança tomar um soco, tomar

um chute, vai doer. Mas ela continua... mas de repente a criança vai estar

entendendo que aquilo ali é o que ele vive o tempo inteiro”.

Eu retomo: − “Talvez até dramatizando o próprio jogo”.

Ela diz: − “Exatamente”.

Eu digo: − “Ele representando como é”.

Ela diz: − “Ele explicando, ele colocando pros colegas: O jogo que eu gosto é...”

A pedagoga Rose fala: − “Mas aí não vai se perder... (referindo-se provavelmente à

questão pedagógica do ensino)”.

Uma outra profissional diz: − “Se houver direcionamento, o professor está lá pra isso,

pra encaminhar...” (ela aquiesce).

Alguém diz: − “(...) pra prender a atenção”.

Para além de prender a atenção, torna-se muito claro ao grupo que é necessário

que ele possa se expressar, transformar em verbo, verbalizar uma coisa que só ele

vive. Ele não encontra canais pra pegar de lá e colocar aqui. A forma que ele usou

até hoje foram as piores. Até hoje ele não encontrou uma forma saudável de mostrar

para os outros o que tem dentro do seu castelo de fantasias.

“Muitas vezes, os alunos que apresentam problemas comportamentais na escola

apresentam um conjunto muito limitado de respostas, que conduzem ao conflito com

outros alunos e outros adultos”, aponta McCaffrey. Para tal, orienta esta autora, é

preciso que as escolas busquem formas de desenvolver a “capacidade de

comunicação das crianças, assim como estimulá-las a trabalhar de maneira

cooperativa, em grupos” (MCCAFFREY, 1999, p.180).

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6. CONSTRUINDO UM PROJETO COLABORATIVO

(...) É preciso não ceder à tentação dos famigerados ‘encaminhamentos’ automáticos aos especialistas (em especial, os clínicos), como forma de escamoteamento e desincumbência quanto ao necessário enfrentamento dos transtornos emocionais corporificados nas condutas ‘difíceis’ de alguns. Quase sempre tomados como uma minoria ‘obstaculizadora’ ou mesmo ‘sabotadora’ da intervenção pedagógica padrão, estes alunos, a nosso ver, podem – e devem – ser tomados como ocasião privilegiada de construção, de fato, de uma atmosfera cooperativa e integradora.

(AQUINO,1999, p.17)

6.1 O GRUPO DE TRABALHO

No início de agosto de 2007, quando iniciamos o segundo momento da pesquisa, no

período vespertino, ficou evidenciado pelas pedagogas que havia muito interesse

delas em estruturar momentos de discussão, para encaminhar algumas questões

relativas às crianças com sinais de desatenção/hiperatividade. Dessa forma,

pensamos em montar um grupo de reflexão e discussão que pudesse envolver a

nova professora de André e assim poder continuar o processo, que a escola como

um todo vinha fazendo nos encontros de formação continuada, já que ela não estava

participando desse processo por trabalhar à noite em outra escola.

Partindo das discussões que já vínhamos tendo nos encontros de formação

continuada, delineamos, eu e as duas pedagogas, uma proposta de discussão das

questões relativas a essas crianças. Apresentamos tal proposta à nova professora

de André, que se mostrou receptiva. Explicamos a ela a idéia do trabalho

colaborativo e como seria a participação das duas estagiárias em sua sala de aula.

Nessa mesma época, havia apresentado o projeto para o grupo de estagiárias da

UFES, que estava sendo incorporado ao projeto de pesquisa maior, sendo que duas

delas, por seu interesse e disponibilidade, foram incorporadas neste projeto de

pesquisa.

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Um grupo colaborativo de trabalho na perspectiva da pesquisa colaborativa

(MIZUKAMI, 2002) foi pensado enquanto espaço de crescimento mútuo e

desenvolvimento profissional e (por que não?) pessoal, que se estrutura a partir da

reflexão das questões (im) pertinentes da ação docente e constituiu-se como a

abordagem de pesquisa desta investigação.

Entende-se por grupo colaborativo de trabalho aquele que se constitui como uma

estratégia formativa e investigativa, em que os membros estão envolvidos de modo

responsável, comprometido e voluntário, com participação ativa nas decisões.

Acreditamos ser consensual a idéia de que a formação de professores deve estar

articulada ao desenvolvimento pessoal e profissional como condições para caminhar

no sentido de uma autonomia profissional. Assim, torna-se necessário criar espaços

de interação que favoreçam a troca de experiências e de saberes tendo por

referência uma reflexividade.

O grupo que se formou, então, estava composto pela nova professora de André,

pelas duas pedagogas da tarde, pelas duas estagiárias da UFES e por mim. E as

dificuldades que tínhamos pela frente eram: a falta de tempo para um planejamento

em conjunto; decisões tomadas sem reflexão no grupo; o preconceito de pensar as

crianças com sinais de desatenção/hiperatividade ora como indisciplinadas, ora

como doentes; o não ouvir as crianças etc. Esses pontos são retomados mais

adiante no texto.

Inicialmente, o grupo todo foi envolvido na discussão de um projeto que abrangia a

turma do grupo 6D. As pedagogas traziam a sua visão do processo e sua dificuldade

de tempo para o planejamento com a professora, e nós, o grupo da UFES,

trazíamos as observações (e os conhecimentos que a essa altura já havíamos

acumulado) feitas nos diversos espaços do CMEI sobre André, além de

conhecimentos teóricos e da nossa própria prática. A professora trazia seus

questionamentos e suas angústias por ter uma turma “excessivamente barulhenta” e

ainda assim receber André. Todas nós tínhamos em comum o desejo de buscar

encaminhamentos e alternativas pedagógicas para André e para os demais alunos

de sua turma e de refletir sobre as dificuldades e sobre as possibilidades de tornar

essa idéia mais sistematizada dentro do CMEI.

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A pesquisa colaborativa (BUENO et al., 2003) busca romper com as diferenças

“hierárquicas” entre pesquisador/pesquisado, na medida em que cria uma

intersecção entre os dois espaços profissionais e possibilita que as diferenças de

conhecimentos possam ser somadas. A idéia central subjacente a esse tipo de

pesquisa é o pressuposto de que o processo investigativo resulta de um trabalho

desenvolvido entre colaboradores. Fala-se, portanto, de partes oriundas tanto do

meio universitário como do contexto real de prática onde trabalham as professoras,

cada envolvido(a) trazendo sua experiência, seu saber-fazer. Suas premissas se

sustentam nas intenções de produzir um novo saber, tendo em vista a melhoria da

prática das professoras, e também contribuir para a criação de um espaço de

diálogo entre os contextos universitário e escolar, reconhecendo a especificidade da

educação infantil e favorecendo uma alternativa de formação em serviço. É dentro

da própria escola que as professoras podem encontrar alternativas para aperfeiçoar

e melhorar suas práticas pedagógicas, nas interações com seus pares, tendo como

apoio os profissionais que atuam na formação de professores.

O fato de a professora de André não fazer parte do grupo de formação continuada

da escola trouxe a necessidade de pautar nossos encontros em reflexões sobre a

dinâmica da escola, sobre nossos valores e concepções acerca da inclusão escolar,

bem como alguns conceitos que embasam a prática pedagógica. Ou seja,

entremeamos a análise das atitudes e ações com a reflexão sobre as concepções

que as sustentam.

Esse pequeno grupo de trabalho acabou sendo um grupo de formação para todos

nós. Constituiu-se, na verdade, de um momento de trocas e reflexões muito

aprofundadas porque a professora trazia as angústias e embates vividos durante a

semana, as estagiárias traziam sua percepção sobre os fatos ali ocorridos e suas

impressões sobre eles, fazendo um contraponto com a professora, as pedagogas

traziam suas contribuições/questionamentos sobre seu papel ali e sobre suas

dificuldades de se descolarem do excesso de atribuições administrativas/

burocráticas para dar mais apoio à professora e eu tentava intermediar algumas

colocações - questionando algumas posturas, apenas ouvindo muitas vezes os

desabafos -, expor minhas próprias observações, ou mesmo encaminhando algumas

discussões com outras profissionais envolvidas no processo, como as professoras

de Artes e Educação Física.

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“Os profissionais da escola precisam concordar em se ajudarem uns aos outros a

explorar aspectos da sua prática (...)”, ensina-nos Ainscow (1997, apud JESUS,

2002, p.49). Para que tal ajuda mútua possa ocorrer, reestruturações administrativas

devem ser pensadas no sentido de assegurar tempo e condições para que se

encontrem e assim possam estabelecer relações de ajuda.

O papel do facilitador em um grupo geralmente colaborativo, em princípio, pode ser assumido por qualquer membro desse grupo: um agente externo que assumisse permanentemente este papel acabaria por minar a responsabilidade colaborativa do grupo quanto ao processo. Por outro lado, os agentes externos podem legitimamente revestir um tipo de papel facilitador no estabelecimento de comunidades auto-reflexivas de investigadores ativos (CARR & KEMMIS, 1988, p.215).

Tomando por base essa premissa, certo cuidado foi tomado nesse sentido, evitando

que a minha figura se mantivesse o tempo todo nesse lugar. Certamente, eu era a

pessoa que mais indagava e por vezes trazia alguns conhecimentos teóricos da

Psicologia, quando isso se fazia necessário. Por outro lado, deliberadamente,

deslocava a Psicologia e outras áreas da saúde desse lugar de salvação das

mazelas da escola. Não raro, assumia a postura do estranhamento, da contestação,

para tentar trincar a superfície lisa da naturalização de algumas práticas e evidenciar

que a busca por caminhos não precisava estar necessariamente em outro lugar, que

não a própria escola.

Então, esse caminho foi trilhado seguindo a indicação muito coerente de Machado

([on line] 2004b), quando propõe “a construção de uma relação da saúde com a

educação na qual não domine a busca de um diagnóstico individualizado no corpo

da criança, e sim um trabalho no qual os profissionais de saúde, juntamente com as

educadoras, problematizem as práticas escolares”.

Voltando ao grupo de trabalho, nossos primeiros encontros foram muito positivos no

sentido de que todos ali pareciam muito motivados a buscar alternativas para

trabalhar com André e com as outras crianças que apresentavam comportamentos

similares. Relembramos (e apresentamos para a professora Cássia, que não

participava dessa formação) os momentos de formação continuada em que, em

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conjunto, começamos a delinear um projeto educativo para André, como um

exercício para pensar em projetos similares para outras crianças.

As estagiárias iniciaram um processo de observação, cumprindo uma carga horária

semanal, e nos dias em que eu estava no CMEI, sentávamos para discutir todo o

processo e fazíamos nosso grupo de estudo. A partir de então, o processo de

intervenção mais sistemática teve início.

Embora o horário de planejamento da professora, nas segundas-feiras, fosse bem

estendido (15h10min até 16h50min), tivemos que dividi-lo com a necessidade de

preparação de muitas atividades que as crianças tinham que produzir para a Mostra

Cultural. Essas atividades eram desenvolvidas em parceria com a professora da

outra sala de alunos de seis anos (Grupo 6E).

“Chegamos à sala - eu, as pedagogas e as estagiárias - onde a professora Cássia está planejando junto com a professora do outro grupo de 6 anos. Cássia está recortando imagens xerocadas de Boitatá, mula sem cabeça etc. para colocar no fundo das atividades das crianças, como marca d’água. Ela me explica o que está fazendo, mas não pára para nos dar atenção. Diz que podemos conversar enquanto ela trabalha nisso. Eu ofereço ajuda, ela recusa.” (DIÁRIO DE CAMPO, 20/08/07).

Nos encontros semanais subseqüentes, ajudávamos nessas atividades; por um

lado, para nos aproximarmos mais de seu cotidiano e, por outro, para que ela

pudesse acabar logo e assim poder nos dar mais atenção. Mas, parecia não ter fim.

Então, muitas vezes, conversávamos enquanto trabalhávamos. Notamos que as

pedagogas não exerciam muita ascendência sobre as decisões relativas às

atividades da Mostra Cultural, nem qualitativa nem quantitativamente.

Nas nossas discussões em grupo, pudemos perceber, em algumas posturas da

professora e em algumas de suas falas, que ela estava irredutível em suas certezas

sobre André, ou seja, que ela iria “medir forças com ele e vencê-lo pelo cansaço”, o

que denotava o que ela achava dele: “uma criança que tem problemas, mas que

precisa de limites”. A professora sempre ressaltou que não permitiria que André a

desacatasse ou “medisse forças” com ela.

Questionamos muito a passagem de André para a tarde e a escolha da sala em que

ele iria ficar no encontro de formação continuada subseqüente a esse fato.

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A diretora nos esclareceu que a mãe fez a solicitação e ficou aguardando a vaga,

que surgiu para a sala da professora Cássia, que já possuía uma turma “bem

agitada e barulhenta”, segundo ela mesma. Portanto, não houve preocupação da

escola em pensar essa transferência conosco, que estávamos lá há algum tempo

discutindo justamente a situação de André, e houve o atendimento meramente

burocrático de uma solicitação, sem nenhuma reflexão sobre o que esse fato poderia

ocasionar. A escola, pareceu-nos, absteve-se completamente de assumir sua

autonomia nessa decisão, além de uma reflexão sobre, em o fazendo, qual seria a

melhor forma de conduzir esse processo.

A professora Cássia, sobre sua turma, relata: – “Logo na primeira semana de aula,

percebi que a turma era bem heterogênea com crianças de vários níveis de

aprendizado e comportamento. Apesar de a maioria ser de meninas, os poucos

meninos agitavam bastante e algumas meninas não ficavam pra trás. Daí, junto com

a pedagoga, comecei a trabalhar com a turma da forma conhecida, com os

combinados, regras de educação, separação por grupo onde aquele agitado ficaria

com outros mais calmos e inicia a diversidade no aprendizado. O período de

adaptação foi mais longo do que esperava e, meados de junho, a turma, apesar de

ainda um pouco agitada, comecei a perceber mudanças no comportamento, como

relatei no Conselho de Classe. Quando comecei a imaginar que poderia trabalhar de

forma mais calma, falo na potência da voz, já que sou proibida de falar alto ou

sussurrar pela fono, pois ambas as coisas prejudicaria minha voz, pela cirurgia, foi-

me dada a notícia de que receberia um novo aluno no dia seguinte. Me senti sem

chão, pois todo professor não gosta de receber aluno novato no meio do ano, não

pela criança, mas sim pelo trabalho já desenvolvido em sala. Muitas vezes, há

necessidade de frear este trabalho em prol do aluno novato”.

É importante frisar que essa forma de estabelecer os primeiros contatos com ele se

justificava em dois pontos cruciais: o primeiro refere-se à forma como André foi

“apresentado” a ela. “Pintaram” André como um “monstro”. Ela o recebeu depois de

um verdadeiro “dossiê” verbal que enfatizava todas as dificuldades que ele causava,

em escala ampliada, e também com um relatório escrito: – “Quando me deram um

relatório pra ler do aluno novato, durante a leitura ficava assustada, pois não era

gente e sim um ‘monstro’, alienígena, uma criança como nunca vi antes, fiquei

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bastante apreensiva, principalmente com relatos de colegas que já conheciam a

fama do aluno”.

Assim ela o descreve quando de sua chegada: - “Para meu desespero, não aceitava

regras, de tipo nenhuma, nem combinados, e adorava testar a capacidade de

paciência da professora e dos alunos. Sempre fugindo da sala, demonstrando

bastante agressividade e uma mente brilhante para inventar (imaginar) e criar

situações onde ele era sempre líder (me parecia mais líder de rebelião), porém,

quando indagado por adultos, tinha, ou melhor, tem uma linguagem oral bastante

adulta, e sabe usá-la para manipular de forma coerente aquilo que acha estar certo.

Muitas vezes me parece que ele acredita realmente nas fantasias ou mentiras que

inventa para se safar das encrencas que se mete.”

Parece que a própria escola estava se encarregando de destruir qualquer

possibilidade de construção de laços entre ele e sua nova professora.

A pedagoga Carmen comenta sobre a forma como a professora o recebeu à tarde:

− “Logo que ele chegou à tarde, a professora Cássia já... logo no outro dia já era

outro André. Quando chegou, a Cássia “pegou” ele... já se comportou diferente da

manhã. Só que ela está sofrendo porque tem dia que ele chega, dá uns ataques lá,

ela chega firme com ele... ele dá pouco ataque à tarde... mas e se fosse a gente?

Será que a gente conseguiria manter essa postura nele? Ou é só a Cássia que

consegue? Esse é o nosso problema com ele. Ele vai atender só a Cássia? E os

outros professores?

O segundo ponto que também me parece crucial é que a professora foi obrigada a

receber uma criança, considerada pela escola como a criança mais difícil em termos

comportamentais, justamente no ano em que ela está retornando de oito meses de

afastamento, por uma cirurgia nas cordas vocais, e que, portanto, não poderia

trabalhar numa turma excessivamente barulhenta e agitada como já era essa. Ainda

assim lhe mandam uma criança com esse perfil. A professora se sentiu, ao que nos

demonstrou, muito desvalorizada pessoal e profissionalmente com o que ela mesma

interpretou como uma “falta de humanidade”.

(...) A escola e seus atores constitutivos, principalmente o professor, parecem tornar-se reféns de sobredeterminações que em muito lhes ultrapassam, restando-lhes apenas um misto de resignação,

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desconforto e, inevitavelmente, desincumbência perante os efeitos de violência no cotidiano prático (AQUINO, [on line] 1998).

Junto com tudo isso, ainda foi convidada a participar de nossa pesquisa, o que pôde

desencadear dois tipos de sentimentos, numa situação como a que ela estava: por

um lado, ganhou em colaboração, apoio, desabafo, reflexão; por outro, a nossa

presença levou a embates, discussões e exigiu um tempo grande que ela muitas

vezes não tinha disponível. E, mesmo assim, recebeu-nos e tratou-nos sempre

muito bem.

Mas, voltando um pouco na questão metodológica, o procedimento que foi se

definindo como o mais adequado para esse nosso grupo foi justamente o

colaborativo, que engaja os participantes na resolução de problemas e projetos, o

que exige a pesquisa e reflexão das informações para a elaboração da solução,

assim como debater esses questionamentos com seus colegas e com o grupo vai

promovendo a organização do conhecimento produzido. Sendo assim, o professor

deixa de ser um mero participante e o pesquisador não mais investiga o professor,

mas investiga com o professor, ou seja, converte-se em investigador dentro de sua

própria prática (CARR & KEMMIS, 1988).

A pesquisa colaborativa oportuniza ao professor e aos outros envolvidos repensar

suas práticas com vistas à tomada de consciência sobre o sentido e as

conseqüências de sua ação. Dessa forma, o trabalho colaborativo foi propiciando um

processo formativo contínuo em que os problemas ali encontrados foram tratados a

partir de uma reflexividade crítica sobre as práticas pedagógicas (MIZUKAMI et al,

2002).

Sabe-se que, como modelo formativo, a pesquisa colaborativa é muito recente,

especialmente no contexto da educação brasileira. Candau (2003) mostra a

concepção clássica que perpassa a temática formação continuada de professores

até a década de 1980. Segundo esta autora, trata-se de uma formação em que o

conhecimento é produzido na universidade e aplicado pelos profissionais da

educação na escola. É uma lógica que desconsidera o conhecimento como

processo de construção, desconstrução e (re) construção.

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Autores como Schön (1997), Nóvoa (1995), Pimenta (2005) e Alarcão (2004) foram,

paulatinamente, introduzindo as concepções de professor reflexivo e de uma

formação continuada que desse conta da necessidade de uma atuação mais

reflexiva na e sobre a ação. Pimenta (2005), por exemplo, ressalta o ganho que

implica a valorização dos processos de produção do saber docente a partir de sua

prática e a valorização da pesquisa como instrumento de formação. Mas adverte

sobre a supervalorização do professor como indivíduo prático; e que isso deve ser

superado pela articulação entre teoria e prática, ou seja, uma reflexão da prática à

luz de um referencial que lhe dê sustentação.

Ao final do trabalho colaborativo, percebemos o quanto ele foi desafiador para todo o

grupo que se formou em torno dele. Desafiador por vários aspectos: pelos

comportamentos do aluno e pela relação já bastante deteriorada entre escola e

família; pelas dificuldades de tempo para reunir com os outros profissionais da

escola (por exemplo, a professora de Artes e a de Educação Física); pela dificuldade

em colocarmos essas questões como prioritárias em relação a outros processos

(como a Mostra Cultural, por exemplo).

Entretanto, as possibilidades vislumbradas ao longo do ano, a partir desses

encontros, foram destacadas por todos do grupo e visivelmente observadas por nós

(pesquisadoras da UFES), principalmente no que se refere ao processo de inclusão

de André, que se caracteriza pela sua permanência gradual na sala de aula, ao seu

maior envolvimento com as atividades acadêmicas, à melhora no seu

relacionamento com os colegas e a professora.

Disso, concluímos que a inclusão não se restringe a garantir o acesso e a

permanência dos alunos que apresentam NEE na escola. Isso é fundamental e

ainda tem que ser muito buscado, especialmente em se falando da escola brasileira.

Mas não é tudo. A diversidade e as especificidades devem ser consideradas como

aspecto inerente desse processo, o que evidencia que a inclusão é processo

complexo, mas tanto mais possível quanto for tomado como objetivo comum por

todos os envolvidos.

E, lembrando Meirieu (2002), destacamos que construir uma prática inclusiva

depende diretamente da efetivação do trabalho em equipe e da cooperação entre

todos na escola.

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6.2 A ESCOLA: TERRA DO SEMPRE X TERRA DO NUNCA

6.2.1 A terra do sempre: o espaço-território

O CMEI era um espaço esquadrinhado e demarcado. Por ser uma escola de grande

porte (630 alunos e 102 servidores-funcionários), ela precisava funcionar dentro de

uma estrutura muito rígida do uso do tempo e dos espaços.

Aqui, o que acontece? A rotina nos engessa muito. É sempre assim: já jantou, já foi pro pátio... não sei porque a gente permite, não sei se é obrigatório, não sei mais. Tem hora que me dá um nó na cabeça (...) são muitas turmas pra coordenar, não sei por que a gente segue com tanta rigidez esses horários. Ao mesmo tempo, se a gente sai dessa organização, vai virar uma bagunça, porque a escola é muito grande (...) (PEDAGOGA NAIR, 24/09/07).

Para além do uso dos espaços, com tempos cronometrados, existem muitas práticas

que reforçam o endurecimento da rotina. Um bom exemplo disso é a Mostra Cultural,

que é um evento programado para o fim do ano letivo (novembro), em que toda a

produção (produtividade) das crianças é mostrada numa espécie de exposição.

Sobre as atividades da Mostra Cultural, podemos mencionar um projeto de chás,

que alguém percebeu ter alguma ligação com o folclore, as matas, talvez, e que

tinha toda a montagem de um livrinho com receitas de vários chás. Sempre me

perguntei se alguma daquelas crianças poderia se interessar por aquela temática, ou

mesmo se era um hábito comum naquela região a ingestão de chás. Penso que não.

Mas o fato é que isso implicou várias atividades (colar folhas secas, recortar o

livrinho em forma de xícara etc.) sem sentido para as crianças e, no entender do

nosso grupo, sem sentido para as professoras, que perdiam várias horas do

planejamento para a confecção e a montagem do tal livro.

Percebemos certo engessamento em relação às atividades da Mostra Cultural, que

precisavam ser concluídas até a data prevista, mas que tomava, quase que o ano

todo, um tempo precioso das professoras. Além do mais, pareceu-nos que também

acabava tirando a criatividade e colocando a produtividade das crianças como

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objetivo central. “Eu tô até aqui de atividade. Eu tô tão cheia de coisa pra fazer que

você nem acredita” (CÁSSIA, 10/09/07).

Questionamos as pedagogas em relação a isso. Notamos que não há uma

obrigatoriedade em termos de número de atividades, mas acaba havendo certa

competição entre as turmas, que precisam de certa padronização na sua produção.

Assim, independente das características dos alunos, da turma, todos têm que ter a

mesma produtividade, apresentar os mesmos resultados no fim do ano, para serem

expostos aos outros profissionais da escola, aos pais, enfim, a si mesmos.

Outro ponto que nos pareceu merecer destaque é que havia uma preocupação

grande em registrar com máquina fotográfica toda a produção das professoras e das

crianças, mas não havia a mesma disposição para registrar os questionamentos que

vínhamos fazendo, as reflexões, as atividades tentadas etc. Quando pedíamos isso,

a resposta era “Eu não tenho pique pra isso” (PROFESSORA CÁSSIA).

Talvez um reflexo da própria dificuldade em transformar práticas individualistas em

práticas coletivas, pois o registro ali proposto se referia mais a uma documentação

legitimadora da produção de cada aluno. Não é tratado como um recurso que

poderia facilitar o acompanhamento do processo pedagógico. Se assim fosse, não

deveria se limitar a imagens de alguns eventos.

Fomos propondo que atividades como jogos grupais, teatro e outras atividades

lúdicas ganhassem maior espaço no cotidiano da sala de aula e não somente em

momentos específicos, como foi o caso do piquenique, mas novamente sentimos

resistência.

Pedagoga Carmen: − “Por isso que eu estava falando que tem que dosar o trabalho

em sala de aula com outras atividades.”

Professora Cássia: − “Dá. Mas se eu parar um dia, igual eu fiz quinta-feira.”

Pesquisadora: − “Mas se a gente colocasse atividades menores no meio das outras?

Não era melhor? Porque na quinta-feira você fez todo um preparado pra aula. A

tarde toda.”

Professora Cássia: − “Então, gasta muito tempo.”

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Pesquisadora: − “E se fossem atividades menores? Atividades menores no meio do

seu plano?”

Professora Cássia: − “O problema é o horário. Até 15h é o horário da minha

atividade. Tô dando uma atividade. Vou pro pátio. Depois das 15h é tudo horário

quebrado. Entendeu? Às 15h10min está no pátio. Depois 15h40min é janta. Ou seja,

de 15h10min a 15h40min, não dá pra você dar atividade nenhuma, mal contar uma

história ou uma música. Passa rapidinho.”

Enquanto estamos nesse diálogo, as professoras intercalam esse momento com

falas sobre a preparação de inúmeras atividades para a semana da Mostra Cultural.

Por esse diálogo estabelecido com a professora Cássia, podemos notar o quanto a

rotina está impregnada. Para trabalhar com as dificuldades das crianças é preciso

romper com a rotina de forma radical.

Sobre a produção dos alunos, outra discussão foi muito recorrente em nossos

encontros. Como já estávamos num processo sistemático de observação, ficou

evidenciado que a turma tinha muitos problemas de relacionamento, agravados

pelos entraves provocados por André e Marcos18. Era patente a idéia de que um

trabalho coletivo, que promovesse a cooperação e o respeito, era fundamental para

a condução do processo. Assim, em todos os momentos surgiam diálogos acerca de

como fazer isso, como exemplificado a seguir:

Pedagoga Carmen: − “Nossas atividades são muito individuais, desde o maternal.

Antigamente era mais coletivo.”

Pedagoga Nair: − “Eu acho que nós perdemos um pouco a questão do brincar,

porque a brincadeira é totalmente educativa, ela ajuda no cognitivo.”

Professora Cássia: − “Houve uma modificação muito grande. Antigamente a criança

ia pra creche brincar. Aí começaram a questionar: mas não é só brincar, elas estão

indo pra aprender algo mais. Aí deram tanta importância a isso que perderam a

outra coisa.”

18 Trata-se do aluno com comportamentos mais agressivos da sala de aula, que mantém com a professora uma relação diferenciada dos demais, conforme tratado mais adiante.

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Pedagoga Nair: − “Mas nós, que estamos aqui, que vemos a importância disso, nós

temos que resgatar isso. Vocês já dão atividades bastante puxadas, então tem que

menear. Metade da tarde eu ofereço, oportunizo atividades esquematizadas e a

outra metade eu oportunizo brincar, porque eles ainda são crianças, eles vão ter

muita oportunidade de fazer essas atividades nos outros anos da escolarização.

Então por que a gente está deixando eles perderem os melhores anos da vida não

dividindo isso? O meu grupo (ela se refere aos menores de 3 anos) é mais brincar,

desenvolver a oralidade... Agora, vocês, por terem a obrigação de encaminhar pro

ensino fundamental, já dão mais atividades esquematizadas. Quando chegar no fim

do ano, ‘Carmen vai ver cada criança, quem está lendo, quem tá escrevendo... ah, e

se minha turma não tiver?’ É uma responsabilidade. Então, com isso vocês se

tornam mais sérias...”

A educação infantil vem buscando marcar sua existência como espaço público

diferente da família, firmando-se como um espaço educacional articulado ao ensino

fundamental. Mas, como nos esclarece Vaz (2004), “muitas têm sido as conquistas,

contudo, as relações vividas no cotidiano da educação infantil parecem indicar que

este não tem sido tão somente um lugar acolhedor que propicia à criança

possibilidades de expressividade que lhe são ‘roubadas’ quando esta chega no

ensino fundamental” (p.2). Como um efeito dessas influências – família, ensino

fundamental –, a educação infantil exerce atualmente sua função educativa por meio

da produção de um “modelo escolarizante” em suas práticas.

Em um dos planejamentos, a professora Cássia anunciou para a pedagoga que no

dia seguinte não poderia trabalhar, pois acompanharia a mãe ao médico.

Observamos que não houve antecedência e nem uma preocupação com a pessoa a

substituí-la, o que expõe a questão do compromisso com a educação dos alunos da

educação infantil.

A professora determinou qual seria a atividade. Os alunos fariam bolinhas de papel

crepom para contornar um desenho do boto cor-de-rosa, que já estava xerocado,

atividade que compunha o conjunto de atividades da Mostra Cultural. A professora

Rosalva, da outra turma de 6 anos, propõe-se a orientar as estagiárias para que elas

assumam a turma:

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Professora Rosalva: − “Olha, no primeiro horário, eu vou dá tira de crepom dupla pra

cada criança. Duas tiras de crepom. Eles fazem as bolas, quando ela acabar as

duas tiras, aquela criança que acabou as duas tiras ganha a folha pra pintar.”

Pedagoga Carmen: − “Porque não coloca esse material por mesa?”

Professora Rosalva: − “É por mesa.”

Pedagoga Carmen: − “Não um cada um. Por que não fazer esse trabalho

coletivamente?”

Professora Rosalva: − “Ah, tem uns que fazem bolinhas minúsculas, tem um que faz

gigante, outro suja... Entendeu? Jogam fora, eles fazem uma ‘daneira’. E também,

um acaba, aí você dá a folha, aí o outro não acabou (...).”

Pedagoga Carmen: − “Mas seria mais interessante trabalhar com o grupo.”

Professora Rosalva: – “Mas eles vão fazer tudo junto, é bom que um orienta o outro,

menina!”

Pesquisadora: – “Parece que no momento atual o mais importante é o

comportamento deles...”

Professora Cássia: − “O aluno que fica fugindo muito (...), o restante fica aí (ela se

referia ao André, como se o problema fosse ele).”

Nota-se uma grande valorização da estética, já que essa seria uma atividade a ser

exposta na Mostra, em detrimento daquilo que estava preocupando o grupo, que era

justamente o trabalho integrativo daquele grupo de alunos e de sua aprendizagem

de um modo geral. Na condução dessa tarefa, nós preferimos realizá-la em grupo.

Oferecemos as tirinhas de papel, pedimos que tentassem manter o mesmo

tamanho, encadeamos cada parte da atividade com músicas, para garantirmos que

ninguém desanimasse (e quisesse sair da sala). E ninguém saiu.

De modo geral, notávamos que no CMEI havia uma padronização desses

comportamentos em relação às crianças. Não havia diversão, alegria, sorrisos. Isso

era exceção. Havia um foco na produção, nas atividades, na contenção nas

cadeiras.

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Fonte: QUINO, 1993, p.243 Figura 22 – A produtividade invadindo a infância.

Na escola, as crianças trabalham sem descanso. Ao acabar uma tarefa, segue-se

outra. Não recebem remuneração (ainda que parca) como as crianças colocadas no

trabalho infantil, nem como os salários dos adultos. Sua remuneração é outra: num

futuro longínquo virá a ser um cidadão que, por sua vez, se dedicará a um trabalho

adulto. “A escola precipita um dispositivo arbitrário que entranha o tempo de espera

de uma recompensa sempre a ser sonhada” (LAJONQUIÈRE, [on line] 2003). Assim,

o engajamento e a motivação do aluno no trabalho escolar são movidos a desejo. E

como atualmente os adultos vêm confundindo a criança com seu semelhante,

desconsideram-na em seu desejo próprio, impondo-lhes os desejos deles. “Dessa

forma, perdida a diferença movida a desejo entre o adulto e a criança, ambos

passam a se confrontar, cada um esgrimindo justificativas, umas mais explicáveis

que as outras, até que as ‘ciências do comportamento’ façam ponto de basta

racional” (Idem).

Sabe-se que as escolas de educação infantil do município de Vitória estão

recebendo profissionais de Arte e Educação Física. Entretanto, essas atividades não

se incorporam num trabalho em conjunto com o professor da sala de aula porque o

trabalho deles se esquematiza em aulas, em determinados dias da semana, como

no ensino fundamental, e a cada momento estão com uma turma diferente. Desse

modo, eles não planejam junto, não articulam atividades e, ainda mais estranho,

trabalham dentro de um esquema de aula. Em vez de trabalhar o corpo e o

movimento, priorizam a competição e as regras. Em vez de trabalharem a expressão

livre, a criatividade e os sentimentos, priorizam as releituras, o conhecimento

artístico.

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Professora Cássia: − “Eu perguntei pra Carmen sobre a professora de Artes, e ela

me falou: “Ah, ela tem todo um projeto”, são duas aulas por semana. Por que não

pode ser uma aula pro projeto dela e uma aula diferenciada, junto comigo?”

Pesquisadora: − “Tem algum momento durante a semana que há um planejamento

junto?”

Pedagoga Nair: − “Não dá tempo.”

Pesquisadora: − “Como então trabalhar junto? Cada um planeja individualmente.”

Pedagoga Nair: − “Ela (Marlene) tem a quarta-feira pra planejar. Às vezes, nem nós

conseguimos sentar com ela, porque na quarta, enquanto elas estão planejando,

tem outras professoras de Arte e Educação Física na escola cobrindo o

planejamento e nós duas atendendo. Às vezes, até nós pedagogas sentimos

dificuldade. Enviamos um ofício pra SEME e reclamamos disso. Nós queríamos

essas profissionais com mais quinze horas dentro da escola, justamente pra garantir

um momento maior tanto pelos profissionais quanto pro trabalho da escola. Porque...

o que acontece? Fica uma escola com um trabalho separado, que não tem um

trabalho integrado, e nosso desejo não é esse.”

Notamos o uso de uma abordagem pedagógica de ensino de cunho tecnicista, com

prioridade para o uso da técnica, do desempenho motor, da competição, em

detrimento da participação coletiva, do envolvimento de todos, de atividades

prazerosas e agradáveis, da ampliação do conhecimento corporal. Notamos, ainda,

o uso da sala de aula, mesmo quando o fator tempo não era empecilho para o uso

do pátio ou outras áreas.

Com muita freqüência, os alunos com problemas na área do comportamento eram

retirados dessas aulas, o que denota que eram insuficientes as práticas de

promoção da interação entre os membros do grupo de alunos. Talvez isso pudesse

ser minimizado se o trabalho com o corpo e com a expressividade das crianças

fosse mais coordenado e com o objetivo focado na criança e nas suas

necessidades, e não numa aula padronizada.

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A rotina da escola nos parece uma estratégia para “modelar” o comportamento, mas,

ao mesmo tempo, ela tira a espontaneidade, a novidade, a surpresa e, portanto, o

prazer. Sua imposição provoca resistência em alguns alunos; em outros, submissão,

em outros, dissimulação. Os professores também sabem que a escola não é muito

prazerosa, mas sabem que poderia ser muito mais. Não mudam as práticas, não

questionam as rotinas, começam a não ver mais outras possibilidades, presos que

estão à repetição do sempre. Provoca-lhes sério desconforto quando alguém lhes

tira desse lugar comum: os alunos que burlam as normas, as pesquisadoras que

insistem em conversar, os pais que querem questionar. Sem reflexão dessas

práticas, a escola está contribuindo, assim como toda a sociedade, para o

desaparecimento da infância (POSTMAN, 1999) e para o surgimento daquilo que

nós estamos interpretando como a produção do “adoecimento”. Mas, entenda-se,

dentro do nosso conceito atual de doença, produzido dentro da nossa cultura

(FOUCAULT, 1984).

Fonte: QUINO, 1993, p. 261 Figura 23 – A escola produzindo o “adoecimento” I.

6.2.2 A Terra do Nunca: o espaço-imaginário

O espaço-imaginário é confrontado com o espaço-território a todo momento, em um

embate desigual. As crianças com seus espaços imaginários de fantasias e

alucinações são “puxadas para baixo”, para que habitem o espaço “certo” - o chão, o

seu lugar, a sua cadeira. Os momentos em que permitem que fiquem onde querem

ficar são escassos e marcados pelo tempo e pelo espaço.

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Não há como pesquisar crianças na educação infantil sem considerar esse embate

constante. São muitos “Peter Pans”19, meninos e meninas que querem e precisam

vivenciar sua infância, sua imaginação, suas fantasias, e por isso a aparente idéia

de que a escola de educação infantil é um espaço virtuoso e pacífico também cai por

terra, mostrando que é um espaço de confrontos contínuos e cada vez maiores.

A educação infantil não é prazerosa, como poderia ser, para uma grande parcela

das crianças. Muitos alunos esboçam resistência a essa rotina: fogem das salas,

negam-se a realizar as tarefas, provocam brincadeiras e, por vezes, brigas com os

colegas, ou mesmo se evadem para seu mundo particular, de fantasia, ou ficam,

nitidamente, “no mundo da lua”.

Também não parece prazerosa para uma grande parte dos professores e

profissionais que nela atuam, o que, entretanto, não se reverte, necessariamente,

numa mudança de suas práticas e rotinas. Sentem-se presos a essa estrutura que

foi e é por eles mesmos construída. Sentem um claro desconforto pelos alunos que

burlam as normas, as rotinas; insistem na mudança deles, não de suas práticas e

sofrem quando não alcançam êxito. O sofrimento é mútuo – de professores e

alunos.

O adulto pode se dispor a dialogar sobre tudo com a criança, mas há algo que

sempre lhe escapará: as representações inconscientes dela, seus desejos e

fantasias. O adulto pode ou não considerá-los em suas concepções e ações. Se os

ignora, como vem recorrentemente acontecendo, gera o que hoje entendemos como

crise escolar, ou seja, um descompasso do cotidiano escolar com o desejo infantil.

Lajonquière (2003) afirma ser ilusória a reivindicação dos profissionais da escola de

que as crianças respondam como antes à demanda escolar, porque agora a infância

passou a ser sonhada pelo adulto na ordem do naturalmente necessário, o que o

coloca na trilha da impossível tarefa de converter a infância real em ideal, mas ainda

assim esvaziada do desejo. E conclui:

(...) O que deve preocupar-nos é que o esgotamento instituinte da infância é o sintoma de um mundo que não quer saber mais da exigência devida de se tentar o impossível de um sonho, que não

19 Peter Pan é um personagem criado por J. M Barrie. Mesmo já sendo um pequeno rapaz, recusa-se a crescer e passa a vida a ter aventuras mágicas.

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quer mais inventariar uma e outra vez o passado, que não quer mais fazer memória para não ter de se confrontar com aquilo que também somos (LAJONQUIÈRE, [on line] 2003).

Toda a vida adulta é uma negação da infância. Talvez resida aí a nossa infelicidade.

A Psicanálise acredita que é o poder de sonhar que nos torna humanos. “Somos

sonhos cobertos de carne. Por isto que, diferente dos médicos que apalpam, olham,

examinam e medem os sintomas físicos do corpo, ela (a Psicanálise) se dedica a

ouvir as palavras. Pois é nelas que moram as coisas que não existem, os sonhos, os

pensamentos que nos fazem voar” (ALVES, 1995, p.68).

6.3 A PROFESSORA: BRUXA MÁ OU FADA MADRINHA

A professora Cássia tem 38 anos e atua há cinco anos na Prefeitura Municipal de

Vitória/educação infantil, sempre nesse CMEI. Formou-se em Magistério e atuou por

três anos na educação infantil, como estagiária. Depois graduou-se em Pedagogia,

na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina, em 1992, e daí para a

frente sempre atuou de primeira à quarta série. Fez Pós-Graduação em

Planejamento Educacional. À noite, trabalha como coordenadora numa escola de

ensino médio. Suas pretensões são de continuar atuando na educação infantil.

Relatou que apenas uma vez lecionou numa sala de alunos “com diversas

necessidades especiais, tais como: síndrome de Down, deficiência física (cadeira de

roda), deficiência de aprendizagem etc. No total, eram dez alunos com diversas

necessidades especiais”.

Diz que o que sabe sobre o assunto não aprendeu na faculdade. “Minha experiência

dentro de sala e os ‘métodos’ aplicados a esses alunos se deve a alguns, digamos,

‘cursos rápidos’ dentro da escola, com algum texto, discussão, relatos e avaliação.

Algumas vezes ocorre por parte da Secretaria de Educação ‘Formação Continuada’,

onde o professor vai uma tarde, ouve mais do que fala, e quando fala é sempre pra

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desabafar suas angústias (comigo não é diferente), pois percebo que saio de lá sem

respostas a minhas angústias. Assim volto à sala de aula no dia seguinte

enfrentando e lutando para sobreviver a mais um dia (...).

Ela tem críticas sobre entender a inclusão como o fato de colocar uma estagiária

para cuidar da criança, algo bastante comum. Mas também não opina sobre como

poderia ser.

Define André como uma criança hiperativa, mas só porque ele tem muita dificuldade

em aceitar as regras, e que isso tem muito a ver com a família dele.

Eu acho que tudo é a família. Porque, por exemplo, você tem uma criança que tem carinho em casa, a mãe ouve, vai ser outra criança na escola, vai ser agitada, vai pular... eu fui uma criança que subia em cima de árvore, mas eu não dava trabalho, porque eu tinha uma estrutura em casa. Quem tem filho sabe disso, criança que é bem amada não tem problema na escola, não tem problema em lugar nenhum, ele se resolve, ela está resolvida (...). Então, assim, a criança precisa de amor. Falta de amor, é isso aqui tudo, é André. Tem tratamento? Pode ter, pode ser que o médico diga assim, toma esse remédio pra diminuir o estresse, diminuir a ansiedade, mas isso tudo é paliativo, é só pra resolver aquele problema no momento (PROFESSORA CÁSSIA).

A professora não acredita que André tenha necessidades educacionais para precisar

de uma estagiária, por exemplo. Mas reconhece que a referência que ele

estabeleceu com a estagiária Evanesca é muito grande, porque ela dá mais atenção

para ele. Ela diz: “Isso não é inclusão, isso é falta de amor, só”. E escreve ainda:

O que conseguimos é algo paliativo, que não resolve o problema do André, nem de outras crianças iguais a ele, ou com problemas de comportamento, falta de disciplina (...) com o mesmo ‘trauma’ interno que é problema de afetividade na família, o que pode gerar no futuro crianças com falta de identidade, baixa estima (SIC), problemas psicológicos sérios. Eu sei que estou de passagem pela vida deles e que o futuro deles pode ser algo difícil e perigoso, porém, eles não serão os últimos, então percebo que a escola, a Secretaria de Educação e até mesmo eu, necessito (SIC) de estudos mais aprofundados sobre problemas de comportamento, crianças com necessidades especiais, que tragam respostas, não digo receita pronta, mas que diminua um pouco a angústia que cada educador traz dentro de si, que é a pergunta que nós fazemos sempre: como lidar com essa criança? (PROFESSORA CÁSSIA).

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Suas falas denotam a confusão de hipóteses, todas muito negativas acerca da

criança, realçando a impossibilidade de que no âmbito da escola as ações possam

repercutir positivamente sobre a criança com problemas na área do comportamento.

Fonte: QUINO, 1993, p.272 Figura 24 – O desgaste relacional.

E fica implícito que é nos consultórios ou fora da escola que podem ser encontradas

alternativas para o problema.

Souza (2005), analisando prontuários de crianças encaminhadas aos serviços

psicológicos por apresentarem dificuldades no processo de escolarização,

constatou: que a Psicanálise é o referencial hegemônico dos psicodiagnósticos; que

as questões escolares ganham pouco espaço nas entrevistas psicológicas; que os

testes são o principal instrumento da avaliação psicológica e que os

encaminhamentos dados pelos profissionais não priorizam ações no campo

educacional. Revelam, esse e outros estudos da autora, a necessidade premente de

repensar as práticas psicológicas frente aos encaminhamentos por problemas

escolares. “(...) mesmo que a queixa seja escolar, o que norteia o olhar do psicólogo

é principalmente a questão emocional na relação familiar e no mundo interno infantil”

(SOUZA, [on line] 2005).

Em outro momento, a professora diz: “Ele precisa entender que a escola não é a

casa dele. A gente dá carinho, mas não é mãe, entendeu? É perigosa essa coisa de

estar com uma estagiária só com você, porque parece que você está substituindo a

mãe, e a criança não pode fazer essa substituição”. Ela deixa transparecer que o

carinho não deve ser constante, para que a criança não se apegue em demasia e

depois sofra ao ir para o ensino fundamental.

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Esse aspecto de sua fala me remeteu ao texto de Lajonquère, em que ele

magistralmente diz:

(...) A escola também implica tanto uma diferenciação máxima adulto/criança quanto, paradoxalmente, numa negação da mesma. Em suma, a escola desponta como um lugar ‘outro’ que aquele familiar, ela é o cenário no qual as ‘crianças’ – agora alunos – são interpelados a responder como se fossem os adultos que ainda não são (LAJONQUIÈRE, [on line] 2003).

Podemos traduzir essa fala da professora: Você não está em sua casa, você está

num espaço público e nele há que se ter uma postura tal que as infantilidades sejam

deixadas em casa. Não só as crianças não devem levá-las para a escola, como

também as profissionais da escola não devem se ocupar delas, solicitando, a todo

momento, que a criança pareça adulta.

Fonte: QUINO, 1993, p.317 Figura 25 – A escola produzindo o “adoecimento” II. No entanto, o que se percebe atualmente, comenta Lajonquière, é o “apagamento

da distinção entre o escolar e o familiar, na esteira do esvaziamento da diferença

entre o público e o privado”, o que gera uma demanda que exige que a criança

responda no real do ato. E, dado todo o “psicologismo cotidiano”, essa resposta tem

de ser a “normal”, a prescrita na norma do desenvolvimento psicológico natural.

Esse processo, da forma como vem sendo conduzido, retira da demanda escolar,

especialmente da educação infantil, o seu espírito de “fazer de conta”.

Agora, a criança é obrigada a entregar suas infantilidades a um leque de profissionais psi que tudo vêem, tudo sabem. As crianças, sem mais direito de serem, por exemplo, preguiçosas na escola ou tímidas só em público, agora são, independentemente do lugar, (...) do horário, sempre uma mesma coisa: imaturas, hipercinéticas, deficientes, etc. (LAJONQUIÈRE, [on line] 2003).

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Numa das perguntas que dirigi a Cássia, no momento da entrevista, perguntei como

ela achava que poderia ser trabalhado um processo de inclusão de André. Eis a

resposta:

Acho que o André, o principal dele é o diálogo. Você senta com ele, você até consegue conversar com ele, mas é uma conversa que ele (enfatiza) domina a conversa. Então, quando você percebe, já mudou de assunto e tá dentro do assunto dele, aquilo que você quer conversar com ele, não consegue. De repente você está querendo conversar com ele, introduzir um assunto, sentar, ele foge e entra no assunto dele (PROFESSORA CÁSSIA).

Nos encontros do grupo de trabalho, propusemos à professora Cássia que, quando

houvesse momentos de tensão entre André e Marcos, ela priorizasse situações de

diálogo entre eles, já que as professoras de Artes e Educação Física se negavam a

tentar isso, pois alegavam que quando o Marcos estava nervoso ele “avançava” em

quem tentasse se aproximar e que ele só respeitava a Cássia. A idéia não era fazer

discursos, mas tentar favorecer algum diálogo.

“Eles já estão acostumados com o discurso do adulto: não pode isso, não pode aquilo; por que você fez isso? Por que você fez aquilo? Aquelas respostas que eles também não dão; então tentar escapar um pouco dessa postura de quem dá lição de moral, de quem pede pra pedir desculpa. A gente já notou também que eles não querem mais pedir desculpas, até porque é um pedido meio vazio...” (DIÁRIO DE CAMPO, 17/09/07).

Todos os incidentes entre colegas são seguidos de uma imposição do pedido de

desculpas. Percebemos que as crianças, quando acatam esse pedido, fazem-no

mecanicamente. Mas o que nós observamos é que havia uma dificuldade

generalizada entre os profissionais da escola de darem a palavra às crianças para

que, pela linguagem, elas pudessem exclamar aquilo que as estava incomodando.

Pergunto também se ela entende que outras propostas deveriam ser tentadas para

ele. Ela responde que sim e esclarece: – “Alguma coisa tem que ser pensada

realmente. Apesar que esse ano eu modifiquei muito o meu esquema por conta dele,

até do Marcos também, que o Marcos é muito agitado... Tem que ser feito”.

Mesmo assim, suas indicações apontam para soluções impossíveis como, por

exemplo, a que ela mencionou de ter podido ficar com ele o ano todo para haver

tempo para mais tentativas.

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Eu retruco, pensando com ela como seria se tivesse o próximo ano todo com ele, e

como se poderia pensar em procedimentos diferentes. Ela diz: – “Se eu tivesse com

ele de novo, eu ia pensar uma outra forma. Eu ia tentar participar o André, que aqui

não tem uma sala específica assim (brinquedoteca), bem que a gente tenta, de

brincadeira, uma sala que ele ficasse na sala e não fora, nada externo, mas interno,

e aí nessa sala...”.

E se a escola não tiver a brinquedoteca? E se ela tiver? Não é sempre lá que ele vai

querer estar? Ou seja, em ambas as situações, não se pode perceber nenhuma

solução mais efetiva para a sua permanência em sala e para a melhoria na relação

com a professora e com os colegas. E, ademais, as soluções apontam para fora da

sala de aula, para lugares ou eventos específicos e pontuais e não na alteração da

dinâmica da sala de aula.

Então, ao fazer tais questionamentos, tento retomar como ela percebeu essa idéia

de trabalho colaborativo, aquilo que fomos desenvolvendo em conjunto, no nosso

grupo. Ela pensa um pouco e diz – “Sei lá. Foram tantas coisas tentadas com André.

Ah! Eu te enumerar assim... difícil”.

Sobre a avaliação das nossas participações no trabalho do CMEI, ela ressalta:

–“Ajudou muito as meninas na sala, as conversas minhas com você, agora, talvez

melhorasse se de fato as pedagogas e mesmo a diretora tivessem algumas idéias e

pudessem trazer mais idéias que nós não tivemos. (...) Os meus momentos com a

Carmen foram raros até mesmo pra eu desenvolver meu trabalho no CMEI. Então

ficou eu e Rosalva pra gente resolver tudo. Não que a Carmen seja uma pessoa

incompetente, de jeito nenhum, mas eu percebo que ela está o tempo todo fazendo

uma coisa, fazendo outra, sempre correndo e ela não tem tempo. Então, tá

precisando ela organizar o tempo dela, como pedagoga, as funções dela, o que é

administrativo, o que é pedagógico. Aqui os pedagogos fazem também o papel de

coordenador, conversar com mãe, não sei o quê... isso não é papel do pedagogo, é

o papel de uma outra pessoa que é aquela parte da disciplina, sabe?”

Aqui, um desabafo sobre a solidão inerente ao trabalho docente, quando não há um

contato contínuo e próximo das questões do dia-a-dia do ser professor. Realmente

notamos que as pedagogas eram pessoas com um alto nível intelectual e com

ótimas reflexões sobre suas próprias falhas. Sabemos da falta de tempo e das

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questões burocráticas/administrativas que elas têm de dar conta, além de atender a

todos os pais que as procuram com freqüência. Então, elas também não param e

não conseguem impor prioridades em seu trabalho.

E revela em muitas de suas falas, o seu cansaço e desânimo. Pensa que, por mais

que existam os profissionais de apoio, a sala de aula é responsabilidade sua, o que

acontece com as crianças é responsabilidade sua. Mas reconhece que nossa

participação foi importante. “Eu diria que sem vocês teria sido pior, teria sido muito

mais difícil. Quanto às meninas, se elas não estivessem na sala, eu não conseguiria

trabalhar de jeito nenhum, aí eu estaria só por conta de ser babá do André e do

Marcos. O fato das duas estarem lá deu uma aliviada para que eu pudesse fazer

meu trabalho”.

Entendemos que o seu papel de professora frente a essas crianças, como André,

está carregado de conflitos. E buscamos pontuá-los dentro da premissa de que “os

professores não têm a responsabilidade de enfrentar todos os traumas da vida de

uma criança; mas, por meio da compreensão, podem algumas vezes diminuir seu

sofrimento” (ALSOP & MCCAFFREY, 1999, p.24).

6.4 MARCOS - OUTRO PERSONAGEM DA HISTÓRIA

Marcos é um menino grande para sua idade, forte e muito carinhoso com a

professora. Na sala, ocupava uma mesinha menor, exclusiva dele, que estava

posicionada ao lado da mesa da professora, encostada nela. Ninguém mais sentava

ali. Com ele, a relação da professora também era diferenciada. Ela parecia

conceder-lhe certo status em troca de sua obediência. Por exemplo, quando alguma

criança se machucava ou precisava de ajuda, a professora destacava a ele essa

incumbência; ou ainda quando ele batia em alguém (fato bastante freqüente) ela o

chamava num canto e conversava carinhosamente com ele, abraçando-o e

contornando a situação pelo carinho. Ele parecia responder muito bem a essa

estratégia, pois tudo fazia para agradar a professora: tentava sempre terminar antes

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dos outros, buscava incessantemente aprimorar seus desenhos e tarefas para que

ficasse melhor do que os outros, enfim, queria fazer jus ao destaque oferecido por

ela.

Sobre o andamento das aulas, antes da chegada de André, a professora assim se

coloca: – “Minhas crianças sempre falaram muito alto mesmo, era uma turma

agitada, conversadeira. Tinha o Marcos, que dava aqueles momentos de agitação.

Ele já era assim antes, mas ele piorou muito, ele sempre foi uma criança mais

agitada, mas depois do André ele piorou muito e agora ficou insuportável a

convivência com Marcos. Antes não. Antes era só eu, então ele estava começando a

se achegar comigo, era cartinha todo tempo, bilhetinho, aí quando eu falava com ele

com aquele jeitinho assim, ele me obedecia... Hoje eu falo as coisas com ele... (ela

dá de ombros, para evidenciar o comportamento dele).”

O lugar ocupado por Marcos fora colocado em risco com a chegada de André. Os

demais colegas pareciam conviver sem maiores problemas com o fato de Marcos ter

muitos comportamentos agressivos, porque ao mesmo tempo era também protetor.

Ele se exibia durante todos os intervalos, brincando de luta com o irmão (gêmeo) em

pleno pátio (mesmo sendo uma brincadeira não apropriada, num ambiente já tão

agressivo, dificilmente recebia a intervenção de algum profissional da escola).

Parecia que essas brincadeiras de cunho agressivo já haviam se naturalizado no

ambiente do CMEI, porque não ocorria só entre esses dois alunos, eram comuns.

O diálogo a seguir mostra como as profissionais da escola perceberam esse

encontro de André com Marcos.

Nair: − “Como é que está essa relação dele com o André, no sentido assim... porque

ele chegou e roubou um pouco a atenção que era dada pra ele, né?”

Cássia: − “Ele tem duas reações. Uma de se defender e defender os colegas, que

ele acha que estão sendo injustiçados. E ele já percebeu que ele é mais forte que

André, ele bate no André e André tem medo dele. Marcos não tem medo do André

(...).”

Nair: − “Quando o André sai de sala, o Marcos vai por conta dele lá fora buscar o

André ou é você que pede?”

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Cássia: − “Eu não falo pra ele ir. É atitude dele.”

Nair: − “Porque, como diz Marleidi, ele vai com tanta propriedade, que a gente tem

que interferir porque senão ele machuca mesmo.”

Cássia: − “Eu não falo com ele.”

Nair: − “Então, é ciúme mesmo.”

Cássia: − “Agora, o Marcos, ele também vai na onda do André. Quando ele quer, sai,

corre, sobe na mureta... Só que se eu for brigar, quem tá errado? O André, porque

foi o André que deu a idéia.”

Marcos, visivelmente, tem mais destaque nas preocupações da professora porque,

além de ter problemas muito graves em sua família (mãe internada por ser usuária

de drogas), ele é meigo e carinhoso com ela, obediente e cuidadoso com todas as

suas tarefas. Dessa forma, a agressividade que ele mostra com as outras crianças é

explicada/justificada por seus problemas familiares.

Ele ajuda, mesmo com tudo isso, ele fez a tarefa, depois ele falou: ‘eu não vou pro pátio, eu já fiz tudo, tá certo?’ Eu falei, ‘tá’. Aí peguei ele, vim aqui fora, conversei mas ele não está conseguindo colocar pra fora o que ele tá sentindo. O que ele tá sentindo tá tão preso, (...) que eu não tô conseguindo tirar de dentro dele o que ele está sentindo. Ele se vira todo, se encolhe e chora (PROFESSORA CÁSSIA).

A estagiária Evanesca também traz, em seu relatório, aspectos interessantes sobre

essa relação:

Durante o recreio, a professora Cássia nos conta que Marcos e André estão sempre em disputa para comandar o ‘pedaço’. Diz que André bate só nos pequenos e nas meninas e que Marcos tenta defender a turma. Disse que os dois se ‘pegam’ e que ontem mesmo eles se estranharam e sua atitude foi a de apenas olhar, não fazendo nada, para que assim André aprenda, porque Marcos é mais forte que ele. Contou-nos ainda que a mãe de Marcos está internada por causa do uso de drogas e que por isso ele e o irmão estão mais agitados (EVANESCA, 16/08/07).

Marcos começou a se incomodar muito pelas desobediências de André. Começou a

bater muito nele, sair para buscá-lo em suas fugas etc.

André colocava em xeque a autoridade da professora e, por tabela, a de Marcos,

que também exercia certa autoridade sobre os demais alunos. Fora colocado na

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posição de “pai” por Cássia. Quando alguém se machucava, ele era escalado para

levar à secretaria; ele batia nos demais, ninguém batia nele; ele era chamado pelos

colegas para defendê-los em brigas com outras crianças etc.

A quebra da “estabilidade”, relatada pela professora Cássia, teve conseqüências em

Marcos, que passou a ficar conflituoso em sua posição: ora queria sair junto com

André para correr pelo CMEI, ora ficava furioso com ele por fazê-lo. Marcos, ao

mesmo tempo, era o aluno mais agressivo da turma, mas “controlado” de perto por

Cássia, que atribuía a ele uma posição especial diante dos outros alunos. Executava

as ordens da professora com presteza, “tomava conta” das outras crianças para ela,

era como se fosse o “ajudante oficial” dela. A chegada de André desestruturou essa

ordem, já que se negava a obedecer ou acatar as ordens da professora e de

Marcos. Como essa relação não foi trabalhada desde o seu início, a agressividade

entre os dois cresceu vertiginosamente com o passar do tempo.

A fala das pedagogas revela bem isso:

Nair: − “O Marcos piorou. O que está acontecendo com Marcos?”

Cássia: − “A mãe dele está presa...”

Nair: − “Mas não estava fazendo isso com as outras crianças. Quando André

chegou, ele começou a ter uma atitude assim de... “não, você tem que ficar na sala!”

Cássia: − “Ele está com ciúme; o André tirou o lugar dele.”

Nair: − “Até então ele era o astro, né. Tinha atenção total. Quem a gente chamava

mais a atenção? Quem a gente controlava no pátio era ele. (...) Ele é o general. Não

deixa o André sair, porque antes quem saía era ele. “Esse espaço era meu”, agora

tem alguém ocupando meu espaço, tem alguém que está saindo e está chamando a

atenção mais do que eu. Então, ele pega o André pela camisa, “vem cá”. Já peguei

ele segurando André pela camisa. (...) já peguei ele querendo fazer justiça em cima

da ordem da professora. Ele vai mandando... Aí, o André tá começando a ficar

amedrontado com ele, porque agora ele encontrou alguém para enfrentar ele de

frente. De manhã ele não tinha ninguém pra enfrentar ele.”

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Nair: − ”A gente podia colocar um de frente pro outro pra ver o que vai dar, pra

desmistificar isso pra Marcos.”

Cássia: − “É, a gente tem que romper o medo do André, porque ele começou a sentir

agora o confronto. Talvez está na hora de ele perceber que o outro não é o todo

poderoso.”

Nair: − “A gente vai vencer André por medo? Não é legal. É bom que ele entenda.

Se é que ele tem condição, que ele entenda. Que ele atenda porque percebe que as

regras na sala têm que acontecer, que ele tem que respeitar o professor, que ele

tem horário pra brincar, que ele tem horário pra fazer a atividade, ele tem horários

pras coisas, e não tem como a gente evitar isso.”

Carmen: − “Eu acho que a professora Cássia está um pouco com o poder na mão.

Eu acho que na sala com ele, a Cássia deveria falar na sala com ele: ‘Ó, tem que

atender ao pessoal de apoio’. Ela pontuar, quando for falar com ele. Não pontuar: ‘Ó,

quem manda aqui sou eu’; ‘sou eu, mas tem que atender também a Carmen, ao

pessoal do apoio (...). (Nair tem falas paralelas no sentido de concordar com ela).”

Marcos não é percebido pela professora como uma criança que também precisa de

um olhar mais atento, mesmo sendo uma criança que apresenta muitos

componentes de agressividade em seus comportamentos. A professora por vezes

justificava a agressividade de Marcos dizendo que ele batia para defender os

colegas, mas nós presenciamos inúmeras cenas em que ele também batia em

meninas, inclusive as de sua sala, e em outras crianças, que eram surpreendidas

por ele no pátio, por exemplo. Na realidade, percebíamos que ele era tão produzido

pela sua condição de vida quanto André.

Cássia: − “Eu acho que André deu uma melhorada, mas eu não sei qual a visão de

vocês do lado de fora. Apesar de tudo que falaram...”

Evanesca: − As vezes que eu falo com ele, ele atende. Agora o Marcos não, o

Marcos não atende.”

Cássia: − “Tem que dar um tempo pro Marcos. Ele não tem problema, o problema

dele é a família. Hoje eu fui falar da mãe dele, tadinho, chorou, chorou, chorou...”

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É interessante notar que a criança que participa, que tem o maior respeito pela

professora, que obedece, que faz o dever, que não deixa de fazer as atividades,

como é o caso do Marcos, é justificada em seu comportamento inadequado,

enquanto a que não obedece merece ser punida de todas as formas. O cumprimento

das atividades é o fator mais importante. A atividade parecia normatizar as relações.

O mais importante é obedecer, não importando se um momento de briga devesse

receber uma mediação adequada. Esse relato, que foi feito após os primeiros quinze

dias de André à tarde, mostra como eram tratados os momentos de

desentendimento entre os dois que, sem receber interferências, desencadeou uma

agressividade crescente entre ambos.

Na hora da entrada, todos os dias a professora fica na porta recebendo as crianças

que vão entrando e brincando livremente. Observa-se que André se aproxima mais

dos outros colegas para brincar, enquanto Marcos prefere ficar mais sozinho.

Em seu relatório datado do dia 17/08/2007, a estagiária Justina escreveu:

Enquanto os colegas brincavam, o aluno Marcos ficou ajudando a professora na organização do material. (...) Enquanto os demais estavam em grupo nas mesas, ele preferiu ficar ajudando a professora e em seguida sentou em sua mesa, individual, e ficou desenhando na carteira (...) e observando as brincadeiras dos colegas.

...............................................................................................................

Observa-se que o aluno tem interesse em aprender, sempre perguntando à professora e desmanchando as escritas incorretas. Ele é muito carinhoso com a professora. Escreveu: ‘Tia, eu te amo, você é uma pessoa mais importante’. A professora foi lendo com ele e corrigindo as letras erradas (...). A professora falou: ‘Meu gordinho mais querido’. E o beijou.

...............................................................................................................

No recreio, o aluno corria o tempo todo brincando com o irmão (sempre brincadeiras de lutas), depois foi brincar com uma bola que achou no pátio. A bola foi tomada por uma funcionária, o aluno se aborreceu, cercando e tentando tomar a bola dela. Como não conseguiu, correu para a sua sala e jogou tudo no chão (JUSTINA).

Os trechos ilustram a relação carinhosa entre a professora e Marcos, o que

entendemos ser fundamental à educação e ainda mais quando se trata da educação

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infantil. O que questionamos é o fato de que essa afetividade o diferenciava e o

isolava dos colegas e de outros adultos.

Nossas observações de Marcos nos sugerem que quando são outras professoras,

Educação Física, Artes, ou substitutas, ele não realiza totalmente as atividades e

tende a se indispor mais com os colegas em sala.

Esse foi o cenário em que nos inserimos quando iniciamos essa proposta. Sabíamos

de alguns dos nossos maiores desafios. Outros emergiram e nos surpreenderam no

meio do caminho. De qualquer forma, um grupo de trabalho começou a se

consolidar.

As relações entre poder e saber são implicadas: o poder produz o saber, não há

relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que

não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder, segundo Foucault

(1996). O olhar que se dirige às crianças, que de alguma forma rompem com as

expectativas da escola, está atravessado pela suas condições sociais, de classe

social. No século XXI, este é um olhar que deriva do saber e que conforma esse

saber, sendo mediado pelas relações de poder. Numa sociedade de capitalismo

selvagem como a nossa, essas são crianças que ameaçam a ordem, que se

mostram improdutivas para a escola e para o capital. Lembrando Foucault (1996), os

corpos só se tornam úteis se são, ao mesmo tempo, produtivos e submissos.

6.5 AULAS DE ARTES E EDUCAÇÃO FÍSICA: ONDE FICAM A IMAGINAÇÃO E O MOVIMENTO?

As pedagogas, seguindo os objetivos da nossa proposta, reúnem as professoras de

Artes e Educação Física e nos convidam a participar desse planejamento. Explicam

a proposta de trabalhar em conjunto com as crianças que apresentam “problemas

comportamentais mais sérios” e também falam um pouco de nosso projeto.

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A professora Gilda, de Educação Física, pergunta: − “Então, agora a turma tem cinco

professoras?”

Quando lhe é explicado um pouco mais sobre o trabalho colaborativo, ela retruca:

− “O problema é pontual” e esclarece que já faz isso nas suas aulas.

Quando se refere a André, diz que ela não consegue fazê-lo participar de suas aulas

e ouvir “os comandos”, desde quando ele era do período da manhã. Ela diz: − “Eu

não consigo fazer o feedback com ele”.

Ela e a professora de Artes concluem que ele não quer ouvir porque já sabe tudo

que vai ser falado. − “Outro dia ele não queria ouvir os comandos para o início da

atividade, então eu perguntei pra ele o que eu estava dizendo, e ele respondeu

corretamente a tudo que eu havia dito. Nesse momento, a professora de Artes diz:

“Ele não deveria estar aqui”.

Onde ele deveria estar? Fiquei me perguntando, embora já imaginando onde ela

deveria estar pensando. As atividades repetitivas e sem sentido acabam sendo

incorporadas pelas crianças e as que mostram inconformação em realizá-las são

tidas como especiais, diferentes ou precisando de algum tipo diferente de escola.

A pedagoga Nair esclarece para as professoras que tanto André como Marcos têm

“diagnósticos de hiperatividade”. Em outro momento, a pedagoga Carmen também

afirmou que Marcos teria esse diagnóstico. Existe esse discurso na escola (por

várias vezes foi mencionado pelas pedagogas), para justificar os comportamentos

deles, mas, em investigação mais apurada, descobrimos que Marcos nunca recebeu

esse diagnóstico e que André foi assim diagnosticado aos dois anos de idade, o que

contraria até mesmo os manuais diagnósticos tradicionais, embora estes sejam

amplamente questionáveis.

As pedagogas parecem querer justificar a necessidade de um trabalho mais

inclusivo com eles. Mas, na verdade, sabemos que o “diagnóstico” pode contribuir

para que as educadoras se desincumbam de buscar, nas relações produzidas nas

práticas, as causas dos problemas, que sempre são depositadas nas crianças.

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As pedagogas insistem que elas poderiam trabalhar mais com o grupo e menos

individualmente, que poderiam explorar jogos e dinâmicas de interação, teatro em

que eles pudessem trocar de papéis etc.

A professora de Educação Física interpela: − “Como fazer um trabalho se a família

está longe, se não dá para ter contato com eles?” A professora de Artes diz: “Sou só

uma professora, não estou pronta para isso”.

A professora de Educação Física tenta mostrar que o trabalho delas duas já está

bem articulado, mas as pedagogas pedem que elas pensem mais sobre isso.

Desse planejamento, notamos que, por mais que o discurso pedagógico proclame

essa necessidade de um trabalho mais articulado, mais coletivo, todas as propostas

acabam esbarrando na rotina de uma estrutura muito rígida, que faz atividades

lúdicas parecerem tarefas intermináveis, chatas, repetitivas. As brincadeiras livres

não têm direcionamento e nem mediação das professoras e ASGs; por outro lado,

os momentos de atividades mais dirigidas são tratados não como atividades lúdicas,

jogos e desafios, mas como deveres e obrigações. Explora-se muito pouco a

questão da fantasia e do resgate da infância através do lúdico, ou seja, explora-se

pouco aquilo que a criança tem desejo de fazer, os conteúdos que ela tem desejo de

conhecer, de falar etc.

Fonte: QUINO, 1993, p.332 Figura 26 – Docilidade e obediência: negação ao ser criança I.

Parece que a escola não quer a criança, quer o aluno dócil e obediente. A criança

concreta, com todas as vicissitudes de ser criança, é negada pela escola.

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Nós trouxemos algumas atividades para propor à professora de Artes. Na conversa

com ela, mostrou-se muito interessada em conhecer e explorar mais atividades, que

ela denominou “Arteterapia”.

Pesquisadora: − “Por exemplo, pintura de como está se sentindo naquele momento.

Vamos supor que ele esteja com raiva. Como seria pintar sua raiva? Já pensou?

Você talvez não transforme isso numa imagem, mas você consegue dar cor, colocar

alguma coisa espetada... Ou seja, trabalhar com expressão de sentimentos.”

Professora de Artes: − “A Arte tem toda uma possibilidade de trabalhar por esse

caminho.”

Pesquisadora: − “Como é que a gente pode favorecer esse trabalho? A gente bota

ela pra expressar, bota ela pra colocar pra fora. Como nos outros lugares, ela não

tem como... mas a escola tem como, porque a escola é um espaço de expressão. A

criança tem uma certa dificuldade pra falar do que incomoda.”

Professora Cássia: − “Outra opção também é uma peça de teatro. Duas crianças,

uma ser o pai do André e ele ser o filho. Como é que você fala com o pai...”

Pesquisadora: − “Não precisa ser direcionado.”

Pedagoga Nair: − “Ele vai expressar a figura do pai. Se a gente fizer uma pecinha de

teatro onde ele seja o pai, ele vai colocar tudo pra fora. E isso é uma válvula de

escape também”.

Pesquisadora: − “Se a escola proporciona esses momentos, a criança se ‘ex-pressa’,

ela fica sem essa pressão dentro dela. Mas se a escola não faz, é menos um

espaço. Porque talvez na família ele não tenha, na escola também não.”

André não quer entrar para a aula de Artes, fica dando socos no ar, diz que não quer fazer o dever, fica andando na sala, pulando nas cadeiras. Marcos implica, empurra e é retirado da sala pela professora de Artes. A atividade de Artes é de releitura de uma obra. A professora dá folhas para que as crianças desenhem o que mais gostaram na obra. André vai até a mesa da professora, pega uma folha e tesoura e diz que vai fazer uma pombinha (tema que ele vem mostrando interesse por toda a semana). Ele leva a pombinha até a professora para que ela veja, ela diz que sabe fazer uma bem legal que até bate as asas e que um dia ela vai ensinar (grifo meu) (EVANESCA, 20/08/07).

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O trecho ilustra a sobreposição da aula planejada, padronizada, sobre o que emerge

como recurso a ser utilizado para aproximar e desenvolver a criatividade naquilo que

se mostra como seu interesse e que poderia ser aproveitado para motivá-lo.

Fonte: QUINO, 1993, p.246 Figura 27 – Docilidade e obediência: negação ao ser criança II.

Sobre a aula de Educação Física, observamos muitas vezes sendo feita na sala de

aula, mesmo que o tempo estivesse bom. Nas vezes em que era feita no pátio,

priorizava competições, corridas, queimadas etc. Não percebíamos atividades de

expressão corporal, trabalho cooperativo, equipes etc.

“A aula de Educação Física é na sala de aula, com massinha, para os alunos

fazerem a aula de educação física que mais gostaram” (EVANESCA, 17/08/07).

Um momento tão especial poderia ser a Educação Física. Essa “aula” deveria ser a

mais prazerosa para todas as crianças, pois implica movimento, expressão corporal.

Nota-se, com espanto, à primeira vista, o fato de André não gostar dessas aulas e

costumeiramente se esquivar de fazê-las, fugindo para o pátio ou para outras salas.

O que isso poderia significar? Depois de algumas observações, percebemos que a

aula era cheia de regras. Em poucos momentos notamos prazer nas crianças ao

realizar essas aulas, que valorizavam mais a competição, o cumprimento de todas

as etapas, a obediência aos “comandos”.

Pelo exposto, fomos observando que as professoras do CMEI, de um modo geral, e

as de André, em particular, vêm de experiências com crianças maiores e até mesmo

com jovens. Atuam na educação infantil com modelos do ensino fundamental e

médio. Focam suas aulas em conteúdos a serem aprendidos e dão menos

importância aos esquemas mentais e corporais necessários para a aprendizagem.

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Exposto a esse ambiente e sem as condições necessárias para o desenvolvimento e

a aprendizagem da atenção e da auto-regulação de seus comportamentos, André,

em seu percurso escolar, teve o seu “adoecimento” produzido.

6.6 AS ESTAGIÁRIAS: ANJOS DA GUARDA

“Ao chegarmos na sala, os alunos nos chamam de anjos” (EVANESCA, 19/09/07).

Essa frase nos traz uma sensação de que o trabalho desenvolvido pelas duas

estagiárias, graduandas em Pedagogia na UFES, não se restringia a apenas

observar e conduzir intervenções focadas em André. Elas se incorporaram à

dinâmica da turma. Quando a professora passava lições mais complexas, que

envolviam noções ainda não alcançadas, as estagiárias sentavam-se ao lado,

auxiliavam, sem perder de vista que esse não era o seu papel fundamental dentro

da pesquisa. Passaram a fazer pontes entre André e as outras crianças,

especialmente Marcos, bem como entre as crianças e a professora, que ficava

auxiliando os alunos mais em sua mesa, ou organizando as próximas atividades.

Dada a desestruturação da sala de aula, excessivamente barulhenta e

desorganizada, pensamos que talvez fosse mais adequado que uma das estagiárias

ficasse mais próxima de Marcos e a outra mais próxima de André, para fazer uma

observação mais sistematizada e para intermediar as situações mais conflituosas.

A estagiária que ficou com foco em Marcos teve muita dificuldade para se aproximar

dele e, em nossa avaliação no grupo de estudos, entendemos que isso foi devido a

basicamente dois fatores: o primeiro, e mais visível, era o fato de ele ter uma ligação

muito forte com a professora, ligação essa que em certa medida o distanciava dos

demais; e em segundo lugar, pelo modo de ser da própria estagiária, mais

introvertida e quieta.

A estagiária que ficou mais próxima de André, por outro lado, foi também, na

avaliação do grupo, o diferencial que fez o trabalho com ele evoluir intensa e

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rapidamente, pois foi orientada a ouvi-lo, estabelecer um vínculo positivo e afetuoso

com ele e ao mesmo tempo não tirá-lo da relação direta com os demais colegas de

sala e com a professora.

Como a relação de André com a professora não era boa, a estagiária que ficou mais

próxima dele foi instruída a buscar uma aproximação mais efetiva dele e a valorizar

ao máximo a relação dele com a professora. Nos relatórios das estagiárias, feitos a

partir dos diários de campo, é possível destacar em vários momentos a forma

carinhosa e afetiva com que André passou a se relacionar com a estagiária

Evanesca, que faz os seguintes registros:

André acha uma flor e me dá. Ele diz que vai beber água e que é pra eu guardar seu lugar. Digo que primeiro ele tem que pedir à professora, ele não fala, sai e fica passeando pelo corredor. Quando retorna, pede que eu me sente ao seu lado, mas resiste em fazer o dever proposto pela professora. (...) A professora se irrita, diz que acha que só remédio vai dar jeito nele e puxa ele até o seu lugar. Ele termina os três deveres e no final me diz: “Trabalhei bem com você nessa atividade” (28/08/07).

...............................................................................................................

André me dá uma cartinha onde desenhou um coração com asas (27/09/07).

...............................................................................................................

Procuro André e demoro a encontrá-lo. Ele está brincando sozinho numa das salas de aula. Convido para que vá ao pátio comigo assistir à apresentação de teatro do grupo 4 (quatro anos), mas ele não quer. Fui ao pátio, onde ia começar a apresentação, logo em seguida ele chega, senta no meu colo e me dá um beijo. Assiste à primeira peça comigo e depois senta junto a sua turma (28/09/07).

Sobre o dia em que a professora faltou e deixou estipulado o que seria dado aos

alunos (pintura de um desenho do boto e confecção de bolinhas de papel crepom

para colar no contorno do desenho), num segundo momento, quando estávamos no

nosso grupo de estudos, estabeleceu-se uma nova reflexão sobre as posturas

adotadas nesse dia, a partir de um diálogo entre as estagiárias.

Justina: − “Mas também não dá pra fazer um trabalho só com ele, porque ela (a

professora) tem a turma toda pra dar atenção. Tem que ser com a turma toda. Ele

fica muito com a Evanesca, mas por quê? Ela está ali só por conta dele. Agora, a

professora tem que ter um trabalho que ela possa fazer com ele e com a turma toda,

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ela não pode fazer igual a nós. Então a Evanesca consegue que ele fique mais

sentado? Consegue, mas porque fica mais por conta dele.”

Evanesca: − “Mas, como que na terça-feira era só eu e a estagiária pra turma toda e

ele ficou? Não é questão de ter uma estagiária junto com ele, porque terça ele ficou

sentado o tempo todo...”

Justina: − “Mas você saiu da sua mesa, deu atenção, coisa que ela (a professora)

não faz.”

Evanesca: − “Uma coisa que eu reparei nele é que na terça-feira ele ficava

segurando minha perna, parecia tão carente de carinho...”

Justina: − “É uma pena que não tem muito psicólogo pra atender eles.”

Pesquisadora: − “É, mas aí teria que haver um atendimento familiar, além do

atendimento dele. E a escola, ela é terapêutica, porque a escola é um espaço que

pode ser de lazer, de afetividade, de trocas... A escola ocupa um lugar muito

privilegiado na vida das crianças, mas, infelizmente, muitas vezes, não há um

aproveitamento desse potencial.”

Observa-se que nas falas dos futuros professores já aparecem os serviços médico-

psicológicos como determinantes para que aconteçam mudanças nos

comportamentos das crianças, o que nos remete a Machado (2004), quando adverte

sobre a falta de visão dos professores quanto a seu próprio poder de

atuação/mudança sobre os comportamentos infantis.

No dia 22/10/07, a professora faltou, não mandou a chave de seu armário, onde

estavam todas as intervenções que havíamos programado, e não mandou

substituta. Uma estagiária da SEME, que foi enviada para ficar com a turma, chegou

na porta da sala e nos falou: “Logo nessa sala!”. A pedagoga improvisou uma

atividade xerocopiada de completar as palavras. André estava muito agitado, corria

de uma ponta a outra da sala, batendo na parede e na porta. A estagiária Evanesca

registrou assim esse momento em seu diário de campo:

Consegui pará-lo (André) para tentar um diálogo, para que ele se acalmasse. Ele reage a mim. Esses momentos são muito ruins porque ele fica transtornado. Vou falando bem devagar e o acalmando (...). Pergunto o que houve, mas ele não consegue me

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responder, está chorando e muito nervoso (...). Passado esse momento dificílimo, combino com ele que deixaria ele brincar, enquanto os colegas estão fazendo a atividade, mas que em seguida ele fizesse o seu dever também (...) Ele topa, brinca um pouco e depois de muito insistir (...) ele senta comigo e faz a atividade. Depois fiquei refletindo sobre esse momento. Pensei que poderia ter dado errado, pois ele poderia simplesmente não me ouvir. Esse não é um modo muito pedagógico, segundo o que aprendemos na academia e até mesmo na prática escolar, porque daí se dá a mesma liberdade para todos. Mas, uma coisa concluí com André sobre esse evento: talvez, para acalmá-lo e ele poder entender (internalizar) algumas regras escolares (...), seja necessário primeiro acalmá-lo, porque insistir para que ele sente, faça o dever sem antes colaborar para que ele assimile e introjete isso, deve-se ter uma mediação, pelo menos até que ele consiga internalizar essa demanda. É claro que tenho consciência que essa tática, totalmente improvisada, nem sempre pode dar resultados (grifo meu) (EVANESCA, 22/10/07).

O trecho ressalta um momento importante de reflexão produzido pela estagiária. Era

notório o aprendizado que aquelas interações estavam produzindo nela e em todos

nós. O trecho grifado é uma questão que nos assolava: o que seria pedagógico

diante de tanta complexidade?

6.7 AS PEDAGOGAS E SUA FALTA DE TEMPO PARA PLANEJAMENTO

As pedagogas mostravam um nível de auto-crítica bastante aprofundado sobre a

realidade do CMEI e sobre a importância de um trabalho coletivo para tratar das

questões disciplinares de algumas crianças. Mostravam, em suas falas, que o

trabalho coletivo e a reflexão crítica eram fundamentais à inclusão nesse seu

contexto de atuação. Observando isso, apostamos nessa linha de trabalho, o

planejamento pedagógico, como nossa maior estratégia. Ou seja, como trabalhar

junto com a professora e junto com as pedagogas no sentido de voltar o

planejamento para dar destaque a essas questões que tanto importunavam a todos,

mas que não ganhavam um espaço de discussão adequado, sistemático e dentro de

uma metodologia que privilegiasse os interesses dos alunos.

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A pedagoga Carmen falou: − “Isso também é culpa nossa, porque a gente está

planejando com eles e a gente não está planejando nada disso”.

Podemos perceber nessa fala contundente que havia clareza quanto ao fato de que

o enfoque estava muito preso à produção dos alunos, em detrimento de sua

formação geral, relacional, e que o planejamento não estava priorizando isso. Para

além das atividades, o que poderíamos pensar? A idéia era possibilitar ao grupo de

alunos discutir seus próprio problemas, produzir uma reflexão coletiva sobre suas

maiores dificuldades; e ao professor, que se colocasse como mediador dentro do

grupo, pra resolver as questões do grupo, trabalhar os alunos nesse sentido, no

sentido da reflexão e da relação com os demais.

“Torna-se consenso entre nós três – eu e as duas pedagogas - que elas precisariam abrir espaços para as professoras planejarem com elas outras atividades, que muitas vezes elas até já fazem, mas não de forma sistemática. E que esse planejamento teria que ser pensado para as especificidades de cada grupo de alunos. “Se existe numa sala um aluno agressivo, não se pode planejar as atividades como se não houvesse lá um aluno agressivo” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/09/07).

Assim, recorremos ao questionamento de Aquino (1999) para estabelecer uma

reflexão mais aprofundada sobre as incoerências no uso do tempo no CMEI. Ele diz:

“Não é verdade que, por força das circunstâncias, gastamos a maior parte do nosso

tempo mais preocupados com os objetivos e resultados oficiais de nossa

intervenção do que com as nuances do processo ensino-aprendizagem, em seus

múltiplos desdobramentos subjetivos?” (p.12). E, em seguida, ele mesmo aponta o

revés disso:

Nesse sentido, os transtornos materializados nas condutas “desviantes”, anômalas, da clientela escolar constituem uma excelente oportunidade para uma reflexão consistente e honesta acerca dos muitos limites bem como das tantas possibilidades da prática escolar na contemporaneidade (AQUINO, 1999, p.12).

A pedagoga Carmen, numa de nossas conversas, admitiu que estava muito distante

da sala de aula. Que antes era mais próxima, mas que agora nem conhece mais as

crianças. Pelas nossas discussões, ela diz que vem se dando conta disso e que isso

a está incomodando. E fala: – “Hoje em dia, parece que está havendo uma

necessidade maior de controle sobre as produções das crianças, eu acho que é

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também uma forma de mantê-las ocupadas. Hoje, não se usa mais tinta no CMEI.

Parece que a gente entrou num trem e não quer parar em estação nenhuma para apreciar a paisagem. As pessoas estão mais rígidas, mais engessadas,

trabalham menos em grupo. Antes os professores eram mais amigos. Parece que

hoje os grupos não são mais grupos, é um conjunto de pessoas atuando

individualmente. (...) Há uma exigência e uma inflexibilidade e falta

companheirismo.” (grifo meu)

Era evidente que o planejamento deveria priorizar as questões mais prementes das

crianças. O planejamento não deveria ser um, não deveria ser neutro e

indiferenciado. Ele deveria ser pensado para aquela turma, com aquelas

características, com aquela criança que está lá. Isso é inclusão.

Para inserir essa gama de problemas como configuração também de uma NEE, é

necessário não se ater a planejamentos de atividades somente dirigidos à área

cognitiva, mental. Embora esse pareça ser o objetivo principal da maioria das

escolas de educação infantil – desenvolver o intelecto –, não devemos esquecer que

as crianças também precisam desenvolver um senso ético de resolução de seus

problemas e que a sua maior forma de expressão é a brincadeira.

6.8 O PROCESSO COLABORATIVO

... se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a educação bancária pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação. Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar esta possibilidade. Não fazemos esta afirmação ingenuamente. Já temos afirmado que a educação reflete a estrutura do poder, daí a dificuldade que tem um educador dialógico de atuar coerentemente num estrutura que nega o diálogo. Algo fundamental, porém, pode ser feito: dialogar sobre a negação do próprio diálogo (FREIRE, 1970, p.70-1).

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O trabalho colaborativo foi um processo que durou quatro meses completos e foi

marcado por muitos avanços e retrocessos, muito diálogo e discussão, muitas

concordâncias e discordâncias.

Os primeiros encontros, como já dito, foram muito positivos porque promoveram a

elucidação de que todas nós, embora tivéssemos os mesmos propósitos – a

inclusão de alunos com sinais de desatenção/hiperatividade -, não tínhamos ainda

nossas premissas filosóficas e teórico-metodológicas bem afinadas. Foi um tempo

para isso, para nos afinarmos. E mesmo com concepções por vezes muito distintas,

ainda assim procurávamos encontrar uma prática pedagógica que pudesse embasar

um processo de mudanças efetivas nessas crianças e, porque não dizer, também

em nós mesmas.

Entretanto, não foi sempre assim. Tivemos momentos de tensão e de nos

perguntarmos se esse trabalho estava realmente seguindo uma via que nos

garantisse chegar a algum lugar.

Logo no início, precisamos trabalhar muito com as idéias que a professora construiu

a respeito de André, todas muito negativas, pelas informações que lhe foram

passadas.

A entrada de André na turma da professora Cássia foi marcada, especialmente no

início, por situações muito constrangedoras, que fogem aos preceitos pedagógicos.

Ele cada vez mais arredio, esquivando-se de ficar na sala, a agressividade entre ele

e Marcos aumentando em níveis absurdos, e a relação dele com a professora

deteriorando-se rapidamente.

A professora Cássia mostrava dificuldade em vê-lo como uma criança que precisava

de sua ajuda e atenção. Parecia não acreditar na possibilidade de trabalhar a sua

convivência com os colegas, como uma alternativa possível, bem como realçava a

sua indisciplina e/ou falta de limites, como ela mesma repetia. Também não

trabalhava na perspectiva de que a desatenção e a falta de controle no próprio

comportamento, em muitos momentos discutidas no grupo, poderiam ser

trabalhadas, já que a atenção e auto-regulação do comportamento são funções

psicológicas superiores que precisam ser desenvolvidas porque, segundo Vygotsky

(1988, 1989), não são inatas.

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Às vezes, ficava perceptível certa resistência em relação a André e às nossas idéias,

o que é de certo modo compreensível, pelos fatores já mencionados, como revela a

fala a seguir, no início de um de nossos primeiros encontros:

Pesquisadora: − “Primeiro, eu queria que você falasse como está o seu dilema lá na

sala de aula e dizer que a gente gostaria de pensar junto com você outras coisas,

outras possibilidades (...).”

Professora Cássia: − “Eu queria dizer que ela (aponta para a estagiária Evanesca) é

minha melhor atualizadora de tudo.”

O começo do trabalho mais específico com a professora Cássia foi marcado por

certa dificuldade em falar sobre os problemas que estavam incomodando em sua

sala de aula. André estava nessa turma e, inicialmente, ficou um pouco acanhado

por estar com pessoas diferentes. Pareceu a todos que a professora Cássia iria

conseguir “colocá-lo nos eixos”, como disse a pedagoga Carmen. Mas o que

sucedeu foi que André passou a, recorrentemente, “escapar” da sala de aula, o que

deflagrou certo mal estar, que deixou a relação dele com a professora em franca

hostilidade. Talvez por isso também fosse mais difícil para ela querer discutir o caso

dele ou mudar suas atitudes em função dele. Pareceu-nos que ela ficou enrijecida

pela expectativa que colocaram sobre ela, de que ela daria conta de controlá-lo.

As tentativas iniciais foram marcadas por autoritarismos, imposições, e até mesmo

enfrentamento físico. Prendendo André entre suas pernas, ela sentava-se no chão e

por muitos minutos tentava imobilizá-lo, diante de todas as outras crianças, até que

ele se cansasse e se “rendesse”. Essas estratégias de manipulação acabavam

minando ainda mais a confiança nela. Como se pode notar no trecho descrito a

seguir, que traz um episódio em que André havia trazido um filme de casa (um filme

bem violento, segundo a estagiária) e insistia em passá-lo. A professora, sem

conseguir dirimi-lo da idéia, assim relatou o episódio:

Eu perguntei pra ele se o filme era legal. Ele falou ‘é muito legal, você vai gostar’. Só que eu peço às crianças pra elas elegerem o filme que elas querem. Ele queria que colocasse o dele, mas na votação ele perdeu, aí ficou danado da vida. Aí eu falei: ‘Ó André, eu só vou colocar o seu se você assistir esse aqui primeiro’. Aí ele teve que ficar. Ficou esperando até o filme acabar pra assistir o dele. Aí aconteceu que acabou, já estava na hora do recreio, aí eu falei: ‘Ó André, agora eu vou levar o pessoal pro pátio’. E ele falou: ‘Eu fico

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aqui’. Aí ficou ele e mais um. Tudo tem que ser do jeito que ele quer tem de ser do jeito dele. Eu não sei como ele manipula a mãe dele para as coisas que ele quer (PROFESSORA CÁSSIA).

O diálogo a seguir também reforça a idéia de que, por tratar-se de crianças

pequenas, muitas vezes os adultos não têm a clareza de que lhes devem

esclarecimento quanto àquilo que lhes diz respeito. É um relato a partir da decisão

de trocar Marcos de turno, o que não foi acatado por sua família, mas foi dito na

turma. Quando ele entrou na sala de aula, a professora não explicou a seus alunos o

que havia acontecido de fato. A ausência de um diálogo franco não era uma

carência apenas notada entre os alunos, mas também, como nesse caso, entre a

professora e os alunos.

Professora Cássia: − “Eu conversei com ele (André) e ele prometeu que ia ficar

quieto. Que não ia mais bater em ninguém, porque ele alega que o problema dele é

o Marcos. Aí eu disse: “Olha, o Marcos não está mais aqui”. Aí, assim que Marcos

entrou na sala de aula, ele gritou: “Tia, Marcos está aqui! Você falou que o Marcos

não estava, o Marcos está aqui!”.

Pesquisadora: − “Agora tem que explicar pra ele o porquê, senão vai achar que você

contou mentira pra ele. Tem que explicar que a avó veio aqui hoje e colocou ele de

novo.”

Professora Cássia: − “Aí eu disse: “Eu sei André, depois eu converso com você”. Aí

ele disse: “Mas você falou...”

E, de fato, depois disso, ela não conversou. A mudança de Marcos para outro turno

havia sido pensada como uma saída para afastá-los, já que começaram a ocorrer

episódios de extrema violência entre os dois. Mas, nesse caso, a mudança foi

anunciada e nada foi explicado acerca de sua revogação. Então, percebíamos esses

momentos como retrocessos na qualidade da relação entre professora-aluno.

Um diálogo entre a estagiária Evanesca e uma professora do CMEI, ocorrido na sala

dos professores, mostra-nos que práticas como essas não são isoladas.

É importante relatar uma conversa que tive com uma professora na sala dos professores, quando fui beber água. Ela me pergunta qual a minha formação e em seguida diz: Você acha que esses meninos

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têm jeito? Foi interessante a conversa porque ela abriu para mim sua vivência e os sentimentos que tem em relação a sua impotência em relação a esse assunto. Falou-me de algumas práticas que não são consideradas as ‘melhores’ (e que vemos se repetir nesse CMEI), mas que ela ‘tentava’ (segurava o aluno no chão até que ele se acalmasse) (EVANESCA, 06/09/07).

Com a professora Cássia, buscávamos questionar esses momentos em busca de

alternativas para que ela conseguisse melhorar a qualidade da relação com André e

ampliasse a permanência dele em sala de aula.

Mas as tentativas dela ainda eram cheias de equívocos, como mostra a situação a

seguir, descrita pela estagiária Evanesca:

Hoje a atividade inicial dada foi de pintura e brinquedos de encaixe. (...) Marcos quis distribuir o material para os colegas. (...) André realizou esta atividade por completo, fazendo-a com vontade. Terminou antes dos demais alunos e depois saiu da sala. Depois do recreio, não quis sair do parquinho. A professora, então, pediu que um aluno fosse chamá-lo, mandando dizer para ele que estava distribuindo pirulito para a turma. Ele veio correndo e quando chegou na sala foi recebido com muitas gargalhadas, inclusive da própria professora. Ele irritou-se e fugiu para o solário (que fica na parte de trás da sala). Quando saiu, os alunos em coro cantarolavam: ‘Até que enfim, até que enfim... ‘Ele retornou, a professora foi atrás dele pedindo que retornasse para a sala. Como não obedecia, ela foi arrastando-o até a sala e falando: ‘Você sabe que não ganha de mim’, ‘Você não mede forças comigo’, ‘Vamos ver quem vai vencer’ (...). Ele, logicamente, não quis ficar na sala após o ocorrido, saiu e foi para a sala do grupo 4 e com eles jantou (EVANESCA, 14/09/07).

Segundo Aquino (1998), sobre a questão da violência, em termos institucionais, a

ação escolar é marcada por uma “reprodução” difusa de outros contextos

institucionais fundamentais da sociedade, como a economia, a política, a família, a

mídia etc. Mas Aquino, na mesma obra, adverte que a escola não é uma reprodutora

pura e simples do seu contexto exterior. Ela produz nos interstícios do cotidiano

escolar algo novo em função disso. “(...) É mais um entrelaçamento, uma

interpenetração de âmbitos, entre as diferentes instituições que define a malha de

relações sociais do que uma suposta matriz social e supra-institucional, que a todos

submeteria” (1998). De fato, nem a instituição escolar opera à revelia das influências

macro-sociais, nem está completamente entregue aos seus atores constitutivos.

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Nessa linha, “as escolas também produzem sua própria violência e sua própria

indisciplina” (GUIMARÃES, 1996, p.177, apud AQUINO, [on line] 1998).

Dessa forma, Aquino propõe que a violência na escola (o autor usa o termo assim

mesmo) seja tratada diferentemente da violência na família, nas prisões, nas ruas

etc. “Como se todas elas fossem sintomas periféricos de um mesmo ‘centro’

irradiador” ([on line] 1998). Propõe, ainda, que, no caso da escola, é preciso

“rastrear, no próprio cenário escolar, as cenas constitutivas assim como as nuanças

dos efeitos de violência que lá são testemunhados”. E que se tome as relações

institucionais como dispositivos que retroalimentam as marcas da violência,

especialmente no que tange à relação professor – aluno.

A relação professor-aluno passa, nesse sentido, a ser o lócus estrutural e

conjuntural da violência escolar. Junto com Aquino, concordamos que essa

afirmação não justifica a violência escolar, nem tampouco busca culpar o professor

ou o aluno. Aquino fala em uma “violência ‘positiva’, imanente à intervenção escolar,

constitucional e constituinte dos lugares de professor e aluno” ([on line] 1998).

Assim, a relação professor-aluno não somente sofre as conseqüências de uma

violência externa, social, mas também a institui quase compulsoriamente, como o

autor mesmo diz, porque nessa relação se produz transformação.

Um dos dispositivos que operam dentro dessa relação é a autoridade atribuída aos

agentes institucionais, em especial o professor.

É nessa espécie de ‘promessa’ depositada no agente, por parte da clientela/público, que residirá grande parte da eficácia operacional - leia-se imaginária - das instituições. Sem ela, não haveria a possibilidade de existência concreta para as práticas institucionais que tomamos como naturalizadas, imprescindíveis ou mesmo inevitáveis (AQUINO, [on line] 1998).

Autoridade é um termo que aqui ganha a conotação de outorgação de poder. Ou

seja, o exercício de um direito legitimado concedido aos agentes da instituição

escola, com a finalidade de obrigar alguém a fazer alguma coisa, aspecto em que se

aproxima da definição de violência.

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Fonte: QUINO, 1993, p.331 Figura 28 – Resistência I.

Aquino, no mesmo texto, conclui que, do ponto de vista institucional, não há

exercício de autoridade sem o emprego da violência, nem vice-versa. Portanto, diz:

A violência como vetor constituinte das práticas institucionais teria como um de seus dispositivos nucleares a própria noção de autoridade, outorgada aos agentes pela clientela/público, e avalizada pelos supostos ‘saberes’ daqueles. Por essa razão, reafirmamos a convicção de que há, no contexto escolar, um quantum de violência ‘produtiva’ embutido na relação professor-aluno, condição sine qua non para o funcionamento e a efetivação da instituição escolar (AQUINO, [on line] 1998).

Essa compreensão positiva da associação entre violência e autoridade também foi

defendida por Foucault em sua proposição sobre o poder, quando diz que o poder

também produz: “(...) ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da

verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter originam-se nessa

produção" (FOUCAULT, 1987, p.172).

Aquino (1998) chama de “crise da autoridade docente” à crise paradigmática e ética

que se espalha pela instituição escolar. Ele explica que se trata de uma crise em

relação à tradição ou ao passado. Ele cita Arendt (1992) para explicar que: “É

sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é

de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua

própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado” (p.243-4).

“A escola é, por excelência, lugar do passado”, afirma Aquino, enquanto resgate

histórico, enquanto tradição. Mas ressalta que “tradição não é sinônimo de

anacronismo, assim como autoridade não é sinônimo de despotismo. Muito ao

contrário”. O que nos permite concluir que a questão da autoridade do professor é o

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ponto nevrálgico da ética docente, que regula primordialmente o trabalho

pedagógico, e que pode interferir na violência escolar.

Abstivemo-nos de julgar as práticas da professora Cássia com as crianças,

especialmente com André. Colocávamo-nos ao seu lado para ouvir e, com os fatos

mais evidenciados por todos nós ali presentes, tentávamos fazer uma reflexão mais

aprofundada. A reflexão, na concepção de Furter (1982), supõe uma análise da

própria ação de modo particular e distanciado. Seria um pensamento de segunda

ordem, em que o sujeito repensa a sua ação. Na realidade, todo professor é

reflexivo, em maior ou menor grau, pois reflete sobre suas ações, ainda que num

plano assistemático, menos elaborado ou mesmo desprovido de senso crítico.

Contudo, segundo Furter (1982), a reflexão não constitui uma prerrogativa da ação,

pois é possível agir sem refletir, embora não sem pensar. E diz ainda que é preciso

desenvolver essa capacidade, já que não é um mecanismo espontâneo. Acionar

mecanismos reflexivos requer: “(...) uma perseverança que nos cansa e que pode

ser suportável só se os outros pensarem também conosco. A reflexão pressupõe,

para durar, uma intersubjetividade, que é o fundamento do trabalho em equipe, tão

importante hoje em dia” (FURTER, 1982, p.30).

Voltando à professora Cássia, todos os fatos eram colhidos no sentido de

questionarmos o universo em que isso se circunscrevia. A importância de uma

relação respeitosa e afetuosa dela com ele era a todo momento lembrada, algo que

todos nós, profissionais da educação e da saúde, reconhecemos como verdadeiro,

ainda mais na educação infantil.

Retomando o episódio anterior, relatado pela estagiária, ouvimos a professora, que

sobre ele assim se posicionou:

Professora Cássia: − “Eu já reparei que André, quando se sente pressionado, (...) ele

faz aquela cara assim, e aí começa a crise dele. Você precisava ver a crise dele na

sexta. Ele tava passeando lá fora. Eu mandei uma menina lá fora e falei: fala que eu

tô dando pirulito pra todo mundo, só assim ele vem (...). Ele veio. Quando ele

chegou aqui, o que as crianças fizeram? Ah,ah,ah a tia não tá dando pirulito! Aí ele

virou o ziza.”

Pesquisadora: − “Parece que ele se sentiu enganado.”

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Professora Cássia: − “Nossa senhora! Foi lá pra fora (solário). Daqui há pouco tô eu

segurando ele.”

Pesquisadora: − “Mas, aí não é pior? Ele não fica pior com você depois, numa

relação pior.”

Professora Cássia: − “Eu não sei se você já viu ele nessas crises. Se eu solto ele,

ele sai batendo em todo mundo que ele encontrar pela frente. Ele levanta a mão

assim, assim, assim. Ele fica completamente transtornado, o que ele vê pela frente

ele vai derrubando. Pega os pequenininhos, sai levando mochila. O dia que eu

deixei, ele pegou dois bichinhos do maternal. Eu não quero ver ele machucando as

crianças.”

Pesquisadora: − “E faz isso também sem motivo, sem ter acontecido alguma coisa?”

Professora Cássia: − “Não, é sempre quando ele se sente acuado, aborrecido.

Entendeu? Ele precisa extravasar, como se pensasse: Eu não posso bater nela, vou

bater nos outros.”

É interessante notar que uma reação a algo pode ser vista como adoecimento,

“crise”, mostrando que algumas práticas pedagógicas não se sustentam em

nenhuma base teórica.

Esse diálogo me fez lembrar que também a professora Tatiana, quando ele ainda

era aluno da manhã, nos disse que freqüentemente ele tinha uma “crise”. Referindo-

se a quando ele permanecia menos na sala. Tatiana adotava posturas diferentes,

mas também se referia aos comportamentos inadequados de André como “crise”:

“Quando é assim, não insisto, para não provocar mais ‘crise’”.

Essas estratégias mostraram-se impróprias sob todos os sentidos. Percebemos que

era o que a professora dava conta naquele momento. Nesse sentido, enveredamos

por um exercício crítico-reflexivo a partir da prática coletiva, realçando o quanto ela

ainda estava impregnada pelo modelo clínico. Dessa discussão surgiu a idéia de que

a permanência dele em sala deveria ser buscada de outras formas. E a própria

professora foi, com o passar do tempo, percebendo mais isto, já que ele se

aquietava por um tempo dentro da sala e, quando chegava o momento da tarefa, ele

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fugia, colocando em “xeque” a autoridade da professora, que havia empreendido

tanto esforço em tentar mantê-lo ali, mas muito ainda com autoritarismos.

Entendemos, como Foucault, que o professor ocupa um lugar de poder e é esse

poder que o conduz a produzir ali, nos espaços escolares, o saber. Existem estilos

de ensinar que aparecem das relações ali estabelecidas, podendo variar do

autoritarismo à relação dialógica. O autoritarismo provavelmente gera medo, fuga,

resistência, desistência. O diálogo, o abraço, o sorriso, as palavras de incentivo, a

crença nas possibilidades de crescimento do outro e de si mesmo, provavelmente,

permitem outro tipo de vivência, permite a esperança. Além disso, parece que o

professor é conflituoso com relação ao poder. Quer um poder “romântico”, estático,

alinhado. Quando algo desestabiliza essa ordem, o professor muitas vezes espera

que alguém resolva (o pedagogo, o especialista, o psicólogo etc.). Assim, a criança

que apresenta problemas comportamentais pode ser vista como tendo um problema

nela, não na relação com o poder do professor, e assim espera-se que possa ser

atendida por outro.

Não se opera, nessa medida, com a possibilidade da agressividade mostrada pela

criança ser uma forma de expressão de suas fantasias. André parecia imerso em

situações fantasiosas na maioria das vezes que batia. A impressão que tínhamos é

que ele representava um ser qualquer, muito bravo, que queria eliminar todos os

seus inimigos. Aliás, ele parecia imerso no seu próprio mundo quase o tempo todo.

Mas, o interessante é que isso não era considerado e nem tampouco explorado. Um

ser que bate pode ter uma intenção positiva ao fazê-lo ou mesmo pode ter, ele

mesmo, um lado bom. O trecho que segue mostra interessante observação nesse

sentido, quando um personagem que sempre bate (e é muito utilizado por André nos

seus momentos de agressividade) é mostrado de outra forma:

“André está brincando no chão com outras cinco crianças, quando eu entro. Sento próximo. Percebo que ele está brincando com o “Power Ranger” amarelo, de casinha, com uma menina. Dobra a calça de um boneco e faz diversas atividades como se o “Power Rangers” morasse lá. Ele fala: “olá, pessoal!”, como se fosse o boneco que estivesse falando. Interage nas brincadeiras com os outros. Depois diz: “Minha querida, o jantar está pronto” (DIÁRIO DE CAMPO, 03/07/07).

Outra situação é também elucidativa.

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“No pátio, André brinca de “Power Rangers” com outras crianças. A professora Tatiana vem buscar seus alunos e começamos a conversar amenidades. De repente, Tatiana o vê provocando choro numa outra criança. Briga muito e diz para o menino que chorava: “Eu te chamei antes de você apanhar”. André diz: “Apanhar?” Como a querer dizer: “Eu bati nele?” (DIÁRIO DE CAMPO, 31/07/07)

Esse assunto foi tratado num dos encontros de formação continuada, pois o pátio

era um momento crítico em que todos os dias havia reclamações em torno dessas

“brincadeiras” de André, que eram, para todos, simplesmente agressividade.

Questionamos que o pátio era também um local desprovido de brinquedos,

atividades dirigidas, e questionamos que outras possibilidades poderiam ser

pensadas para evitar essa repetição nos comportamentos dele. Já havíamos

identificado, pelas observações, que ele trazia personagens como os “Power

Rangers”, e que esses personagens têm atitudes nas lutas contra o outro, de

violência, de ataque. Só que André traz esses personagens, mas não dentro de uma

proposição para os colegas, ou seja, vamos brincar disso, “eu sou determinado

‘Power Rangers’ e vou fazer determinadas ações e você é o outro, que faz outras

ações”. E essas ações têm um objetivo. Qual é esse objetivo? Ele demonstra, ele

representa esses personagens, mas nem sempre esses personagens estão também

compartilhados pelos colegas. Então ele brincava praticamente sozinho.

Os personagens que ele e muitos outros alunos insistiam em representar eram

recorrentemente negados e rechaçados pelos profissionais do CMEI, deixando

transparecer a concepção de que se a criança brincar de jogos violentos será um

adulto violento.

Jones (2004) mostra que a sociedade, de um modo geral, acredita nisso. Mas ele

afirma o contrário: mostra que dentro dessa necessidade de ser violento nas

brincadeiras, a criança está sendo violenta numa situação que não é real, é uma

situação de brincadeira.

A questão é quando o adulto trata esse brincar como realidade, o que acaba

deixando a própria criança sem o seu referencial. É por meio da brincadeira que a

criança pode começar a aprender qual é a diferença entre mundo da imaginação e

mundo real.

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O próprio grupo foi então construindo a idéia de que não basta tentar simplesmente

impedir o comportamento. No caso de André, o comportamento agressivo dele

precisava ser contido, mas também ser compreendido nos seus motivos de trazer

aquela brincadeira. Por que André queria tanto dar vida a esses personagens, que

são personagens que têm poder, e que nem sempre são os vilões, mas também são

os mocinhos? Porque os "Power Rangers" têm esse poder de matar o vilão, dar

chute, dar soco, soltar raios... Então, era preciso compartilhar com ele essa situação

que ele estava vivenciando.

Fonte: QUINO, 1993, p.349 Figura 29 – Resistência II.

Vygotsky (1988) diz sobre auto-regulação do comportamento: “Antes de controlar o

próprio comportamento, a criança começa a controlar o ambiente com a ajuda da

fala. Isso produz relações com o ambiente, além de uma nova organização do

próprio comportamento (p.27). E ainda: “(...) as atividades adquirem um significado

próprio num sistema de comportamento social (...)” (p.33).

Uma ordem verbal, para se constituir em fonte reguladora do comportamento do outro, precisa ser internalizada e, para tanto, necessita ter significado social e sentido para o sujeito. Sem essa significação não há carga afetiva para o processo de internalização - que nada mais é que o sujeito fazer sua a fala do outro e orientar-se por ela (VYGOTSKY, 1988, p.176).

Vygotsky (1988) propõe que na interação dialógica estão envolvidos elementos

intersubjetivos, não só de significação dos enunciados comunicativos, mas

principalmente de atribuição de uma significação ao outro.

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Trabalhar nessa perspectiva, respeitando os interesses do aluno, parece ser o

grande desafio quando se trabalha na educação infantil. A própria professora dele

nessa época (Tatiana) admitiu que quando entrava um pouco no “mundinho dele” e

falava sobre essas temáticas, isso prendia a atenção dele no que ela estava falando.

Mas a idéia de que isso poderia deixá-lo mais agressivo impedia qualquer

movimento nesse sentido, tanto da professora como dos outros profissionais que o

acompanhavam.

Dentro da abordagem histórico-cultural, trabalha-se com a concepção de que a

criança só aprende quando ela tem necessidade de aprender. Então, como que nós

podemos fazer surgir nessa criança a necessidade para aprender?

Um trecho de uma conversa da professora Sonia com André é esclarecedor:

Pesquisadora Sonia - Você quer aprender a escrever?

André – Não.

Pesquisadora Sonia - Não? Mas, olha, e o videogame? Como você vai ler as instruções do videogame?

André - Não precisa, tem seta.

Então, por esse pequeno trecho, talvez possamos entender um pouco do universo

em que André estava imerso. A idéia que fomos discutindo não nos mostrava como

promissor o caminho de impedi-lo de brincar desse ou daquele personagem.

Vygotsky, ao afirmar que a aprendizagem e desenvolvimento "estão inter-

relacionados desde o primeiro dia de vida da criança" (1988, p.110), estabeleceu

que a criança se desenvolve de acordo com as possibilidades que o seu convívio

sócio-cultural lhe oferece e envolve a total interação entre os indivíduos para que

isso se dê. O outro (social) tem vital importância nos estudos de Vygotsky, pois é a

possibilidade de um aprendizado que move o processo interno do indivíduo, ligando

o desenvolvimento da pessoa à sua relação com o ambiente sócio-cultural, ou seja,

os sujeitos têm o seu desenvolvimento marcado pelas relações com os outros à sua

volta e, de modo macro, com a cultura.

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Das nossas discussões semanais vão surgindo algumas idéias como, por exemplo,

trabalhar mais na roda de conversa, proposta pela professora Rosalva (do grupo 6E,

que fazia o planejamento junto com Cássia).

A professora Cássia retruca: − “Eu já trabalhei muito rodinha, mas era uma turma

mais tranqüila. (...) Eu tinha um ou dois só que agitavam, então a turma segurava o

tranco. Dessa vez, não. A turma toda é agitada, então a turma não ajuda eu

consertar aqueles que estão agitando. (...) Eu vou passar a fazer a rodinha no início,

todo dia, na hora que eu entro, pra ver se a gente dá uma melhorada. (...) A reflexão

ajuda, mas você precisa ter... as próprias crianças cobram isso, você bateu nos

outros, conversou, conversou, conversou, só? (...) Tem que fazer alguma coisa...

porque ele tem que ficar com medo de fazer de novo. Porque se for só a conversa...”

A professora mostra certa dificuldade, que poderíamos relacionar, em alguns

momentos, com resistência em construir relações de respeito que não passem pelas

regras impostas ou pelas sanções. O diálogo democrático é visto como algo sem

sentido se não houver punições e cumprimento de regras, o que acaba dificultando

uma maior reflexão grupal que produza uma reflexão ética.

Embora, de modo geral, todos entendam a importância do diálogo, “na roda” as

crianças mais ouvem como devem se comportar, mas, para conversar sem nenhum

“objetivo”, parece não haver tempo, não ser produtivo.

As posturas desconsideravam amplamente os preceitos de Vygostsky (1988) de que

a linguagem tem uma importante função na regulação do comportamento. Vygotsky

esclarece que a linguagem, além de sua função comunicativa e constitutiva do

pensamento, tem a importante função de regulação do comportamento:

(...) concebemos a atividade intelectual verbal como uma série de estágios nos quais as funções emocionais e comunicativas da fala são ampliadas pelo acréscimo da função planejadora [no sentido de regular, organizar a ação]. Como resultado a criança adquire a capacidade de engajar-se em operações complexas dentro de um universo atemporal. (...) As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais (VYGOTSKY, 1988, p.31).

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Esta função, diga-se, é alcançada e desenvolvida não meramente pelo uso da

palavra ou outro signo, mas por sua significação num contexto social. Em outro

momento, no mesmo texto, diz Vygotsky:

Além disso, a função reguladora da linguagem sobre a ação - na sua expressão "externa" (comportamento) e "interna" "(afetivo-cognitiva) - passa por uma gênese em que, inicialmente, ação e linguagem estão separadas, no desenvolvimento da criança; depois, a linguagem acompanha de diversas maneiras a ação, até quando fala e ação se tornam um amálgama: a linguagem, agora auto-orientada, passa, então, a dirigir e organizar o curso da ação (VYGOTSKY, 1988, p.175).

Nossas conversas evidenciaram que também não seriam atividades pontuais, nessa

ou naquela aula, que promoveriam uma mudança na organização da sala. Aos

poucos foi se evidenciando que um conjunto de posturas seria necessário.

Seguimos com algumas interpelações para desviar o discurso de certezas dos

adultos, dando voz aos pequenos que, pela linguagem verbal e corporal, podem dar

vazão às suas emoções, elaborando-as. Segue um pequeno recorte para

exemplificar:

Professora Cássia: − “Porque só conversa, conversa, conversa, o André já sabe. Ele

está acostumado com conversa. Quantas pessoas já conversaram com ele aqui?”

Pesquisadora: − “Não, mas não seria alguém falar pra ele, seria ele falar sobre o que

sente, como sente, falar dos seus sentimentos...”

Nas proposições que vamos fazendo, tentamos pontuar os maiores problemas que

envolvem a dinâmica da sala no cotidiano.

Pesquisadora: − “Agora, vamos pensar alguma coisa para os dias em que eles

chegam mais agitados (...). Você já nos disse que há dias em que é impossível

trabalhar com ele, ele acaba com o planejamento do resto do dia. Não é verdade? A

professora Tatiana também falava isso de manhã, que tem dia que ele chega legal,

que dá pra trabalhar, dá pra fazer as coisas; tem dia que ele não faz e não fica.”

Professora Cássia: − “Nesses dias, eu deixo ele solto.”

Pesquisadora: − “Então, mas aí eu fico pensando...”

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Professora Cássia: − “Eu confesso mesmo, porque não tem jeito, eu não consigo

nem correr atrás dele.”

Pesquisadora: − “Então, que tal se nesse dia ao invés de você seguir o que está

planejado, que é normalmente uma atividade no começo e depois as outras coisas

conforme vai passando o horário, (...) você mudasse o que está planejado... usar

uma história, mas já ter a história reservada pra esses momentos, uma história

assim que seja bastante atrativa para eles; (...) pra quebrar aquele estado que ele

veio, que já chega de casa, (...) ou uma outra que vocês já tenham descoberto que

eles gostem, que acalme, mas aí não só pra ele, não separado, pra todo o

grupinho.”

Professora Cássia: − “Não sei. Alguma coisa tem que ser feita.”

Pesquisadora: − “Você tem alguma história que ainda não contou, ou alguma

sugestão?”

Professora Cássia: − “É revirar a biblioteca, aquela biblioteca lá é cheia de

histórias...”

Pesquisadora: − “Vamos procurar lá então. E atividades com fantoches? De repente

é uma também. (...) alguma atividade na própria sala de aula assim, diferente, como

falei, uma atividade que focasse a cooperação, não digo um com outro, mas com

todos.”

Professora Cássia: − “Uma brincadeira em grupo?”

Pesquisadora: − “Eu penso assim... em atividades que quebrem o estado de ego que

eles chegam, atividades em que eles tenham que pedir ajuda, e a gente perto para

mediar.”

As discussões ali produzidas eram mobilizadoras de movimento e reflexão. As

práticas eram acompanhadas de perto pelas estagiárias e por mim, que fazíamos

descrição minuciosa sobre elas e isso era retomado semanalmente, nas reuniões

desse grupo. As observações passaram, gradualmente, a ser participantes, com

intervenções na sala e em outros espaços, sempre que isso se mostrava oportuno.

O que nos permitiu perceber a importância de espaços de diálogo e reflexão como o

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que havíamos instaurado, num processo formativo. Como nos diz Bolívar (1997),

uma escola só se torna uma unidade básica de formação se nela houver espaço

para a inovação resultante da aprendizagem institucional. E, lembrando ainda Jesus,

“o aperfeiçoamento do pessoal docente se constitui em suporte à educação inclusiva

e (...) a formação continuada permanente, tomando por base a realidade concreta

onde se dão aprendizagens, é o seu lócus privilegiado” (JESUS, 2002, p.137).

E, aos poucos, a professora começa a também fazer alguma proposição para sua

sala de aula: “Sim. Vamos, qualquer negócio. Eu sei também que na biblioteca tem

muito livro bom, tem que olhar”; “eu tenho um livro lá em casa de jogos e

brincadeiras, eu xeroquei de uma amiga, eu vou até trazer pra gente folhear. Vou

olhar pra ver se dá pra aproveitar alguma coisa”.

Uma proposição que emergiu de nossas conversas foi a utilização de fantoches, em

que as próprias crianças poderiam criar pequenos diálogos para representar. Dessa

proposição, percebemos que a escola há muito tempo não usa esse recurso, pois

nos foi dito que havia um saco cheio deles, mas que ninguém sabia onde estava e

que há muito tempo não eram vistos.

Os momentos de aproximação da professora Cássia com André começam a ser

notados, mas como os comportamentos dele estão muito estigmatizados, ela parece

precisar de algum incentivo para continuar insistindo com ele, que continuava

desafiando-a em sua autoridade de professora.

Pedagoga Carmen: − “E o André hoje? Como é que ele está?”

Professora Cássia: − “(rindo) A mesma coisa. No dia lá do negócio (piquenique) ele

ficou uma beleza, brincou, brincou, brincou, e hoje perguntou quando que tinha

máscara de novo.”

Pesquisadora: − “O que você fez que ele brincou bem?”

Professora Cássia: − “É, na quinta-feira, no dia do piquenique (que surgiu da

sugestão de variar as atividades).”

Pesquisadora: − “Como ele se comportou?”

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Professora Cássia: − “A gente passou duas horas aqui dentro, sem sair daqui de

dentro (porque choveu).”

Pedagoga Carmen: − “Depois nós fomos ensaiar com as máscaras.”

Pesquisadora: − “E ele participou?”

Professora Cássia: − ”Participou numa boa.”

Pesquisadora: − “E hoje ele chegou perguntando o quê?”

Professora Cássia: − “Querendo saber se tinha as máscaras. Queria que fosse

agora de novo. Aí eu falei: ‘Não, espera aí, não é assim não’.”

Pesquisadora: − ”E essas máscaras eram de quê? De bicho?”

Pedagoga Carmen: − “De bicho. De um projeto que a gente fez de Monteiro Lobato

(...)”.

A professora Cássia avaliou como extremamente positivo o fato de quebrar a rotina

e surpreendê-los com o novo:

Pesquisadora: − “Na sua opinião, o que adiantou mais? Foi o fato da atividade ser

diferenciada, que aí surpreendeu eles com uma aula diferente, ou foi porque o tipo

de atividade que vocês fizeram promoveu essa interação maior deles?”

Professora Cássia: − “Acho que os dois. Porque foi uma atividade que eles não

tinham visto ainda, uma brincadeira que eles não conheciam, que era da máscara. O

interessante é que o André logo tratou de ser o jacaré. Queria engolir todo mundo.”

Pesquisadora: − “Tudo deu certo?”

Professora Cássia: − “Tudo deu certo. O triste foi na hora que eu falei: ‘Vamos

guardar a máscara!’ Aí começou as porradas de novo.”

Insistimos no ponto de que não haveria necessidade de parar uma tarde inteira para

promover a cooperação entre eles, a ludicidade nas tarefas, a permanência na sala

de aula. Fizemos uma pesquisa – eu e as estagiárias – nos livros do próprio CMEI,

que a pedagoga Carmen nos emprestou, selecionamos algumas atividades que

poderiam servir de momentos de descontração e aproximação entre os colegas da

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turma, entremeando com o espaço rígido dos deveres. Escolhemos onze atividades

diferentes e propusemos à professora. Ela também nos mostrou vários livros que

havia adquirido recentemente, todos com muitos jogos e brincadeiras, direcionados

à alfabetização. Resolvemos que todo esse conjunto poderia ser utilizado nos

“momentos picados” da tarde, como ela mesma denominou. Também pensamos em

usar fantoches para trabalhar os momentos de conflito.

Parece paradoxal, mas percebemos que havia a necessidade de aproximar os

professores de recursos como a contação de histórias, das representações

teatralizadas etc., como inerentes ao currículo escolar da educação infantil e não

apenas recursos eventuais.

Na medida em que os encontros do grupo de trabalho foram se aproximando da

data da Mostra Cultural, passamos a ter mais dificuldade em nos reunir

semanalmente com a professora no horário que havíamos combinado. Então,

pensamos em uma sistematização das temáticas que estavam recorrentemente

sendo tratadas no nosso grupo de trabalho, dentro da proposta do trabalho

colaborativo, para buscar uma alternativa de fechamento daquilo que vinha sendo

discutido e também para que as ações não ficassem soltas, sem uma proposição.

Quadro 2 – Temáticas trabalhadas x ações propostas

PROBLEMAS

AÇÕES PROPOSTAS OBS.

1. Não permanência na sala

• Oferecer jogos quando terminar tarefas

2 . Dificuldades de relacionamento

• Levar para uma conversa em separado / reflexão;

• Inserir jogos e atividades cooperativas; • Parar o andamento normal da aula em

momentos de conflito e incentivar os alunos a assumirem suas responsabilidades, fazendo uma auto-avaliação de seus comportamentos;

• Levá-los a identificar os problemas da sala de aula;

• Levá-los a refletir sobre as razões por que os comportamentos constituem problemas

3. Chegar agitado na escola

• Iniciar a aula com uma atividade lúdica

4.Desgaste na relação professo-ra/aluno

• Falar sempre “olho no olho”; • Abusar de elogios, encorajamentos e incentivos

que possam produzir mais aproximação

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5. Dificuldades familiares

• Propiciar espaço para que fale de si; • Atividades de auto-expressão; • Ressaltar seus aspectos positivos aos

familiares.

Procedemos a muita discussão em torno dessas questões. Os trechos a seguir

podem evidenciar isso.

Pedagoga Nair: − “Eu acho interessante também nesse item quando fala propiciar

espaço para que falem de si, auto-expressão, quando o André chegar atrasado...”

Professora Cássia: − “André nunca chega atrasado.”

Pedagoga Nair: − “Ou agitado, você propor uma dinâmica de grupo, onde você puxe

com eles, tipo assim, “quem está chateado com o papai e com a mamãe?” uma

situação que tenha acontecido. Porque eu sinto que ele reflete o tempo todo o

relacionamento dos pais. Não sei se ele não tem oportunidade de se expressar e

não sei se ele consegue, mas ele não consegue se expressar e também não sei se

ele conseguiria.”

A pedagoga Nair mostra no quadro aquilo que pode ser muito simples se não for

levado como uma fuga da necessidade de ter que preparar adequadamente os

alunos para o ensino fundamental.

Pedagoga Nair: − “Mas eu já estou preocupada com você, até falei hoje disso. Por

isso que eu achei muito legal o que Marleidi trouxe. Porque você está entrando num

nível de estresse pra impor sua autoridade, que vai te cansar (...). Pra nós é muito

melhor ter você com tranqüilidade, tentando implementar isso, (...) a gente não tem

tempo de ficar o tempo todo com você, porque há uma demanda de problemas. Mas

isso daqui, olha, “iniciar com uma atividade lúdica”, quebrar um pouco da seriedade.

Eu sei que você tem uma responsabilidade danada, eu sinto em você, não se cobre

tanto isso. Eles são crianças, eles precisam do momento deles e que você também

precisa de um momento pra você. Esse excesso de responsabilidade que você tem com o trabalho também te estressa. Não é deixar tudo solto, mas tirar um

tempo. Terça e quinta eu vou tirar pra bater papo com os meus alunos, vão me

contar como estão na casa deles, fazer uma dramatização disso. Quebra um pouco

essa parte da seriedade que o André não gosta (...)”.

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Professora Cássia: − “É verdade.”

Pedagoga Nair: − “Eu penso que você também tem que pensar em você.”

Pesquisadora: − “Essa sugestão de separar as crianças é interessante até mesmo

na hora das atividades. É uma boa estratégia. As estagiárias estão aí para ajudar.”

Pedagoga Nair: − “Muito legal essa estratégia. Uma parte do grupo fica lá fora,

depois nós vamos trocar, quem está lá vem pra cá. É uma forma de você poder dar

um pouquinho mais de atenção a cada um deles, sem se desgastar. A outra coisa

que eu achei muito legal foi “iniciar a aula com uma atividade lúdica”, uma

brincadeira, uma cabra-cega, alguma coisa legal que deixe eles externarem os

sentimentos...”

Pesquisadora: − “A idéia é essa, quando eles chegam agitados principalmente.”

Pedagoga Nair: − “Uma pintura, tipo assim pra quebrar um pouco. Quem sabe André

se sente mais atraído? Pode ser que dê certo, pode ser que não.”

Pesquisadora: − “Pode ser que uma vez dê certo e em outra não...”

Pedagoga Nair: − “Depende muito da predisposição deles.”

Pesquisadora: − “Quando eu escrevi alguns problemas, não eram só esses. Tem

espaço para colocarmos mais problemas e também mais ações. A proposta é a

gente ir pensando e ir fazendo.“

Pedagoga Nair: − “Essa coisa do elogio. Eu cheguei agora, ele estava lá na sala,

com as meninas da educação especial mais a Evanesca. Ele normalmente não dá a

mínima pra mim, ele virou e falou: “Olha, eu tô fazendo”. Aí eu perguntei o que era

que ele estava fazendo. Ele disse que era uma tartaruga. Mas era uma abelha. Eu ri

muito. Aí eu disse para ele colocar a inicial do nome do animal pra diferenciar. Ele

disse que não conhecia todas as letras e começou a me falar quais ele conhecia.

Quando entrei na sala, ele quis mostrar a produção, eu elogiei: “Que legal, você está

desenhando! Mas você precisa identificar o desenho”. Mas aí depois eu puxei para a

escrita e elogiei. Com ele a gente tem que trabalhar assim, via de mão dupla.”

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Interessante notar como a pedagoga, apesar de não concordar com as práticas da

professora, tenta considerá-las como “excesso de responsabilidade”, ao invés de

considerá-las como distantes daquelas que estão previstas para a educação infantil

e para a perspectiva da escola inclusiva. Talvez porque todos nós estivéssemos

empenhados em sustentar o diálogo, em manter o trabalho colaborativo. O que não

impede que as relações de trabalho acabem se tornando camufladas, cheias de

melindres. Naturalmente, podemos compreender que esse é um fenômeno comum

em qualquer ambiente de trabalho. Mas, nesse caso, em especial, no espaço gerado

pelo grupo de trabalho que havia se instituído no espaço escolar, chegamos mesmo

a questionar se esse estava realmente sendo um trabalho colaborativo ou apenas

um esforço de ações colaborativas.

Eu mesma, muitas vezes, tive que me exceder numa série de argumentos, cedendo

em muitos de meus propósitos, e até mesmo de acordos que já havíamos discutido

e estabelecido, em prol de manter esse grupo de trabalho tentando alternativas. “Até

que ponto esse foi um trabalho realmente colaborativo com a professora?” Essa era

uma pergunta que eu constantemente me fazia. De qualquer forma, a reflexão não

nos serviu de desânimo.

Com o passar dos dias, observamos algumas mudanças na professora. Ela passa a

aceitar e a introduzir mais os jogos nos momentos picados da tarde. Nas

oportunidades que tivemos de observar André numa brincadeira em grupo mais

estruturada, notamos que ele tinha dificuldade em esperar sua vez e queria sempre

ser o primeiro. Resolvemos essa questão usando sempre um dado para decidir a

ordem das jogadas. Sobre a dificuldade em aceitar perder, que ele também por

vezes apresentava, usávamos frisar repetidamente as regras.

Uma das primeiras e maiores dificuldades no trabalho com André foi conseguir que

ele passasse mais tempo na sua sala de aula. Observamos que logo que passou

para o período vespertino, ele ficava na sala, parecia meio acanhado por estar junto

a pessoas estranhas. Mas logo começaram as saídas fora de hora e quanto mais ele

saía mais Marcos se via na obrigação de ir buscá-lo, para agradar a professora ou

mesmo para aproveitar a desculpa e também se divertir lá fora.

As saídas de sala irritavam a professora, que passou a usar mecanismos, como os

já mencionados, para garantir sua permanência em sala. Entretanto, isso estava

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provocando nele ainda mais ímpeto de sair. Pensamos em propor alternativas para

que ele permanecesse por mais tempo possível em sala, e assim fomos propondo.

Professora Cássia: − “Ele vai ter que seguir uma disciplina. Ali dentro ele vai ter que

seguir as normas da sala. Ele vai ter que sentar, fazer o dever, participar. Aqui fora,

não. Quando ele tá fora, quem é que manda nele? Quem diz o que ele precisa

fazer?”

Pesquisadora: − “E se ao invés de prender usando aqueles mecanismos mais fortes,

a gente começasse deixando ele ir no solário, mas sem acesso ao lado de cá, e

depois fosse progressivamente deixando ele com brinquedo... fosse fazendo um

trabalho progressivo, ao invés de radical? Você acha que poderia ser mais certo ou

não?”

Professora Cássia: − “Deixar ele com brinquedos?”

Pesquisadora: − “Igual eu tinha te falado, deixasse ele com um joguinho, ele fizesse

a atividade rapidinho, como você falou que ele faz tudo correndo, tudo de qualquer

jeito, pra poder brincar, e se permitisse durante um tempo pra poder ir conseguindo

manter ele na sala de aula?”

Pedagoga Carmen: − “Pra ele poder fazer o que ele quisesse na sala de aula?”

Pesquisadora: − “Não o que ele quiser. Ele não pode atrapalhar as outras

crianças...”

Existia uma resistência em relação à idéia de que ele deveria ser cativado para ficar

na sala de aula e que para isso os brinquedos poderiam ser um bom recurso.

Privilegiando o desenvolvimento cognitivo, a criança é vista tão somente como aluno

e se espera dela comportamentos e aprendizagens coerentes já com o ensino

fundamental, onde usualmente não se usam brinquedos.

Professora Cássia: − “A gente pode tentar fazer, já que o André quer ficar fora de

sala, pelo menos... um período assim... um dia da semana, tentar fazer essas

atividades que eu faço dentro de sala, a Evanesca e a outra estagiária, fazer aqui de

fora, sentada lá no pátio,... Em algum lugar que ele esteja, porque quando não é

copiar do quadro, é folha, e folha ele pode fazer. “Ah, André, você não precisa ficar

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na sala, vamos pra um outro lugar que lhe agrade, no solário... Se a gente colocar

uma mesa pra ele no solário, ele vai estar perto da sala, mas não vai estar dentro da

sala.”

Pesquisadora: − “Eu acho que o grande problema dele talvez não seja fazer a

atividade. Porque a atividade que ele parar, ele faz. Ele sabe. O problema dele é

permanecer na sala.”

Professora Cássia: − “Dentro de sala, permanecer dentro da sala.”

Pesquisadora: – Então, esse que seria o grande desafio. O que fazer para

permanecer com ele dentro de sala? Me parece que esse é o maior desafio que a

gente teria que enfrentar. Você já tentou trancar, não dá certo. Realmente eu acho

que é extremamente desgastante.

Contornamos a idéia de retirá-lo da sala. A professora, nesse momento, ainda

prioriza a produção dele em detrimento de trabalhar a sua atenção, a auto-regulação

do seu comportamento e o relacionamento com os outros.

Professora Cássia: − “Um dia, eu deixei ele no solário. Eu disse: “Você quer brincar?

Então tá, vai brincar no solário”. Fechei minha porta e deixei ele lá. Ele esmurrou as

portas todinhas, de todas as salas, daqui até o final. Eu fingi que não estava

ouvindo, pra ver até onde ele ía. Aí as meninas aqui de fora abriram e ele saiu.”

Pesquisadora: − “Mas a porta do solário pra sua sala estava fechada? Aí por isso

que ele esmurrou as dos outros? Ele queria entrar?”

Professora Cássia: − “Não. Ele queria sair. Porque o solário não tem brinquedo, não

tem escorregador, não tem areia. Mas ele queria sair do solário e eu falei: ‘Pela

minha porta você não passa. Você não quer brincar? Então brinca aí no solário (...)’

Se eu forçar ele a ficar dentro da sala, ele quebra a sala toda.”

Pesquisadora: − “Mas a idéia seria “não forçar a barra”.

Professora Cássia: − “Mas aí é que tá. De que forma... pego ele ali na sala de aula...

Vai durar o quê? Cinco minutos, dez minutos, até ele enjoar, levantar e ir embora. É

isso a minha preocupação. Por mais que a gente tente, a gente faz todo um

esquema. Conseguiu. Oba! Não vai conseguir fazer ele ficar mais que isso.”

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Pesquisadora: − “A idéia seria tornar o ambiente de sala de aula mais agradável pra

ele (...).”

Professora Cássia: − “É, mas aí o que aconteceu? Hoje, por exemplo, a Evanesca

ficou brincando com ele logo na entrada. Estavam brincando numa boa os dois, ele

simplesmente levantou e saiu (segundo Evanesca, ele levantou na hora que ela

chamou a todos para fazer a atividade). Quer dizer, até onde é agradável? O que ele

quer? Por mais que eu libere os carrinhos, os brinquedos, ele não ficou. Se é pra

trazer o brinquedo de casa, eu acho complicado. Qual é o brinquedo que faz ele ficar

na sala?”

Pesquisadora: − “Na verdade, eu acho que não seria uma coisa. Eu acho que seria

um conjunto de coisas, que também não faria ele ficar 100%, mas que minimizasse,

porque agora ele está ainda ficando muito do lado de fora. (...) Eu penso que não

seria uma coisa, mas um conjunto de coisas.”

Professora Cássia: − “Se fosse porque ele não gosta de mim, mas ele gosta da

Evanesca ou gosta da outra. Era pra ele ficar pelo menos com elas, né?”

Em função desse comentário, em seguida trabalhamos a idéia de como as

atividades poderiam ser apresentadas às crianças de uma forma mais divertida e

lúdica, para não parecer tarefa e sim algo desafiante e divertido.

No nosso grupo fica evidenciado que a participação de André está muito ligada ao

prazer e à ludicidade incorporados às atividades. As estagiárias apontaram que

quando há brincadeira e atividades de pintar, ele sempre ficava. Quando a

professora manda guardar os brinquedos para eles fazerem atividade, André sai da

sala.

Outro aspecto que merece consideração dentro da idéia de processo colaborativo é

que, apesar dos encontros semanais com a professora e as pedagogas, muitas

decisões eram tomadas sem a preocupação de fazer uma reflexão antes. Podemos

exemplificar com algumas delas.

Como os episódios de agressividade entre os dois alunos (André e Marcos) só se

agravavam, a equipe pedagógica decidiu chamar os responsáveis pelos dois e

solicitar que os levassem para a escola em dias alternados para que não se

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encontrassem mais lá. Esse gesto foi bastante questionado por nós, o que contribuiu

para sua reversão. Nas conversas semanais, as discussões giravam muito em torno

dessas decisões. Na verdade, mostrou-se um ato atabalhoado, revelando que todos

ali preferiam que eles ficassem fora da escola.

Outra prática, também muito discutível, era a “autorização” permanente que André

tinha de sair da sua sala e entrar nas outras. Sobre uma de nossas discussões a

esse respeito, diz a pedagoga Nair: “Entendemos, pelos encontros de formação

continuada, que todos da escola deveriam acolher o André, já que foi discutido que o

aluno era da escola e não da professora, e por isso as professoras permitiam sua

entrada e permanência nas brincadeiras. Agora estamos vendo que também essa

prática estava errada”.

A fala retrata a dificuldade em diferenciar o acolhimento e a percepção das

necessidades educacionais inerentes àquele aluno. Tentei retrucar essa fala: “Se

houver erro, não está no acolhimento ou na partilha da educação dele, mas com

certeza a sua permanência na sua sala de aula é algo que precisa ser buscado

como garantia inicial de sua escolarização”.

Com a discussão, ficou acertado entre nós - pesquisadora, professora, pedagogas e

estagiárias - que as pedagogas conversariam com as outras professoras para que

permitissem sua entrada, mas em seguida o encaminhassem de volta à sua sala,

sempre que quisesse permanecer tempo demais em suas salas. Sabíamos,

entretanto, que apenas essa medida não garantiria essa intenção. Então,

perguntamos à professora se ela considerava viável permitir a André brincar, depois

da atividade feita, na própria sala; ela, parecendo desconfiada dessa medida,

confessou que temia que todos quisessem o mesmo. Nós interpelamos se isso

prejudicaria a turma; ela admitiu que não. De repente, parecia ficar pungente que se

tratavam de crianças pequenas, e que crianças pequenas podem e devem brincar,

que aprendem brincando, e que podem brincar quando aprendem.

Por vezes, transparecia que a professora se enrijecia neste seu lugar de poder. Era-

lhe difícil abrir mão desse lugar central, mesmo nas oportunidades em que isso se

mostrava favorável ao planejamento da atividade e ao seu estado de saúde, já que

no ano anterior havia passado por uma cirurgia nas cordas vocais. Numa

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aproximação sensível, fomos partilhando seu cansaço com essa turminha de alunos

bastante barulhenta, que a fazia gritar.

O grupo tinha uma série de questões sobre como trabalhar com as crianças que

apresentam esse perfil, especialmente no que se referia a André. Recorremos a

Porter (1997) para sustentar nossa idéia de que não haveria necessidade de um

número significativo de estratégias pedagógicas distintas para pensarmos um

projeto educativo para André, mas de uma prática que valorizasse a sua

individualidade.

Pesquisadora: – “E se a gente pensasse em atividades de grupo que as estagiárias

pudessem te ajudar a conduzir, enquanto você, em alguns momentos, se dedica

mais a esses... você acha que daria?”

Professora Cássia: – “Qualquer ajuda é bem-vinda.”

Pesquisadora: – “E você tem atividades que poderia propor, nesse sentido?”

Professora Cássia: – “Atividade a gente pode pensar um monte.”

Pesquisadora: – “Então, vamos pensar. Atividades que eles possam fazer em grupo,

um ajudando o outro, despertando essa cooperação, esse limite que eu não posso

invadir...”

Pedagoga Carmen: – “E, vira e mexe, a gente estar mudando o grupo, variando o

grupo de amigos dele, hoje faz um grupinho, amanhã troca, faz outro.”

Professora Cássia: – “Eu acho que isso seria interessante trabalhar na aula de

Artes. Fazer uma coisa diferente, eu não sei como ela trabalharia, mas seria levar a

criança a colocar no papel aquilo que ela está sentindo, porque arte é um bom

motivo pra isso. E a professora deve saber alguma coisa, porque ela fez Artes...

alguma técnica (...). Acho que ela podia pensar alguma coisa assim: um dia fazer

uma técnica diferente, um trabalho diferente, igual às meninas da educação

especial.”

Pedagoga Carmen: – “Vamos pensar alguma coisa com elas também.”

Professora Cássia: − “Por que a professora de Artes não pega aquelas fantasias que

você tem lá... eu posso até fazer, mas foi o que eu perguntei pra você no início do

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ano: Professora de artes é pra quê? É só pra desenvolver o teatro? Ou é pra ficar

junto aqui em sala de aula?”

Esse diálogo deixa transparecer que ela não pensa em uma mudança de postura

cotidiana, mas em um momento, ou em uma atividade. Deixa-nos entender que suas

preocupações estão concentradas na aprendizagem dos conteúdos que prepararão

as crianças para o ingresso no ensino fundamental.

A pedagoga Nair tenta também tirar esse enfoque como restrito à aprendizagem dos

conteúdos específicos. Assim ela se coloca:

Pedagoga Nair: – “Você já tem uma postura... Posso falar numa boa? Você já tem

uma postura de uma professora bem rígida. Eu tô falando com todo o carinho, que

você sabe que eu adoro seu trabalho, mas você já tem uma postura rígida com seu

trabalho. Você é exigente. Então, você tem que menear o momento de prazer com o

de atividade.”

Professora Cássia: – “Mas eu gosto desses momentos. Eu até acho certo.”

Pedagoga Nair: – “Não, eu não tô condenando, não. (...) Você já é bastante rígida

quando exerce sua profissão de professora. Suas atividades são concentradas ali.

Você cobra, exige deles. Então, você tem que menear entre respeitar a infância e

exigir o que precisa ser exigido para que eles evoluam, pra que eles cresçam, pra

que o intelecto deles avance. Eu acho legal você ser assim, mas eu acho que tem

que menear porque eles são crianças, eles estão na infância ainda. Tem que

resgatar a infância.”

Conforme os dias vão se seguindo, vamos intensificando e aprofundando as

discussões com a professora e as pedagogas, ao mesmo tempo em que as

intervenções em sala de aula vão deixando um tom mais de observação para ações

mais efetivas, no sentido de promover, inicialmente, a permanência de André na sala

de aula e a integração do grupo de alunos com ele.

As falas da professora Cássia oscilam e mostram-se bem contraditórias em relação

a André. Ora ela percebe sua necessidade, ora ela nega que possa fazer algo que o

beneficie em sua inserção na sala de aula:

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(...) Hoje, por exemplo, André chegou meio atacado, no início (...). Mas, (...) comparado a muitos dias, já vi até que hoje ele não tá tão agitado, apesar dele sair e tal. Mas tem dia que ele sai a tarde inteira, e hoje ele voltou na sala. As meninas (estagiárias) ficaram com ele, e quando tem uma pessoa com ele, ele acaba ficando mesmo dentro da sala, porque o que ele quer é atenção, como eu não tenho essa atenção toda para ele, ele sai (PROFESSORA CÁSSIA, 03/09/07).

É interessante que começamos a perceber em suas colocações alguns pontos em

que ela mostra saber que algumas de suas atitudes podem fazer toda a diferença

com ele.

Com o passar do tempo, notamos que André passou a fazer aquelas expressões

faciais/corporais de intensa raiva com freqüência cada vez menor. Passou a

expressar mais afeição, sua comunicação com os adultos melhorou

progressivamente e sua permanência, paulatinamente, em sala de aula, foi algo

reconhecido por todos no CMEI.

O trabalho colaborativo foi a marca dessa segunda etapa da pesquisa. As ações

colaborativas nesse processo ocorreram nos encontros de formação continuada, nas

reuniões com as pedagogas, no planejamento com a professora, no grupo de

estudos com as estagiárias e junto à equipe técnica (juntando documentos etc).

(...) um processo de trocas intersubjetivas de conhecimento e atitudes individuais e coletivas, visando a desenvolver alternativas de comunicação, de participação, de realização de tarefas comuns e da concretização de propostas de resolução de problemas da escola, considerando o contexto socioeducaional (JESUS, 2005, p.210).

Outro aspecto que pode ser levantado é que existe uma permanente avaliação da

ação, ou um processo de pesquisa em espiral. “As propostas são pensadas, postas

em prática e reavaliadas numa constante retroação sobre o problema” (BARBIER,

2004, p.143).

Embora nem tudo possa ser resolvido, o movimento gerado faz balançar

concepções instituídas pela dureza da rotina. A reflexão pode conduzir a outros

modos de ação, mais potencializadores e provocadores de transformação social.

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Analisando os momentos vividos, aqui relatados e discutidos, cremos ter enunciado

algumas possibilidades, dentre tantas outras, que nos deixam um misto de

satisfação e frustração. Satisfação porque percebemos alguns movimentos

acontecendo nos profissionais da escola e também em nós, que lá estávamos para

investigar e aprender (as estagiárias e eu). Frustração porque sempre ficávamos

com a impressão que poderíamos mais. Bobagem! Não há fechamento dessas

questões no tempo que queremos, também não há certezas, porque nada nos

garante que outros caminhos seriam mais fáceis. Aliás, nossa implicação no

processo fez ruir nossas certezas, assim como também a dos profissionais da escola

envolvidos.

No mês de novembro, registramos uma melhora significativa em André, no que

tange ao seu relacionamento com os colegas e com a professora, que relatou

concordância em relação a isso.

Gradualmente, ela começa a reconhecer que André está permanecendo a cada

semana um pouco mais na sala de aula, que ele começou a interagir melhor com os

colegas, embora mais em momentos de brincadeira do que nas atividades dirigidas,

que ela frisa que ele só faz quando recebe ajuda. − “É, o André está conseguindo

brincar bem com os meninos” (PROFESSORA CÁSSIA, 03/09/07).

Em outro momento, nesse mesmo dia:

Pesquisadora: − “Essas atividades de sala de aula que você tem, tem algumas que

eles tenham que fazer juntos? Ou todas são individuais?”

Professora Cássia: − “Todas são individuais, mas como geralmente eles sentam em

grupo, sempre se coloca uma criança que não tem dificuldade, para que uma possa

ajudar as outras. O André, logo que ele senta, só quer pintar, pintar, pintar. Aí a

gente tem que interferir para que ele possa fazer a atividade. As meninas sentam

com ele, aí ele faz. Mas tem que sentar com ele e ajudar.”

Professora Rosalva: − “Ele sempre senta isolado, hoje foi a primeira vez que eu vi

ele junto com os colegas, porque uma meninha sentou lá.”

Professora Cássia: − “Mesmo assim, depois ele voltou pra minha mesa, porque ele

começou a ter dificuldade. Aí depois, as outras crianças que estavam com

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dificuldade foram se juntando na minha mesa e todos fizeram. E o André sentou com

elas e fez.”

Então, nesse diálogo, é possível começar a perceber os primeiros sinais de um olhar

positivo sobre André, apostando em sua condição de se integrar, de participar e de

ter com isso garantido o seu processo de escolarização.

Um outro aspecto do processo colaborativo também merece destaque. Certa vez, eu

questionei a professora sobre o porquê de ela não explorar mais o fato de ter

consigo, todos os dias, duas estagiárias, formandas em Pedagogia. Queria com isso

entender por que ela não saía daquela configuração tradicional da professora

conduzindo ao mesmo tempo todos os alunos, em torno de uma só tarefa. Depois de

muito refletir sobre os percalços dessa posição, ela me deu uma resposta

emblemática: “O meu problema é que eu não consigo delegar o poder”.

A partir dessa fala, um questionamento importante pode ser retomado: o professor

mostra, de um lado, muitas vezes, essa dificuldade em abrir mão do seu lugar de

poder; por outro lado, quando se vê impotente diante dos problemas na área

comportamental dos seus alunos, desloca para fora dos muros escolares a solução,

como se somente um outro profissional, não ele, pudesse resolver o problema.

Aquino (1998) nos lembra que, como transcende o espaço escolar, a violência

desencadeia aquilo que ele chama de “encaminhamento”. “Encaminha-se para o

coordenador, para o diretor, para os pais ou responsáveis, para o psicólogo (...)”. E

quando há essa impossibilidade, a decisão, não raro, é uma exclusão velada

(permissividade quanto às saídas da sala, transferências, convites à auto-retirada).

Fizemos um longo processo reflexivo em torno dessa fala da professora, retomando

algumas vantagens da reflexão para a prática pedagógica. Dentre elas, destacamos:

ela favorece o surgimento de significados à própria ação, porque promove um

distanciamento da ação permitindo compreendê-la na sua globalidade; ela promove

a consciência das relações entre o eu (do professor) e a sua prática, entre os seus

propósitos e as conseqüências dos seus atos, gerando um senso de

responsabilidade e compromisso (FURTER, 1982).

Contreras (2002) também ressalta a importância da reflexão crítica como

possibilitadora de comprometimento político e pedagógico que, por sua vez,

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proporciona decisões mais conscientes. Nesse sentido, reconhece a complexidade

da prática docente, o que obriga o professor a comprometer-se com o

desenvolvimento pessoal dos seus alunos.

Durante todo o mês de agosto e setembro, detivemo-nos muito em explorar, junto

com a professora, possibilidades de um trabalho coletivo com a turma, no sentido de

favorecer o relacionamento de André com os demais, especialmente com Marcos.

Além disso, pretendíamos, por se tratar de uma turma bastante agitada, trabalhar o

relacionamento entre eles também.

Devido ao fato de a agressividade entre os dois ser muito marcada, isso passou a

justificar as saídas de André da sala. No fim do mês de setembro, a professora não

tentava mantê-lo em sala e a escola, de um modo geral, não estava impedindo ou

trabalhando isso com ele.

O acordo que havia sido feito de usarmos os momentos “picadinhos” para fazer

atividades grupais que favorecessem o relacionamento entre eles não foi mantido.

As atividades da Mostra Cultural eram muitas e ocupavam muito tempo, inclusive

esses momentos. Notamos também que as crianças estavam com muitas

dificuldades nas tarefas de português e observamos que até mesmo esses

conteúdos estavam cedendo lugar para as atividades da Mostra (24/09/07).

Percebíamos que as intervenções até então propostas não levavam em

consideração as reais necessidades de André, bem como não realçavam suas

potencialidades. Pelo contrário, o aluno (não só ele) já estava bastante

estigmatizado pelo rótulo de “aluno-problema”. Como nos diz Aquino,

(...) aqueles alunos acometidos por alguma espécie de transtorno emocional, muitas vezes advindos de relações familiares conturbadas ou de situações trágicas, nem sempre conseguem garantir para si espaços de pertencimento no cenário das trocas escolares. Além disso, a estigmatização velada passa a ser um fardo a mais, um dilema adicional a ser equacionado (AQUINO, 1999, p.16).

O grupo tinha, então, como premissa básica, pensar em possibilidades para um

trabalho educativo com André e sua turma. Nosso objetivo, nesse momento, era

envolver as diferentes profissionais da escola no trabalho, pois entendíamos que um

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trabalho isolado com a professora não surtiria efeito, por razões óbvias: o aluno não

permanecia em sala; e também porque acreditávamos, e isso era constantemente

repetido nos nossos encontros de trabalho com os profissionais da escola, que a

criança não é do professor estritamente, ela deve ser educada por todos, e que um

trabalho no coletivo escolar teria muito mais efeitos sobre as mudanças nas

estruturas organizacionais do CMEI, que se pretendia tornar-se “mais inclusivo”,

conforme dissera a diretora.

Propusemos, então, um trabalho que fosse construído colaborativamente e

envolvendo os diversos profissionais implicados no processo educativo de André: a

professora e as pedagogas, diretamente; e as professoras de Educação Física e

Artes, as ASGs e outras professoras do CMEI, indiretamente, ou em momentos mais

específicos. Alarcão (2001, p.26) nos ensina que os membros da organização

escolar “(...) devem ser incentivados e mobilizados para a participação, a co-

construção, o diálogo, a reflexão, a iniciativa, a experimentação”.

Como podemos perceber, a reflexão é qualidade necessária ao professor. No

entanto, é preciso criar as condições necessárias para a sua realização. Como disse

Furter (1982), deve haver uma ação planejada para que ela se faça, para que dure e

alcance a intersubjetividade. Refletir criticamente não constitui ato natural do ser

humano. Portanto, é preciso criar mecanismos que favoreçam o desenvolvimento

dessa capacidade, o que implica um planejamento sistemático, de modo a garantir a

interação de diferentes pontos de vista. Nesse processo, a linguagem constitui

categoria fundamental, pois traz em si a função planejadora da ação, como nos

lembra Vygotsky (1988).

Nos momentos de planejamento compartilhados, os vários fatores que estavam

contribuindo para dificultar o processo educativo de André vinham à tona e eram por

nós analisados, sendo depois elaboradas outras possibilidades de intervenção,

formando um ciclo de reflexão-ação-reflexão.

Embora as estagiárias estivessem presentes em sala de aula, o projeto educativo

pensado para ele não era individual, exclusivo. Pensávamos em intervenções com a

turma, pautadas na premissa de que o que fosse necessário para prender a atenção

dele e fazê-lo participar das aulas também o seria para todos.

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Nos momentos de planejamento, refletíamos sobre as dificuldades do trabalho

pedagógico naquela turma e assim surgiam propostas de todas nós. As ações eram

pensadas e depois, ao longo da semana, eram implementadas e avaliadas. As

dificuldades eram consideradas e tratadas no momento de planejamento seguinte.

As observações realizadas durante a semana, nos diversos contextos, davam-nos

embasamento e sustentação para novas discussões e para o aprofundamento de

algumas questões que insistiam em se fazer presentes nos momentos de

planejamento. Esses eram momentos em que o diálogo entre teoria e prática

propiciava uma auto-reflexão coletiva e todos saíamos crescidos, dada sua riqueza.

Eram momentos forjados pela nossa presença. Sentíamos que nossa presença no

CMEI provocava nos profissionais da escola a lembrança de que era preciso sentar

e pensar. Percebíamos que eles viam esses momentos como oportunidades, o que

nos deixava mais à vontade.

Com o passar do tempo, minha presença ali pareceu gerar certa tensão nas

segundas-feiras no CMEI.

“Era uma quebra na rotina, era a representação de que a correria do dia-a-dia teria que ser interrompida, era a manifestação (muitas vezes tácita nas expressões faciais das pessoas) de sentimentos contraditórios: era bom ter alguém com quem dividir as angústias, era bom trocar idéias e ter interlocutores para pensar junto; mas, por outro lado, era ruim ter que parar tudo o que se tinha para fazer, pois parecia perda de tempo, era ruim ter que pensar em mudanças...” (DIÁRIO DE CAMPO, 24/09/07).

Como Mizukami et al (2002), acreditamos que o conhecimento é produzido a partir

de idéias, hipóteses, que se estruturam e se desestruturam; que o saber docente

também se constrói através da quebra de certezas presentes na prática pedagógica

cotidiana e, ainda, que é preciso intervir para desestruturar as certezas que dão

suporte a essas práticas, abalando convicções já arraigadas, para, a partir daí,

construir novas hipóteses e assim chegar a novos níveis de conhecimento.

O trabalho coletivo redundou em alguns avanços e em alguns fracassos. Um dos

avanços mais claros foi que André, ao ser envolvido afetivamente por uma das

estagiárias, começou a deixar cair um pouco das defesas tão fortemente erigidas por

ele a qualquer custo. Talvez não tenha percebido, mas foi enredado pelo carinho.

Aos poucos, foi demonstrando que toda a agressividade mostrada era uma forma de

se defender diante da dificuldade de se relacionar com as pessoas e para se fazer

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notar, já que, pela sua história familiar, sua existência sempre fora negada pelo pai.

Então, quando a couraça de agressividade passou a ser desmontada, pôde-se ver a

criança, uma criança qualquer e uma criança única, a um só tempo. Aos poucos, ele

passou a permanecer mais tempo na sala de aula e conseguiu paulatinamente

estabelecer mais contatos de amizade com os colegas. Seu sorriso passou a ser

visto com mais freqüência. Nesse contexto, o trabalho proposto, embora estivesse

pautado nas necessidades educacionais de André, teve alcance sobre todos os

alunos, na medida em que os sinais de desatenção/hiperatividade que ele

apresentava eram percebidos, talvez numa escala menor, nas outras crianças de

sua idade.

Outro avanço pôde ser constatado numa iniciativa das professoras de Artes e

Educação Física, que trabalharam junto com as crianças fazendo várias atividades

em que elas tinham que cooperar, como, por exemplo, equilibrar um bola de isopor,

em dupla, utilizando a testa.

Foi um trabalho bastante desafiador em vários sentidos: por ser uma tentativa de

aproximação de duas ciências afins, a Psicologia e a Pedagogia; por planejarmos e

intervirmos diretamente com o aluno, em sala de aula; pelas dificuldades de

aproximação com a criança, já tendo suas relações com os adultos bastante

deterioradas; por ser a professora “obrigada” a aceitá-lo, e a nós também, em sua

sala; por ser a mãe pessoa de difícil acesso, pelos inúmeros chamados à escola

devido a problemas disciplinares; enfim, eram muitos os fatores dificultadores, mas,

ao mesmo tempo, instigadores da nossa vontade. Por outro lado, tínhamos a nosso

favor duas pedagogas muito abertas à reflexão e que genuinamente queriam dar

rumos mais efetivos às suas práticas com crianças com esses sinais de

desatenção/hiperatividade. Tínhamos uma professora cansada e extenuada, mas

que não se furtava ao diálogo e, finalmente, tínhamos uma criança com olhar

profundo e intenso que se mostrava e se escondia, num jogo sedutor e convidativo.

Algumas das propostas de intervenção foram implementadas, outras não, embora

elas tivessem sido discutidas e concordadas no grupo. Outras, que não havíamos

combinado, eram tentadas, como que numa tentativa de nos mostrar a autonomia do

espaço escolar, e que acabavam dando muito certo. Um exemplo disso foi a

iniciativa da professora Cássia em convidar as crianças para usar o espaço do

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solário (um espaço aberto, porém de acesso restrito, nos fundos das salas de aula),

disponibilizando os brinquedos da sala de aula, no horário que eles estariam no

pátio aberto. Esse gesto simples provocou nas crianças um grande interesse por

ficar naquele espaço e fez diminuir drasticamente os incidentes no pátio externo.

Essa iniciativa começou com quem queria ficar (e, no início, eram apenas alguns),

mas depois isso foi se ampliando porque os meninos preferiam brincar ali, já que

podiam usar alguns brinquedos da sala de aula, enquanto que no pátio externo,

apesar de ter mais espaço, não havia brinquedo algum. Isso fica bem evidenciado

nos relatórios das estagiárias.

“Inicialmente, André, Yves e Wander ficam o tempo todo brincando de luta e quando pedimos que brinquem de outra coisa para não se machucarem, André fica insistindo para que continuem. Os outros batem nele, que fica nervoso e chora, mas mesmo assim quer continuar. Como eles não pararam, resolvemos organizar um futebol, e com pecinhas amarelas e vermelhas, imitando cartões de juiz. Tiramos par ou ímpar para a escolha dos capitães e dos times. André, enquanto todos estão jogando, fica sentado sozinho, de longe, até que percebe que se quiser brincar não será mais de luta. Resolve pedir para entrar no time, e vai para o gol, ser o goleiro. Quando as meninas chegaram, organizamos uma torcida para os dois times. André participa muito feliz da brincadeira” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/09/07).

O trabalho desenvolvido fez realçar uma questão central: os movimentos são

graduais, com avanços e retrocessos e nem sempre essa compreensão é clara por

parte dos profissionais envolvidos. É preciso um investimento contínuo, já que os

resultados não são imediatos.

O trabalho intenso e sistemático em sala de aula, as vivências propiciadas pelo

trabalho colaborativo, a união dos diversos atores do contexto escolar evidenciaram

que incluir um aluno com necessidades educacionais especiais é uma tarefa

complexa. A prática inclusiva está diretamente relacionada com a questão do

trabalho em equipe, da cooperação entre os pares, com os registros, a

sistematização e a partilha dos dados e sucessos alcançados.

Para alcançar tal postura, é necessário que se deixe para trás o discurso da

culpabilização do aluno, um discurso que impede o movimento e produz a inércia

pedagógica, pois impede a criação de alternativas de intervenção.

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Depois que começamos o trabalho colaborativo com a professora e as

observações/intervenções sistemáticas feitas em sala de aula, foi se mostrando,

gradualmente, um André mais expressivo de suas inquietações, necessidades

afetivas, gostos. Enfim, ele ganhou a visibilidade que tanto almejava, o que o fez se

tranqüilizar um pouco mais, deixando-o menos agressivo e mais comunicativo.

Pudemos, assim, perceber as sendas que nos permitiriam chegar mais perto,

sustentação afetiva imprescindível a qualquer processo de escolarização.

As possibilidades de diálogo, aproximação, convencimento eram cuidadosamente

pensadas nos nossos encontros de formação. Mesmo quando a aridez da rotina

personificava-se em pessimismo, lembrávamos as palavras de Maturana (1999,

p.85), que dizia: “(...) a maior parte das enfermidades humanas surgem na negação

do amor. Adoecemos se não nos querem, se nos rejeitam, se nos negam ou se nos

criticam de uma maneira que nos parece injusto”. E logo em seguida víamos apenas

crianças precisando de nossa compreensão e amor. E quando o pessimismo

“arremessava para trás” a professora, que num súbito assumia atitudes que já se

tinham provado inócuas ou mesmo negativas na condução do processo de

escolarização de André, nos colocávamos ao seu lado, não de modo crítico, mas

numa postura compreensiva, como, de novo, manda Maturana (1999, p.85), quando

nos diz que é “a partir do amor que o outro tem presença”.

Tanto a professora quanto o aluno se defrontavam o tempo todo com emoções

muito antagônicas – amor e rejeição. Ambos, então, necessitavam de um espaço de

escuta e compreensão que promovesse a aceitação do outro e de si mesmo. E a

escola nos parece espaço privilegiado para fazer emergir relações interpessoais

restauradoras e construtoras de afeto e de encontro.

(...) Há, no cotidiano das instituições de educação infantil, o predomínio de atividades centradas no desenvolvimento cognitivo. Estas se revelam pouco desafiadoras e subestimam a capacidade da criança. Além disso, a falta de incentivo à autonomia e à relação adulto/criança resulta em ausência de diálogo, retratando os equívocos da educação infantil quanto aos interesses e necessidades da criança pequena (VAZ, 2004, p.3).

Nesse sentido, a profissional da área de saúde – esta pesquisadora – sentiu-se

convocada a “ser educadora”, no sentido de lembrar coisas já tão sabidas, mas por

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vezes esquecidas na dureza de esquemas padronizados e academicamente

organizados, como a relação afetiva, compreensiva e geradora de vínculos muito

mais saudáveis.

Ressaltamos que, ao final desse processo, alguns ganhos puderam ser notados,

como, por exemplo: processo reflexivo sobre os acontecimentos; mudanças nos

momentos de pátio (solário); maior compreensão das brincadeiras agressivas de

André; brincadeiras/jogos envolvendo uma maior interação e auto-regulação do

comportamento; momentos de expressão acerca dos problemas da sala (rodas de

conversa); permissão para brincar; uso de atividades grupais; apresentação da

tarefa de modo prazeroso e lúdico.

Consideramos, diante do exposto, que é no e pelo discurso colocado no espaço do

diálogo que se elabora e/ou reelabora o conhecimento. Dessa forma, entendemos a

escola como lócus possibilitador do uso da linguagem como instrumento do

pensamento. Os professores, ao planejarem suas ações, revestidos de uma

intencionalidade que possa ser alcançada, criam condições para que mudanças

qualitativas possam ocorrer nos seus aprendizes e neles próprios.

Nessa perspectiva, a reflexividade é um processo que precisa ser exercitado

intencionalmente para que, como afirma Vygotsky (1988), possa ser internalizado

pelo sujeito formando, assim, sua subjetividade.

Nesse contexto, a linguagem exerce papel fundamental na mediação do processo

de internalização de novos valores, conceitos e concepções, pois é por meio dela

que os envolvidos discutem, analisam e confrontam suas práticas, tendo por base as

teorias que as orientam.

Em suma, a proposição inicial recebeu matizes de muitos colaboradores da escola

pesquisada e da equipe de pesquisadores. Ao final, podemos apenas lembrar que o

objetivo maio do que aqui se pretende é salvaguardar os direitos universais das

crianças, sendo a escola um dos mais primordiais. E, se assim é, a escola deve ir ao

encontro deles.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto é um extrato da profunda reflexão por que passei nesses últimos anos.

Solitária ou partilhada, a reflexão me provocou mudanças.

O referencial teórico-metodológico visitado e revisitado tantas vezes, confrontado à

realidade da escola, fez-me ver que a lógica da produção e do mercado invadiu até

mesmo a educação infantil. O que era espaço da infância, de brincadeiras e jogos,

vem cedendo lugar a infinitas produções em série: folhas xerocadas que as crianças

devem pintar, ligar, completar... em tempos bem marcados e espaços delimitados.

Não há tempo/espaço para o diferente, para o que emerge das circunstâncias,

delineado por uma situação específica, para os problemas de relacionamento que

constantemente atrapalham a ordem. Não há espaço para a singularidade infantil,

nem para sorrisos, alegria, criatividade, inventividade. Fiquei triste...

A inclusão não se restringe a garantir o acesso e a permanência dos alunos que

apresentam NEE na escola. Isso é fundamental tem que ser muito buscado,

especialmente em se falando de escola brasileira. Mas não é tudo. A diversidade e

as especificidades devem ser consideradas como aspecto inerente desse processo,

o que evidencia que a inclusão é processo complexo, mas tanto mais possível

quanto for tomado como objetivo comum por todos os envolvidos.

E, lembrando Meirieu (2002), destacamos que construir uma prática inclusiva

depende diretamente da efetivação do trabalho em equipe e da cooperação entre

todos na escola.

Numa sociedade capitalista como a nossa, essas são crianças que ameaçam a

ordem, que se mostram improdutivas para a escola e para o capital. Lembrando

mais uma vez Foucault (1996), os corpos só se tornam úteis se são, ao mesmo

tempo, produtivos e submissos.

Os membros da organização escolar “(...) devem ser incentivados e mobilizados

para a participação, a co-construção, o diálogo, a reflexão, a iniciativa, a

experimentação” (ALARCÃO, 2001, p.26), pois isso não acontece naturalmente, já

que a sala de aula é um espaço que individualiza o trabalho do professor.

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A reflexão crítica não é um ato natural (FURTER, 1982), mas é qualidade necessária

ao professor. É preciso criar as condições para sua realização, para o planejamento

e as discussões em grupo.

As crianças que se insurgem contra essa lógica são adoecidas pela lógica da

homogeneidade e precisam ser tratadas (fora da escola). Assim, a Psicologia e a

Educação aproximam-se de modo muitas vezes perigoso.

A prática colaborativa buscada neste estudo mostrou-se importante dispositivo de

interferência dessa lógica, criando certo movimento que fez balançar concepções

instituídas pela dureza da rotina. A reflexão que se produziu desse encontro pôde

conduzir a outros modos de ação, mais potencializadores da ação do professor e

provocadores de transformação.

O trabalho desenvolvido fez realçar uma questão central: os movimentos são

graduais, com avanços e retrocessos, e nem sempre essa compreensão é clara por

parte dos profissionais envolvidos. É preciso um investimento contínuo, já que os

resultados não são imediatos. O trabalho intenso e sistemático em sala de aula, as

vivências propiciadas pelo trabalho colaborativo, a união dos diversos atores do

contexto escolar evidenciaram que incluir um aluno com necessidades educacionais

especiais é uma tarefa complexa. A prática inclusiva está diretamente relacionada

com a questão do trabalho em equipe, da cooperação entre os pares, com os

registros, a sistematização e a partilha dos dados e sucessos alcançados.

Para alcançar tal postura, é necessário que se deixe para trás o discurso da

culpabilização do aluno, um discurso que impede o movimento e produz a inércia

pedagógica, pois impede também a criação de alternativas de intervenção.

O cenário atual aponta para a necessidade de aprofundamento dos estudos que

melhor caracterizem a infância do momento histórico que estamos vivendo, um

tempo que parece passar mais rápido, com transformações aceleradas de idéias e

comportamentos. Todos estamos nos acelerando junto. Crianças estão se

constituindo assim, o que tem garantido para elas, muitas vezes, o rótulo de

desatentas/hiperativas na escola.

Nesse cenário, alguns itens merecem ainda algumas considerações.

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7.1 ALGUNS ASPECTOS RELATIVOS ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA

Diante de tantas indagações acerca das crianças com sinais de desatenção/

hiperatividade, buscamos elementos acerca da condução dessa problemática dentro

das políticas públicas do município de Vitória/ES.

Segundo informações colhidas em entrevista com a coordenadora de formação e

acompanhamento à Educação Especial, do município de Vitória/ES, Vasti Gonçalves

de Paula Correa, as políticas públicas prevêem um funcionamento com professores

especialistas atuando nas escolas em dias/horários definidos, para assegurar o

atendimento necessário à escolarização das crianças com NEE nas escolas

regulares. Ela nos diz que no ano de 2007 eram 140 profissionais atuando, mas

tendo a perspectiva de “ser uma equipe de fomento à participação de todos no

processo de educação inclusiva, deixando aquela característica de educação

especial como apêndice do sistema”. Conta ainda que o assessor de educação

infantil visita periodicamente as escolas, acolhe as demandas, inclusive da educação

especial, traz isso para a equipe e quando se entende ser necessário, vai até a

escola um profissional dessa equipe – fonoaudiólogo, psicólogo etc – para fazer as

intervenções necessárias. Dessa forma, mostra que a educação especial está

inserida na educação infantil, o que traz, segundo ela, mais coesão ao processo. E

as visitas desse profissional são periódicas, abrangendo os 45 CMEIs do município,

embora o foco maior esteja em 38 deles, onde estão matriculadas as crianças com

NEE, totalizando 200 crianças, em média. Todas as áreas de deficiência são

encontradas na educação infantil.

A coordenadora nos informa que o processo de identificação dessa criança acontece

já na matrícula. Mas no momento do preenchimento do Censo Escolar, que foi

enviado diretamente às escolas no ano de 2007, não fica claro a quais crianças

aquelas categorias estão se referindo. Ela diz: “O que é Transtorno Invasivo do

Comportamento? O que o MEC coloca, a escola fica completamente assim... vai

entrar aonde? (...) Ele tem um problema de comportamento, coloca ali”.

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Ela fala ainda sobre as crianças que apresentam problemas de comportamento na

escola, mas advindos de problemas sociais “gravíssimos” a que estão sujeitas. Que,

nesses casos, há uma orientação aos familiares para que levem a criança aos

serviços de saúde. Não há previsão de atendimentos específicos a elas nas escolas.

E que o que acontece é “um convite a práticas pedagógicas diferenciadas, quer

dizer, esse convite está permanente”. E mais à frente explicita: “(...) nosso

profissional da educação especial tem o foco, em princípio, para as crianças com

deficiência, senão a gente perde a dimensão dos serviços de educação especial”.

É interessante notar que, mesmo que não se possa incluir algum trabalho mais

direcionado às crianças identificadas pelas escolas como desatentas/hiperativas,

quando ela fala sobre as demandas mais proclamadas pelos profissionais dos

CMEIs em termos de formações (as quarenta solicitações mais freqüentes em

2007), a coordenadora detalha a ordem de procura:

O item um são as questões de PPP (exigência de reformulação). Item dois, questões mais focadas em processos de disciplina, coisa inclusive que a gente até questionava: ‘Mas, isso ainda, gente! Vocês ainda querem discutir isso! O que é isso, né?’. Item três, organização do trabalho pedagógico como um todo (...). Item quatro, educação inclusiva (COORDENADORA).

Constatamos, por essa fala, que os problemas relativos à desatenção/hiperatividade,

indisciplina ou falta de limites, seja como for, é um problema grave nos CMEIs e que

práticas do ensino fundamental estão sendo cada vez mais trazidas para a

educação infantil, como o mapa de sala, citado pela entrevistada, como um exemplo

comum atualmente nessa modalidade de ensino. “(...) Vocês fazem mapa de sala?

Têm que fazer. Se não fizer, ninguém dá conta. Então, aqui, o menino só senta

nessa cadeira, ou seja, a exemplo do que vem acontecendo no ensino fundamental,

eles meio que tentam ‘achatar’, porque é o menino que ninguém dá conta mais,

então a gente fica assim...” E a pergunta que me sobra é: O que vem primeiro? As

práticas do ensino fundamental invadindo a educação infantil para conter a

indisciplina ou a indisciplina é uma resultante dessa invasão?

A coordenadora frisou que “questões de hiperatividade” chegam a todo momento

como demanda da escola.

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Elas nos chegam assim: manda alguém pra conter porque ele quebra tudo, ele faz isso, ele pula, (...) ele não pára, ele anda (...). Tá. Isso aí, se você organiza o pessoal, se você reorganiza a escola como um todo, as pessoas todas podem te ajudar nesse processo (...). isso é um esforço coletivo da escola como um todo (...). ‘Vem cá. Acabou a atividade, tem outra atividade em mão (...), vamos lá e ocupar o menino... São coisas muito pontuais, que não dá para dizer assim: manda alguém para fazer isso, ou dá remédio...’

Ela ainda complementa que, “pensando nos equívocos do que é ser hiperativo”, se

verificássemos todas as demandas das escolas, dos CMEIs, acerca da

“hiperatividade”, o que se pode constatar é que virou um rótulo para todas crianças

que “rompem a ordem” ou “se mexem demais”. E quando há um confronto com

essas pessoas, pode-se verificar que, na maioria dos casos, a criança pára quando

é algo que lhe chama a atenção ou faz sentido para sua vida.

Então, há o reconhecimento dos excessos nas demandas dos CMEIs em relação a

essa temática. E que o procedimento para selecionar quais casos merecem “alguém

para conter” é ainda o laudo médico, o diagnóstico, embora se reconheça que nesse

procedimento há também muitos equívocos e que o caminho a ser percorrido passa

inevitavelmente por uma mudança nas práticas pedagógicas. “(...) Vamos mudar

isso, vamos prever as situações. Se você está vendo que os dois estão discutindo e

sabe que ele, por ser impossível, vai fazer isso, por que você não faz a mediação ali

e antecipa para não dar soco na cara, quebrar o dente, bater a cabeça (...)?”.

Nisso é que residem as nossas indagações. O trabalho colaborativo dos

profissionais da escola junto com o professor não poderia ser a forma de se

trabalhar melhor com essas crianças? Não é a sombra de um estagiário que está

faltando para conter essa criança. Assim não me parece. O que mais parece faltar é

planejamento, considerando a necessidade de cada um, aluno concreto, junto à

equipe pedagógica e os outros profissionais que também atuam com as crianças.

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7.2 O LÚDICO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

“A criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos

mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão

em promover o gozo deste direito” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA

CRIANÇA, ONU, 1959). Essa é a premissa que, de certo modo, vemos se perder

nos espaços da educação infantil.

Outros documentos que podemos analisar, por serem acessíveis aos professores

são o Referencial Curricular Nacional para a educação infantil (RCNEI) e os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN's). Destacamos alguns pontos:

• A brincadeira é uma linguagem infantil.

• No ato de brincar, os sinais, os gestos, os objetos e os espaços valem e

significam outra coisa daquilo que aparentam ser. Ao brincar, as crianças

recriam e repensam os acontecimentos que lhes deram origem, sabendo que

estão brincando.

• É no ato de brincar que a criança estabelece os diferentes vínculos entre as

características do papel assumido, suas competências e as relações que

possuem com outros papéis, tomando consciência disto e generalizando para

outras situações.

• Para brincar é preciso que as crianças tenham certa independência para

escolher seus companheiros e os papéis que irão assumir no interior de um

determinado tema e enredo, cujos desenvolvimentos dependem unicamente

da vontade de quem brinca.

• Os limites são definidos pelas regras, constituindo-se em um recurso

fundamental para brincar.

• Existem cinco grandes pilares básicos nas ações lúdicas das crianças em

seus jogos, brinquedos e brincadeiras, que são: a imitação, o espaço, a

fantasia, as regras e os valores.

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Existem algumas divergências conceituais entre alguns autores. Por isso, para efeito

desse trabalho, adotamos algumas definições.

Para Kishimoto (1994), os brinquedos são o “objeto suporte da brincadeira e podem

ser considerados como estruturados (prontos) e não estruturados (objetos que

adquirem o significado de brinquedo pelas crianças)”.

Já a brincadeira se caracteriza por alguma estruturação e pela utilização de regras.

Pode ser tanto coletiva quanto individual. E o fato de haver regras não impede a

ação lúdica, que pode ser modificada, deixando livre a ação das crianças. Enquanto

o jogo associa brinquedo e brincadeira. Trata-se de uma atividade mais estruturada

e organizada por um sistema de regras mais explícitas.

O fundamental nisso é que o universo lúdico abrange, de modo geral, o brincar, a

brincadeira, o jogo e o brinquedo, e é nele que a criança pequena está envolvida.

Fonte: QUINO, 1993, p.361 Figura 30 – O desencanto com a escola II. O universo da educação infantil parece estar muito voltado para a preparação para o

ensino fundamental. Percebemos que, de um modo geral, as professoras do CMEI

mantinham uma postura muito séria perante as crianças: raramente dançavam, riam

ou brincavam junto com elas. Parecia que estava instituído que o professor tem que

ter “moral” e como profissional “não é pago para isso”. Em turmas mais difíceis,

então, como é o caso da turma estudada, há um desgaste rápido e uma certa

desistência em relação a tentativas novas, deixando o lúdico cada vez mais

esquecido.

A professora Cássia nos disse algumas vezes que não estava se sentindo

professora nesse ano, mas sim uma babá, porque estava deixando muito solto, não

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estava “botando pressão”, e porque estava deixando brincar (DIÁRIO DE CAMPO,

08/10/07).

Notamos que André ficava muito mais tempo na sala quando as atividades não

envolviam folha, mesa e cadeira. Observamos que André saía da sala, na grande

maioria das vezes, no momento em que a professora pedia para que as crianças

guardassem os brinquedos e arrumassem a sala para iniciar as atividades. Então,

como passar às atividades/tarefas de outra forma? Como tornar o momento de

tarefa mais agradável? Algumas possibilidades produzidas no grupo foram:

mediando com momentos lúdicos, música, expondo a atividade de um modo

agradável e prazeroso, falar com voz entoada nesse sentido.

Em um lugar onde todas as práticas estão rigidamente estabelecidas, os espaços

delimitados e o tempo cronometrado, não há espaço para a inventividade, o acaso, o

necessário naquele momento, e também não há lugar para o lúdico. O lúdico

representa o inesperado, aquilo que não se enquadra em nenhum padrão, que

permite a construção de uma brincadeira e que permite o brincar pelo brincar.

A criança não é vista em si, mas como alguém que precisa ser desenvolvida, que

precisa se tornar, no futuro, um cidadão. E é na escola que ela vai ter que se

modelar para isso. A singularidade que a criança desenha na forma como se insere

nessa subjetividade não pode ser reconhecida. Só o será se for calma, cordata,

“preenchível”. Parece não existir outra singularidade possível para ela, a não ser que

lhe falte ou que exceda algo, e que isso precisa ser corrigido, pois constitui-se no

avesso da norma. O encaminhamento aos serviços de saúde passa a ser a única

saída possível.

Esse trabalho pretendeu mostrar que, para além do ensino de conteúdos e de regras

de comportamento, os alunos da educação infantil precisam de oportunidade para

expressar sua cultura infantil, para expressar suas próprias soluções criativas para

os problemas.

Entendemos que poderíamos ajudar ainda mais as nossas crianças se lhes

oportunizássemos mais atividades que melhorassem sua capacidade de

comunicação, que aumentassem o seu nível de cooperação com os outros alunos e

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com os adultos, se lhes possibilitássemos desenvolver o valor que dão a si mesmas

e aos demais, o que popularmente denominamos autoconfiança.

Se pensarmos sobre o papel da educação infantil e se considerarmos todos os

problemas que os profissionais da educação estão vivenciando na escolarização das

crianças pequenas, deveremos, necessariamente, inserir nesse papel o

desenvolvimento de capacidades que estamos esperando das crianças, como se

fossem adultas, sem antes lhes ensinarmos.

7.3 O NÃO OUVIR AS CRIANÇAS

Durante o percurso da pesquisa, presenciamos muitos embates entre os próprios

alunos e entre as professoras e os alunos. Habitualmente, não havia um momento

coletivo de reflexão. Quando o episódio era mais grave, a professora tirava a

criança, ou para um canto da sala, ou para fora dela, e ali tinha uma conversa em

particular que ninguém vinha a conhecer e na qual só o adulto falava.

As crianças não eram ouvidas de forma democrática e organizada, nem mesmo na

rotina, quando nenhum episódio de realce tinha acontecido. Os diálogos eram quase

sempre aos berros e com muito tumulto simultâneo. O silêncio, que pode ser tão

propiciador de pensamento e reflexão, não tinha vez.

As discussões no grupo provocaram algumas reflexões, mas ainda muito presas a

explicações causais exteriores ao ambiente escola. Buscamos fugir disso lembrando

Patto (1999), quando analisa a relação entre subjetividade e os mecanismos

escolares. Essa autora alerta que não precisamos negar a importância dos conflitos

psíquicos vivenciados pela criança, mas que as relações que esta criança

estabelece na escola vão atuar sobre eles, interagir com eles e, portanto, nessas

relações, os conflitos podem ser modificados, amenizados ou piorados. Como ela

diz, não é possível compreender o comportamento escolar de uma criança sem

compreender como a escola se relaciona com a sua subjetividade. "A predominância

do modelo clínico psicológico que considera a queixa escolar em um contexto

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psíquico tem seus reflexos nos professores, nas suas concepções do processo

pedagógico e nas explicações dadas aos problemas de aprendizagem", conforme

também diz Souza (2004, p.34).

Tentamos, então, provocar alguma discussão propondo algumas alternativas de

encaminhamento dessas questões como, por exemplo, a de colocar os alunos para

conversar, com o intermédio de um adulto, para que pudessem se ouvir e também

para que pudessem aprender a se expressar de outras formas que não apenas pela

via da agressividade. Ajudá-los a reordenar as situações, para que compreendam

seu início e seu desfecho, e se poderia haver outro encaminhamento para a mesma

situação.

7.4 PENSANDO A SALA DE AULA UM ESPAÇO MAIS AGRADÁVEL: “CINTILANDO O ESPAÇO COM O PÓ MÁGICO DA TERRA DO NUNCA”

A educação infantil vem se constituindo uma modalidade de ensino totalmente

pautada no modelo do ensino fundamental. A rotina é muito estruturada,

“engessada”, e seu enfoque está muito mais para o aspecto intelectual do que para

o corpo, a criatividade, a brincadeira e o jogo. É uma prática comum, facilmente

constatada nas unidades de ensino.

Espera-se que a criança participe de tudo, mas seu corpo deve permanecer

“sossegado”. Algumas crianças resistem e precisam ser “domadas”. A criança

concreta, quando expressa suas idiossincrasias, ou quando se mostra muito fora

dos padrões, desperta o incômodo. É um incômodo que não deveria aparecer, por

isso não se quer ouvi-lo, vê-lo, sabê-lo. Mantém-se a rigidez dos padrões quando o

que se precisa é buscar a flexibilidade.

A agressividade, expressa de modo lúdico ou não, é vista como tendo causas

externas, alheias às relações vividas no CMEI; não é entendida como mecanismo

também inerente às relações institucionais e por isso algumas práticas não são

evitadas, causando um ciclo perverso de retroalimentação.

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A atenção não é percebida como algo que precisa ser desenvolvido. Na educação

infantil é fundamental que se ensine à criança "prestar atenção", desenvolvendo e

estimulando essa função a detalhes de forma e de posição como garantia para um

processo efetivo de alfabetização.

Os problemas mais citados na área do comportamento, a desatenção, a

hiperatividade e a agressividade, precisam ser entendidos pela professora e por isso

as crianças devem ser encaminhadas para um diagnóstico, que na verdade virá a

confirmar profecias já estabelecidas dentro da escola. Como já dito, os profissionais

da saúde corroboram com a mesma visão clínica das profissionais da educação: o

problema está na criança/família.

A família é outro aspecto muito importante dessa questão. Sempre muito citada na

escola em relação às crianças com problemas na área do comportamento. O olhar

lançado sobre ela é, na absoluta maioria das vezes, muito negativo. É vista como

inoperante, ausente, desestruturada, despreocupada.

A escola, por vê-la assim, acaba provocando um distanciamento muito grande dela.

Sem uma relação próxima, digladiam-se mutuamente e a criança acaba não

estabelecendo com a escola uma relação positiva.

Moysés (2001) constatou que todos os profissionais envolvidos direta ou

indiretamente com a escola, independentemente de sua área de atuação e/ou

formação, centram as causas do fracasso escolar nas crianças e suas famílias.

Somado a isso, todos referem/atribuem problemas biológicos como causas do não

aprender na escola. Existe uma identidade muito grande entre as falas dos médicos,

psicólogos, fonoaudiólogos e dos educadores.

Partindo das idéias de Patto (1999), vê-se que existe um efeito-cascata de

culpabilização pela ineficiência do ensino. Dentro da escola, o diretor/pedagogo

culpa os professores, que culpam os alunos e suas famílias, e estes últimos, por não

terem a quem culpar, culpam a si mesmos.

(...) a responsabilização do outro pode estar a serviço da defesa contra angústias presentes nas relações escolares, defesa esta que garante a cada um e a cada subgrupo um sentimento de competência e de legitimidade graças à atribuição de incompetência e de legitimidade a outrem (PATTO, 1999, p.218).

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A projeção de características negativas no outro é um mecanismo de legitimação

das práticas e uma atribuição que não se dá aleatoriamente, mas impregnada por

preconceitos e estereótipos sociais, e determina a forma como o poder é exercido.

Assim, compreender os mecanismos de utilização do poder e os significados que

subjazem o seu uso é fundamental para pensarmos o seu abuso.

E, especificamente falando das reclamações generalizadas atualmente na educação

infantil acerca da desatenção das crianças aos conteúdos e atividades propostas,

trazemos, no fechamento deste texto, as idéias de Galvão (2004), por parecerem

muito pertinentes.

Embora valorizem a capacidade de atenção concentrada, ao ficar só no plano da cobrança, como se esta fosse uma capacidade que já devesse estar pronta em cada aluno, as práticas escolares não contribuem para o seu desenvolvimento. Ao tratar a atenção como pré-requisito para a aprendizagem, as solicitações escolares supõem uma relação da causalidade linear que negligencia um dado decisivo, o de ser a atenção voluntária também resultado dos processos da aprendizagem. Ou seja, entre atenção e aprendizagem a relação é de causalidade recíproca (GALVÃO, 2004, p.73).

A atenção, portanto, não pode ser meramente tratada como pré-requisito para a

aprendizagem; ela também deve ser aprendida. Seu desenvolvimento deve, pois,

ser contemplado como um dos principais objetivos das atividades escolares

propostas na educação infantil. A exigência de que a criança já a apresente desde

muito cedo, a necessidade de contenção – permanecer sentada, por exemplo -,

entre outras exigências, que para alguns se mostra superiores às suas

possibilidades atuais, equivale a colocá-la diante de uma exigência impossível de

ser atendida.

Fonte: QUINO, 1993, p.76 Figura 31 – A desatenção.

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Na realidade, toda a pressa que circula pelos meios escolares (não retenção,

adiantamento de estudos para aqueles com altíssimo desempenho etc.) para

atender às leis do mercado, chegou também à educação infantil. Como diz Esteban

(1993), é um “jogo de encaixe”, em que a criança é colocada para se adaptar a um

modelo que apresenta dificuldades em lidar com as diferenças.

Na medida em que se ensina à criança na pré-escola a realizar corretamente os encaixes, o cotidiano da sala de aula também vai lhe ensinando a se encaixar na realidade escolar. A escola se apresenta como uma sucessão de jogos de encaixes, com níveis de exigências variados, que possuem como objetivo comum levar a criança a se adequar aos modelos que lhe são apresentados (ESTEBAN, 1993, p.22).

“Hora de brincar... brincar; hora de aprender... aprender”. Para Esteban, essa

separação é algo sem sentido na educação infantil, já que é, hoje, bem reconhecida

a idéia de que a criança aprende por meio da brincadeira, do jogo.

Por esse estudo, pudemos perceber que isso vem se perdendo. O que deveria se

diferenciar de uma aprendizagem mais formal de conteúdos, vem se igualando. O

que deveria se centrar no desenvolvimento psicomotor, global, vem priorizando o

cognitivo apenas. Se antes, nos “jardins de infância” se brincava e na escola se

aprendia, agora temos a educação infantil exigindo aprendizagem formal de

conteúdos, em detrimento da brincadeira – fonte maior de aprendizagem na infância.

Os (des) mandamentos da escola

Neste ponto, em que já tanto foi dito e que, sabemos, há tanto por dizer, me dou ao

luxo de fazer uma releitura, junto com Mafalda (QUINO, 1993), dos direitos da

criança, documento enunciado em Genebra (1924) e reconhecido como Declaração

Universal dos Direitos da Criança (UNICEF), carta adotada pela Assembléia das

Nações Unidas, em 1959, e ratificada pela Constituição Federativa do Brasil (1988)

e em outros tantos documentos. Em 1977, a UNICEF pediu a Quino, criador da

personagem Mafalda e de seus amigos, que ilustrasse a “Declaração dos Direitos da

Criança”, tendo em vista que a humanidade deve à infância o melhor de seus

esforços.

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PRINCÍPIO 1º

A criança deve usufruir de todos os direitos enunciados

nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente

sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos,

sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor,

sexo, língua, religião, opinião política ou de outra

natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento

ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família.

Entendemos que a igualdade de direitos não deve ser confundida com

homogeneidade no modo de tratar. Na escola, a criança que foge ao padrão da

igualdade não deve ser vista como tendo algo em si ou em sua família, que precisa

ser tratado fora dos muros da escola, nos serviços de saúde, para depois poder

habitar condizentemente os espaços escolares.

PRINCÍPIO 2º

A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão

proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por

outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento

físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e

normal e em condições de liberdade e dignidade. Na

instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em

conta, sobretudo, os melhores interesses da criança.

Especialmente, no espaço da educação infantil, em quaisquer etapas, deve ser

priorizado o desenvolvimento em todas as suas interfaces, não havendo a primazia

de um (intelecto) sobre os demais. À criança devem ser oportunizadas ações que a

ajudem a auto-regular o seu corpo, fazendo uso adequado dele; ações que

permitam que seus interesses pelo conhecimento também sejam considerados;

ações que envolvam não tão-somente a moral, o certo e o errado, mas o senso ético

para consigo mesma e com os outros, o conhecimento de si; ações que lhe

Figura 33 – Princípio 2°

Figura 32 – Princípio 1°

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permitam a reflexão e o silêncio, o estar só, o encontrar-se consigo mesma; e, não

menos importante, pelo contrário, o principal, que ela possa explorar a brincadeira

de forma saudável e mediada, para poder estabelecer seus primeiros laços sociais.

PRINCÍPIO 3º

Desde o nascimento, toda criança terá direito a um nome

e a uma nacionalidade.

O direito a um nome também é o direito a ter uma identidade própria, sem

comparações pejorativas. E já que o nome traz também a nossa marca pessoal,

execrar atitudes como a de um pai que se refere ao filho atacando-o pelo próprio

nome: “Um dia, no parquinho, uma professora do grupo de dois anos perguntou a

André seu nome. Ele respondeu: “É André de Carvalho, mas meu pai falou que é

cavalo”.

PRINCÍPIO 4º

A criança gozará os benefícios da previdência social. Terá direito a crescer e criar-se

com saúde; para isto, tanto à criança como à mãe, serão proporcionados cuidados e

proteções especiais, inclusive adequados cuidados pré e pós-natais. A criança terá

direito a alimentação, recreação e assistência médica adequadas.

Figura 35 – Princípio 4°

Figura 34 – Princípio 3°

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“A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte20”. A criança

precisa tanto do alimento para o corpo – comida e bebida – quanto do alimento para

a sua mente: a brincadeira, a diversão, a expressão de si.

PRINCÍPIO 5º

Às crianças incapacitadas física, mental ou socialmente serão proporcionados o

tratamento, a educação e os cuidados especiais exigidos pela sua condição peculiar.

Dentro das premissas da diversidade, a piedade, o medo

e o olhar medicalizante devem ceder lugar a uma visão

potencializadora, ou seja, possibilidades que ampliem

suas potencialidades e assegurem sua permanência e

sua aprendizagem na escola.

PRINCÍPIO 6º

Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança

precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e

sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e

de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra

idade não será apartada da mãe. À sociedade

e às autoridades públicas caberá a obrigação

de propiciar cuidados especiais às crianças

sem família e àquelas que carecem de meios

adequados de subsistência. É desejável a

prestação de ajuda oficial e de outra natureza

em prol da manutenção dos filhos de famílias

numerosas.

20 Trecho da música de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto “Comida”.

Figura 36 – Princípio 5°

Figura 37 – Princípio 6°

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E, quando o afeto não é adequadamente fornecido, a escola, muito especialmente a

escola de educação infantil, pode e deve ser um espaço estruturante da

personalidade humana. O ser humano precisa do outro para se tornar humano,

como disse Vygotsky. Então, para além da genética estão as relações edificantes de

uma personalidade saudável.

PRINCÍPIO 7º

A criança terá direito a receber educação, que será gratuita e compulsória pelo

menos no grau primário. Ser-lhe-á propiciada uma educação capaz de promover a

sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver

as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade

moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade. Os melhores interesses

da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e

orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais. A criança terá

ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando aos propósitos mesmos da

sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão em promover

o gozo deste direito.

“Tornar-se um membro útil da sociedade” tem servido mais para uma educação

pobre e meramente instrucional. Os interesses da criança são desprezados em

nome de sua produtividade, que deve ser quantitativa e constante, sem espaços

para explorar sua criatividade e suas curiosidades.

Figura 38 – Princípio 7°

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PRINCÍPIO 8º

A criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os

primeiros a receber proteção e socorro.

Quando falamos de crianças com problemas

comportamentais, falamos inevitavelmente de confrontos

com outras crianças e, portanto, com adultos. Nesse

caso, não só a criança agredida deve receber cuidados,

mas também a agressora que, quando bate, também

está pedindo “socorro”.

PRINCÍPIO 9º

A criança gozará de proteção contra quaisquer formas

de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais

objeto de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido

à criança empregar-se antes da idade mínima

conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-

lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou

emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou

que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou

moral.

O que são as atividades na educação infantil? Cumprimento de tarefas, execução de

um trabalho forçado, repetitivo e muitas vezes enfadonho, porque nada têm a ver

com o que está se passando no “mundo interno21” da criança.

21 A expressão tenta mostrar a grandiosidade da subjetividade e, ao mesmo tempo, a existência de um mundo paralelo.

Figura 39 – Princípio 8°

Figura 40 – Princípio 9°

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PRINCÍPIO 10º

A criança gozará de proteção contra atos que possam

suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer

outra natureza. Criar-se-á num ambiente de

compreensão, de tolerância, de amizade entre os

povos, de paz e de fraternidade universal e em plena

consciência que seu esforço e aptidão devem ser

postos a serviço de seus semelhantes.

Os adultos parecem ter receio de permitir às crianças de hoje serem crianças,

estimulando o amadurecimento precoce. As escolas priorizam o desempenho em

detrimento do brincar. Países fazem uso de crianças para levantar suas bandeiras e

filosofias terroristas. E em muitos lugares da terra crianças morrem de fome, são

abandonadas, exploradas, sofrem maus-tratos, como no Brasil, por exemplo. Mas é

hora de lembrar que não deveria ser assim.

Figura 41 – Princípio 10°

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APÊNDICES

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APÊNDICE A

Formulário direcionado aos Profissionais da Educação do CMEI

1.Nome do profissional interessado.

___________________________________________________________________

2.Qual a função que exerce no CMEI?

___________________________________________________________________

3.Qual o turno em que atua no CMEI?

___________________________________________________________________

4.Qual o turno, o horário e o dia da semana que você sugere para a realização desta

proposta de formação continuada?

___________________________________________________________________

5.Quais as temáticas que gostaria de tratar nesta formação continuada?

___________________________________________________________________

Caso o profissional interessado seja professor/a da escola, solicitamos que

preencha os dados a seguir.

1.Nome do/da Professora interessada.

___________________________________________________________________

2.Qual o turno em que atua e etapa da educação infantil?

___________________________________________________________________

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3.Você tem aluno que apresenta Necessidades Educacionais Especiais?

__________________Quantos/as?___________________

4.Qual/ais os seus comprometimentos?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

Agradecemos antecipadamente os preenchimentos dos dados para que possamos dar encaminhamento à formação continuada “Infância e Educação Inclusiva”.

Atenciosamente,

Professora Sonia Lopes Victor

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APÊNDICE B

Tabulação das respostas fornecidas pelos profissionais do CMEI ao grupo de pesquisa da UFES para a organização da proposta de formação continuada

Função que exerce no CMEI

Turno que atua no CMEI

Sugestão de horário e dia da semana para a formação continuada

Sugestões de temáticas para a formação continuada

Professora Matutino Noturno (18-21)

Hiperatividade/ falta de limites e Legislação sobre Inclusão

Diretora Matutino e Vespertino

Noturno (18-21) – 3ªf.

Inclusão/ trabalho coletivo e hiperatividade e falta de limites

Professora Matutino Noturno (18-?) – 2ªf.

Hiperatividade, déficit de atenção e autismo.

Professora Matutino 2ª, 3ª ou 5ªf. Déficit de atenção, hiperatividade/falta de limites, distúrbio de comportamento.

Professora Matutino Noturno (18-?) – 2ª a 6ªf.

Déficit de atenção, hiperatividade/falta de limites e distúrbio do comportamento.

Professora de Educação Especial D.M.

Matutino Não respondeu Déficit de atenção e hiperatividade, distúrbio de comportamento e falta de limites.

Pedagoga Matutino e Vespertino

Noturno (18-21).

Práticas pedagógicas inclusivas na educação infantil: possibilidades à ação docente.

Professora de Educação Física

Matutino e Vespertino

Matutino ou Vespertino

Inclusão de alunos com N.E.E. na educação física.

Professora Matutino Noturno (3ª ou 5ª)

Hiperatividade e déficit de atenção

Professora Matutino Noturno (18- 21) 3ª ou 5ª f.

Trabalho pedagógico e Hiperatividade.

Professora Matutino Noturno Práticas pedagógicas direcionadas às crianças com N.E.E.

Professora de arte Matutino e Vespertino

Noturno (18-21) – 3ªf.

Inclusão das crianças com N.E.E. nas aulas de arte. Técnicas de relaxamento, limite, arteterapia, musicoterapia e aromaterapia.

Pedagoga Vespertino Noturno 2ª a 6ª f.

Como tornar o aluno com N.E.E. de um determinado profissional da escola em aluno da escola.

Professora Vespertino Matutino (após as 8h) – Qualquer dia da semana.

Não respondeu

Professora Vespertino Noturno (após o dia de trabalho) – 6ªf.

Não respondeu

Professora Vespertino 18h. Não respondeu

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Professora Vespertino Noturno (18-?) – 6ªf.

Não respondeu

Professora Vespertino Noturno (18-?) – 3ªf.

Inclusão

Professora Vespertino Noturno (18-?) 2ªf. a sáb.

Não respondeu

Professora Vespertino Noturno – 2ªfeira Várias síndromes, as mais recorrentes na escola, por ex.: deficiência mental e motora. Atividades de avaliação, jogos etc.

Professora Vespertino Matutino (8-11) – 3ªf. ou sábado.

Trabalho pedagógico e inclusão na escola; trabalho diferenciado, diversificado, turmas cheias, sem auxílio.

Professora Vespertino Noturno (19h) 2ªf. a 5ªf.

Deficiência mental e hiperatividade

Professora Vespertino Noturno (18-21) – 3ªf. ou 5ªf.

Trabalho pedagógico e atenção às diferenças de forma diversificada na sala de aula.

Professora Vespertino Noturno (18h30 – 19) – 2ªf. ou 4ªf.)

Preconceitos, necessidades educativas especiais e educação infantil.

Professora Vespertino Noturno (18h30 – 19h) 2ªf. ou 4ªf.

Trabalho pedagógico inclusivo na sala de aula.

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APÊNDICE C

Cronograma de atividades desta pesquisa

MARÇO / 2007 • Apresentação da proposta de uma formação continuada de professores, na perspectiva da inclusão, parte do projeto de pós-doutorado da professora Sonia, à diretora, pedagogas e assessora da SEME, no CMEI.

• Levantamento das crianças matriculadas com NEE, que apresentam deficiência.

• Definição da data para apresentação do projeto às professoras.

ABRIL / 2007 • Apresentação da proposta às pedagogas e professoras do

CMEI. • Decisão de enviar um formulário ao CMEI para que as

professoras pudessem apresentar suas sugestões de temáticas a serem tratadas nos encontros de formação.

• Definição do horário e freqüência dos encontros para o grupo de professoras

MAIO / 2007 • Análise dos formulários preenchidos pelas professoras e

pedagogas. • Apresentação do programa de formação. • Apresentação do cronograma de observações. • Apresentação detalhada do projeto maior “Inclusão e

Educação infantil” e dos projetos específicos das mestrandas, em reunião do PPP.

• Início das observações nas salas de aula e outros espaços do CMEI

JUNHO / 2007 • Continuação das observações

• Início dos encontros de formação continuada. • Entrevista com profissional da SEME

JULHO / 2007 • Observações mais focadas nas crianças com supostos sinais de desatenção/hiperatividade.

AGOSTO / 2007

• Início dos trabalhos no turno vespertino. • Apresentação do projeto de pesquisa específico às estagiárias

de Pedagogia/UFES. • Qualificação / UFES. • Levantamento das informações documentais sobre as crianças

observadas (com supostos sinais de desatenção/ hiperatividade).

• Reunião com as pedagogas do turno vespertino para estabelecer o projeto educativo para as crianças com supostos sinais de desatenção/hiperatividade do grupo 6D (sala onde foi estudar o aluno foco da observação).

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AGOSTO / 2007

• Primeiro encontro com a professora da sala (grupo 6D): proposta de trabalho colaborativo.

• Observações participantes sistemáticas das diversas atividades e nos diversos espaços.

• Entrevista com a mãe da criança-foco. • Início dos trabalhos do grupo colaborativo (pesquisadora,

pedagogas, professora, estagiárias).

SETEMBRO/2007 • Observações participantes sistemáticas das diversas atividades e nos diversos espaços.

• Envolvimento das professoras de Artes e Educação Física. • Encerramento das atividades do período matutino. • Entrevista com a diretora. • Início do grupo de estudos com as estagiárias/UFES.

OUTUBRO / 2007 • Entrevista com as pedagogas do turno vespertino. • Observações participantes sistemáticas das diversas

atividades e nos diversos espaços. • Proposição de intervenções. • Encerramento dos encontros de formação continuada.

NOVEMBRO/2007 • Observações participantes sistemáticas das diversas atividades e nos diversos espaços.

• Entrevista com a professora de sala de aula. • Encerramento das observações/intervenções. • Avaliação geral do processo (pedagogas e professora)

DEZEMBRO/2007 • Avaliação do estágio e realização de artigo científico pelas estagiárias/UFES.

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APÊNDICE D

Documentação fotográfica do CMEI

Figura 1 – Hall de entrada

Figura 2 – Secretaria e hall

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Figura 3 - O pátio cinza e bege I

 

Figura 4 - O pátio cinza e bege II

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Figura 5 - O pátio cinza e bege III

Figura 6 – Pátio interno

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Figura 7 – Refeitório

Figura 8 – Sala de aula grupo 6

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APÊNDICE E

Cronograma dos encontros de formação continuada e suas respectivas temáticas

Mês, dias e horários

Temas/coordenadores Referência

MAIO 21 (2ªf.) – 18h30min às 21h

EDUCAÇÃO ESPECIAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Abrindo as escolas às diferenças. In: MACHADO, Nilson et al. Pensando e fazendo educação de qualidade. São Paulo: Moderna, 2001. (Educação em pauta: educação e democracia). pp. 109-128.

JUNHO 11 (2ªf.) – 18h30min às 21h

OS ALUNOS SOB O RÓTULO DAS NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS E A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

AMARAL, Lígia Assumpção. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, Júlio G. (coord.). Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998. p.p.11-30.

18 (2ªf.) – 18h30min às 21h

OS ALUNOS SOB O RÓTULO DAS NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS E A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL Mestranda Marleidi Mocelin

SUCUPIRA, Ana Cecília S. L. Hiperatividade: doença ou rótulo. In: Caderno CEDES, n.15. Fracasso Escolar: uma questão médica? 1ª edição. Dezembro de 1985. p.p. 30-43.

25 (2ªf.) – 18h30min às 21h

OS ALUNOS SOB O RÓTULO DAS NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS E A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

MELLO, Maria Aparecida; BASSO, Itacy Salgado. Formação continuada de professoras de Educação Infantil na perspectiva histórico-cultural: a atividade mediada em processos colaborativos. In: MIZUKAMI, M. G. N.; REALI, A. M. M. R. (orgs.). Formação de professores, práticas pedagógicas e escola. São Carlos: EdUFSCar, 2002. pp. 295-313.

JULHO 02 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE CURRICULO E AVALIAÇÃO NO COTIDIANO ESCOLAR Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

DEL CARMEN, Marisa. A organização do currículo de Educação Infantil como ponto-chave de atenção à diversidade. In: ALCUDIA, Rosa et al. Atenção à diversidade. Porto Alegre. Artmed, 2002. pp. 55-70.

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09 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE CURRICULO E AVALIAÇÃO NO COTIDIANO ESCOLAR Prof.ª Marta Alves da Cruz Souza

Texto sugerido pela própria convidada.

23 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

GAVILÁN, Paloma. O trabalho cooperativo: uma alternativa eficaz para atender à diversidade. In: ALCUDIA, Rosa et al. Atenção à diversidade. Porto Alegre. Artmed, 2002. pp.147-156.

30 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Prof.ª Sonia Lopes Victor Mestrandas

PORTER, Gordon. Organização das escolas: conseguir o acesso e a qualidade através da inclusão. In: AINSCOW, Mel; PORTER, Gordon; WANG, Margaret. Caminhos para as escolas inclusivas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional/ Ministério da Educação. 2000. pp. 33-47.

AGOSTO 06 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Prof.ª Ms. Renata Imaculada de Oliveira

Texto sugerido pela própria convidada.

20 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Prof.ª Lucyenne Costa

Texto sugerido pela própria convidada.

27 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

MAGRINI, Gabri; GANDINI, Lella. Inclusão: a história de Dario. In: GANDINI, L.; EDWARDS, C. (org.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SETEMBRO 03 (2ªf.) – 18h30min às 21h

SOBRE A DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Estudos de Casos e Relatos de Experiências

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APÊNDICE F

Termo de autorização

 

Senhores Pais ou Responsáveis, 

O  grupo  de  pesquisa  da Universidade  Federal  do  Espírito  Santo  ‐ UFES,  coordenado  pela 

professora  Sonia  Lopes Victor,  está  realizando  a pesquisa  intitulada  “Sobre  inclusão,  formação de 

professores e alunos com Necessidades Educacionais Especiais no contexto da educação infantil” que 

visa analisar as  interações, as mediações pedagógicas que acontecem dentro de uma  instituição de 

Educação Infantil, e a relação entre famílias e os profissionais da escola ao compartilharem o cuidado 

/ educação da criança com Necessidades Educacionais Especiais. 

  Para tanto, durante a pesquisa serão realizados vídeo e áudio gravações e fotografias com o 

intuito de  registrar as diferentes situações do cotidiano escolar,  relacionadas a nossa proposta. As 

crianças que apresentam necessidades educacionais especiais  irão participar da pesquisa de  forma 

direta, enquanto que as outras crianças, as quais compartilham com essas crianças a mesma sala de 

aula ou outros espaços da escola, participarão de forma indireta, isto é, nos momentos de interação 

com elas.  

Os dados de nossa pesquisa serão apresentados em relatórios e eventos científicos da área 

de educação, educação especial e áreas afins, além de serem utilizados em atividades acadêmicas da 

UFES  e  do  CMEI  “Darcy  Castelo  de Mendonça”. Nesses  relatos  e  registros  as  crianças  receberão 

nomes fictícios de modo a preservar sua identidade. 

Sendo assim, gostaríamos de solicitar aos senhores a autorização para a participação de seus 

(suas)  filhos  (as) na  referida pesquisa, nos comprometendo em não divulgar  imagens que poderão 

comprometer seu (sua) filho (a) de quaisquer formas.  

Contamos com a sua permissão e desde já agradecemos, 

Prof.ª Sonia Lopes Victor. 

NOME DO(A) ALUNO(A):_________________________________________________________  

AUTORIZO (   )            NÃO AUTORIZO (   )  

NOME DO RESPONSÁVEL (LEGÍVEL):_________________________________________________ ASSINATURA DO RESPONSÁVEL:___________________________________________________ 

  Vitória,        de novembro de 2007.

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APÊNDICE G

Solicitação de autorização para utilização das páginas do livro

“A FORMIGADINHA”

Para cortezeditora.com.br

Data 27/03/2008 08:29

Assunto AUTORIZAÇÃO

Enviado por gmail.com

Senhores,

Sou mestranda da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa "Diversidade e práticas educacionais inclusivas" e minha pesquisa recai justamente sobre as crianças da Educação infantil, que apresentam os supostos sinais de Desatenção/Hiperatividade.

No ano passado, adquiri o livro "A Formigadinha", de Rossana Ramos que, numa feliz coincidência, trata exatamente dessa temática, numa perspectiva próxima a que eu estou conduzindo em meus estudos.

Assim, venho solicitar, caso seja possível, autorização para utilizar as imagens/falas da “Formigadinha” na minha dissertação, como forma de ilustrar o que realmente acontece a essas crianças, fazendo referência completa da fonte.

Trata-se de um assunto muito pertinente, num momento em que as crianças mudaram muito, mas a escola não parece acompanhar essas mudanças.

No aguardo de uma resposta positiva, aproveito para enviar meus agradecimentos e felicitações por tratarem desse assunto em suas publicações, tão relevante para a sociedade atualmente.

Marleidi Mocelin

PPGE/UFES

Olá Marleidi! 

Eu sou a mãe da formigadinha. Nossa, fiquei super feliz ao saber que ela vai virar objeto de estudo. Vou autorizar sim, mas só se você me chamar para a banca... Brincadeira!!!!!  

Mas posso te ajudar bastante. Sou pesquisadora aqui da UPE - Campus Petrolina, da área de Lingüística - alfabetização. Se precisar de ajuda, conte comigo. Apenas peço que ao final você me mande a referência de seu trabalho para eu pôr na Lattes. 

Beijão 

Rossana Ramos

[email protected] [email protected] Tel: 87-38662489 87-88335889

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Oi Rossana, 

Tenho muito prazer em te escrever. Primeiro, para te parabenizar por tanta sensibilidade em apontar uma questão tão séria e recorrente como a que muitas de nossas crianças estão enfrentando já na Educação Infantil. 

Depois, porque seu livro pôde provocar a discussão de uma forma suave e ao mesmo tempo contundente. 

Sou mestranda da UFES e me dedico a estudar crianças que, desde muito pequenas, não se adequam ao modelo formal de escola que temos e por isso são "adoecidas". Estudo as crianças com supostos sinais de Déficit de Atenção/Hiperatividade, não com o viés médico-psicológico, mas sim com a proposta de que as escolas não tornem essas características uma "epidemia", para justificar seus métodos muitas vezes inadequados de ensinar aos pequenos. Estou encontrando estudos que mostram prevalências do transtorno na população infantil em torno de 18%, enquanto a OMS fala de 3 a 5%. Não é assustador? 

Por hora, muito obrigada. 

Depois mando o convite para minha defesa. 

Grande abraço 

Marleidi Mocelin