correntes da etica ambiental - marcelo pelizzoli

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Correntes da ética ambiental Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pelizzoli, M. L. ([email protected] ) Correntes da ética ambiental / M.L. Pelizzoli – Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. ISBN 85.326.2800-1 Bibliografia. Ética ambiental I. Título. 02-5398 CDD-179.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Ética ambiental..........179.1 Marcelo L. Pelizzoli (www.curadores.com.br ) Correntes da ética ambiental © 2002, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http: //www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editoração e org. literária: Merle Borges Orcutt ISBN 85.326.2800-1 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Para Guilherme Pelizzoli Caetano, Maria Pelizzoli e Sara Pelizzoli, 1

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  • Correntes da tica ambientalDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pelizzoli, M. L. ([email protected]) Correntes da tica ambiental / M.L. Pelizzoli Petrpolis, RJ: Vozes, 2002.ISBN 85.326.2800-1Bibliografia.tica ambiental I. Ttulo.02-5398 CDD-179.1ndices para catlogo sistemtico:1. tica ambiental..........179.1

    Marcelo L. Pelizzoli (www.curadores.com.br)Correntes da tica ambiental 2002, Editora Vozes Ltda.Rua Frei Lus, 10025689-900 Petrpolis, RJInternet: http: //www.vozes.com.brBrasil

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

    Editorao e org. literria: Merle Borges Orcutt

    ISBN 85.326.2800-1

    Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

    Para Guilherme Pelizzoli Caetano, Maria Pelizzoli e Sara Pelizzoli,

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  • novas geraes

    SumrioApresentao,Introduo,1. Acerca do paradigma cartesiano-baconiano da modernidade

    cientfica,2. A moral neoliberal ligada ao desenvolvimento sustentvel e

    ecologia democrtica na globalizao,3. Perspectivas de uma tica ecossocialista,4. Perspectivas gerais de uma tica holstica,5. Cristianismo e tica ambiental,6. tica da compaixo e co-responsabilidade A entrada em cena do

    budismo,7. Hans Jonas (1903-1993) e o Princpio Responsabilidade (1979)

    Ensaio de uma civilizao tecnolgica,8. Pensar a tica ambiental luz da tica da alteridade (E. Lvinas),9. tica, sociedade e Natureza a partir da perspectiva da Dialtica do

    Esclarecimento: Escola de Frankfurt,10. Ecotica e conhecimento a partir de uma postura hermenutica,Concluso geral,Bibliografia,

    Apresentao

    O presente livro uma obra rica em contedo, criativa e de grande atualidade. M.L. Pelizzoli, ao apresentar as diversas Correntes da tica Ambiental sob um eixo temtico que confere ateno especial aos sentidos para a Vida, realiza uma valiosa contribuio ao debate contemporneo sobre o tema, abordando questes paradigmticas que se referem ao futuro da prpria espcie humana e do planeta, indissociavelmente interpenetrados. Unem-se, nesta reflexo, tica e ecologia, teoria e prtica, resgatando-se vrias elaboraes de diversos matizes, na perspectiva de investigar, nas palavras do autor, os modelos de sentido para o Universo e, por isso mesmo, diramos ns, para a consistncia humana.

    Na trajetria realizada nesta obra apresentam-se e desdobram-se elementos de um novo paradigma que integra complexamente o tico-filosfico e a ecologia, recuperando-se saberes antigos e teses contemporneas; aborda-se a crise do paradigma ainda vigente, sob a lgica do capitalismo globalizado, que nos levou presente situao de excluso, violncia e degradao dos ecossistemas; e afirma-se novas abordagens no trato das necessidades humanas e planetrias, consideradas desde a sustentabilidade. O projeto aqui realizado o de apresentar a diversidade de proposies e prticas sobre tica, natureza, vises de civilizao e de ser humano, em uma linha de

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  • argumentao e sntese aberta, convidando o leitor a tomar uma posio perante os desafios de nossa poca.

    Este livro tem muito a dizer a todas as pessoas que esto comprometidas com a construo de novas relaes humanas, de carter solidrio, atuando pela consolidao de prticas sociais e ecologicamente sustentveis. Ao leitor, o livro no apenas permite uma atualizao frente diversidade de correntes e posies que se desenvolveram nas ltimas dcadas, cruzando os temas da subjetividade, tica e ecologia, como tambm permite recolocar as principais coordenadas deste debate, posicionando os principais problemas e alternativas encontradas em uma teia de relaes habilmente articuladas pelo autor. H muito que se dialogar, questionar e construir a partir deste livro.Euclides Andr Mance*IFiL, abril de 2002

    * Mance autor de A revoluo das redes solidrias, Ed. Vozes, 1999. Coordena o Instituto de Filosofia da Libertao e Redes de colaborao solidria. http://www.ifil.org

    IntroduoDe que se trata?1 Esta temtica, em primeiro lugar, remete

    rea de Filosofia, tica e tica Aplicada, tambm Biotica e a uma filosofia prxica, contendo vrias interfaces. No seriam estas as reas de maior relevncia na Filosofia hoje (o ponto de sada do seu

    * 1 Qual deve ser o ponto de partida, na relao tica e Meio Ambiente, ou homem e natureza, para que as anlises tenham efetividade junto a uma ao coerente com nosso tempo? Nossas concepes de mundo humano e de tica, h at pouco tempo, tinham grandes dificuldades em contemplar seriamente a Natureza como tal e a complexidade humana em sua concretude prpria basta ver as ticas tradicionais, excludentes do outro como Outro reprodutoras do paradigma do Poder e da dominao. Em relao s pessoas sempre se entendeu a elaborao e estabelecimento de normatividades ticas. No entanto, em relao ao meio ambiente haveria uma tica, impressa ou possvel de ser impressa, provinda de um momento de relao harmnica do homem com a natureza, por exemplo? Mas falar de tica ambiental no ser remeter antes questo de uma tica da subjetividade/intersubjetividade (ou questo da violncia), tica esta puramente humana e que se reflete nos contextos ambientais? Tem-se e precisa-se da percepo da natureza como tal para se fazer da ento uma tica? A tica ambiental provir do conhecimento ecolgico que temos da natureza e da conseqente dependncia nossa enquanto espcie a, dentro da biosfera? Ou ela vir da admirao dada na relao inesgotvel do homem diante da maravilha e magnificncia do que chamamos de natureza? Tratar-se- de mais um campo da tica, entre outros? So questes que j levantvamos em A emergncia do paradigma ecolgico, Ed. Vozes, 1999.

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  • narcisismo), considerando-se a sua relao com os outros saberes, a situao e as exigncias do mundo atual?

    A temtica vista igualmente como Ecotica, tica da vida, dentro da tensa, fundamental e ampla relao Sociedade e Natureza; trata-se, como abordei em A emergncia do paradigma ecolgico (Vozes, 1999), de tica socioambiental, como postura humana de defesa e sobrevivncia, a partir das formas renovadas de relaes com o Outro. Note-se a redundncia dos termos que ocorrem neste meio: tica ambiental ou socioambiental, educao ambiental, ecologia humana etc. Mas qual o sentido destas chamadas tautologias (repetio com igualdade lgica)? Elas so introduzidas para revelar uma grande dicotomia, a diviso entre as aes humanas e suas inter-relaes e conseqncias socioambientais (ambientais), para que se possa, depois, san-las.

    Neste sentido, corremos o risco de sermos insuficientemente entendidos, risco que correm todos os que trabalham com a questo tica e ambiente, risco advindo da viso reducionista e contaminada que logo pensa em questes verdes, dos resduos, da natureza exterior ou naturalizada. Esse o nosso maior desafio aqui, pois quando o leitor chegar ao fim dessa obra no poder ter a mesma viso da temtica ambiental que est incrustada no pensamento ingnuo, seja ele positivista, seja ele do senso comum. Portanto, falar em ambiente falar em pessoas e suas relaes, ou seja, falar em tica, o que por sua vez no apenas falar em normas morais e comportamentos, mas em formas de conhecimento (que so sempre relaes), vises de mundo; da a cosmologia, a ontologia e a antropologia envolvidas, a saber, vises de sentido do mundo/universo, do ser/essncia, e do humano/tico. Aqui, um sentido para o universo est em jogo, mesmo que isso no possa ser decidido, ou ainda, de-finido, acabado e dominado por algum ou pela soma de muitos. No obstante, urge (re)construir(-se).

    Na questo conceitual, numa abordagem mais filosfica, importante diferenciar o que os vrios termos envolvidos suscitam, tais como: Ecologia (cincia ou movimento?), ambiente (construdo ou natural?), meio ambiente (conceito dicotmico e perifrico?), Natureza (termo altamente implicativo e complexo), ser humano, vida selvagem, e outros. Estes termos, na verdade, tais como a tica ambiental, interligam-se a uma gama de questes humanas fundamentais, e do Saber como um todo, tanto que para lidar com eles preciso saber lidar com abordagens do tipo da: interdependncia, complexidade, alteridade, singularidade e processualidade. E com as seguintes lgicas: identidade, diferena, dialtica, lgica da complementaridade e a do dilogo com todas as coisas (altamente implicativa); isso na dinmica aberta e contnua entre: observador, observado (objeto), contexto, interpretao/conhecimento e tica/ao. Veja-se que esses ltimos elementos so altamente

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  • inovadores e subversivos a toda teoria tradicional, a toda viso conservadora, a toda classificao e lgica restritiva/reducionista.

    O exerccio a que convidamos aqui tico e filosfico, no tanto no sentido da erudio, mas das perspectivas de horizontes de sentido, de nova compreenso, de reflexo a partir de pontos de vista diversos, mas pontos de vista que se encontram por caminhos inusitados e altamente profcuos. Apesar de demarcar nossa linha de argumentao tica a ser seguida, o exerccio da sntese, com uma proposta mais abrangente ao mesmo tempo que aplicvel em cada caso, ficar a cargo do leitor/interpretador, um observador-agente no mundo, que constri seu conhecimento em dilogo com diferentes teorias e momentos de prxis, os quais devero lhe desafiar. J nossa perspectiva parte da crtica ao paradigma e viso de mundo da modernidade, e aos modelos civilizatrios e de progresso atuais, em nome de um outro paradigma, tico (socioambiental), da alteridade e dialgico-hermenutico; segue assim sua vereda de denncia e anncio de modo propositivo, culminando numa abordagem fundamentada em defesa da vida e de carter hermenutico.

    Observamos que, aqui, usaremos o termo ecotica antes que tica ambiental ou tica socioambiental; ou ainda mais, usaremos puramente o termo tica sempre distinto ou mais alm de moral tradicional e forma de comportamento, regras e normatividade, cdigos ou mesmo moralismo. Enfatizemos que isso visa sanar a viso dicotomizada, verdizante e fraca que surge quando as pessoas em geral ouvem o termo ambiental, e tambm a viso errnea e preconceituosa do termo moral. No se quer aqui simplesmente uma moral para o ser humano diante da Natureza, fora das relaes mais ntimas do sentido da vida, do ser-no-mundo que somos. Com (eco)tica pretendemos remeter busca de sentido e plataformas primeiras que o ser humano elabora em sociedade em relao com a Vida como um todo. claro que visar a recuperao da viso e da vivncia dos processos chamados naturais, da nossa interao mais harmnica com a chamada Natureza2. Mas isso implica que as questes mais fundamentais de nossa vida esto envolvidas aqui; e que o termo ambiente revelador, quando traz tona faces de nossa insero do mundo que foram escamoteadas ou obscurecidas, pelo prprio desenvolvimento do Saber e da civilizao.

    Observamos igualmente que, diante de to grandioso e disputado tema, no nos mantivemos neutros na apresentao das correntes escolhidas; toda apresentao implica uma interpretao, e o fizemos a partir de princpios ticos e ambientais que julgamos serem os mais profundos e eficazes na construo de uma civilizao social

    2 Observe-se que escrevo Natureza com maiscula para indicar que esse no um conceito simples, mas complexo, amplo, interdependente, mutvel conforme a histria e as situaes, dado a vrios usos, tanto objetificadores quando humano-vitais, inclusive elementos mticos e romnticos.

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  • e ecologicamente equilibrada. A prpria escolha das correntes e o modo de apresentao das mesmas com certas direes e crticas indica para isto, o que tambm deixa em aberto para outras sendas e contribuies.

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  • 1Acerca do paradigma cartesiano-baconiano da modernidade cientfica3

    Num entendimento minimamente profundo do que se trata em termos de crise e crtica junto ao tema socioecolgico, do eclogo e da tica em geral, o retorno ao clima da Revoluo Cientfica (junto com a chamada Modernidade, sc. XVII em diante) crucial, no sentido de rastrear como se formou o atual padro de viso de mundo (paradigma), o prisma que guia a construo do Saber e da civilizao tecno-industrial. Assim, percebe-se que ocorreu uma grande mutao na perspectiva de mundo, no sistema de valores e na construo da civilizao a partir do sculo XVII, alterando radicalmente a prpria cosmoviso, e com conseqncias que vm sendo altamente questionadas.

    Como bem descrevem vrios autores, como Lenoble ou Capra, o mundo antigo e medieval tinha uma viso orgnica de mundo, com um modo correlativo de situar-se num Cosmos ordenado e determinado; vive-se em comunidades pequenas e coesas, com relativa autonomia, vivenciando mais proximamente os processos socionaturais (clima, terra, relao social, alimentos, medicamentos); com a interdependncia entre fatores espirituais e materiais, e com a prioridade da comunidade sobre o indivduo. Ainda, como diz Capra, os cientistas medievais, investigando os desgnios nos fenmenos naturais, tinham enorme considerao pelas questes relativas a Deus, alma e tica. Portanto, a noo de viver em um cosmos fechado, mais orgnico e entrelaado, e vivo, onde se est imerso (num lugar), numa casa, isso junto com um poder organizador mais forte que o humano, o qual deve ser respeitado4.

    J na viso da Revoluo Cientfica, ou no que se chama de paradigma cartesiano, o universo comea a perder tais caractersticas, imperando a metfora de conhecimento do mundo como uma mquina, do mecanicismo e do materialismo fsico, compondo um grande reducionismo. bem outra a postura frente Natureza, nunca antes requerida pelos Antigos e Medievais (bem como por vrias comunidades humanas, sejam do Oriente, sejam indgenas, sejam africanas...), que faz perder o carter de ligao (espiritual e de sentido) com a multiplicidade de formas de vida e da organizao do mundo pautado em torno da grandeza e fora da

    3 Este ponto tem um carter basilar, e ser retomado em

    momentos tais como na anlise da (eco)tica em Capra, Escola

    de Frankfurt e em especial no captulo sobre a hermenutica.4 Cf. Capra, O Ponto de mutao, cap. III. Cf. tambm aqui nosso

    captulo sobre o cristianismo.

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  • Natureza. O que ocorre que uma racionalidade (sentido) antes vista no mundo divino e espelhado no mundo hierarquizado (Cosmos) vai sendo expurgada. Vo sendo abolidos os mistrios, os encantos, a poesia natural na admirao dos seres, e se comea a construir um grande aparato matemtico, ligado fsica, engenharia e depois qumica, para mostrar que a Natureza segue leis rgidas, como um mecanismo (veja-se a metfora do relgio para entender a Natureza naquele tempo); e assim ela pode ser dividida em vrias substncias, sempre fsico-qumicas, e se inferem leis para imitar, alterar, manipular e transformar as vrias formas da matria naquilo que pode servir e enriquecer materialmente o ser humano como homo faber.

    sob a bandeira da certeza e do rigor cientfico, e da noo de progresso que vem com a Revoluo Industrial, que a Razo que cooptada pelo crivo cientfico ao mesmo tempo que alarga infinitamente o conhecimento dos seres e ambientes, toma posse de todo sentido, ou seja, pe-se como fundamento racionalista ltimo a partir do qual se determina o destino de todos os outros seres, e mesmo dos humanos. Que os cientistas e pensadores tenham concebido o mecanicismo, o determinismo e depois o positivismo em geral, como explicaes de leis e da verdade do real, e do mundo natural, algo realmente assustador se se pensa formas dignas de conhecimento e relao com a Vida. Veja-se que desde a que a Razo, alardeada como motivo de emancipao e felicidade, degenera em Razo instrumental, termo muito bem trabalhado pela Escola de Frankfurt, para mostrar como a racionalidade vigente se torna calculista, algo desumanizadora e determinada exclusivamente pelos processos tcnicos e utilitaristas de um Sistema que nos escapa.

    digno de nota a interpretao perspicaz de Flickinger sobre a mudana de paradigmas: [...] a perda da f na ordem antiga cria um vcuo de legitimao do saber humano, a ser preenchido por outro princpio de argumentao [...] A razo humana viu-se entronizada como princpio ltimo da fundamentao do que deveria ser admitido, futuramente, como conhecimento verdadeiro. [...] a razo humana assume as exigncias antes atribudas idia de Deus como, por exemplo, qualidade de onipotente ou omnisciente. Ela manifesta-se como princpio ltimo do conhecimento objetivo, no podendo fugir da subordinao do mundo exterior ao seu prprio domnio, isto , da separao do sujeito conhecedor e de um mundo de meros objetos. Ocorre a autonomia da razo em processo de conquista do mundo como objeto; ciso inevitvel, que remete unidade da razo e divisibilidade do mundo (Natureza) objetivado5. Ou seja, o sujeito como plo de unidade em sua identidade identificadora/redutora do real possibilitado pela base instrumental e objetual sob a qual ele se assenta; trata-se tambm, no fundo, de um modelo de ser feliz.

    5 Flickinger (1996), p. 29s.

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  • Ainda, segundo este autor, podemos apontar duas idias-chave do racionalismo moderno: 1) a autonomia e unidade da razo humana considerada o verdadeiro fundamento de nosso saber cientfico legtimo, dando-se a este fundamento o poder de fazer do mundo real o seu objeto disponvel, administrvel, manejvel. 2) a objetificao da realidade pelo processo conhecedor implica na divisibilidade praticamente ilimitada dos objetos. assim que as cincias tornam-se objetificantes e implicam na alienao do homem em relao ao ambiente que o sustenta6.

    Nos nomes fundamentais da Revoluo Cientfica temos sintomas claros da problemtica:

    R. Descartes: em sua filosofia, o corpo separado da alma, o ser humano separado da natureza, o sujeito do objeto (res cogitans em oposio a res extensa); temos a o homem visto como uma mquina, o universo visto como um Relgio, com partes justapostas; aparecem termos como: fluidos, presses, qumica, inorgnico, para se explicar a Vida. O ser humano, para ele, essencialmente um ser racional (e dotado de alma), isolado e dominador de objetos de conhecimento. O que ocorre a? O reducionismo dos fenmenos fsicos a relaes matemticas exatas; a anlise decompositora e fragmentadora da realidade em faces de objetos; impera o mtodo reducionista que s aceita o que se ajusta razo cartesiana. Assim, tambm apresenta-se o anseio por um modelo universal e cabal de explicao (positivista) para todos os horizontes do conhecimento (do mundo e do prprio ser humano). Da o termo Mathesis universalis, que vai ser o ideal e tema de vrios filsofos, que querem o mundo a seus ps; na mesma esteira o modelo More geomtrico tambm matemtico, para esquadrinhar o espao, a aplicar-se a todo universo possvel. O pensamento do cientista Descartes que alguns ainda crem ter valor filosfico escancaradamente problemtico ao lidar com o que chamo de as figuras da alteridade: ou seja, elas so fundamentalmente perigosas para uma abordagem da Natureza, do corpo, da sexualidade, da mulher, da histria (tradio e historicidade), do tempo, da psique (inconsciente em especial) para falar dos temas que realmente importam. Veja-se que as descobertas de Descartes eram vistas por ele quase que como fruto de iluminao, dentro de uma misso divina, demonstrando que

    6 Ibid., p. 31. E, nos desenvolvimentos seguintes da modernidade,

    como o Idealismo Alemo (Fichte, Kant e Hegel em especial), a

    preocupao preponderante gira em torno da fundamentao da

    autonomia da razo culminando numa teoria da subjetividade.

    Por conseguinte [...] a postura da razo dominadora no foi

    questionada substancialmente nesta tradio (Ibid., p. 32).

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  • Cincia/tecnologia/progresso e mito andam lado a lado h muito tempo.

    Galileu Galilei: nome fundamental. o cientista que une saber quantitativo-matemtico com a experimentao cientfica, para formular leis da natureza, sendo portanto o pai da cincia moderna. Sua cincia brota de uma necessidade de engenheiro, navegadores e exploradores, na grande Veneza do sc. XVII. De esprito prtico e conquistador, com sua luneta simboliza tambm a viso penetrante que expulsa os elementos espirituais, estticos e ticos do conhecimento.

    F. Bacon: mais organizadamente, na Inglaterra ele formula a teoria do procedimento indutivo, para realizar experimentos e extrair concluses gerais, com novos testes e verificaes. A partir da, o objetivo da cincia passou a ser alcanar o conhecimento que pode ser usado para dominar e controlar a natureza [...] (Capra, p. 51). Simboliza a necessidade imperiosa e astuta de transformar a Vida ao modo antropocntrico. Os textos de Bacon so carregados de passagens onde literalmente prega a tortura, dominao, e arrancamento dos segredos e mistrios da Natureza, tal como se faziam com muitas mulheres (parteiras em especial) em seu tempo.

    Se Galileu afirma que a natureza est escrita em linguagem matemtica (pensamento simplificador e quantificador), e Descartes nos prope a razo para a sua conquista em nome do ego cogito, Bacon elabora um mtodo para dominar a natureza, obrig-la a dar respostas, fazendo-a servial, escravizando-a (Bacon). Diante disso tudo, o antigo conceito da Terra como me nutriente cai literalmente por terra. O olhar sobre a vida torna-se rgido e mecanicista.

    Podemos levantar aqui um resumo de conceitos crticos a serem aplicados neste contexto, e, sempre que eles forem encontrados, referem-se caracterizao crtica frente a esse paradigma, imperante desde a Revoluo Cientfica: cartesianismo, reducionismo/simplificao, quantificao e matematizao desqualificadora do real, racionalismo, determinismo cientfico, pensamento dicotmico e fragmentador (analtico), mecanicismo, materialismo desencantador da natureza, razo autnoma objetificadora7.

    7 Veja-se que so posturas que se chocam frontalmente com as

    figuras da alteridade. Para mim, toda filosofia, teoria cientfica

    ou postura de ao e concepo pessoal ou social, que tenha a

    pretenso de valer, deve passar por estes crivos: 1) Qual o lugar

    da mulher e do feminino ali? 2) Qual o lugar da Natureza, seja

    ela natural ou seja ela construda? 3) Como lida com a cultura e a

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  • Certamente, essas questes de ordem mais epistemolgica e da formao de um grande paradigma de conhecimento a partir das Cincias Naturais so imprescindveis, at porque tambm as Cincias Humanas foram a reboque de tais prismas; no obstante, esta discusso permanece sem fora se no acompanhada com os momentos da economia, da poltica e das noes de progresso e sociedade que se formaram a partir daquele perodo histrico. com essa conscincia que passaremos a analisar mais de perto pontos dessas reas, ligadas noo liberal e noo socialista de civilizao.

    histria? 4) Ento, como lida com o outro como outro? 5) E

    como lida com o pobre e excludo? escandaloso que muitos

    estudiosos e pesquisadores escamoteiem tais questes, as mais

    fundamentais, em nome de ideologias (filosofias) muitas vezes

    etnocntricas, racistas, machistas, cientificistas, totalitrias,

    elitistas e irresponsveis.

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  • 2A moral neoliberal ligada ao desenvolvimento sustentvel e ecologia democrtica na globalizao

    Em primeiro lugar, neste mbito de cunho neoliberal, busca-se reafirmar o valor supremo da liberdade, atravs do progresso e ento do bem-estar humano, proporcionados no Mundo Livre do Ocidente, pela Cincia, pela Revoluo Industrial e o avano da tecnologia, associados ao crescimento econmico e poltica liberal de mercado no sistema capitalista. Quem poderia ser contra isso? Quem no quer mais bens materiais, tecnologia, conforto? Pergunta sub-reptcia e maliciosa que o pensamento liberal, no fundo, faz a todos os participantes do atual modelo de consumo (includos).

    Por conseguinte, para os (neo)liberais, no haveria um igual sistema (capitalismo, poltica liberal de sociedade e Estado, livre mercado todos colocados como sinnimo de democracia!) que proporcione maior realizao humana, j que a liberdade e as chances estariam ao alcance de todos, garantidas pelo direito liberal moderno, pelo estado de direito na democracia, pelas conquistas do contrato social entre pessoas e naes livres e modernas.

    A tica pressuposta nos defensores do mundo liberal e neoliberal parte do princpio de que todos os homens buscam a felicidade prpria e ento a da sociedade como um todo; aqueles que lutam mais, galgam melhores postos e bens, at porque as pessoas so diferentes, e com capacidades diferentes, e isso que prevalece. neste contexto que vigora ainda a tica utilitarista, em sua face adaptativa e organicista-funcional para as chamadas sociedades civilizadas e livres. Aqui, o valor supremo do indivduo, e ento de sua liberdade, s se realiza pela propriedade privada dos bens de produo e consumo; ela liga-se como que a uma certa identidade, algo por vezes referido noo tradicional de famlia e auto-afirmao do sujeito e de seu grupo ou classe.

    A concorrncia e competitividade seriam no s naturais mas necessrias ao aprimoramento da economia, eficincia e produtividade. Entendemos que surge, aqui, uma tica neodarwinista implcita, que diz que o mais forte se adapta mais e tem direito natural sobre tudo aquilo que conquistou. Mas cremos ser essa tica uma interpretao rpida e ideologizada, de luta pela vida que haveria na Natureza, contrariamente viso ecossistmica e da interdependncia dos seres, num modo mais complexo e profundo de entender os sistemas do planeta.

    Em relao Natureza exterior h uma tica velada que diz que o homem sempre quis dominar a natureza bruta, selvagem, e transform-la para uso com finalidade humana (o que, em parte, achamos que seja verdade). Mesmo quando o homem promulga a proteo da natureza (reas naturais) seria para que ele viva melhor

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  • e desfrute dela; no obstante, ele quer sempre uma natureza comportada, a partir de sua esttica urbana e moderna, com aquilo que ele acha benfico e sem os seres que ele v como malficos. Neste sentido, o uso de pesticidas, tanto em lavouras quanto nas casas, o uso de venenos qumicos, a terra vista ao modo da indstria agrcola, seria algo perfeitamente natural nesse mbito.

    a) Sociedade liberal-democrtica e meio ambienteA partir da dcada de 70-80, alguns dos grandes participantes

    do poder econmico capitalista (instituies financeiras de Breton Wood, FMI, Bird, GATT/OIC, G7, mega-empresas, blocos econmicos...) comeam a perceber a necessidade de limitar o uso dos recursos naturais pois eles poderiam faltar. Ao lado disso, alguns percebem a necessidade de diminuir a poluio, pois isso poderia tornar invivel as cidades e at o meio rural (da as conferncias mundiais sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, promovidas pela ONU).

    Por conseguinte, numa visada muito geral quanto ao meio ambiente, diramos de incio que a investida desse Poder centra-se na diminuio da populao, pois o excesso dela que causaria a pobreza e aumentaria a destruio da natureza; por outro lado, centra-se tambm no combate ao desmatamento (no Terceiro Mundo em especial!); e, em terceiro lugar, centra-se no uso de tecnologias limpas, para filtrar a poluio, criar novos mecanismos mais aprimorados e menos poluentes ou danosos sade. No obstante, no h uma homogeneidade de pensamentos e aes nesta perspectiva, o que no impede de aglutinarmos dois grandes blocos para o caso.

    b) Atitudes dentro dessa perspectiva quanto crise globalConservadora: alm de afirmar que os problemas ecolgicos

    no seriam to graves, diz que a prpria tecnologia vai resolv-los. Prega o aprimoramento (alinhamento ao modelo central) das democracias no Terceiro Mundo, o avano da globalizao econmica e blocos econmicos consagrados; diz que a pobreza poder ser mitigada com mais crescimento econmico, aes assistenciais e diminuio do crescimento populacional. O Terceiro Mundo deve seguir as polticas de ajustes econmicos do FMI e Banco Mundial para um dia alcanar um padro de desenvolvimento de nvel superior.

    Reformista: continua na linha da Conferncia Mundial de Meio Ambiente de 1972 (Estocolmo) e de algumas aes da conferncia Rio 92, tais como: diminuio lenta da emisso de CO2 dos pases desenvolvidos (Conveno do Clima), aprimoramento de combustveis alternativos, implantao de certificados ambientais empresarias/industriais (exemplo: ISO 14.000); eficincia e reciclagem de materiais, criao de empregos alternativos, gerao de renda; aproximao do Sistema liberal ao estado de bem-estar social (modelo europeu). Prima pelo desenvolvimento da tecnologia e da

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  • economia para resolver problemas socioambientais. Estimula os direitos difusos (proteo natureza natural, direitos do consumidor, rotulao de alimentos transgnicos, campanhas contra cigarro e drogas etc.). Traz tona o debate sobre desenvolvimento sustentvel, na esteira de programas de busca de eficincia empresarial, qualidade total e insero social. No questiona radicalmente o modelo civilizatrio, a matriz econmica e a m diviso de renda. Tal como na viso conservadora, no aceita, em geral, o cancelamento das dvidas externas do Terceiro Mundo, s em alguns casos de pases pobres que j esto praticamente arrasados economicamente. Contm, em tese, elementos importantes e anlises apuradas, em se pensando os processos produtivos, industriais e econmicos nas sociedades atuais do mundo globalizado, e que necessita de um Desenvolvimento Sustentvel.

    No que tange anlise de estratgias sociais e de postura terica, apresentaremos a seguir um bom exemplo desta ltima perspectiva, com a chamada ecologia democrtica do filsofo francs Luc Ferry.2.1. Crtica ao esquerdismo e ao holismo a partir da ecologia democrtica8

    A obra de Luc Ferry traz a provocao j no ttulo: A nova ordem ecolgica A rvore, o animal e o homem, ou seja, um trocadilho querendo indicar a ingenuidade daqueles que colocam o verde antes dos seres humanos. Centra-se numa crtica implacvel e irnica ao biocentrismo (que advoga que os seres vivos naturais tm antecedncia e certa prioridade ou igualdade em relao ao ser humano), ao romantismo e ao arcasmo (volta ao passado, s origens) mitolgico, que estariam na base dos movimentos ecolgicos que tm como paradigma a Deep Ecology (Ecologia Profunda).

    Ele situa-se do lado dos realistas e reformistas, em contraposio aos que chama de revolucionrios e fundamentalistas. Defende a afirmao e as conquistas do Humanismo o desenvolvimento e autonomia humana na histria e da secularizao (processo de desespiritualizao da sociedade) e ridiculariza os que advogam um direito prprio para a natureza. Ironizando um advogado ecologista norte-americano, chamado Stone, escreve: Stone inclusive chega a considerar para suas rvores uma representao proporcional em nvel legislativo! (p. 22). Acusa os

    8 Se o leitor no tem alguma familiaridade com a corrente

    holstica da ecologia, a qual Luc Ferry critica, poder ler parte do

    cap. 4, onde abordamos a ecotica de cunho profundo. Os

    nmeros entre parnteses aqui referem-se obra de Luc Ferry

    citada.

    14

  • defensores dos direitos da natureza como pessoa jurdica e os ecologistas profundos de pensadores com viso pr-moderna de mundo. E, tambm, de fazerem uma escatologia poltica (p. 23s), que recupera a mitologia das utopias polticas, valendo-se de um novo ideal moral: a pureza recupera seus direitos [...] (p. 24).

    Ferry centra sua crtica no esquerdismo e radicalismo dos ecologistas defendendo a social-democracia, um certo tipo de liberalismo e o desenvolvimento substancialmente dentro do capitalismo. Vai, afrontosamente, ao corao dos verdes e dos profundos: O amor natureza oculta o dio aos homens.

    A posio de Ferry no contempla um valor intrnseco (um direito especfico, como sujeito) ao meio ambiente; ele o entorno, determinado sempre pela vontade e ao do homem, que no deve degrad-lo porque sofrer com isto. No obstante, critica tambm o antropocentrismo exagerado e a viso cartesiana (cf. p. 28).

    Aponta que a ecologia hoje tornou-se como uma moda, sempre acompanhada com uma frustrao ou descontentamento com a modernidade, com o ocidente, com o capitalismo, com a tcnica[...] (cf. p. 30). A ecologia, no fundo, teria se comportado como nostalgia romntica de um passado perdido, de uma identidade nacional escarnecida pela cultura do desapego; a esperana revolucionria no porvir radiante de uma sociedade sem classes e sem imposies (p. 32).

    Para ele, o elogio das diferenas, com a preservao das identidades culturais intocadas, leva a uma atitude pr-democrtica, pr-cosmopolita, onde se reforariam os nacionalismos e particularismos. E, ento, dispara realisticamente, sem utopia alguma: O homem um ser de antinatureza por excelncia. Assim capaz de libertar-se dos ciclos naturais, de aceder cultura, inclusive esfera da moralidade que supe um ser-para-a-lei e no s para a natureza (p. 35).

    A proposta de Ferry, com sua experincia poltico-institucional, no quer prescindir dos benefcios da cincia e da companhia dos semelhantes [...] e respeita a autonomia individual frente s decises coletivas autoritrias (p. 34). Ele s v possibilidade de vigncia de princpios democrticos dentro do liberalismo poltico, ou seja, dentro das atuais regras do jogo (cf. p. 191). Da, a nica possibilidade seria a ecologia democrtica, que porm no pode casar amor ao Cosmos e ao holismo com poltica.

    Ele afirma que toda valorao em relao natureza um fato prprio dos homens e que, portanto, toda tica normativa de certo modo humanista e antropocntrica (p. 193)9. Comparando os 9 Ou seja, conclumos, no se poderia tambm ver ento

    alteridade alguma na natureza, pelo simples fato de que nossa

    razo e linguagem no a alcanam. Neste sentido, a natureza no

    15

  • ambientalistas profundos com os fanticos religiosos que no aceitam certas intervenes mdicas, afirma que eles ocultam o que na natureza aborrecvel; s se referem harmonia, beleza e paz. Isto seria fruto de uma inspirao teolgica. Neste sentido, cita a existncia e problemas das pragas, as catstrofes naturais, para fazer frente ao harmonicismo dos naturalistas (cf. p. 204s).

    Ele v a crise no como necessidade de retorno ou reespiritualizao ou coisa que o valha, mas fruto do tornar-se adulto da humanidade na base do universo laico e democrtico (cf. p. 199). Assim, depois de celebrado o luto libertador e salutar pela democracia e secularizao, o reformismo a nica atitude que corresponde superao do mundo da infncia (p. 202).

    a) Crticas a Luc FerryPensamos que ele no vai s ltimas conseqncias e no

    procura uma alternativa eficaz em relao aos reveses do processo de secularizao e industrializao, que para ele essencialmente sinnimo de maturidade. Ou seja, no percebe a gravidade do vcuo instaurado com a perda da fundamentao sagrada que, anteriormente Revoluo Cientfica, era a base de uma relao de respeito e distanciamento para com a Natureza. Neste sentido tambm, ele pressupe um ser humano j quase que completamente emancipado, sem natureza mtica ou mstica alguma, e sem vontade de u-topia, como projeto a ser realizado ele abole todo e qualquer profetismo da denncia e do anncio.

    Ele desconhece que atualmente no se abandonou o pensamento mtico, que a civilizao tcnica e o fetiche do capitalismo cooptam os desejos e utopias dos humanos em vista de seus objetos e interesses, remetendo sempre a um Eldorado perdido a ser pretensamente alcanado materialmente. Isto nos lembra as anlises do mito de Narciso (que se afoga em sua prpria imagem) vivido pela sociedade de consumo atual, como motivao mgico-trgica do capitalismo tardio que referencia tudo s relaes de objeto e posse. Parece-me que a sua posio incorre assim no mesmo problema que critica, pecando mesmo por falta de realismo.

    Luc Ferry sabe que o ocidente grego, em um percurso histrico, saiu do mito para a ontologia (na esfera do ser racional e linguagem, do conceito e anlise lgica), mas no tem a profundidade filosfica para perceber que a prpria ontologia e a prpria Cincia como discurso pretensamente neutro precisa sempre de novo ser

    comportaria de fato o mistrio, o homem tambm no;

    iluministicamente, as coisas estariam desveladas!

    16

  • desmitologizada, des-encantada10, pois sua mitologia do homem-deus perigosa, alm de suas caractersticas blicas e elitizadas.

    Outra questo que para ns essencial apontar: estamos no chamado Terceiro Mundo, e, neste sentido, aos nossos problemas sociais e ao nosso contexto pode ser elitizante essa ecologia democrtica de alto nvel (para sociedades avanadas), o que pode ocorrer tambm com uma ecologia profunda daqueles que querem ser um com a natureza intocada.

    Luc Ferry no tem uma viso eficaz no sentido de uma defesa da alteridade (dinmica prpria e outra da Vida e Outro como tais) da Natureza. Isto se d tanto pela proximidade domesticadora apontada em seu livro entre o homem e os animais, como pela viso de uma ecologia que no confere estatuto dinmico e vivo o suficiente para a Natureza. O que se percebe tambm em termos de relao homem e animal (cf. Luc Ferry, p. 92s) que o impulso humano nesta relao seria em geral sdico; isto transparece a partir de uma viso de homem onde Freud retomado por ele de uma forma muito rpida.

    A meu ver, Ferry no responde suficientemente para uma teoria que supere de fato as marcas do cartesianismo objetificador, aproximando-se, no mximo, de uma tica kantiana e de uma Filosofia Poltica pouco crtica em seus fundamentos ticos e epistemolgicos. O animal, nesta linha de inspirao kantiana, entra como analogon de parte da humanidade do homem, assim como entre ns, seres humanos igualados, esta relao de analogia valeria tambm (cf. Idem, p. 102).

    Em meu entendimento, Ferry faz perder a potencialidade crtica na esteira de sua defesa inconteste das regras do jogo do neoliberalismo, assumindo indiretamente seus efeitos colaterais. A violncia/violao da justia socioambiental, policiada pela mesma racionalidade que conduziu implicitamente a dominao e degradao, conseguir ser neutra e eficaz o bastante?

    Em Ferry no necessria uma virada tica, e uma nova ou revisada epistemologia; neste sentido, no vemos em sua obra como escapar de uma viso estagnada de ser humano, semelhante quela que temos na tradio liberal quando ela nos lembra Hobbes (o homem como lobo do homem) ou mesmo o Contrato Social interessado e nunca neutro, e at o darwinismo socioeconmico baseado na luta, bem expresso na semntica militarista que a economia tomou aps as Grandes Guerras. Mas isto amaciado pela polidez democrtica e pelo consensualismo (cf. Idem, p. 111).

    Sintoma e sumo da viso de ecologia de Ferry: Reconciliada com o Estado, com a democracia, que oferece a possibilidade de mudana sem violncia, a ecologia se integra por fim ao mercado, que 10 Veja-se acerca disto a obra Desencantando a ontologia

    Subjetividade e sentido tico em Lvinas, de Marcelo Fabri,

    EDIPUCRS, 1997.

    17

  • se adapta com toda naturalidade s novas exigncias dos consumidores. Que os bosques corram perigo por culpa da poluio dos escapamentos? No problema; fabrica-se escapamentos catalticos, muito mais caros mas menos contaminantes [...] Poltica, a ecologia no ser democrtica; democrtica, ter que renunciar s iluses da grande poltica (Idem, p. 212s).

    Pergunta-se: as geraes vindouras estaro realmente garantidas neste modelo? No ser esta uma postura ideolgica, que faz afastar a efetividade da crtica social, da voz dos excludos no Terceiro Mundo, e que sufoca os esboos de emancipao frente ordem (ou desordem) desenvolvimentista anti-socioambiental, instaurada dentro mesmo da atual globalizao econmica? assim que podemos partir para uma outra alternativa tico-poltica para a questo socioambiental, de carter socialista renovado.

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  • 3Perspectivas de uma tica ecossocialista

    Remontando inspirao marxiana dos socialismos histricos mister dizer que, em Marx (por seu tempo...), a questo da natureza ainda cooptada pela nfase no sujeito do trabalho, no homo faber, na autonomia e liberdade do sujeito e no desenvolvimento do modelo da tcnica e da indstria para a felicidade humana. Vigora a viso antropocntrica, ao mesmo tempo que materialista, apontando para a humanizao da natureza e naturalizao da humanidade. O liberalismo e em princpio tambm o marxismo no conseguiram ver os efeitos da noo de liberdade antropolgica sobre a natureza (cf. Leis, p. 206). No obstante, em algumas passagens de Marx (em O Capital por exemplo), encontramos a crtica a uma possvel autodestruio do homem e da natureza, fruto do progresso do capitalismo. Mas o nosso ponto de partida no aqui a discusso da obra de Marx, apesar de sua grande importncia e atualidade em nosso contexto.

    Nos anos 60 e tambm entrando nos 70, os marxistas desconfiavam do ambientalismo e da luta ecolgica, em vista de que ela seria ainda burguesa, ou a servio do interesse do I Mundo, e apenas reformista. Havia uma certa incompreenso tambm da parte de ecologistas que estavam numa fase mais romntica, de preservao do verde e dos animais, buscando controlar o progresso e no entrar a fundo nas questes poltico-econmicas.

    Mas com o aprimoramento do ambientalismo, e com o arejamento das idias socialistas, surge nos anos 70 e se afirma nos 80 a poltica verde, e o encontro que podemos chamar de ecossocialismo. Segundo Hctor Leis, a poltica verde pautou-se em quatro princpios bsicos: ecologia, responsabilidade ou justia social, democracia participativa ou mais direta e a no-violncia (cf. Leis, p. 119).

    O ambientalismo das ONGs desembocava na necessidade de mudanas de valores na sociedade, proposies de mudanas drsticas na economia, nos estilos de vida e consumo, no comportamento reprodutivo e no questionamento dos centros de poder quanto aos impactos socioambientais. Ainda, segundo Leis, ambos os movimentos tm caractersticas defensivas quanto aos efeitos deletrios da expanso do mercado e inspiram-se na necessidade de preservar relaes de solidariedade e cooperao entre as pessoas (Idem, p. 120). Um nome importante da filosofia, nesse aspecto, o de H. Marcuse. Marcuse tem a esperana de associar a poltica a uma relao mais expressiva e emptica dos homens com a natureza. [...] Sua preocupao pretende fundar as bases epistemolgicas para superar a unidimensionalidade da razo instrumental presente nas cincias modernas. Desse modo, ele prope que a humanidade deve

    19

  • abordar e receber o mundo natural de uma forma aberta e mais passiva, para reequilibrar um relacionamento muito voltado ao interesse e atividade humana11.

    Por tudo isso, para chegar a uma abordagem satisfatria dessa corrente, -nos necessrio passar pela crtica tecnocracia que gerencia o progresso no capitalismo, e inferir algumas das contradies deste modelo.3.1. Tecnocincia e capitalismo

    A situao: fim do sculo XX, e o Eldorado de bem-estar social e de progresso econmico alardeados pelo capitalismo avanado tendem a um fracasso cada vez maior aprofundamento da crise social e degradao ambiental. O capitalismo mundializado/globalizado, elevando ao mximo a apropriao oportunizada pelo mtodo cientfico e pela Revoluo Industrial, valora e controla mercadologicamente o tempo e as relaes, fixadas agora numa sociedade de consumo excludente e autodestrutiva bem expresso pelo mito grego de Ssifo frustrado, condenado a buscar sempre aquele objeto que est alm de suas posses. Todos os ndices sociais e econmicos revelam a anarquia da situao, dentro mesmo da propalada globalizao neoliberal. Dentre todos os quadros, sombrios e guarnecidos, uma paisagem parece despontar e tomar conta do cenrio: o meio ambiente12.

    Torna-se cada vez mais incuo abordar as questes de uma epistemologia (questes fundamentais do conhecimento e da cincia) e prtica antiecolgica sem a anlise do que a ordem estabelecida pelo modelo capitalista central (com seu mecanismo a la Fukuiama, nova mo invisvel), entendido como um Sistema econmico determinante e com atores mais ou menos definidos, engendra e mantm. Endosso o modo com que a tese defendida por Srio Velazco: A atual crise ecolgica inseparvel do trabalho alienado vigente no capitalismo, trabalho no qual o homem se aliena de si prprio na medida e porque aliena-se da natureza [...] Tambm a fica demonstrada a insuficincia de uma anlise que exclua o questionamento das relaes de propriedade privada imperantes no capitalismo13. Reputamos como central a anlise reconstrutiva e

    11 Leis, p. 211. Lembremos que Herbert Marcuse (ver por ex. O

    homem unidimensional) faz parte da chamada Escola de

    Frankfurt, uma das mais importantes escolas filosficas do sc.

    XX.12 Cf. Veiga-Neto, p. 147. In: Educao e realidade, e nossa obra

    A emergncia do paradigma ecolgico (Vozes, 1999).13 tica de la liberacin, p. 48s.

    20

  • crtica dos valores e prticas que vo permeando o corpo social diante do contexto de ingerncia das desiguais relaes econmicas e de poder no mundo.

    Diramos ento que fundamental questionar, em conjuno ao que o decorrer da histria veio a desestruturar, os moldes educativos e comunicacionais que reafirmam este ethos capitalista e que, sem dvida, tal capitalismo sustenta. Assim, por exemplo: a descontextualizao poltica, a desarticulao do discurso com a prtica, o utilitarismo, a incompreenso das interaes com o meio ambiente, os quais se ligam ao habitus da sociedade de consumo, todos credores, ab initio, do status antes exposto: dicotomia homem-natureza, cultura da massificao, e a interdio a uma tica que reverta a objetificao da natureza e a mercantilizao da prpria vida humana.

    Neste sentido, se pensa tambm o papel legitimador do vis trazido pelo cartesianismo antropocntrico enquanto desencantador e desconstituidor do mundo natural e seus fatores estticos e as formas de sensibilidade, abrindo o caminho da razo instrumental. E como diz Veiga-Neto, o projeto burgus precisava daquela razo instrumental, quer para a sua justificativa (apropriao, controle, subjugao) quer para a sua expanso (transformao e acumulao de recursos/riquezas)14. Assim o capitalismo teria uma base ideolgica que se conjuga num duplo processo de explorao: o homem explorando o homem e o homem explorando a natureza. Portanto, pensar hoje a crise ambiental e a Educao deve equilibrar-se na interseo da Teoria da Cincia com a Filosofia, a Economia e a Teoria Poltica (cf. Idem), tendo a tica certamente um surgimento natural.

    O que nos revela a incapacidade da economia e das Cincias (Naturais) de adotarem de fato uma perspectiva ecolgica? Entre os diversos fatores temos: os dogmas do crescimento econmico incessante dentro da mesma viseira do industrialismo; a omni-penetrao da mercantilizao e a tirania dos valores monetrios/financeiros como reguladores da poltica e da sociedade; enfim, os interesses de capitais monopolizantes e privados. Mas tambm temos o fenmeno do choque que os parmetros ecolgicos e sustentveis representam estrutura conceitual e noo de sociedade/cultura/natureza nos modelos das Cincias Naturais e da Economia. Ou seja, preciso aprimorar a crtica ao sistema de valores e mundivises que subjazem a estes modelos, para se perceber como eles travam as mudanas necessrias. Os custos sociais e ambientais no podem ser apenas variveis externas e secundrias, como contabiliza a Economia moderna. Novamente a questo da tica no seu sentido mais profundo vem tona, j com matiz ecossocialista.

    14 In: Educao e ambiente, p. 148.

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  • 3.2. Ecossocialismo hoje: um outro mundo possvelA reorganizao e ao socioecolgica demanda aglutinar os

    vrios encaminhamentos de vanguarda na organizao social. O caminho primordial para uma crtica eficaz a este estado de coisas neoconservador de hoje: o movimento por uma nova tica e cultura na relao homem/meio ambiente, e o anseio por uma nova ordem global a partir da ecologia. Este esprito aproxima-se da noo que apresentaremos de ecossocialismo.

    O que disporemos a seguir uma sntese prpria a partir de nossa participao no Frum Social Mundial de Porto Alegre, de 2001. Com certeza ela vai ao encontro do que est se desenvolvendo como o novo ecossocialismo de nosso tempo. Este frum , depois da Rio-92, o maior acontecimento dos ltimos tempos em termos de movimentos (ONGs) sociais e ambientais, alm de partidos polticos e vrias instituies, e de um verdadeiro movimento convergente com o lema: um outro mundo possvel. Representa um marco que se ope forma como vem sendo conduzido o capitalismo mundial e o poder via globalizao econmica, criticado como globalizador da misria e concentrador das rendas/lucros, em especial no I Mundo. Neste sentido realizado nas mesmas datas do famoso Frum Econmico Mundial de Davos, na Sua, que rene os pases ricos e o grande capital mundial, que tem decidido o destino de bilhes de pessoas no mundo15.

    * Crticas advindas da conjuno entre ambientalismo/ecologia e a viso socialista sociedade capitalista, ou seja, do que consideramos como um autntico ecossocialismo:

    1) A sociedade no pode se estruturar cegamente a partir da globalizao econmica, onde a economia entendida como tcnica da produo ilimitada de riqueza pela explorao dos recursos da natureza e da interveno tecnolgica, e do social.2) preciso repensar os valores e estilos de vida que se guiam pelas demandas de mercado no capitalismo. O mercado fetichizou as mercadorias em uma nova religio do consumo, que atinge o mago das pessoas atravs da (anti)cultura.3) Os impactos ambientais do socialismo real (na ex URSS) e do capitalismo no diferem muito, pois ambos esto baseados

    15 Alguns nmeros do Frum de Porto Alegre de 2001: mais de

    20.000 participantes; 4.700 delegados de 117 pases

    representados; 104 painelistas; 2500 jovens e 700 indgenas

    acampados em um parque em Porto Alegre; 764 veculos de

    imprensa; 2000 jornalistas. Em torno de 400 oficinas.

    Repercusso internacional.

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  • na noo de progresso e de cincia e de ser humano vindas da Revoluo Cientfica e Industrial.4) A democracia no pode ser apenas formal, poltico-eleitoral, mas econmica, cultural, pro-ativa. Deve resgatar a cidadania e a participao poltica das comunidades e dos menos favorecidos.5) preciso questionar a relao Norte-Sul, as dvidas e(x)ternas do Terceiro Mundo (o Terceiro Mundo perde 100 bilhes por ano com elas), a dependncia econmica e o sistema financeiro que perpetuam a injustia social e a degradao socioambiental dos pases. Prope-se a troca da dvida econmica pela dvida ecolgica a grande dvida que os pases industrializados tm no s porque produziram e produzem a quase totalidade da poluio e degradao ambiental, mas porque depredaram a natureza do Terceiro Mundo sob forma de matrias-primas, e subjugam tais pases pela dependncia econmica e tecnolgica. Taxao do capital especulativo para recursos sociais (a ONG francesa/internacional ATTAC prope a Taxa Tobin, num valor de apenas 0,5% sobre as transaes financeiras, o que arrecadaria 200 bilhes por ano, e que acabaria com a fome no mundo!). Impor novas regras para a OMC para que no prejudique os pases pobres atravs das relaes comerciais injustas.6) preciso questionar a intocabilidade da propriedade privada, do livre mercado (falsa livre-concorrncia), do lucro como motor do processo produtivo, da supervalorizao do individualismo e sucesso baseado na guerra econmica. preciso questionar a destruio dos Estados-Nacionais em nome do poder transnacional e alguns pases e empresas mundiais.7) Apoio aos movimentos sociais no mundo, propondo que troquem experincias (exemplo Chiapas, no Mxico; MST, no Brasil; Via Campesina na Amrica Latina luta comum).8) Defesa das minorias, movimentos e ONG contra o racismo e preconceitos velados ou no.9) Luta contra o patenteamento da vida e a propriedade intelectual privada, principalmente com relao biodiversidade, onde grandes empresas norte-americanas tm, como no caso da Amaznia, recolhido e utilizado patrimnio gentico vegetal e animal que deve ser do Brasil e da humanidade.10) Lutar pela reforma agrria, poltica agrcola limpa, contra os transgnicos e agrotxicos e o modelo de empresa agro-rural nos moldes capitalistas anti-socioambientais.

    23

  • 11) Questionamento das privatizaes no Terceiro Mundo, que tm sido escandalosas e esvaziam o poder dos Estados-Naes.12) O carter socialista buscado novo, em construo, colocando em primeiro plano a democracia real, a participao social, a descentralizao do poder e a solidariedade, e o respeito diferena.13) Devemos impor regras de atuao de empresas multinacionais, deter a acumulao de capital, a m distribuio de riquezas e bens, criando formas de participao social nas empresas e na economia.Estas proposies tm valor evidente, e falam por si em termos

    de desafios e de concretude das relaes econmicas em jogo, junto forte crtica tica presente. Passemos agora a um quadro que por vezes se associa a isto, por outras se afasta, e que tem, todavia, um poder de seduo pessoal maior.

    24

  • 4Perspectivas gerais de uma tica holstica

    Neste quadro encontramos uma srie de autores, de subcorrentes e de inspiraes mais ou menos convergentes. O ponto de partida comum a crtica ao modelo civilizatrio baseado na noo de progresso material e desenvolvimento econmico nos moldes da modernidade cientfica e industrial, e o que ocorre com o ser humano e com os seres naturais em termos de desequilbrio e perda de harmonia/interligao com aspectos fundamentais da vida. A proposta de fundo inspira-se numa viso integradora (holstica), numa construo ou recuperao ou at re-ligao da harmonia humana em conjuno com o ambiente vivo.

    Antes de entrarmos mais a fundo nesse tema, convm apontar para tpicos bsicos de posies do importante Movimento Romntico, tal como ele se exerceu em especial na Alemanha a partir do sculo XVIII e XIX, com autores como Schelling (que l grandes msticos como M. Eckhart e J. Boheme), Goethe, Hlderlin, Schlegel, Schiller, Novalis; ou mesmo o ingls W. Blake, ou ainda Toureau, e muitos outros (como antes, o filsofo J. Rousseau), mesmo em aspectos de Heidegger por exemplo. Isto se faz salutar para o entendimento das bases primeiras das perspectivas holsticas e espirituais envolvidas. At porque o romantismo significa (junto com as questes sociopolticas e econmicas da poca) a primeira grande reao ao modo de pensar anterior vindo do Iluminismo, da Revoluo Cientfica, e do racionalismo nas suas vrias formas, exercendo influncias at hoje em grandes pensadores e filosofias diversas (como na Escola de Frankfurt e na Hermenutica).

    a) Sntese de aspectos essenciais do Romantismo16:* Buscar descobrir, de modo explcito ou inusitado, a beleza da natureza (para alm da geografia fsica de Kant ou do geo-antropocentrismo de Hegel).* Voltar fruio e experimentao da natureza, indo para alm da coisa em si insondvel kantiana e de seu olhar matemtico.* A intuio esttica torna-se o rgo supremo da filosofia, em Schelling isso bem claro.* preciso pressentir uma espcie de linguagem da natureza, em que esta se aproxima de ns.* O ato criador do artista uma emanao do poder da natureza.

    16 Cf. sobre isso a obra Arte e Natureza, de M. Ribon; e tambm

    Histria da Filosofia, de G. Reale & D. Antiseri.

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  • * A natureza no se reduz apenas aos nossos estados de alma; ela mesma uma alma que nos dirige, sendo sua beleza o que h de mais real nas coisas.* A histria compe-se de uma srie de manifestaes individuais do agir do Esprito do mundo que se incarna no Esprito dos povos. Em tudo est presente o eterno, diz Goethe.* A natureza uma atividade viva, autnoma, produtora de formas e ritmos que eu percebo e sinto.* Tal atividade constitui um Todo, o qual regula a ao das foras opostas que tenderiam mtua destruio. Ela se prope como infinito poder de rejuvenescimento.* Da a identidade dinmica do eu e do mundo, esquecida, do esprito e da Natureza. A arte ser a ponte, a ligao divina, entre ser humano e Natureza. Ela tambm um prolongamento dele, o Fundo inesgotvel da Arte.J no antigo movimento romntico chamado Sturm und Drang

    (tempestade e mpeto) ao final do sc. XVIII, vemos tais caractersticas que vo ser pois desenvolvidas nesta mesma linha:

    * A Natureza exaltada como fora onipotente e criadora de vida.* O gnio, relacionado fora originria, cria analogamente a Natureza.* O pantesmo e o paganismo (religio da natureza) tomam o lugar do Intelecto ou Razo suprema na concepo da Divindade.* O amor terra local ope-se aos tiranos e exalta a liberdade frente s convenes e leis.* Apreciao dos sentimentos arrebatadores, paixes e manifestaes do corao.Ainda, dentro do fenmeno do romantismo, importa indicar

    que:* O romantismo indicava o renascimento do instinto e da emoo, junto com a poesia e o fabuloso, assim como o misterioso.* um fenmeno que adentrou tambm nas artes figurativas e na msica.* Opera de fato com uma atitude ou ethos que comporta uma tenso interior, dizendo de um Desejo que nunca se satisfaz; da a fundamental nostalgia, melancolia e contemplao profunda. Cabe ento falar de uma sensibilidade especial e intensa, romntica, em sua grande busca em torno da sede do Infinito, e do Uno.

    Ser um com o todo: esse o viver para os deuses, esse o cu para o homem. [...] retornar ao todo da natureza: esse o ponto mais alto do pensamento e da

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  • alegria, o pico sagrado da montanha, lugar da calma eterna [...] Ser um com tudo o que vive! Com essas palavras [...] o esprito humano despoja-se do cetro e todos os pensamentos se dispersam diante da imagem do mundo eternamente uno [...]Hlderlin

    * * *A primeira grande e mais forte corrente que marca o

    ambientalismo ou as inspiraes ecolgicas em geral pode ser caracterizada pelo que se chamou de postura holstico-revolucionria.

    Sua perspectiva filosfica de mundo monista (exemplo: idia de Uno e de unidade fundamental de tudo), tal como em correntes neoplatnicas e j antes, grosso modo, no pensamento oriental. Ela recupera vises antigas, e de culturas sufocadas, tendo como base uma tica que seria subjacente identidade humana, e que diz de uma harmonia (originalmente: medida adequada, a ser seguida) e da interao integradora do indivduo no Todo, no Cosmos ordenado. Este conteria uma harmonia intrnseca, algo portanto que retoma o animismo primevo (tudo est vivo, com alma), por pontos de equilbrio que regeriam a Vida e assim a vida humana.

    A civilizao da razo cientfica e instrumental, efetivada com a sociedade industrial, trouxe consigo o distanciamento do homem com o seu aspecto orgnico, em prol do desenvolvimento da tecnologia como manipulao tout court inorgnica. A objetificao d-se junto ao desenvolvimento abrangente da atitude de dominao materializada do homem em relao ao ambiente natural, algo por excelncia produzido pela civilizao ocidental ps-revoluo cientfica, que com sua fora tecno-lgica e blica consegue sufocar culturas mais harmnicas e adaptadas, de modos de vida mais sustentveis, porm frgeis e diferentes.

    A histria da secularizao do ocidente e o reforo do pensamento cientfico e mercantil diz de um processo de desencantamento do mundo, de desespiritualizao forada do homem. Retira-se o fundamento de pudor e legitimao que garantia o carter sagrado da criao, enquanto criatura do Criador, na mesma medida em que este papel vai sendo assumido pela autonomia humana atravs da poltica, do desenvolvimento econmico e da transformao completa do mundo pela tcnica o novo basto mgico dos novos semideuses.

    A relao homem/natureza sempre se deu conjuntamente ao desafio e luta numa base espiritual, simblica, de interao com o sagrado (isto presente mesmo nas religies no-pags e mais avanadas, como o catolicismo e sua gama de grutas, imagens, aluses natureza (apesar de certa demonizao da mesma); a figura dos grandes msticos cristos de cunho naturalizante um sintoma evidente). Da a busca de uma atitude de admirao, de contemplao,

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  • de interao com a natureza via carter do sagrado, na esteira do animismo, do naturalismo e do retorno s origens. Dentro desta corrente, trata-se de recuperar a autenticidade do humano, o que inclui a relao eco-sistmica com a natureza.

    As fontes desta corrente, holstico-revolucionria, datam do incio deste sculo com a advento de pensamentos e influncias orientalizadas mais fortes na psicologia do homem ocidental, tomando flego nos anos 50 em diante, quando da exploso revolucionria dos movimentos de contracultura, como estopim da crise e ameaa ambiental, blica (nuclear), cultural, econmica e social que encetar para uma nova ordem civilizacional. Esta seria basicamente um resgate, que remete a modelos primitivos e mais originais, do Eldorado cada vez mais perdido do humano, diante de um mundo tecnificado, materialista e egocentrado.

    Neste sculo temos o reforo do gnosticismo, o aparecimento da teosofia e de uma srie de prticas espirituais; a retomada da raiz romntica na cultura, a exaltao das prticas mitolgicas e de religiosidade dentro de um tipo novo de paganismo religio dos pagos, como em vrios mbitos do naturalismo. Junto a isso, a Nova Fsica que abre as especulaes para as concepes de holismo e para a instncia energtica ltima e inapreensvel da realidade; e, surpreendentemente, os movimentos feministas detonando o patriarcalismo; os movimentos de retorno natureza, ecoturismos, o retorno de inspiraes assemelhadas s da fase astrobiolgica das sociedades primevas, os exoterismos e os novos interesses na alquimia e na astrologia, os quais parecem revelar no fundo a busca de equilbrio e identidade, de completao do sujeito humano e deste com o seu Outro (homem e natureza).

    Em nvel de filosofia temos um apelo maior a Heidegger nesta corrente (ser-no-mundo, homem como casa e clareira do Ser, o pastor, autenticidade da origem etc.), surpreendentemente maior do que, por exemplo, a F. Schelling (sc. XIX) interessante filsofo da natureza, com abertura para uma epistemologia bastante significativa para buscar superar a racionalidade cartesiana partida, sem valer-se necessariamente da mitologia ou da poesia romanticista. Mas so modelos mais atuais e prximos da ecologia e da tica que vamos olhar agora.

    b) Modelos paradigmticos desta correnteNo esprito dos movimentos citados, a deep ecology (ecologia

    profunda, em oposio chamada ecologia rasa) a representao principal j faz algum tempo. Suas caractersticas perpassam grande parte dos pensamentos e autores mais conhecidos na questo. Um nome que chama a ateno a o de Arne Naess, filsofo e alpinista noruegus; exerceu uma influncia muito considervel no movimento ecolgico dos EUA e Europa. No obstante, vamos abordar, dentro deste esprito, a posio do fsico e pensador/eclogo F. Capra em

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  • primeiro lugar; depois, tomaremos o filsofo francs Michel Serres, em vista da contrapartida crtica do talvez maior oponente a esta posio que o francs Luc Ferry. Em mbito brasileiro, vemos como, paradigmaticamente, se refletem essas idias na esteira das posies de Leonardo Boff.

    4.1. A tica da crise-mutao em F. Capra17

    Vamos seguir aqui alguns passos que, para ns, se mostram como os mais fundamentais na obra capital de F. Capra, O Ponto de mutao, e que diz, no fundo, sempre de uma questo tica, ligada certamente necessidade de uma nova viso da relao do ser humano com a natureza como um todo, nesta rede orgnica que a Vida. Trata-se, pois, de tomar conscincia da inter-relao tanto espiritual quanto biolgica do ser humano com os ecossistemas, dentro da biosfera em evoluo, onde se necessita reequilibrar as posturas e atitudes histricas que a humanidade tomou. O tom cientfico evolutivo, da teoria dos sistemas, associado a outras instncias cosmolgicas/ontolgicas e integradoras aponta bem para o vis holstico que faz com que coloquemos Capra exatamente dentro desta perspectiva, com suas caractersticas tpicas.

    a) Crise como mudana de paradigmaO primeiro passo de Capra mostrar que estamos vivendo uma

    crise profunda, complexa, multidimensional, que afeta a todos os nveis de nossa vida sade e modo de vida, qualidade do ambiente e relaes sociais, economia, cincia e poltica. Ela teria uma dimenso no s intelectual, mas moral e espiritual. Para isso repetitivo indicar aqui os dados assustadores da problemtica das doenas (degenerativas em especial, doenas ligadas ao ambiente/alimentao), gastos de guerra, fome, desastres ecolgicos etc. Ou seja, preciso escancarar a crise, at em suas profundidades inauditas, para mostrar que ela se liga a uma desintegrao social (drogas, perturbaes mentais, depresses, suicdios etc.), e que grave se no percebermos as ligaes e interdependncias entre tais coisas, causas e efeitos.

    Portanto, faz-se notar que por trs de tudo isso h uma s crise, com um fundo comum, com interfaces que s uma viso interdisciplinar perspicaz e sutil pode tentar entender. Da o fato do especialista hoje ficar perdido quanto s questes globais ou ecossistmicas, ou do Sistema de Sade frente a uma simples doena e seu alcance por exemplo. Mas um fato essencial que Capra aponta que, se a crise profunda, demanda-se mudanas igualmente 17 Trata-se aqui de uma sntese a partir de argumentos bsicos de

    O ponto de mutao de Fritjof Capra, em seu captulo I,

    finalizando com perspectivas a partir de sua obra A teia da vida.

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  • profundas nas estruturas e instituies sociais, em conjuno com novos valores e idias. Ainda mais que: nossos conceitos, teorias, nossos padres para analisar as coisas, tendem a usar do paradigma anterior, da viso tradicional e dicotmica, ou mesmo do progresso material em primeiro lugar e, assim, opera-se com uma viso esttica, congeladora e conservadora do tempo e do espao. da que se prope substituir a noo de estruturas sociais estticas por padres dinmicos de mudana. Para exemplificar isso, Capra afirma que os chineses tinham profunda percepo da conexo entre crise e mudana. Estudos de sociedades em transformao cultural mostram que a mudana precedida por indicadores sociais tais como: sensao de alienao e aumento de doenas mentais, crimes violentos e desintegrao social, assim como interesse maior na prtica religiosa (Capra (1982), Introduo).

    Lembrando as anlises de A. Toynbee, ele aponta que a gnese de uma civilizao consiste na transio de uma condio esttica para a atividade dinmica. Um desafio do ambiente natural ou social provoca uma resposta criativa numa sociedade, induzindo a um processo diferente de moldagem da civilizao. O padro bsico de interao movido pelo dinamismo do desafio-resposta. Segundo os antigos filsofos chineses, todas as manifestaes da realidade so geradas pela interao dinmica entre dois plos de fora (Ying e Yang). Depois de atingirem o apogeu de vitalidade as civilizaes declinam; um elemento essencial de motivao a ser considerado a a perda de flexibilidade (criatividade, possibilidades...). O comportamento torna-se extremamente rgido, e a sociedade no mais se adapta a situaes cambiantes, no consegue levar adiante com seus padres socioestruturais a evoluo cultural e criativa. Perde-se a harmonia e equilbrio bsico. Seria o fim?

    Entretanto, neste perodo, aparecem as minorias criativas, com a tarefa de mobilizao e conscientizao de novos caminhos, com a tarefa de vanguarda, de despertar as pessoas e alterar as estruturas. Por outro lado, as instituies sociais dominantes recusam-se a entregar seus papis de dominantes; mesmo assim, afirma ele, continuaro a desintegrar-se, pois no se pode segurar o tempo... A situam-se as possibilidades humanas para que, mesmo a partir de minorias, conscientes, se implemente gradativamente uma nova configurao, com o novo paradigma.

    Hoje, segundo O ponto de mutao, temos trs desafios bsicos, ou transies grandes acontecimentos que esto nos abalando profundamente e so sintomas da mutao:

    1) Declnio do patriarcado: exemplo: movimentos feministas, ascenso da mulher no mercado de trabalho e nas relaes sociais etc.2) Declnio da era do combustvel fssil (carvo, petrleo e gs natural), que tem sido a principal fonte de energia da moderna

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  • era industrial (os combustveis tm pouco tempo de durao, seus efeitos j so sentidos, no mais possvel us-los massivamente por mais de duas dcadas por causa das fortes alteraes climticas. Devemos entrar na era da energia solar e energias alternativas de vrios tipos, o que alis j est sendo bastante pesquisado e projetado).3) Grande mudana de paradigma, mudana no pensamento, nos padres, na percepo e nos valores que formam a nossa viso mais fundamental de realidade. O paradigma tradicional que modelou a sociedade vem a partir da Revoluo Cientfica, do Iluminismo e da Revoluo Industrial. Incute a crena no progresso Infinito, e que o mtodo cientfico causal a nica abordagem vlida do conhecimento. Ele tem a concepo do universo como um sistema mecnico composto de unidades materiais elementares; a concepo da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existncia; a crena no progresso material ilimitado, a ser alcanado atravs do crescimento/desenvolvimento apenas econmico e tecnolgico (Capra (1982), p. 28).Segundo Capra, ns estaramos vivendo uma crise que faz parte

    de uma grande fase de transio, de profunda transformao cultural, um ciclo como os que ocorreram poucas vezes com semelhante amplitude. Compara-se este a trs grandes momentos:

    1) Surgimento da civilizao com o advento da agricultura no comeo do perodo Neoltico (o que propiciou a fixao do homem em cidades).2) A ascenso do cristianismo na poca da queda do Imprio Romano (que trouxe a mudana mais considervel da histria recente do Ocidente).3) A transio da Idade Mdia para a Idade Cientfica, possibilitando a Revoluo Industrial e a mudana radical da face do planeta Terra.Especificamente, a nossa transformao pode ser mais

    dramtica, porque hoje as mudanas so mais velozes, amplas, o globo inteiro est ligado e as coisas podem ser feitas mais rapidamente (o que no significa que nossa gerao ver os frutos maduros das melhorias como tais). O importante que chegamos num momento decisivo, em que preciso pegar o trem da histria possvel (a sociedade sustentvel).

    Uma to profunda e completa mudana na mentalidade da cultura ocidental deve ser naturalmente acompanhada de igual alterao nas relaes sociais, formas de organizao social muito alm das reformas e ajustes econmicos e polticos propostos por nossos lderes polticos de hoje. Assim, nas lutas sociais, essencial que se prossiga alm de meros ataques a pessoas e grupos determinados, mostrando que as atitudes e comportamentos atuais

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  • refletem um sistema de valores que sustentou a nossa cultura, e que tal sistema est obsoleto, devendo ser substitudo, com uma nova tica, nova sensibilizao esttica e nova relao de conhecimento no-violenta. Ficar cada vez mais evidente que pensamentos e atitudes violentas geram violncia, e que o amor a melhor resposta. Contra a viso de sociedade como luta e competitividade traz-se a noo de cooperao, a partir do mais excelente funcionamento dos ecossistemas naturais, espelho para os seres humanos.

    b) O resgate do taosmoSegundo Capra, os filsofos chineses viam na realidade cuja

    essncia chamaram TAO como que um processo de contnuo fluxo e mudana. A natureza tem padres cclicos. Tendo yang atingido seu clmax, retira-se em favor do yin; e vice-versa (I Ching). O difcil para ns, ocidentais, seria entender que os plos opostos da interao dinmica fazem parte de um nico todo. A ordem natural o equilbrio dinmico entre um e outro. Um dos mais profundos insights da antiga cultura chinesa foi o reconhecimento de que a atividade o constante fluxo de transformao e mudana essencial no universo. Este est em contnuo processo csmico que se chama TAO o caminho[...] No h repouso absoluto. No h fixao possvel da realidade. Da a necessidade do WU-WEI: absteno de ao contrria natureza. Ou como afirmava Chuang-ts: Que se permita a todas as coisas fazerem o que elas naturalmente fazem, de modo que sua natureza fique satisfeita. A atividade deve estar em harmonia com a orientao natural.

    Assim, a caracterstica humana da racionalidade (pura) e a de intuio e sensibilidade so modos complementares da mente humana. O pensamento racional mais linear, concentrado, analtico. Pertence ao domnio do intelecto lgico, cuja funo discriminar, medir, classificar, dominar. Tende assim a ser mais fragmentador. O aporte intuitivo, por outro lado, baseia-se na experincia direta, no propriamente lgico-intelectual da realidade, em decorrncia de um estado ampliado de percepo consciente. Tende a ser sintetizador, holstico e no-linear. O conhecimento racional tende a gerar atividade mais egocntrica (ou Yang), e a atividade intuitiva mais Yin, e portanto ecolgica.

    Algumas associaes didticas teis trazidas por ele:

    YIN: YANG:feminino masculinocontrtil expansivoconservar exigentereceptivo agressivocooperativo competitivointuitivo racional

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  • sinttico analtico

    Analisando isto, segundo o autor devemos ver que estamos em desequilbrio: nossa tendncia tem sido muito yang. Nossa poca dominada pelo pensamento racionalista, razo instrumental, o que desintegra o sujeito. O conhecimento cientfico considerado ainda a nica espcie de saber realmente aceitvel; no se admite a uma conscincia intuitiva e outras caractersticas perceptivas de relao/conhecimento do humano. O cientificismo impregnou nosso sistema educacional e todas as instituies sociais e polticas.

    c) O pensamento analtico-racionalista e a contraculturaPara Capra, a nossa subjetividade, aps o cogito, ergo sum

    (penso, logo sou) de Descartes, pensada como identidade equipada com uma mente racional e um corpo, e no como um organismo inteiro integrado. E a diviso entre esprito e matria levou concepo do universo como um sistema mecnico que consiste em objetos separados, os quais devem ser reduzidos a seus componentes materiais fundamentais cujas propriedades e interaes, acredita-se, determinam completamente os fenmenos naturais. Estendida aos organismos vivos, esta concepo encarou-os como mquinas; da a fragmentao nas disciplinas acadmicas, e o ambiente natural tomado como peas separadas a serem exploradas por diferentes grupos de interesse.

    O pensamento racionalista cientfico, analtico, levou a atitudes profundamente antiecolgicas. No se pode, autenticamente, compreender os ecossistemas na forma lgico-analtica. O pensamento racional linear; e, por intuio, v-se que os sistemas ecolgicos compem-se de redes e dinmicas (auto-organizativas) no-lineares, algo aberto, profundamente dinmico e imprevisvel como tal. Linear o crescimento econmico e tecnolgico, pretensamente acreditado como sem fim e em progresso/evoluo, visando cada vez maior quantidade de matria transformvel.

    A conscincia ecolgica s surgir, ento, aliando-se o pensamento racional e uma intuio no-linear da natureza sabedoria (veja-se o exemplo dos povos indgenas, as comunidades sustentveis e colnias, tecnologias brandas e alternativas) com conscincia altamente apurada do meio ambiente. O crescimento de nossa civilizao dicotomizou agudamente aspectos biolgico-materiais e aspectos culturais da natureza humana. Temos o arrasto das tradies e costumes pela velocidade espantosa da tecnologia. Perdemos ento o contato com nossa base ecolgica e biolgica. Tal separao manifesta-se na grande disparidade entre o desenvolvimento intelectual, conhecimento cientfico e qualificaes tecnolgicas por um lado, e o atraso em termos de sabedoria, espiritualidade e tica de outro lado. Nos ltimos 25 sculos no houve progresso considervel na conduta das questes sociais. Os padres morais de Buda, Lao-ts,

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  • e dos primeiros cristos (sculo VI a.C.) eram bem superiores aos nossos. Nossa evoluo unilateral chegou a um estgio alarmante, beira da insanidade. Propusemos a instalao de comunidades utpicas em colnias espaciais e no conseguimos administrar nossas cidades! (a cincia mdica e a farmacopia esto pondo em perigo a sade. Os exrcitos pem a paz em perigo...). Tais so os alertas de Capra.

    A tecnologia industrial tem por meta o controle, a produo em massa e a padronizao, e est sujeita a uma administrao centralizada que busca a iluso de um crescimento material ilimitado. Situao semelhante existe em nosso sistema educacional, no qual a auto-afirmao recompensada no que se refere ao comportamento competitivo mas desencorajada quando se expressa em termos de idias originais e questionamento da autoridade (isso mais forte nos EUA, pas onde Capra vive).

    A promoo do comportamento competitivo em detrimento da cooperao seria uma das principais manifestaes da tendncia auto-afirmativa. Tem sua origem na concepo errnea da natureza, defendida pelos darwinistas sociais do sculo XIX que acreditavam que a vida em sociedade deve ser como uma luta pela existncia regida pela sobrevivncia dos mais aptos. Algo semelhante temos no fundo da concepo liberal da economia. Assim, a competio passou a ser vista como fora propulsora da economia; veja-se a abordagem agressiva dos negcios, a explorao de novos mercados, e outros termos; tal comportamento combinou-se com a explorao dos recursos naturais a fim de criar padres de consumo competitivos e narcisistas.

    Apesar de tudo, nesta caminhada histrica, por vezes pouco percebida em sua amplitude, as foras de renovao aparecem; tais como a preocupao ecolgica, os movimentos de cidados organizados em torno de questes sociais e ambientais, movimento antinuclear, feminismo, valorizao dos pequenos negcios, sade holstica, agricultura orgnica, comunidades rurais organizadas movimentos todos que Roszak chamou de contracultura. Neste sentido, hoje a viso estaria mudando: o universo no mais uma mquina, mas um todo harmnico e dinmico, rede de relaes vivas que incluem o observador humano. Da que as teorias cientficas no esto aptas a fornecer uma descrio definitiva da realidade; so meras aproximaes da natureza das coisas: os cientistas no lidam com a verdade, mas com descries limitadas e aproximadas dela. Nestes caminhos apontados por Capra muito est acontecendo e muito se tem a modificar.

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  • d) Concluindo: novos valores, nova tica

    As ltimas obras de Capra, em especial A teia da vida (1996), no trazem praticamente elementos substancialmente novos ao que trabalhado em sua obra mestra O ponto de mutao; ali se mostra e refora igualmente que a mudana de paradigma requer no s expanso de nossas percepes e modos de pensar, mas tambm de nossos valores, nesta passagem para a integrao antes que a auto-afirmao/identidade18. E neste sentido que ele afirma: O poder, no sentido de dominao sobre outros, auto-afirmao excessiva. De fato, nossas estruturas polticas, militares e corporativas so hierarquicamente ordenadas, com os homens em nveis superiores s mulheres. A maioria desses homens, e algumas mulheres, chegam a considerar sua posio na hierarquia como parte de sua identidade, e desse modo a mudana para outro sistema de valores gera neles medo existencial. [...] No entanto, h outro tipo de poder, um poder que mais apropriado para o novo paradigma poder como influncia de outros. A mudana de paradigma inclui, dessa maneira, uma mudana na organizao social, uma mudana de hierarquias para redes (A teia da vida, p. 28).

    Especificamente, da tica ambiental estrita, h uma afirmao de Capra que resume tambm seu ponto de vista, ao lembrar a educao a partir da vivncia da ecologia profunda, integrao com a natureza, com carter espiritual19. Vale reproduzir como tal:

    Todos os seres vivos so membros de comunidades ecolgicas ligadas umas s outras numa rede de interdependncia. Quando essa percepo ecolgica profunda torna-se parte de nossa conscincia cotidiana, emerge um sistema de tica radicalmente novo. [...] de mxima urgncia introduzir padres ecoticos na cincia. [...] Durante a Revoluo Cientfica, os valores eram separados dos fatos, e desde essa poca tendemos a acreditar que os fatos cientficos so independentes daquilo que fazemos, e so, portanto, independentes dos nossos valores. [...]

    18 Cf. Capra, A teia da vida, p. 27.19 Alis, o seu livro termina com uma proposta pedaggica e

    cientfica a partir de experincias educacionais em escola nos

    EUA, e neste sentido se nota a carncia quanto questo da

    crtica social e poltica mais forte.

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  • Dentro do contexto da ecologia profunda, a viso segundo a qual esses valores so inerentes a toda a natureza viva est alicerada na experincia profunda, ecolgica ou espiritual, de que a natureza e o eu so um s. Essa expanso do eu at a identificao com a natureza a instruo bsica da ecologia profunda, como Arne Naess reconhece: o cuidado flui naturalmente se o eu ampliado e aprofundado de modo que a proteo da natureza livre seja sentida e concebida como proteo de ns mesmos [...] Assim como no precisamos de nenhuma moralidade para nos fazer respirar [...] se o seu eu abraa um outro ser voc no precisa de advertncias morais para demonstrar cuidado e afeio [...] Se a realidade como experimentada pelo eu ecolgico, nosso comportamento, de modo natural e belo, segue normas de estrita tica ambientalista.O que isso implica o fato de que o vnculo entre percepo ecolgica do mundo e o comportamento correspondente no uma conexo lgica, mas psicolgica. [...] Se temos a [...] experincia de sermos parte da teia da vida [...] ento estaremos inclinados a cuidar de toda a natureza viva20.

    4.2. Michel Serres e o Contrato Natural

    Retomando a partir da fundamentao da deep ecology, apresentaremos a proposta de Michel Serres em sua obra O contrato natural. relevante notar aqui a importncia que o autor confere questo jurdica, questo de uma definio dos direitos relativos natureza, sempre a partir da pressuposio de que ela algo vivo, e um sujeito que interage, sujeito de direito, pleiteia ele. A natureza condiciona a natureza humana e vice-versa. A natureza se conduz como um sujeito21.

    Serres parte das constataes idnticas do esquecimento da natureza pela construo do Mundo, da civilizao antropocntrico-tecnolgica. Denuncia um nvel de violncia explcito e implcito, traduzido como um Contrato Social de todos os homens mesmo e especialmente no estado de guerra (que tambm um estado de direito (cf. p. 20)) contra a natureza. A histria tem a luta por motor. Uma mudana global se vislumbra: a nossa (p. 24). Para as guerras, as coisas em si mesmas no existem. Ou seja, h uma violncia

    20 Capra, Op. cit., p. 28s.21 Cf. Serres, p. 66; os nmeros que seguem entre parnteses

    referir-se-o obra de Serres citada.

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  • objetiva no fundo dos pactos ou das guerras humanas. Isto expresso no fato de que, cultura, o mundo (natureza) faz horror (cf. Idem).

    Ele aponta tambm, indiretamente, para as ticas que no contemplaram at hoje a natureza como sujeito, at porque esto conjugadas ao humanismo antropocntrico; posies que tm como mote ltimo a dominao racional completa da natureza, culminando na dicotomia e objetificao da sua viso. Segundo ele, a Declarao dos Direitos do Homem teve o mrito de dizer todo homem, mas a fraqueza de pensar apenas os homens. Serres lembra que a origem da palavra poltica se refere vida social-urbana22.

    O Contrato Natural o novo pacto a ser estabelecido com o inimigo objetivo do ser humano: a Natureza. Quanto ao ser humano, Serres faz um pequeno retrospecto desde o tempo em que no ramos sujeito, quando se estava fundido ou distribudo sobre a Terra, entre bosques e montanhas, quando o sujeito desaparecia (p. 34). Hoje, domina sobre a imensido; um ator junto natureza, uma verdadeira fora natural, espalhado em todas as partes, a fora mais poderosa, que quando unida (contrato social) torna-se um enorme animal. As relaes do homem com o mundo se completam, se transformam e se invertem (p. 37). E mais, existimos naturalmente. O esprito cresceu como animal e o animal como placa (pedra) [...] vivemos como animais coletivos [...] invadimos no s o mundo, mas a ontologia (p. 38). Ou seja, nosso ser penetra a todos os seres, e vice-versa.

    Fato importante que Serres denuncia: a poltica como confirmao de uma cultura que perdeu o mundo, que vive tudo em mbito interior, que reduz todas as questes lgica, linguagem e escritura (o essencial sucede dentro e nas palavras, e j nunca fora, com as coisas). J a produo de mercadorias erradicou a memria a longo prazo, as tradies milenares, as experincias acumuladas das culturas [...] (p. 55). Estaramos vivendo num tempo reduzido ao instante que passa.

    Serres, a partir da constatao evidente, na cultura e cincia modernas, do factum do domnio e apropriao privatista, quer abandonar radicalmente o humanismo antropocntrico para afirmar a precedncia da Terra, que existiu sem ns e continuar a existir. Radicaliza em seu estilo bombstico, poetizante, despreocupado e por vezes irnico: necessrio situar as coisas no centro e ns na periferia, ou melhor, elas em todas as partes e ns em seu seio como parasitas (p. 61). E mais: Esta a encruzilhada da histria: a morte ou a simbiose simbiose agora inscrita num Direito, elevada ao primeiro plano numa poltica (p. 62).

    Novamente ao seu texto: Assim pois, retorno natureza! Isto significa: acrescentar ao contrato exclusivamente