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CORPO E RELIGIÃO: relações conflituosas nas aulas de Educação Física
Antônio Gomes Correa Aluno concluinte do CEDF/UEPA
[email protected] Emerson Duarte Monte
Professor Orientador do CEDF/UEPA [email protected]
Resumo
Muitos são os desafios enfrentados pelos professores de Educação Física Escolar, sendo a diversidade religiosa um deles, pois influencia diretamente o corpo e suas práticas. Esta pesquisa visa compreender as razões pelas quais os fiéis da Igreja Evangélica Fonte dos Milagres (IEFM) comportam-se de maneira diferenciada nas aulas de Educação Física, abstendo-se das práticas com bola. Tratou-se de uma pesquisa de campo do tipo explicativa. Os instrumentos de coleta de dados foram entrevistas semiestruturadas e análise documental, analisados qualitativamente. Após identificação, descrição e análise dos dados, constatou a falta de solidez quando confrontados com a literatura sobre o assunto, e incoerência, pela prática dos escolares nas aulas. Ao analisar os demais sujeitos da escola envolvidos na questão, observou uma postura de respeito e diplomacia. Finalmente, concluiu que as razões que levam os alunos oriundos da IEFM ao comportamento descrito são doutrinárias, tendo como referência textos da Bíblia Sagrada, não sendo estes suficientes para apoiá-las pelos motivos acima expostos, relegando esse papel a uma visão negativa herdada do pentecostalismo rudimentar brasileiro. Todavia, sugere aproximação desta comunidade e maior diversificação das aulas. Palavras-chave: Educação Física Escolar; Religião; Corpo.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem a finalidade de analisar a relação que se estabelece
entre as manifestações das práticas corporais no interior da disciplina curricular
Educação Física, tendo como elemento de contradição a construção histórico-
social das religiões e sua relação com o corpo no que concernem as
possibilidades de uso do mesmo a partir desse tipo de conhecimento e de modo
de vida.
Como profissionais da educação se têm muitos desafios a enfrentar. Um
destes desafios é a diversidade religiosa, característica de um país tão
miscigenado como o Brasil. Para o professor da área da Educação Física, estes
desafios parecem se multiplicar, já que é sobre o corpo que este deve atuar, e
esse mesmo corpo (aluno) chega à escola trazendo suas marcas impressas por
outra forma de educação – a religiosa. (RIGONI, 2008)
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De acordo com Mariano (1999, p. 116), “Cada denominação procura
imprimir seus símbolos e marcas distintas nos seus fiéis para que sejam
identificados e reconhecidos por pertencerem a ela”. Nas denominações
pentecostais estes símbolos ou marcas podem ser claramente notados no
conjunto de atitudes permitidas ou não, ensinadas ou não, que elas recomendam
aos seus adeptos para que sejam considerados seus legítimos representantes.
Tais ordens são propaladas nos cultos, reuniões administrativas, treinamentos,
cursos, congressos, seminários e encontros, como regras de boa conduta,
constando nos manuais destas entidades com o objetivo de distingui-los dos
demais, assumindo o status de dogmas. Neste afã, os líderes de algumas dessas
denominações submetem os fiéis a certas regras que acabam por criar barreiras à
sua adaptação em determinados espaços e situações sociais.
Este fato foi claramente observado nas aulas de Educação Física a partir
de restrições feita a alunos pertencentes a algumas destas entidades de
participarem parcial ou totalmente de algumas atividades. Trata-se dos
estudantes pertencentes à Igreja Evangélica Fonte dos Milagres (IEFM), situada
no município de Primavera, que não participam plenamente das aulas de
Educação Física ministradas na escola estadual Manoel Lobato.
Tal atitude, respeitada a liberdade de credo, interfere no andamento das
aulas porque veda a ampla participação destes discentes, o que impede que
desfrutem de todos os benefícios que as aulas de Educação Física podem
oferecer, já que “a prática regular de atividades físicas estimula habilidades
cognitivas, o autocontrole e até o desenvolvimento espiritual, além de prevenir
doenças crônicas” (CAVALCANTI, 2012, p.12).
Além disso, esse proceder não permite que a disciplina exerça a sua
natureza na vida escolar destes sujeitos, pois “enquanto processo individual, a
Educação Física, desenvolve potencialidades humanas. Enquanto fenômeno
social, ajuda-os estabelecer relações com o grupo a que pertence.” (OLIVEIRA,
2009, p. 46)
Assim, cria-se um conflito entre a proposta pedagógica do professor e o
conselho dos líderes da referida igreja, entre as recomendações de uso do corpo
pela Educação Física e a esta forma de educação religiosa, e, finalmente, num
contexto mais amplo, entre os objetivos da escola e os da igreja sobredita.
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Quando da participação deste pesquisador como aluno na escola Manoel
Lobato, foi possível notar que nas aulas de Educação Física os alunos
evangélicos, especialmente os da Assembleia de Deus, abstinham-se das
atividades, sendo-lhes proporcionadas formas alternativas de participação e de
avaliação, como pesquisas e relatórios. Quando enfim participavam, era sempre
de forma mais comedida. Sendo esta característica mais perceptível nas moças,
pois “possuíam limitações na execução das atividades devido ao fato de
participarem das aulas usando saia”. (RIGONI, 2008, p. 170)
Ao observar as aulas do professor de Educação Física da referida escola,
constatou-se que os alunos evangélicos continuam com sua participação nas
aulas de Educação Física de modo diferenciado, com limitações em virtude de
restrições feitas pelos líderes de suas igrejas, destacando-se nesta interferência a
Igreja Evangélica Fonte dos Milagres, que aqui se identifica com a sigla IEFM.
Os alunos membros da IEFM participam de boa parte das aulas de forma
diferenciada ou parcial. Isso ocorre porque há restrição em certos conteúdos e no
contato com alguns materiais pedagógicos, sobretudo a bola, ou qualquer outro
que possa “desviá-los de sua doutrina”. Como o esporte ainda é o conteúdo
hegemônico nas aulas de Educação Física, e nele se faz amplo uso da bola,
especialmente na “quadriga” basquetebol, futsal, handebol e voleibol, a atuação
destes discentes nestas ocasiões torna-se pouco viável. Nestas aulas, estes
alunos limitam-se ao alongamento, aquecimento e alguns exercícios educativos
ou preliminares, abstendo-se do manuseio da bola, ficando o restante do tempo
apenas na observação.
Este fato se constitui num problema, pois o que se compreende sobre a
Educação Física Escolar o ideal nas aulas é fomentar a participação de todos os
alunos, sem exclusão por qualquer peculiaridade, o que se torna impossível
nessas circunstâncias. Neste caso, a religião – representada aqui pela IEFM –
acaba impondo uma barreira à plena participação destes alunos nas aulas,
impedindo sua socialização, desenvolvimento corporal, físico e mental, além de
outros benefícios bem conhecidos obtidos por meio da prática de atividades
físicas, como benefícios à saúde, desenvolvimento de talentos, prazer, melhora
da qualidade de vida, diversão, que se constituem também como direitos do
cidadão, segundo a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente. (BRASIL, 1988; 1990)
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Assim, formula-se a seguinte pergunta científica: Qual relação se
estabelece entre a doutrina da Igreja Evangélica Fonte dos Milagres e a
participação diferenciada de seus membros nas aulas de Educação Física?
Fruto desse questionamento, outros emergem no sentido de elucidar os
componentes que ajudarão a melhor responder a pergunta central, tais como: a.
O que há nos ensinamentos da igreja evangélica Fonte dos Milagres que se
conflita com certas práticas corporais nas aulas de Educação Física?; b. Há
solidez e coerência nos argumentos utilizados pela igreja e as bases teóricas que
os fundamentam, justificando o comportamento de seus membros?; c. Como os
demais sujeitos da escola envolvidos nas aulas de Educação Física, direta ou
indiretamente, avaliam a relação desta denominação e as aulas de Educação
Física?
Mediante tantas inquietações, na necessidade de sistematizar o estudo e
dar-lhe diretividade foram estabelecidos os seguintes objetivos: Compreender as
razões pelas quais os fiéis da Igreja Evangélica Fonte dos Milagres comportam-se
de maneira diferenciada nas aulas de Educação Física, não participando das
práticas com bola; identificar os ensinamentos que justificam o comportamento
dos alunos membros da referida igreja nas aulas de Educação Física, bem como
sua fundamentação teórica; descrever cada argumento e sua respectiva
fundamentação teórica, buscando solidez e coerência entre ambos; e, finalmente,
analisar como os demais sujeitos da escola envolvidos nas mesmas, direta ou
indiretamente, se posicionam neste dilema.
O interesse por pesquisar o presente tema apresenta dois motivos. O
primeiro é pessoal e reside no fato de ser membro atuante de uma igreja
evangélica que tem entre suas recomendações a prática regular de atividades
físicas para obtenção de boa saúde e melhor qualidade de vida como evidência
de boa conduta cristã via adequada administração da maior dádiva que nos foi
concedida: o nosso corpo (WHITE, 2007). O outro motivo é profissional e recai
sobre o interesse pelo campo escolar influenciado por seis anos de atuação no
ensino público como assistente administrativo da escola em questão.
A relação entre as práticas corporais e a religião é um tema pouco debatido
dentro do campo de conhecimento da Educação Física. Talvez isso se deva à sua
complexidade e por estar vinculado a uma clientela minoritária, os evangélicos,
sobretudo os pentecostais. Todavia esse quadro tem se alterado, pois o número
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de evangélicos cresce a cada ano em nossas escolas como reflexo do
crescimento do número de adeptos em todo o Brasil, conforme apontam os dados
do último Censo populacional, que indica uma variação de 5,2%, em 1970, para
22,2%, em 2010, sendo que este crescimento foi liderado pelos pentecostais
(BRASIL, 2010), fato para o qual Mariano (1999), já havia chamado atenção.
Além disso, esse fenômeno não se limita ao nosso país, pois “trata-se de um
autêntico processo de globalização e transnacionalização dessa forma de
protestantismo popular” (idem, p. 9).
Apesar da escassez, há pesquisas na área. Assim, já se discorreu sobre
usos e costumes, cultura e ideologia, ligados à religião que acabaram por gerar
algum conflito dentro das aulas de Educação Física, deixando o professor num
dilema, já que é muito difícil adentrar num ramo onde seu conhecimento é limitado
sem correr o risco de ferir princípios ou sem que alguém se sinta ofendido.
Nesta pesquisa, buscou-se a ampliação do tema com atenção sobre
algumas atividades que têm encontrado dificuldades para serem trabalhadas
dentro das aulas de Educação Física, especificamente na subárea esporte.
Apesar de se reconhecer dificuldades em trabalhar a dança e as lutas com o
público evangélico, o estudo não enfatizou estas subáreas, concentrando o foco
no que chama mais atenção, que está dentro do esporte.
O tema abordado é de relevância acadêmico-científica, na medida em que
pesquisas nesta área poderão dar suporte aos professores de Educação Física
atuantes ou que aspiram atuar no campo escolar, pois a partir dos resultados
obtidos, poderão melhor compreender a população evangélica e, a partir desta
compreensão, buscar soluções para problemáticas afins, intervindo
adequadamente face ao quadro apresentado.
A clientela evangélica, por sua vez, terá a oportunidade de conhecer a real
importância das aulas de Educação Física para a formação da cidadania por meio
de valores como cooperação, companheirismo, coletividade, disciplina, tolerância,
valores que também são necessários às atividades eclesiásticas, já que auxiliam
no desenvolvimento espiritual (CAVALCANTI, 2012, p. 12). De tal modo, também
será valorizado o papel do professor de Educação Física, como principal agente
de intervenção e transformação, pois lhe cabe planejar as aulas, considerando os
conhecimentos que os educandos trazem e contribuir para a participação ativa do
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discente como sujeito capaz de interferir e transformar sua realidade social
(PINHAIS, 2013). E, como afirma Saneto (2007, p. 8):
Como não se pode mudar toda uma filosofia religiosa de sociedade, é relevante a tentativa de amenizar aspectos relativos à sua interferência na escola, considerando que a educação tem o principal objetivo de desenvolvimento do ser humano na sua totalidade. E, quanto ao professor de Educação Física, é necessário que ele se aprofunde em questões que o ajudem a compreender cada vez mais as pessoas e o contexto de sua vivência cultural, social e política, sem esquecer que lhe cabe a conscientização quanto a importância da atividade física e sua prática.
Como fica explícito o professor não pode interferir no que lhe é estranho ou
superficial sem procurar conhecer mais a respeito, para então agir de modo que
não se vá ao outro extremo, ou seja, que a religião interfira de modo prejudicial
nas suas aulas. Todavia, isso deve acontecer da maneira mais amena possível,
com diplomacia e diálogo conciliatório.
2. PRÁTICAS CORPORAIS E CONHECIMENTO RELIGIOSO
Antes de tudo, compreende-se a religião como a “crença de uma força ou
forças sobrenaturais, criadoras e reguladoras do Universo, que proveem o homem
de uma natureza espiritual, que se perpetua após a morte” (LUFT, 2005). Nesta
definição a religião não só dá uma noção de origem como de controle sobre a
vida daqueles que estão sob a sua influência.
Tal influência exercida pela religião, ao contrário do que é comumente
reproduzido, não é algo exclusivamente imposto, forçado, mas voluntário, tanto
que Durkheim (1999, p. 11 apud RIGONI, 2008, p. 27), a vê como um fenômeno
social e define como “[...] a determinação da vida humana pelo sentimento de
vínculo do espírito humano ao espírito misterioso no qual reconhece a dominação
sobre o mundo e sobre si mesmo, e ao qual ele quer sentir-se unido”.
Toda religião é marcada por símbolos, cada um com o seu significado,
mais ou menos relevante. Trazem em si necessidades, espirituais ou materiais,
cada uma com suas implicações. Sobre os símbolos, é interessante que se
observe o que afirma Durkheim (1996, p. 7 apud RIGONI, 2008, p. 25):
Mas abaixo do símbolo, é preciso atingir a realidade que ele figura e
lhe dá a sua significação verdadeira. Os ritos mais bárbaros ou mais
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extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma
necessidade humana, algum aspecto, seja individual ou social.
Essa declaração leva a pensar que, por mais ilógico que pareça um
símbolo, seja uma marca visual ou uma atitude, para o religioso se apresenta com
todo o sentido. Além disso, não cabe julgá-los, mas compreendê-los e para isso é
necessário um aprofundamento na análise e interpretação do que está por traz do
símbolo.
Ainda sobre a presença dos símbolos na religião é válido citar o que afirma
Geertz (1989, p. 105 apud RIGONI, 2008, p. 38), para ele a religião é:
Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradoras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral, e vestindo essas concepções com tal áurea de fatualidade que
as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
Outro aspecto amplamente presente na religião é o sacrifício, sendo ele “a
maneira pela qual os seguidores de determinada crença tentam entrar em contato
com o mundo sagrado” (RIGONI, 2008, p. 29), ou seja, é um meio pelo qual o fiel
se comunica com a divindade, expressando arrependimento, gratidão,
compromisso. Isso pode ser notado a partir da “adesão de certos
comportamentos ou a abdicação a outros” (RIGONI, 2008, p. 30). Um bom
exemplo de sacrifício é o jejum, aonde o indivíduo se abstém de alimento por
certo tempo.
Contudo, o que mais poderia definir a religião é a oposição entre o sagrado
e o profano, em que está presente a busca pelo ideal, pelo divino, a necessidade
de acesso ao mundo espiritual e, ainda, a renúncia do real, do humano e do
carnal. (DURKHEIM, 1996 apud RIGONI, 2008; MAUSS, HUBERT, 2005 apud
RIGONI, 2008).
A religião que este trabalho centra é o Cristianismo, cujo “espírito
misterioso” é Jesus Cristo, através do qual os cristãos obtêm perdão, poder e
salvação. O Cristianismo apresenta um corpo de símbolos materiais, como a cruz,
assim como símbolos imateriais, a exemplo da piedade. Possui, ainda, várias
formas de sacrifício, como as ofertas em dinheiro. E vive num ideal de renúncia,
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ou ao menos de preterimento da matéria, por meio da espiritualidade com vistas à
recompensa futura.
2.1 O Cristianismo e sua relação com o corpo
Para conhecer a relação do Cristianismo com o corpo é preciso recorrer à
Bíblia, seu livro sagrado, onde se encontram as histórias do “povo de Deus”, bem
como profecias, poemas e as orientações e normas de como se comportar e obter
a salvação.
A Bíblia toda é um relato de uma constante luta entre o bem e o mal, é um
ciclo envolvendo criação, perdição e resgate. O “campo de batalha” onde se trava
tal conflito é o corpo. Salvação ou perdição são implicações daquilo que é
praticado por ele, tanto que Paulo, em II Coríntios 5:10, afirma “Porquanto todos
nós teremos que comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim
de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no
corpo, seja para o bem, seja para o mal.” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993, p.
1141)
No Antigo Testamento, especificamente no livro de Êxodo, capítulo 20,
encontra-se os “Dez Mandamentos”, uma espécie de código de conduta cristã
que regula os relacionamentos do homem (corpo) com Deus e com o seu
semelhante, tanto que Jesus os resumiu, em Mateus 22:37-40, a apenas dois:
amar a Deus e ao próximo (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993). A obediência ou
não de qualquer uma destas regras só pode se concretizar por meio do corpo.
Portanto, amar, perdoar, crer, esperar, ou qualquer outra ação, só podem
ser vivenciadas através do corpo, valendo esta regra também para ações
negativas, como o adultério, o roubo e o assassinato. E é sobre ele que recairão
bênçãos ou maldições decorrentes de tudo o que exterioriza e até do que não
exterioriza, pois também os pensamentos estão sendo sondados, de acordo com
o Salmo 139. (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993)
O corpo na Bíblia é retratado como sacrifício vivo de acordo com Romanos
12:1; como santuário, conforme I Coríntios 3:16 e 17, e 6:19 e 20. Já em I
Coríntios 12:12-27, o corpo é a analogia usada por Paulo para incentivar os
crentes a permanecerem unidos; o corpo é o meio pelo qual os indivíduos serão
julgados, conforme II Coríntios 5:10. (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993)
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No que se refere às práticas corporais, não se encontram muitas
referências que vão além das utilitárias, como jornadas a pé, corridas, cavalgadas
e as batalhas (bélicas). Quanto às atividades esportivas, quando mencionadas,
sobretudo no Novo Testamento, pode-se dizer que são positivas, já que Paulo
compara alguns de seus aspectos à caminhada cristã.
Todavia houve um longo período do Cristianismo, a Idade Média, em que o
corpo foi inferiorizado e tido como morada de toda a sorte de pecados.
Consequentemente, qualquer atenção que se pudesse dispensar a ele era
reprovável, sendo muito prejudicadas nesta época as práticas corporais não
utilitárias e bélicas. (GUTIERREZ, 1985)
Atualmente, a Igreja Católica assim como as igrejas protestantes históricas
fomentam as práticas corporais, mas algumas de suas descendentes, sobretudo
as pentecostais, continuam a implementar uma política antiexercício físico.
2.2 A doutrina pentecostal e a sua relação com a corporalidade
O pentecostalismo é uma modalidade popular de protestantismo, cuja
ênfase está na atuação dos dons do Espírito Santo através do falar em línguas
estranhas (glossolália), da cura e do discernimento de espíritos. Outras
características desta vertente é que suas igrejas são frequentadas por pessoas de
baixa renda e menor escolaridade, buscando nelas acolhida, apoio terapêutico-
espiritual e até solidariedade material. Sua formação baseia-se, sobretudo na
inspiração do Espírito Santo, não havendo em muitas denominações aceitação ao
ensino teológico e formal. Além disso, tem um rígido sistema de regras,
destacando os costumes externos de santidade. Some-se a isso o sectarismo e o
ascetismo contracultural. (MARIANO, 1999)
O sectarismo tem como principal característica a separação das coisas
“mundanas”, numa rejeição àquilo que é aceito pela maioria na tentativa de se
distinguir. Quanto ao ascetismo contracultural, para um melhor entendimento,
dividiu-se em dois conceitos intimamente relacionados.
O ascetismo se caracteriza no desprezo pelo corpo e suas sensações e
pela tendência de assegurar o triunfo do espírito sobre os instintos e as paixões
por meio do exercício espiritual, ou seja, orações, estudo, meditação,
mortificações e penitência (LUFT, 2005). Por sua vez, o contraculturalismo é a
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atitude de oposição à cultura secular, ou seja, aos costumes, às vestimentas, às
músicas, enfim, a tudo o que foi historicamente produzido pelos que denominam
“mundanos”. Sendo que a primeira característica está mais ligada à esfera social
dos pentecostais, enquanto que, a segunda à comportamental. (MARIANO, 1999)
Como já mencionado, a religião se manifesta na vida dos indivíduos
através do corpo, e isso não se limita ao espaço dos templos, mas se estende
para todos os espaços aos quais adentram. Isso se faz por meio de pensamentos,
palavras ou atos, sendo estas duas as mais visíveis e sobre as quais é possível
ter maior controle. Esse controle é feito não só pelo próprio sujeito, mas
principalmente pelo grupo ao qual ele pertence, pois a religião não é algo que se
vivencia sozinho, mas coletivamente. (GEERTZ, 2001 apud RIGONI, 2008)
Nas igrejas pentecostais este fato pode ser notado de maneira mais
acentuada, havendo maior controle sobre a vida dos fiéis numa perspectiva de
conduzi-los à santidade e como afirma Mariano (1999, p. 190) “Tal como o
puritanismo, para o crente pentecostal mostrar-se santificado, ele precisa
exteriorizar sinais por meio de comportamentos que o diferenciem da sociedade
inclusiva”.
Para isso, ele deve evitar o contato com as coisas “mundanas”, sobretudo
as relativas ao corpo, já que ele é vil e fonte de pecados, numa clara visão
negativa ao seu respeito, que relembra o tratamento a ele dispensado pela Igreja
Romana na Idade Média como já mencionado (GUTIERREZ, 1985), mesmo que
abominem qualquer analogia ou sequer aproximação com a mesma.
Esse monitoramento incide especialmente na vida dos mais jovens, justo
os que estão em idade escolar. Ao chegar à escola estes jovens trazem uma
bagagem cultural moldada pela educação a que foram submetidos, alicerçada na
religião (RIGONI, 2008), muitas vezes, desde sua tenra idade. E nenhuma
disciplina é tão impactada por essa conduta quanto a Educação Física, pois sobre
ela está a incumbência de trabalhar com as práticas corporais.
Isso acontece porque algumas igrejas acham que as práticas corporais,
como o esporte, é algo mundano, implicando na proibição dos jovens em
participar de qualquer atividade lúdica, como jogar futebol, soltar pipa, brincar com
bolas de gude e afins (GONDIM, 1998). Qualquer atividade que remeta ao lazer é
tida como carnal ou mundana, pois a consideram “antro de perdição por estar
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intimamente associada aos vícios, desejos e prazeres da carne ou por denotar
apego às coisas do mundo.” (MARIANO, 1999, p. 193)
Além de ocupar o tempo que deveria ser dedicado a atividades espirituais,
o lazer (entretenimento e esporte) “se opõe abertamente ao projeto pentecostal
de vida santificada, ao reforçar o ócio, o gozo espontâneo da vida [...]”
(MARIANO, 1999, p. 194). Na tentativa de afastar o fiel de tais práticas estas
igrejas recorrem a todo tipo de pressão grupal e psicológica (MARIANO, 1999).
Isso tudo para não nutrir a carne em detrimento do espírito, gastando tempo com
“atividades inúteis”. (GONDIM, 1998)
É importante ressaltar o significado que alguns atribuem à bola, tida como
um objeto diabólico, tanto que antigamente os segmentos conservadores a
apelidaram a bola de futebol de “ovo do diabo”. (MARIANO, 1999, p. 215)
Por tudo que foi exposto, percebe-se que o que ocorre nesta situação é
uma espécie de batalha pelo corpo entre a educação religiosa impressa nos
discentes pela comunidade a que pertencem e a educação oferecida pela escola,
tensionada, sobretudo na disciplina Educação Física.
3. MÉTODO
Tratou-se de uma pesquisa de campo do tipo explicativa (GIL, 2008), cuja
meta foi conhecer a realidade dos alunos pertencentes à IEFM e sua relação com
as práticas corporais, e a razão do seu comportamento, ampliando e
aprofundando nossa visão acerca do tema.
Nossa abordagem foi qualitativa, avançando na compreensão desta
denominação e sua relação com as práticas corporais, através do levantamento e
análise das razões que levam às proibições neste aspecto.
A pesquisa foi realizada na Escola Estadual de Ensino Fundamental e
Médio Manoel Lobato, no município de Primavera (PA). Consultamos o professor
de Educação Física e a técnica pedagógica da escola. Abordamos alunos
membros e o pastor da IEFM. Todavia ambos se recusaram a colaborar com o
estudo, sob a alegação de possíveis prejuízos que a pesquisa poderia trazer à
entidade, limitando esta tarefa ao seu líder de jovens e a uma conversa informal
com o pastor.
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As técnicas de coleta aplicadas para a obtenção dos resultados foram
análise documental da declaração de dispensa dos alunos pertencentes à IEFM,
bem como suas referências; entrevistas semiestruturadas realizadas com o
professor de Educação Física, a coordenadora pedagógica da escola, e o líder de
jovens da igreja; e questionário com os estudantes, sendo que este, como já
mencionado, não pode ser aplicado.
O professor de Educação Física foi indagado acerca de eventuais
problemas em suas aulas gerados por influência religiosa. Quanto ao pastor,
quando abordado, limitou-se a citar alguns versículos bíblicos e a relatar as
dificuldades dos membros em seguir suas recomendações nas escolas por onde
passaram.
A análise foi feita de forma qualitativa. De posse dos dados coletados, os
resultados foram analisados comparativamente à literatura encontrada e
apresentados a seguir.
4. DOUTRINA DA IGREJA FONTE DOS MILAGRES VS DOUTRINA DA BÍBLIA
Na fala do professor de Educação Física da escola Manoel Lobato, acerca
de eventuais problemas nas suas aulas oriundos de questões religiosas, ele
afirmou que os alunos da IEFM se recusam a manipular a bola em suas aulas, já
que a consideram como um objeto “diabólico”, pois o seu manuseio vai de
encontro à doutrina da referida igreja, reafirmando a visão descrita por Mariano
(1999). Todavia o mesmo afirma que não vê isso como um problema, já que ele
busca ter uma postura respeitosa em relação ao que estes discentes creem,
permitindo sem qualquer ônus que se abstenham do contato com o “abominável”
objeto.
A conduta respeitosa do professor é coerente, especialmente se
comparada a atitudes de desrespeito de outros docentes ao se defrontarem com
o referido problema (RIGONI, 2008). No entanto, não considerar isso um
problema é controverso, já que a disciplina não alcança um de seus principais
objetivos no currículo escolar, que é a inclusão para que todos possam entrar em
contato com o conteúdo das práticas corporais produzido historicamente pela
humanidade.
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Na fala da técnica pedagógica da escola sobredita, quanto a problemas
relacionados à Educação Física e à religião, sua resposta se harmonizou com a
do professor, ao relatar que alunos membros da IEFM recusavam-se a participar
de certas atividades nas aulas da disciplina. Quando indagada sobre como a
escola procurava solucionar estes impasses, ela respondeu que procuravam
resolve-los por meio do diálogo, de modo que não foi elaborado algum
posicionamento taxativo sobre o assunto. Como se trata de um problema de
pequenas proporções e o atual professor não identifica contradições nessa
relação, a escola não se debruça sobre o assunto, deixando-o para solvê-lo
conforme a demanda.
Da parte da IEFM, o único sujeito que se dispôs a participar formalmente
da pesquisa foi o líder de jovens, que também é filho do pastor e aluno da 2ª série
do ensino médio da escola em questão. Ao que nos parece, os alunos foram
orientados a não responder o questionário. Tanto que, quando convidados, eles
responderam em uníssono não haver necessidade de sua participação, pois seu
líder os representaria em suas respostas.
Tal atitude corrobora a docilidade dos membros das igrejas pentecostais, já
mencionada por Saneto (2007). Tal fato implicou em prejuízo à pesquisa ao
impossibilitar a descrição dos perfis destes sujeitos, restando-nos enquadrá-los na
caracterização feita por Mariano (1999). Na fala deste líder, quando questionado
acerca das razões pelas quais eles eram recomendados a evitar certas atividades
nas aulas de Educação Física, ele redirecionou ao pastor, que já havia se
recusado a participar da pesquisa por motivo já mencionado. Essa atitude
defensiva e omissa tornou a entrevista quase que infrutífera.
Conquanto, é válido relatar o conteúdo da conversa informal que tivemos
com o pastor, aonde ele justificou a recusa dos membros em participar das
práticas com bola citando I Timóteo 4:8 (vide análise abaixo) e com a frase
“Nenhum crente deve entrar em jogo de bola, pois nenhum porfiador entrará no
reino de Deus”. Através desta declaração, ele faz menção ao caráter competitivo
dos esportes, ou seja, o “porfiador” é aquele que porfia ou compete.
Todavia não percebe que este caráter não é exclusividade das práticas
esportivas, mas estão presentes nas mais variadas atividades humanas, pois
“Dificilmente se encontrará um campo da vida humana sobre o qual o impulso
competitivo não influa.” (LORENZ, 1986, p. 134 apud FREIRE, 2009, p. 137).
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Com a recusa do pastor e da grande maioria dos demais membros da
IEFM em melhor contribuir com a pesquisa, além da falta de acesso ao
regulamento interno da igreja, restou-nos analisar o único documento da referida
instituição ao qual tivemos acesso – uma cópia de declaração cedida pela diretora
da escola Manoel Lobato. O referido documento solicita a isenção dos alunos da
referida igreja na prática dos conteúdos de esportes, de jogos e de danças na
disciplina Educação Física.
No aspecto doutrinário, a primeira justificativa está relacionada ao desprezo
bíblico pelo exercício físico, conforme interpretação que a IEFM faz do texto de I
Timóteo 4:8, que versa “porque o exercício corporal para pouco aproveita” (A
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993, p. 1201). Ao confrontarmos esta posição com a
de Gondim (1998, p. 100), encontramos discrepâncias, já que, conforme o autor,
Paulo não queria depreciar o exercício físico, e sim enaltecer a piedade, uma
virtude que, quando comparada ao exercício físico, configura-se num patamar
hierárquico superior.
Para percebê-lo, é suficiente a análise do contexto em que tal livro foi
construído. Recorrendo ao versículo anterior (I Timóteo 4:7), que declara “Rejeita,
porém, as fábulas ímpias, coisas de pessoas caducas. Exercita-te, na piedade” (A
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993, p. 1169). Não são poucas as concepções de
algumas denominações baseadas em textos isolados dos seus contextos para
sustentar suas doutrinas, como o que ocorre aqui.
Outra razão é que não se mostra coeso Paulo ser contra o exercício físico,
já que ele usou a “linguagem do esporte como metáfora para a vida cristã”
(GONDIM, 1998, p. 101). Tanto que Shantz e Thompson (2015, p. 148) afirmam:
Como hábil comunicador, Paulo, em sua obra missionária, usava o conhecido para explicar o desconhecido. Ele tomava os aspectos cotidianos do mundo greco-romano para ilustrar a realidade prática da nova vida em Cristo [...] A apreciação pelos feitos atléticos fascinava o mundo nos dias de Paulo, assim como em nossos dias [...].
Um exemplo interessante disso é o que ele escreve ao mesmo Timóteo em
sua segunda carta (c.2, v.5): “Do mesmo modo um atleta não recebe a coroa se
não lutou segundo as regras”. Assim como nas práticas corporais, como a luta
aqui caracterizada, a vida do cristão é permeada de regras e, na ausência delas,
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o crente é privado do galardão que tanto almeja, pois é tido como transgressor,
assim como o atleta que é flagrado no exame antidoping é desclassificado.
Essa posição de contrariedade ao exercício físico da IEFM é contradita
pela própria prática permitida aos alunos pertencentes à igreja, já que eles
correm, saltam, fazem abdominais, entre outros exercícios, e até onde sabemos
todos estes são exercícios físicos. Teremos então que recorrer às respostas do
professor de Educação Física, que afirma que eles se recusam a fazer atividades
com bola, pois tanto esta quanto qualquer outro material que possa desviá-los de
sua doutrina se configura como objeto “diabólico”, expressão que traz à tona a
visão conservadora que a denominava de “ovo do diabo”, como já mencionado
(MARIANO, 1999). No entanto, nada foi encontrado na Bíblia que apoie essa
ideia.
Os textos seguintes, Romanos 12:1, 2 e I Tessalonicenses 5:23, versam
sobre a ideia de santidade e a consequente separação do “mundo”, já descritos
por Mariano (1999). Segundo a interpretação da IEFM, as práticas esportivas são
contrárias às doutrinas bíblicas de santificação e não conformação com o mundo.
No entanto, de acordo com Gondim (1998), a santidade tem muito mais a ver com
o modo com o qual se faz certas atividades do que com a atividade em si ou lugar
onde se pratica.
Ainda nas análises de Gondim (1999), é um erro tentar dividir a vida em
departamentos. Salvo exceções, não há como querer classificar tal atividade ou
lugar como sagrado ou profano, pois “Para o cristão todas as experiências são
igualmente espirituais, quando vividas em integridade com Deus” (GONDIM,
1998, p. 98-99). Tanto que Paulo escreve em I Coríntios 10:31 “Portanto, quer
comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de
Deus” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993, p. 1132).Se determinado praticante,
quando se envolve em certa prática corporal, quebrar todos os códigos de
conduta, isso não é culpa da prática e sim do modo como o praticante o faz. Isso
pode ocorrer em qualquer atividade humana.
Assim, pode-se sintetizar sua abstenção apenas às atividades com bola ou
ao que denominam “jogo de bola”, justificando a aversão que têm pelo objeto e
suas práticas, herdada de formas mais arcaicas do pentecostalismo.
A terceira e última questão se refere à indumentária, pois, segundo o
regimento da IEFM, não se permite que se traje calças-esporte, calções e shorts,
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itens que facilitam as atividades práticas nas aulas. O texto usado para tal
recomendação é Deuteronômio 22:5, que versa que “A mulher não deverá usar
um artigo masculino, e nem o homem se vestirá com roupas de mulher, pois
quem age assim é abominável à Iahweh teu Deus” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM,
1993, p. 183).
A partir desta concepção, a pergunta que devemos fazer é “O que é artigo
(veste) de homem ou de mulher?”. A Bíblia não tem como dizer isso, já que à
época em que foi escrita as roupas eram bem diferentes das de hoje e restritas a
um único povo e cultura – os judeus, tendo significados diferentes, assim como os
cortes de cabelo. Então, o traje feminino ou masculino não se constitui em um
valor espiritual, mas cultural. Assim, é a cultura que vai definir o que é traje
masculino ou feminino. (GONDIM, 1998)
Entendemos melhor essa questão recorrendo a um exemplo clássico como
o kilt, uma espécie de saia usada pelos homens escoceses, onde cada estampa
representa um clã. Na nossa cultura a saia é um traje feminino. A calça, por sua
vez, é comumente usada tanto por homens quanto por mulheres. Podemos inferir,
a partir destas constatações, que a IEFM tem a sua própria cultura, mas que não
pode ser justificada por esta passagem nem por qualquer outra, mas sim de
acordo com suas lentes culturais, onde usos e costumes assumem ares de
princípio espiritual.
Feitas estas considerações, passemos aos aspectos legais do documento.
Cita-se a Constituição Federal (CF) de 1998 em seu artigo 5º, inciso II, que versa
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em
virtude de lei”. Contrapondo-se a este argumento está o § 3º do artigo 26 da Lei
de Diretrizes e Bases (LDB), que versa sobre a obrigatoriedade da disciplina
Educação Física como componente do Projeto Político-Pedagógico da escola,
não podendo ser facultada por motivos religiosos. Entende-se que as atividades
propostas pela disciplina, assim como a História e a Biologia não se ofendem ou
constrangem o aluno religioso.
O segundo argumento, presente na CF-1988, é o inciso VI do artigo 5º, que
diz que “é inviolável a liberdade de consciência”. Sinceramente, não vemos o
quão ofensivas são certas atividades da Educação Física à honra ou à retidão dos
discentes, ou capazes de torná-los irresponsáveis. Trata-se mais uma vez de uma
particular elucidação.
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Outro argumento é descrito no inciso VIII desse artigo, conforme segue:
“ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou por
convicção filosófica ou política”. O que podemos inferir neste trecho, é que os
discentes da IEFM não podem ter sua vida escolar prejudicada por se absterem
de algumas práticas nas aulas de Educação Física. Bem, por mais estranho que
nos pareçam os motivos pelos quais não fazem certas atividades, cabe ao
professor, enquanto não se consegue chegar a um termo, encontrar alternativas
de envolver estes alunos, pois uma coisa é o aluno não apresentar argumentos
consistentes para ficar isento de certas atividades, outra é ele ser obrigado a fazer
o que, no seu entendimento, fere seus princípios.
Por fim, a liderança da igreja recorre ao ECA para amparar suas
convicções, e se utiliza do artigo 15, que versa: “a criança e o adolescente têm o
direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em
processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais
garantidos na Constituição”. Aqui se fala muito em direitos. Também não
podemos conceber como a prática da Educação Física poderia tolhê-los. Tanto
que o mesmo estatuto, em seus artigos 4º, 16, 59 e 71, versa que os aspectos do
esporte e do lazer, como benefícios obtidos por meio das práticas corporais,
amplamente trabalhados nas aulas de Educação Física, são direitos tão
imprescindíveis como os citados no trecho acima. Tanto que, quando o texto fala
de liberdade no artigo 15, logo a seguir, no artigo 16, em seu inciso IV, ele explica
que a liberdade se refere, entre outros aspectos, à liberdade de “brincar, praticar
esportes e divertir-se”. De certa forma, quem tolhe a liberdade da criança e do
adolescente é a própria denominação, tanto a partir da proibição quanto da ideia
que inculcam aos mesmos.
Finalizando a sessão de argumentos legais, a entidade cita o artigo 18 do
ECA: “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-
a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor”. Esse argumento nos causa certa perplexidade, pois não vemos
como quaisquer das atividades propostas nos conteúdos das aulas de Educação
Física, trabalhados de maneira adequada, possam ser desumanos, violentos e/ou
aterrorizantes.
De modo inverso, concebe-se a realização das práticas corporais como
uma ação intencional e, consequentemente, definidor de nossa condição humana.
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Mais ainda, como se configura como responsabilidade da escola a efetivação do
conteúdo expresso no ECA, todas as ações desempenhadas nas disciplinas
curriculares devem se isentar de ações que promovam a violência ou o terrorismo
entre os indivíduos. Por fim, o uso do corpo na realização dos conteúdos das
práticas corporais não visa constranger os escolares, sobretudo no trato de
conteúdos tais como a dança e a ginástica. Mas estes podem ter nelas uma forma
de vencê-la ou ao menos mitigá-la. Um desafio. Afinal de contas, somos movidos
por desafios.
É notável a falta de conhecimento desses religiosos acerca das práticas
corporais. Talvez não atentem sequer para seus inúmeros benefícios à saúde. Ou
talvez não vejam os hábitos saudáveis como parte de uma vida santificada.
Todavia “A boa religião é complementada por bons hábitos de saúde, os quais,
necessariamente, devem incluir o exercício físico” (FINLEY, 2014, p. 45). Saúde
corporal que deveria ser uma das suas preocupações, assim como a do apóstolo
João que não a dissocia da espiritual, escrevendo “Caríssimo, desejo que em
tudo prosperes e que a tua saúde corporal seja tão boa como a da tua alma” (A
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1993, p.1230). Finley (2014, p. 46) complementa:
Muitas pessoas comem em excesso, têm maus hábitos e não praticam exercícios. Então, oram pedindo que Deus lhes cure o corpo. Não seria um tanto presunçoso de nossa parte pensar que podemos violar conscientemente as leis de uma vida saudável e ter a expectativa de que Deus nos dê saúde? Embora a prática de exercícios físicos não seja a garantia de uma boa saúde, o sedentarismo garante que não a teremos.
Da mesma forma, se bons hábitos de saúde como o exercício não
garantem a salvação do fiel, certamente o contrário revela negligência com bem
mais precioso que lhe foi dado assim como com o seu próprio Doador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No desenvolvimento desta pesquisa, identifica-se que a doutrina que
justifica o comportamento dos alunos da IEFM nas aulas de Educação Física é a
da santidade (MARIANO, 1999), que os leva à abstenção de práticas com bola,
ou que caracterizem jogos, cuja fundamentação está na interpretação de textos
bíblicos isolados de seus contextos, sobretudo I Timóteo 4:8.
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Após descrevermos seus argumentos, constatamos por meio de nossa
análise que não há consistência neles, pois, como já mencionado, os textos estão
isolados de seus contextos imediatos e amplos, não encontrando outros textos
que confirmem ou reforcem as ideias, e a interpretação de autores como Gondim
(1998) também as contraria, realçando a falta de solidez gerada por esta forma de
interpretar os textos bíblicos (BERKHOF, 2004). Além disso, os argumentos
expostos tornam-se incoerentes a partir da prática destes escolares nas aulas de
Educação Física, pois os contradizem.
Analisando os demais sujeitos da escola envolvidos na questão, constata-
se que mantêm uma postura de respeito e diplomacia, procurando resolver o
conflito a partir do diálogo conciliatório direto com os discentes ou com seu líder.
Finalmente, compreende-se por meio da análise documental, das
entrevistas e da observação in loco, que as razões que levam os alunos oriundos
da IEFM a absterem-se das práticas corporais com bola nas aulas de Educação
Física da escola Manoel Lobato em Primavera (PA) são doutrinárias, e que o
referencial teórico usado por eles, a Bíblia Sagrada, acaba não cumprindo esse
papel, por contradições de interpretação (BERKHOF, 2004) e pela prática dos
alunos, cumprindo esse papel uma visão negativa acerca da bola, cuja conotação
é diabólica, herdada do pentecostalismo rudimentar brasileiro (MARIANO, 1999).
Reforça-se que não se quer fazer juízo de valor acerca da ideologia
presente nos elementos citados neste trabalho, pois, por mais estranho que
pareça este comportamento e os conceitos que o permeiam, deve-se respeitá-los
e, como profissionais competentes, é um dever propor soluções para o impasse.
Uma das sugestões deve ser a diversificação das aulas, não concentrando
apenas nos esportes nem dar ênfase à competição como já é proposto pelas
formas mais avançadas de trabalhar a disciplina, muito menos deixar levar
apenas pelas práticas com bola.
Além disso, deve-se buscar aprofundamento com assuntos que não se tem
amplo domínio, como pode ser o caso da religião, e procurar a aproximação com
estas comunidades, com o intuito de mútuo conhecimento, sobretudo para
esclarecer o papel e a importância tanto da disciplina curricular Educação Física
e, como é o caso, de conteúdos difíceis de serem trabalhados com esta clientela.
Espera-se que a ousadia e intrepidez presente neste artigo ao adentrar
num terreno que poucos se aventuram, bem como as provocações suscitadas,
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possam ajudar a comunidade acadêmica no seu trato com a Educação Física
escolar e enriqueçam a produção acadêmica não só desta instituição, mas de
outras entidades deste país rico pela sua diversidade, sobretudo religiosa. Já que
somos movidos por desafios, que esta diversidade nos faça florescer.
BODY AND RELIGION: conflictive relations in Physical Education classes
Abstract
Many are the challenges faced by teachers of physical education, religious diversity being one of them, because it directly influences the body and its practices. This research aims to understand the reasons why the faithful of the Igreja Evangélica Fonte dos Milagres (IEFM) behave differently in physical education classes, refraining from practices with ball. This was a field survey of the explanatory type. Data collection instruments were semi-structured interviews and documentary analysis, analyzed qualitatively. After identification, description and analysis, found the lack of solidity when faced with the literature on the subject, and incoherence, by the practice of school in class. By analyzing the other subjects of the school involved in the issue, he noted an attitude of respect and diplomacy. Finally concluded that the reasons why the students from the IEFM the behavior described are doctrinal, with the Holy Bible texts reference, which are not sufficient to support them for the reasons stated above, relegating this role to a negative view inherited from Pentecostalism Brazilian crude. However, suggests this approach community and greater diversification of classes.
Keywords: School Physical Education; Religion; Body.
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