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Coração Dividido

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Entre duas paixões.

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Coração

Dividido

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Sinopse

Entre duas paixões

Lua Blanco é uma típica garota da cidade grande. Adora pizza, cinema, televisão e tem uma incrível turma de amigos com quem se diverte o tempo

todo. Sonha em fazer uma boa faculdade e curte seu novo namorado, o charmoso Chay Suede. Tudo vai bem até que seus pais decidem mudar de vida. Cansados da agitação de Nova York, eles resolvem cuidar de um sítio no

estado de Wyoming, no Velho Oeste americano. De uma hora para outra o mundo de Lua desaba. Não há mais namorado, televisão, cinema ou pizza. Em vez disso, ela tem de aprender como tirar leite

da vaca, alimentar galinhas, cortar lenha, dirigir um trator... Seria um pesadelo, se o belo e vigoroso Arthur Aguiar, vizinho e colega de escola, não se

dispusessem a ajudá-la. Seu coração bate acelerado toda vez que aquele lindo garoto se aproxima... E logo Lua se vê diante de um dilema. A quem ama de verdade? Arthur, o

atraente cowboy daquela cidadezinha perdida do interior, ou o fascinante Chay, que a quer de volta a Nova York?

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Índice

Capítulo um: A nova gatinha do Chay 4

Capítulo dois: Rumo ao velho oeste 10

Capítulo três: Temporada nas montanhas 15

Capítulo quatro: Sem TV, cinema ou pizza 20

Capítulo cinco: Um Cowboy de verdade 27

Capítulo seis: Eu não sou daqui 32

Capítulo sete: Estranhos gritos nos ventos 37

Capítulo oito: Piruetas e saltos-mortais 44

Capítulo nove: Assustador dia das bruxas 52

Capítulo dez: Animando a torcida 57

Capítulo onze: Uma janela para o amor 64

Capítulo doze: Longe e ardente beijo 72

Capítulo treze: Com os olhos rasos de lágrimas 76

Capítulo catorze: Visita dos amigos 82

Capítulo quinze: Miss ranchete 88

Capítulo dezesseis: Perigo na neve 93

Capítulo dezessete: A chance de ser feliz 98

Créditos 105

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Capítulo um: A nova gatinha do Chay

A música transbordava pelo corredor quando Sophia e eu saímos do elevador no vigésimo andar. Eu podia sentir as retumbantes batidas do ritmo através das

solas dos meus sapatos. E podia sentir também, quase na mesma altura, as retumbantes batidas do meu coração. - Não consigo acreditar que estamos aqui! – sussurrei me agarrando ao braço

de Sophia para me sentir mais segura. – Estamos mesmo indo à festa de Chay!

- E se as coisas progredirem da forma como acho que vão progredir – disse Sophia, com um ar de sabida -, eu diria que isto é o começo de um lindo relacionamento. Lua e Chay, uma combinação feita no céu. Com a ajuda de

Sophia, claro. - Sei, sei... - resmunguei, lançando lhe um olhar que a fez rir. Mas não conseguia parar de sorrir para mim mesma. Estava tudo bom demais

para ser verdade. Eu havia começado o colegial um ano antes na Dover, uma especialíssima e puxadíssima escola privada em Manhattan, como uma típica e

completa Zé-Ninguém. Estava com quatorze anos e parecia ter onze. Na verdade a única coisa em que conseguia me destacar um pouco ao longo daquele ano fora a ginástica olímpica, para a qual, no entanto, ninguém em

Dover parecia dar muita importância. Ficavam admirandas com inveja todas aquelas garotas com corpos perfeitos que, cheia de autoconfiança,

perambulavam pelas salas de aula e corredores da escola, sempre vestidas na ultima moda. Até que, perto do fim do ano, as coisas começaram a acontecer pra mim.

Cresci, e meu corpo se recheou nos lugares certos. Àquela altura já havia posto um fim às minhas esperanças de chamar a atenção com as minhas

habilidades esportivas, mas pelo menos as pessoas tinham começado a notar que eu existia. O momento de grande virada foi quando ajudei Sophia a desentalar o salto de seu sapato da grade de um bueiro e a acompanhei até

seu apartamento. Depois disso começamos a voltar juntas diariamente da escola para casa. Suzanne era uma central ambulante de informações que

conhecia todo mundo na escola, e em pouco tempo eu já fazia parte da turminha dela. E essa turminha incluía Chay Suede.

Eu o havia contemplado embevecido ao longo de todo aquele meu ano de caloura, maravilhada com o comprimento dos cílios dele, com aquelas

pequenas e adoráveis covinhas que apareciam em suas bochechas quando ele sorria, e com o jeito dele, com aquelas pequenas e adoráveis covinhas que apareciam em suas bochechas quando ele sorria, e com o jeito dele encarar as

garotas com aquele seu olhar ardente e fixo. Eu jamais teria sonhado que esse olhar um dia recairia sobre mim, mas no começo do segundo ano nos tornamos

parceiros no laboratório de biologia. Coisas do destino! Nós nos sentávamos lado a lado no laboratório, com nossos joelhos se tocando levemente enquanto dissecávamos vermes. O professor,

um homem sério que usava uns óculos enormes, falava de um jeito empolado

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que fazia Chay e eu rimos em segredo o tempo todo. Chay tinha adquirido o

hábito de sussurrar coisas engraçadas e picantes no meu ouvido, e a sensação da proximidade de seus lábios e do calor de sua respiração me deixava tonta.

Não consegui acreditar no que ouvi quando ele sugeriu que fizéssemos a nossa lição de casa de biologia juntos. Foi assim que começamos a frequentar regularmente o Café Fiorelli, na Rua

75, o lugar preferido dos alunos da Dover, para fazermos as nossas lições. No começo tinha sido só biologia, até que um dia ficamos lá sentados tomando um

moncha, um delicioso café árabe, só conversando e rindo por horas a fio. Eu nunca antes havia me sentido tão à vontade com um garoto. Nunca tinha sido capaz de rir e ficar com um deles despreocupadamente, relaxada.

Chay era diferente. Realmente divertido, era fantástico imitando os professores. Reparei que havia outras pessoas nos olhando, e me senti muito orgulhosa por

estar com ele. Eu poderia ter ficado lá sentada com Chay para sempre. - Eu me diverti muito hoje, Lua – ele disse enquanto me acompanhava a pé até a minha casa. – A gente devia fazer isso mais vezes.

E então aconteceu: na entrada do meu prédio, do lado de fora, ele me deu um delicado beijo de despedida. Mesmo tendo sido apenas um rápido roçar entre

os nossos lábios, com muita gente passando, aquilo me fez formigar até as pontas dos dedos dos pés. Foi uma semana depois, quando estávamos de novo no Fiorelli, que ele me

contou sobre a festa. - Vai ser demais! – disse, entusiasmado. – Meus pais vão estar fora da cidade.

- E eles vão deixar você dar uma festa enquanto estão fora? - Não exatamente – respondeu Brendan, piscando com malícia. – Minha irmã mais velha vai estar por perto. Supõe-se que vá ficar de olho em mim, mas ela

é bem liberal. E vai ser útil para comprar cerveja, já que é maior de idade. Você vai, não vai? – perguntou esticando o braço e pousando sua mão sobre a

minha. - Claro – repliquei. – Não perderia isso por nada. Antes de responder, já sabia muito bem que iria àquela festa mesmo que fosse

preciso atravessar o oceano Atlântico a nado para chegar nela. E na verdade seria preciso superar um obstáculo quase tão difícil quanto esse: convencer

meus pais. Para os nova-iorquinos progressistas e esclarecidos que são, mostra-se surpreendentemente antiquados em certos aspectos. Eu sabia exatamente o que fariam se lhes pedisse permissão para ir à festa de Chay:

iriam ligar para os pais deles e descobririam que estes não estavam planejando ficar em casa naquela noite. Então me comunicariam, com suas vozes calmas

e sensatas, que sentia muito mais eu não teria autorização para ir a uma festa na qual não haveria nenhuma supervisão de adultos. Havia telefonado para Sophia desesperada.

- Preciso ir de qualquer jeito! – gemi. – Chay me disse que não vai ter graça nenhuma se eu não for. Acho que ele realmente gosta de mim, Sophia. Não

posso perder essa festa. - É simples – respondeu a voz profunda e melodiosa de Sophia do outro lado da linha. – Se acha que os seus pais vão dizer não, então “não” conte a eles.

- Espera aí, Sophia – repliquei com uma risada nervosa -, não posso mentir para os meus pais. E vou ter que inventar uma história muito convincente para

que me deixem ficar na rua até depois de meia-noite...

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- Então diga a eles que vai passar a noite na minha casa – propôs Sophia. – E

você pode mesmo voltar comigo depois da festa e ficar aqui em casa. Assim não terá mentido aos seus pais.

- Sophia, você é um gênio! – exclamei no telefone, excitada. Afinal, meus pais não teriam nada contra eu dormir na casa da minha melhor amiga numa sexta-feira à noite.

- Ótimo. Não vejo à hora de chegar a noite de sexta – concluiu Sophia. Tinha sido tudo tão fácil! Na sexta à noite peguei meu vestido novo de veludo

preto, no qual gastara bem mais dinheiro do que deveria, e tudo o mais que precisaria para me fazer bonita, charmosa e desejável para Chay. Então fui para a casa de Sophia, onde me troquei e me arrumei. E agora lá estava eu,

caminhando em direção à porta daquele apartamento no vigésimo andar de um prédio em Manhattan.

Foi o próprio Chay quem abriu a porta. O rosto dele se iluminou quando me viu. - Nossa, Lua, que chique! – exclamou, passeando seus olhos desde o alto da minha cabeça até a ponta dos meus sapatos de salto alto.

Ele pegou na minha mão. - Venha comigo lá fora, no balcão.

- Mal chegamos e ela já está tentando me seduzir – comentei rindo com Sophia. - Quero lhe mostrar uma coisa – insistiu ele, com seus olhos fixos nos meus. –

Você jamais vai acreditar. Eu segui ao longo da sala. E nós saímos para o balcão. Na nossa frente o

Central Park era um imenso retângulo de escuridão rodeado por um milhão de luzes. - E então, o que você acha disso? – perguntou Chay orgulhoso, fazendo um

aceno com o braço. - A vista? É linda...

- Não, não é a vista – disse ele. – Lá, no canto! Eu olhei ao redor. - Um barril de cerveja! – exclamei. - Como você trouxe isso aqui para cima?

- Não foi nada fácil – respondeu ele. – Micael, Bernardo e eu o subimos pelo elevador de serviço dentro de uma lata de lixo. Foi a minha irmã quem

comprou. Legal, não é? Essa era uma das coisas que eu gostava em Chay: ele assumia riscos. Desejei que um pouco da coragem dele passasse para mim. Não é fácil amadurecer e

se tornar corajosa quando se tem pais super protetores como os meus. Pensar neles naquele instante provocou uma pontada de sentimento de culpa em mim.

Nunca havia mentido para eles antes, pelo menos não uma mentira tão atrevida como aquela. Dessa vez a coisa era séria. Mas eu não tive mais tempo para pensar nisso, porque Chay me enlaçou com

os seus braços. - E já que tenho você todinha para mim aqui fora... – sussurrou ele.

Então ele me beijou. Não foi nosso primeiro beijo. Ele já me beijara quando nós voltávamos caminhando juntos do Café Fiorelli até a minha casa. Mas naquela ocasião tínhamos precisado parar logo, porque às pessoas estavam olhando.

Agora éramos só nós dois sozinhos na escuridão, e os lábios dele estavam quentes e deliciosos... Através do tecido do meu vestido eu podia sentir o calor

de suas mãos nas minhas costas e seu coração martelando contra o meu.

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- Acho que a gente devia voltar para dentro – sussurrei, rindo nervosamente

enquanto nos apartávamos. – Daqui a pouco todos vão começar a se perguntar onde estávamos.

- Não, não vão – disse ele. – Eles não são bobos. Vão ter capacidade para adivinhar onde estamos e o que exatamente estamos fazendo. Da escuridão vinha o rondo abafado dos táxis e um som difuso de um jazz

tocando em algum lugar. - Amo Nova York – suspirei. – É uma cidade tão romântica e tão excitante...

- É sim – disse Chay, com seus braços ainda ao redor da minha cintura. – eu não conseguiria viver em nenhum outro lugar. - Nem eu. Apesar de meus pais continuarem a falar em fugir para uma

fazendinha em Connecticut... – comentei. - Estão só fantasiando – replicou Chay. – Todos os nova-iorquinos fazem isso.

Minha mãe está sempre ameaçando de nos mudarmos para o campo, mas no fundo ela não está falando sério. - Você tem razão. Meus pais também adoram esta cidade.

- Ei, Chay, venha cá! – gritou uma voz de dentro do apartamento. – Tem uns caras aqui na porta que dizem que conhecem você lá do campo de futebol.

- Ah, deve ser o Danny! – gritou Chay de volta, se afastando de mim. – A gente continua mais tarde – sussurrou no meu ouvido, me arrastando para dentro da sala.

Logo Chay estava cumprimentando ruidosamente os recém-chegados na porta da frente, e me vi engolida pela multidão que já lotava o apartamento.

- Não vi você chegar, Lua – comentou Mel Fronckowiak. Mel fazia parte da turma de Sophia e também tinha se tornado minha amiga. - Isso porque o Chay arrastou-a lá para fora no exato momento em que ela pôs

os pés aqui – comentou Sophia rindo. - Para que, admirar a vista? – perguntou Rayana.

- Para o que você acha imbecil? – retrucou Sophia, girando os olhos em minha direção. – É, minha cara, acho que vocês dois já viraram fofoca nacional. Escutei um garoto por aí falando de você como “a nova gatinha do Chay”.

Senti minhas bochechas esquentarem quando percebi que as outras garotas começaram a olhar me olhar com um interesse especial. Peróla, uma caloura

bastante popular em Dover, estava olhando fixamente para o meu vestido. - Você o comprou no Village, não foi? – perguntou ela. – Eu o vi numa vitrine da English Street, mas não tinha dinheiro suficiente.

- Decidi que seria melhor andar pelada o resto do ano e comprar o vestido – respondi sorridente e delicada. – Minha mãe ficaria louca se soubesse quanto

paguei por ele. - E para que servem os cartões de crédito? – brincou Sophia. - Fica muito bem em você – observou Peróla.

- Você pode usá-lo de vez em quando, se quiser – ofereci, me sentindo generosa e magnânima.

- Obrigada – disse ela, sorrindo. Eu me senti maravilhosamente bem sendo o centro das atenções, recebendo olhares de admiração de todos os lados e conversando de verdade com

algumas das alunas e dos alunos mais populares da Dover. Poucos minutos depois Chay apareceu com um copo de cerveja para mim. Dei um gole, apesar

de não ser muito chegada em bebidas. Além do mais, detesto o gosto da cerveja.

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A sala estava ficando cada vez mais apinhada, e alguns garotos tinham

acendido cigarros, enchendo o ar de fumaça azul. O nível de barulho aumentava junto com a fumaceira. Alguém tinha colocado um CD de rap, e

alguns garotos estavam dançando no corredor. A música soava tão alta que produzia a sensação de se fazer parte de uma gigantesca batida de um único coração.

- E se alguém chamar a polícia, Chay? – perguntou Mel. - Não se preocupe. Acertei tudo com os vizinhos. Todo mundo neste andar vai

ficar fora de casa durante a noite, e o velho que mora aqui embaixo não liga. E molhei a mão do zelador com vinte dólares. Está tudo em cima, tudo sob controle.

Ele me puxou para perto de si e me deu um rápido beijo na bochecha. - Então você conseguiu se virar para vir aqui sem que os teus pais te

amolassem, Lua? – perguntou Mel. - Dissemos a eles que ela ia dormir na minha casa – disse Sophia. - Na verdade foi fácil – expliquei. - Mal estavam prestando atenção quando

perguntei se podia vir. Eles têm tido um monte de preocupações ultimamente... Meu pai pegou um caso importante que está indo agora para os tribunais, e

minha mãe tem que fazer uma apresentação para um novo cliente da empresa em que ela trabalha. E no meio disso tudo meu avô ainda ligou de Wyoming, dizendo que quebrou a perna e não tem como tomar conta do sítio. Agora

meus pais estão tentando decidir o que fazer com ele... - Você tem um avô num sítio, Lua? – interrompeu Micael, um dos amigos de

Chay. – Por alguma razão me aprece que isso não combina com você. - E não combina mesmo – disse eu. – Nem com o meu pai. Ele não via a hora de cair fora de lá quando chegou a idade de ir para a faculdade.

- Sei lá... – comentou Rayana. – Acho que um sítio soa tão romântico! Todos aqueles cavalos... Você nunca vai lá?

- Não estivemos mais lá desde que eu era bem pequena – respondi. - Meu pai e meu avô não se dão muito bem. Meu avô não consegue entender as necessidades que meu pai sente da vida urbana. E não tenho grandes

lembranças do lugar. Só me lembro de um menino que tentou me beijar no celeiro de meu avô. E me lembro de também dele colocando um sapo nas

minhas costas, por dentro da roupa, quando estávamos passeando perto do rio, e de meu avô dizendo que eu era uma mimada e fricoteira por ter ficado nervosa durante uma tempestade com raios e trovões. Não foram as melhores

férias da minha vida. Alguém colocou outro CD de rap, e todos nós começamos a dançar. Mas

estava me sentindo um pouco culpada. Queria ser livre e dona do meu nariz como os meus amigos, mas não conseguia me desvencilhar daquela estúpida sensação de culpa. Será que eu era a única que se sentia assim? Como

Sophia dissera, não tinha mentido aos meus pais. Apenas não havia revelado todos os fatos. Todo mundo fazia coisas desse tipo o tempo todo. Meus amigos

achavam que não tinha nada demais. Por que então me sentia mal? Segurei Chay quando ele passou perto de mim. - Dança comigo – pedi.

Quase ao mesmo tempo a música mudou para uma batida lenta. Chay me agarrou apertado. Sentia o calor da bochecha dele encostada à minha, e seus

braços me enlaçavam com tanta força que respirávamos como se fôssemos um só. Fechei os olhos, com um sentimento de perfeito e extremo

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contentamento. Era a noite mais maravilhosa da minha vida. E eu não queria

que acabasse. Não escutamos a campainha no começo.

- Dê uma olhada se são penetras, cara – pediu Chay a Micael, que estava em pé perto da porta bebericando uma cerveja. – Se for o velho de baixo reclamando, seja simpático com ele.

- Obrigado por me deixar cuidar disso, Chay – disse Micael sarcástico, ao mesmo tempo abrindo a porta.

Chay beijou minha testa e começamos a balançar nossos corpos no ritmo da música. Estávamos começando a nos embalar quando Micael abriu caminho a empurrões no meio da multidão para chegar até nos.

- Ei, Lua! – chamou preocupado. – É sua mãe e o seu pai. E não parecem estar muito felizes!

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Capítulo dois: Rumo ao velho oeste - Mamãe, papai, o que vocês estão fazendo aqui? – perguntei com um falso bom humor.

Senti um aperto no estômago e logo vi que não tinha saída. Mesmo assim, não estava disposta a deixá-los fazer uma cena na frente dos meus amigos.

- A questão é: o que você está fazendo aqui, Lua? – indagou meu pai, furioso. – Você nos disse que estaria passando a noite na casa de Sophia.

- E estava... Quero dizer, estou – respondi gaguejando. – Estava lá na casa dela, e então o Chay ligou e sugeriu que déssemos um pulinho aqui...

- E simplesmente coincidiu de você estar com um vestidinho de veludo preto novinho? Que sorte, hein? – arremedou minha mãe, me fitando com um olhar assustador. – Você conhece as nossas regras, Lua. Você não vai a festas sem

nossa permissão... - Mãe, por favor, psiu – sussurrei, nervosa.

Todo mundo estava olhando para nós. - Pegue suas coisas. Você vem com a gente – disse meu pai. - O resto das minhas coisas está na casa da Sophia.

- Não, não está mais – retrucou minha mãe. – Nós pegamos tudo quando paramos na casa de Sophia para entregar a sacola de plástico que você deixou

cair no corredor. Achamos que não gostaria de passar a noite sem o seu soro para as lentes de contato e sem a sua escova de dente, e então demos um pulo até lá no caminho para o restaurante chinês.

Ela esperou que eu dissesse alguma coisa, mas não havia nada que pudesse pensar em dizer. Chay tinha aberto caminho no meio do povo e se aproximava

de nós. - Algum problema, Lua? – perguntou ele. - Tenho que ir para casa – respondi, mordendo o lábio para não chorar na

frente dele e de toda aquela gente. - Puxa vida, que roubada... – disse ele, me lançando um olhar de solidariedade.

– eu te ligo depois, tá? - Tudo bem – murmurei. Eu me virei e saí andando pelo corredor atrás de meus pais. Meu irmãozinho e

minha irmãzinha estavam esperando no hall. As pessoas se afastavam para nos deixar passar. Eu nunca tinha sido tão humilhada em toda a minha vida.

- Mãe, pai... – comecei. Meu pai se virou e me olhou com uma expressão calma e fria. - Nem uma palavra mais, Lua. Tivemos um longo dia e estamos cansados.

Vamos conversar sobre isso amanhã de manhã. Quando chegarmos em casa, você vai direto para o seu quarto.

Eu me instalei no assento traseiro do táxi que meu pai chamou e voltamos para casa em silêncio.

Na manhã seguinte meus pais já estavam sentados na mesa para o café da manhã quando entrei na cozinha.

- Sente-se, Lua – ordenou minha mãe, mostrando meu lugar com um gesto. Era como se eu fosse um réu num tribunal. - Realmente sinto muito... – comecei dizendo.

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Sempre achei que a auto humilhação era uma estratégia que funcionava bem.

Nenhuma mãe consegue ficar furiosa com uma filha que admita ser um lixo e implore por perdão.

- Queria que vocês soubessem que essa foi a primeira vez que fiz algo desse tipo, e não me senti nada bem. Olhei esperançosa de minha mãe para meu pai, tentando julgar se os estava

atingido ou não. Os dois me escutavam em silêncio. - Vocês sabem o que é ser a única da turma que não pode ir a uma festa? –

continuei. – Todo mundo fica achando que é uma babaca, uma nenêzinha! Forma vocês que escolheram essa escola para mim, e ela tem uma vida social muito, muito agitada. Há festas em todos os fins de semana...

O silêncio permaneceu enquanto eu desfiava as minhas desculpas, que ficaram suspensas no ar até começar a me sentir realmente desconfortável.

Meu pai limpou a garganta para falar: - Concordo que talvez o primeiro erro tenha sido nosso, Lua – disse ele. - É verdade, fomos nós que escolhemos a Dover School para você. É uma escola

muito boa. Infelizmente é também uma escola de filhinhos de papai ricos e mimados, e isso não é o que queremos para você.

- Não estão pensando em me transferir de escola, estão? – perguntei, em pânico. – Não agora que estou me sentindo adaptada e enturmada pela primeira vez na vida. Não agora que finalmente encontrei um garoto que gosta

de mim e que consegui um papel na peça da escola... - Querida, nós apenas queremos o melhor para você em longo prazo – disse

minha mãe calmamente. – E festas sem supervisão de adultos e com bebidas alcoólicas não são o melhor pra você. - Mas, mãe... – comecei a protestar.

Ela me deteve com um gesto e olhou para meu pai. - Acho melhor chamarmos Daniel e Ana para deixar que participem disso

também – sugeriu-a. - Porque precisam me ver nesta situação, toda encrencada? – perguntei. – Você sabe como é o Daniel. Ele vai se lembrar de tudo o que você disser e

depois vai me repetir tudo palavra por palavra quando estiver com raiva de mim.

- Nós os queremos aqui porque isso diz respeito a eles também – declarou papai. – Vocês dois desliguem a TV e venham cá! – gritou, colocando a cabeça perto da porta.

Escutaram-se alguns resmungos, e então duas cabeças despenteadas apareceram.

- Era o meu desenho animado preferido! – reclamou Ana. - Sente-se – disse meu pai, indicando os bancos altos no balcão da cozinha. Havia algo na voz dele que fez os dois se sentarem sem argumentar.

- Sua mãe e eu passamos quase toda a noite em claro conversando – revelou papai.

- Vocês não vão se divorciar vão? – perguntou Ana. – Não quero ter de ir aos tribunais e me ver no meio de uma guerra pela custódia da gente, como a Amy. - Não, Ana, não vamos nos divorciar – respondeu papai. – Apenas fique

quietinha e escute, e vai ficar sabendo o que decidimos. Ele esperou até todos ficarmos completamente quietos para começar a falar.

Não é à toa que ele é advogado.

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- Sua mãe e eu não estamos muito felizes com a maneira como as coisas vão

indo nesta família. Vocês três estão tendo problemas... - Eu já disse que sentia muito – interrompi. – E que não aconteceria de novo.

- Não é só você, Lua – disse papai, lançando um olhar para mamãe. – Quase todo dia os outros roubam o dinheiro do lanche do Daniel. A psicóloga da escola de Ana diz que ela está tendo problemas de relacionamento e quer que

faça terapia três vezes por semana. E você mentir para a gente, Lua, foi a gota d’água.

- E o mais incrível de tudo isso - interrompeu mamãe - é que pensávamos estar fazendo o melhor por vocês. Pagamos uma fortuna em mensalidades para mandá-los às melhores escolas, mas estamos percebendo que isso talvez não

seja o melhor. Vocês precisam é do nosso tempo e da nossa atenção, que não podemos dar-lhes porque estamos constantemente ocupados com as nossas

coisas. - Precisamos de um tempo para ser uma família, crianças - suspirou meu pai. - Isso não é jeito de viver, sempre na correria, sempre sob pressão, nunca

comendo juntos, sempre pizza e comida para viagem em vez de uma boa comida caseira...

- Mas gosto de pizza! - interrompeu Ana - As coisas de que gostamos nem sempre é as melhores para nós, meu amor - retrucou mamãe com suavidade. - Somos os pais de vocês e nós é que temos

de pensar no que é realmente o melhor para que cresçam felizes e saudáveis. Houve uma pausa dramática.

- Vamos estudar em escolas públicas, papai? - perguntou Daniel por fim. - Provavelmente. Vamos ter de olhar isso ainda, mas acho que é bem provável - respondeu papai.

Mamãe respirou fundo. - A decisão que tomamos é que Nova York não é um lugar saudável para criar

os filhos - disse ela - e, no ritmo que estamos indo, seu pai e eu seremos dois fortes candidatos a um enfarte por volta dos quarenta anos. Sei que vocês têm nos ouvido conversar a respeito do problema do vovô durante toda a semana.

Ele quebrou a perna e não tem ninguém para ajudá-lo a tomar conta do rancho. Nessa noite papai e eu decidimos que a melhor coisa a fazer é ir para lá cuidar

dele. - Para o Wyoming? – perguntei abruptamente. - Para o Wyoming – respondeu meu pai.

- Nós todos? Por quanto tempo? – tornei a perguntar sentindo minha voz estremecer.

- Quem sabe? – disse meu pai. – Talvez para sempre. Vamos ter de ver como as coisas correm por lá. Endireitei o corpo de supetão.

- Para sempre? Pai, você não pode estar falando sério! Não podemos nos mudar de Nova York!

- Estivemos conversando bastante a respeito disso... – disse mamãe. - Eu sei – interrompi -, a história da fazenda em Connecticut. Mas nunca achei que estivessem falando sério. Sempre pensei que gostassem de Nova York

tanto quanto eu gosto. - Estamos cansados desta vida estressante – disse papai. – E, como a sua

mãe falou, chegamos à conclusão de que Nova York não é um bom lugar para criar uma família saudável.

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Fiquei em pé de um salto.

- Vocês não podem estar falando sério! Eu não posso sair de Nova York agora. Todos os meus amigos estão aqui. Não daria para eu ir morar com a Sophia?

Eles têm uma cama extra lá, do irmão dela que está na faculdade. Sei que a mãe dela iria concordar... - Sophia é uma das maiores partes do problema todo, Lua – observou meu pai.

– A mãe dela lhe dá todo tipo de liberdade que nós não querermos dar a você. - É principalmente por cauda de você que nós chegamos a essa decisão –

completou minha mãe. – É você quem queremos fora dessa cidade o mais cedo possível. - Não consigo acreditar que estão fazendo isso comigo! – protestei. – Isso é

sequestro infantil! É abuso infantil! Vou falar com as autoridades do Juizado de Menores e ver o que têm a dizer a respeito.

Meu pai sorriu. - Eles vão dizer que uma criança deve morar com os pais até completar dezoito anos – disse ele. – Goste ou não, você vem conosco, Lua.

- E eu acho que vocês vão gostar crianças – concluiu mamãe, com uma voz realmente animada. – Imaginem não ter de lutar com o trânsito e a multidão

todas as manhãs. Poderíamos comprar cavalos para vocês, se quiserem. Teríamos tempo para jantar juntos... - Mas como vai encontrar trabalho em Wyoming? – zombei.

- Não vou trabalhar. Nem o seu pai. Nós dois estamos parando de trabalhar. - Ah, não! – gemeu Ana. – Vamos virar sem-teto e mendigos! Não quero dormir

numa caixa de papelão! Aquilo quebrou a tensão e todos tiveram de rir. Mas o ingênuo comentário de Ana levantou uma questão séria.

- Do que vamos viver? – perguntei. - Vamos nos virar bem – disse mamãe, lançando um olhar a papai. – Vamos

começar trabalhando no sítio do vovô até ele ficar bem, e, se depois as coisas não correrem bem entre nós e ele, então talvez compremos uma fazendinha para nós mesmos. Uma vantagem de ter morado aqui na cidade por tanto

tempo nós não podemos negar: fomos muito bem pagos e conseguimos economizar bastante. E no Wyoming não teremos de pagar aluguel

ridiculamente alto nem absurdas mensalidades privadas. Estou planejando plantar frutas e verduras, e isso vai dar tempo ao papai fazer o que ele sempre sonhou fazer.

- O que é? – indaguei. - Escrever um romance – respondeu ela.

Olhei na direção de papai. Ele havia corado. - Sempre foi o meu sonho secreto – confessou com doçura e certa timidez. – E, se não der certo, se eu descobrir que não consigo escrever o meu Best-seller e

se não conseguirmos plantar a nossa própria comida, então tenho certeza de que sempre haverá trabalho para um advogado em qualquer lugar. Ou então

poderia ensinar na escola local. Há inúmeras opções. - Para você, talvez – disse eu. – Mas o que há para mim lá? - Vários garotos e garotas cujos valores ainda não foram para o brejo – replicou

mamãe. – A chance de perceber que dinheiro não compra felicidade. A chance de crescer como uma pessoa autêntica, e não como uma burguesinha

sofisticada e falsa. Quem sabe quantos talentos seus você poderá descobrir quando tiver uma chance de tentar coisas novas?

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- Claro – retruquei com amargura -, como, por exemplo, bater manteiga e tirar

leite de vacas. - Vacas? – perguntou Ana toda excitada. – Vamos ter vacas?

Mamãe sorriu ao ver a carinha animada de Ana. - Vai poder ter quantos bichinhos de estimação quiser amorzinho. Vacas, ovelhas, porcos, coelhos... Tudo o que quiser.

Ana deslizou do banco para o chão. - Estou indo empacotar as minhas coisas – comentou. – Podemos ir amanhã?

- Amanhã não – respondeu meu pai, erguendo Ana em seus braços. – Mas muito, muito em breve. Assim que conseguirmos um inquilino para este apartamento e deixarmos tudo em ordem. Não posso esperar para ver a cara

dos meus sócios quando eu contar a eles que estou indo embora. Olhei para a cara excitada e feliz de papai, em seguida para a de mamãe, e

depois para a de Ana. Pelo menos Daniel não parecia estar pulando de felicidade. Talvez estivesse se lembrando da vez em que tinha vomitado quando o vovô o obrigara a comer nabos plantados em casa.

Senti um grande soluço chegando. - Não consigo acreditar em vocês, gente – eu disse através da bola que se

formara em minha garganta. – Não consigo acreditar que estejam fazendo isso comigo. Eu não vou! Vou encontrar um jeito de ficar aqui, nem que seja a ultima coisa que eu faça sobre a Terra!

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Capítulo três: Temporada nas montanhas

Estava tão transtornada que não consegui falar com Chay nem com Sophia quando me telefonaram mais tarde, naquele mesmo dia. Meu pai enfiou a cabeça no meu quarto para me passar o recado de que minha turma ainda

estava com a intenção de ir ao festival de cinema italiano naquele tarde, e que eu poderia encontrá-los no cinema ou no Fiorelli, depois do filme.

- Ah é? – disparei. – E o que disse a eles? Que ficaria de castigo até me encontrar a salvo entre as manadas de búfalos do Wyoming?

Meu pai sorriu. - Pode se encontrar com os seus amigos se quiser, Lua. Não somos monstros.

Eu me decidi contra o filme italiano. Sabia que era sobre uma mulher que se apaixonava por um soldado que parte para a guerra e é morto, e tive um péssimo pressentimento que iria chorar durante toda a sessão. Mais me

esforcei e consegui me refazer um pouco. Joguei bastante água fria na cara e passei um pouco de batom, para pelo menos voltar a parecer humana o

suficiente para me encontrar com os meus amigos no Fiorelli. Eles estavam sentados numa mesa de canto e, quando cheguei, todos me olharam com compaixão. Mel saiu às pressas de seu lugar para me abrir

espaço ao lado de Chay. - Você perdeu um bom filme hoje, Lua. Um filme tão triste... – informou.

Eu me esforcei para dar um meio-sorriso enquanto me espremia ao lado de Chay. - Deve estar numa encrenca séria – disse Sophia. – Seu pai foi frio como um

iceberg quando liguei hoje de manhã. - É, ele me disse que você não estava falando com ninguém – arremedou

Chay. – Sinto muito por ter ficado tão encrencada, Lua. Nunca imaginei que seus pais fosse ficar tão enfurecidos só por causa de uma simples festinha. Tentei responder a ele, mas em vez disso tive de me esforçar para engolir o

choro. Passei o olhar pelo Fiorelli, reparando nos pôsteres de óperas italianas penduradas nas paredes, nas velas cor-de-rosa nos candelabros e na voz de

Pavarotti soando baixinho nos alto-falantes, abafando um pouco o rouco nervoso do trânsito que vinha do exterior. As luzes de uma placa luminosa do outro lado da rua resplandeciam. Havia um vendedor de kebab num canto, e o

Davi’s Deli, onde se faz o famoso pastrame do David, no outro canto. Aquilo era Nova York, e era aquilo que eu amava.

- Você está mesmo numa fria, Lua? – perguntou Chay, tocando gentilmente na minha mão. – Quero dizer, puseram você de castigo, ou algo parecido? - Pior do que isso – comecei. – Vão me levar embora para o Wyoming.

- Vai o que? Por quanto tempo? Todos os meus amigos estavam agora me olhando em estado de choque. - Para sempre – disse eu com tristeza.

- Não posso acreditar! – exclamou Chay. – Você quebra uma regrinha de nada e mandam você para o Wyoming?

- Pois é melhor acreditar, porque é verdade – repliquei. – Meus pais disseram que andaram pensando em como fazer para resolver o problema do meu avô, e essa história da festa ajudou a chegar a uma decisão.

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- Só por causa do seu avô? – disparou Mel. – Ninguém larga tudo e se muda

para o Wyoming só porque alguém quebrou uma perna! - Essa é uma das razões – expliquei. – Querem nos tirar da cidade e nos levar

para um lugar onde a vida seja simples. - Você deve estar brincando – disse Rayana, arregalando os olhos. - Não podem fazer isso, Lua – ponderou Sophia calmamente jogando os

cabelos para trás. – Vá falar com o advogado infantil na escola. Diga a ele que os seus direitos estão sendo violados. Você também tem direito, sabia?

- E os psiquiatras já provaram que é prejudicial mudar um aluno de escola e de cidade no meio do colegial – emendou Rayana. – Eles estarão realmente pondo em risco a sua saúde mental, Lua.

- A Constituição salvaguarda o direito à vida, à liberdade e a busca da felicidade – acrescentou Micael. – E eu diria que as suas chances de encontrar

a felicidade em Nebraska, ou seja, lá onde for são zero. - Wyoming – corrigi. - Dá na mesma – replicou ele. – Uma vez que você sai da Pensilvânia não há

mais nada até chegar à Califórnia. Já atravessei o país de carro uma vez. Pode acreditar em mim.

- O Wyoming é legal – comentou Rayana. – Jackson Hole parece ser um barato. Vi em A vida dos ricos e famosos, na TV. Eles têm fontes de água quente natural e trenós puxados por cavalos. Muita gente famosa vai lá.

- A gente poderia ir visitar você nas férias, para esquiar – disse Sophia, subitamente tão entusiasmada. – Eu iria adorar me deitar numa nascente de

água quente rodeada por um monte de neve. Que romântico! - Nós não estamos indo morar em Jackson Hole. – esclareci com amargura. – Estamos indo morar no cafundó-do–judas, num lugar onde nunca ninguém

sequer ouviu falar. Num sítio. A pior coisa que poderia acontecer a alguém. Eles voltaram a ficar com pena de mim.

- Então simplesmente recuse-se a ir – disse Sophia. – O que eles podem fazer? Levá-la à força em cima dos ombros? - Meu pai disse que crianças com menos de dezoito anos têm de ir aonde seus

pais forem, gostem ou não – expliquei. - Não se você fizer o maior fuzuê – opinou Mel. – Quando não me deixam

seguir o meu caminho, ameaço parar de comer. Meus pais têm tanto medo de que eu entre em anorexia que acabam cedendo. - Só tenho mais umas duas semanas antes de partimos – contei. – Não

acredito que conseguiria ficar desnutrida a ponto de beirar a morte em tão pouco tempo.

- Simplesmente fuja de casa – disse Sophia, como se fazer isso fosse a coisa mais simples do mundo. – Esconderíamos você, não é, gente? - Você terá sempre o meu quarto a disposição, Lua – disse Chay, me dando

um sorriso doce e malicioso. - Não, falando sério – continuou Sophia. – Se não quer ir, não vá. Você já é

quase adulta, e pode morar com algumas de nós. Esconderíamos você até eles irem embora. - Não poderia fazer isso – disse eu, sacudindo a cabeça. – Eles ficariam

doentes de preocupação por minha causa. - Eles merecem, por não se preocuparem com a sua felicidade – disse Mel. –

Quero dizer, ir para o Wyoming é pior do que uma sentença de morte. Você vai morrer de tédio lá.

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- Pense a respeito, Lua – disse Sophia. – Nenhuma loja num milhão de

quilômetros quadrados, nenhum café, e você vai ter de se conformar com dançar com uns caipiras calçados com aquelas enormes batas de cowboy – ela

fez uma pausa e começou a rir. – E vai ter de aprender a dizer ya-hu e iuuiii! - Pode crer que não pretendo me aproximar o suficiente de nenhum garoto no Wyoming para que ele possa dançar comigo – repliquei – e que não vou

aprender a dizer ya-hu. Na verdade, estou planejando me deitar em minha cama e ficar olhando para o teto até eles perceberem o quanto estou infeliz.

Então vão ter de me mandar de volta para cá. Chay estava um bom tempo olhando para baixo, na direção de seu cappuccino. Então levantou a vista para mim com um grande sorriso no rosto.

- Anime-se, Lua – disse ele. – Você não acredita mesmo que seus pais vão aguentar ficar por lá mais do que uns dois meses, acredita? Eles também estão

acostumados com Nova York, lembre-se. Podem achar lindo morar num sitio por algumas semanas, mas espere até nevar e se verem entalados num lugar a dez quilômetros da cidadezinha mais próxima e com um único canal de TV.

Aposto que para o Natal vocês já estão de volta. Olhei para ele com uma expressão esperançosa.

- Você acha mesmo? - Estou contando com isso – ele respondeu com um movimento afirmativo de cabeça. – Se não, quem vai me aquecer nesse inverno?

Aquilo foi a coisa mais doce que alguém já me dissera, e me senti perigosamente perto das lágrimas de novo.

- Espero, espero mesmo que você esteja certo, Chay – repliquei. Gastei as ultimas semanas em Nova York me fartando de fazer tudo que eu sempre havia desejado mais nunca fizera até então. Brendan fez tudo junto

comigo, me acompanhando a todos os nossos programas favoritos e vendo todos os filmes possíveis.

- Assim pelo menos não vai morrer de fome cultural – ele brincou. Que semanas maravilhosas! Chay e eu começamos realmente a nos entrosar, a nos conhecer. Como eu iria conseguir deixá-lo?

Em minha última ida à Dover School passamos juntos um perfeito dia de outubro. A temperatura estava quente sem ser abafada, e as folhas

começavam a ficar douradas nas árvores do Central Park. Passeamos pelo parque juntos, por entre as charretes carregadas de turistas, puxadas por cavalos saltitantes. O Central Park nunca me parecera tão adorável. Nova York

nunca me parecera um lugar tão perfeito para se morar. O Central Park ficava no fim do meu quarteirão, e eu quase nunca arranjava tempo para passear

nele. Mas naquele dia saboreei cada árvore, cada pedra, cada fonte, dizendo a mim mesma: “Você nunca mais vai ter tudo isso”. - Não consigo acreditar que vou estar na estrada para o Wyoming amanhã de

manhã – desabafei. - Nem eu – disse Chay. – Bem agora, que estamos começando a nos

conhecer, você vai embora. Não é justo. - Nunca senti nada assim por alguém, Chay – revelei. - Sei o que você quer dizer. Você é mesmo muito especial, Lua – confessou,

pegando gentilmente na minha mão. – Dizer adeus é duro para mim também. - Vou pensar em você todos os dias – confessei, sentindo uma lágrima rolar

pelo meu rosto.

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- Ei, calma – pediu ele -, você não esta indo para o fim do mundo. Existem

telefones no Wyoming. Eu vou te ligar todas as noites. - Isso vai custar uma fortuna.

- Não tem importância – replicou Chay. – Minha irmã liga a cobrar da universidade a toda hora. Supõe-se que eu tenha direito aos mesmos privilégios. E também existem os aviões. Posso pegar um e dar um pulo lá para

te ver. - Sério?

- Claro. E você também poderia pedir aos seus pais para deixarem você voar para cá de vez em quando, nos feriados e nas férias. - É mesmo... – me animei, com uma frestinha de luz surgindo na escuridão do

meu desespero. – Eles têm obrigação de me permitir isso, não têm? Não podem me manter longe dos meus amigos para sempre.

- É, como eu disse – continuou Chay -, quando a primeira nevada vier, quando os canos congelarem e não conseguirem encontrar um fettuccine no supermercado local, aposto que eles vão querer correr de volta para a

civilização. Na próxima primavera você já vai até ter se esquecido de que um dia esteve fora de Nova York. Vamos assistir a todos os shows novos na

Broadway que tiver perdido e patinar no Central Park quando as folhas já estiverem começando a nascer nas árvores novamente. - Ah, Chay, você acha mesmo?

Ele sorriu para mim. - Vou segurar na sua mão e, quando chegarmos perto de uma árvore enorme

como essa, vou pegar você nos meus braços e te beijar, exatamente assim. Os lábios deles encontraram os meus, e ficamos lá nos beijando, bem apertadinhos.

- Isto é – continuou, brincando, quando já nos apartávamos -, se você não tiver me esquecido até lá. Se não tiver encontrado um cowboy de quem goste mais

do que de mim... - Não brinque com coisas sérias, Chay – disse eu, brava. – Isso nunca vai acontecer.

Caminhamos de volta para casa, de mãos dadas. Depois de um beijo final de despedida, fiquei olhando enquanto ele se afastava lentamente. Era a última

vez que eu o via, sabe lá por quanto tempo. E eu queria me lembrar daquele momento para sempre. Naquela noite papai entrou em meu quarto no momento em que eu tentava

enfiar o resto das minhas coisas numa grande bolsa de náilon que já estava quase estourando.

- Lua eu sei que você está louca de raiva pelo que nós estamos fazendo com você... – começou ele. – Sei que você não quer ir, mas, por favor, acredite que estamos fazendo o que achamos que é o melhor para nós todos.

Continuei tentando enfiar um par de sapatos num lugar não existente no canto da mala.

- Quem sabe? – continuou ele. – Pode ser que você acabe gostando de lá... - Está bem, pai. - Você pode até descobrir ser uma pessoa que nunca imaginou. Alguém que

não precisa de cartões de crédito, roupas caras e festas selvagens para se divertir.

Finalmente consegui enfiar os sapatos na mala e fechei o zíper.

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- Sua mãe e eu temos andado preocupados com o quanto essa história de

mudança está afetando você – prosseguiu ele – e nós decidimos assumir um compromisso.

Ergui os olhos para ele, cheia de esperanças. - Decidimos que primeiro você deve tentar para valer de adaptar à nova vida. Se no fim do ano letivo você ainda tiver desesperadamente infeliz no Wyoming,

então daremos um jeito de mandá-la de volta a Nova York. Está bem assim? - Melhor do que nada. E aí eu voltaria para a Dover School?

- Não disse isso. Teríamos de pensar nesse detalhe com bastante cuidado. Mais você tem de me prometer que vai tentar de verdade dar uma chance ao Wyoming: adaptarmo-nos a um novo estilo de vida vai ser um desafio para

todos. Vamos ter de colaborar uns com os outros. Certo, Lua? Dei um grunhido que poderia ser interpretado como um sim, e ele saíram do

meu quarto. Mas uma nova luz de esperança começara a brilhar em minha mente. Se eu conseguisse sobreviver ao resto ano letivo...

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Capítulo quatro: Sem TV, cinema ou pizza

- Esta via ser a cidadezinha mais próxima a nós – disse papai quando entramos em Cody um vilarejo de sete mil habitantes. Parecia o próprio Velho Oeste sem tirar nem pôr, como se Butch Cassidy e

Sundance Kid fossem aparecer cavalgando pela rua principal a qualquer momento. Havia no máximo uns dois restaurantes e uns três motéis.

Estávamos na estrada havia uns quatro dias e não tínhamos visto nada além de campo aberto e muitas vacas, e já estávamos todos ficando cansados. Tinha acabado de começar a chover. Todo mundo queria dar uma parada,

exceto papai, ansioso para chegar logo ao sítio. Ele não me deixou parar nem sequer para ver se havia um cinema ou um barzinho na cidade, apesar de eu

suspeitar que não houvesse nenhum. Ana estava ficando cada vez mais lamurienta. Ela havia visto uma placa que dizia “Bem-vindo a Cody, o portão de entrada do Parque Nacional de

Yellowstone”, e estava com medo, achando que ia ter de viver entre gêiseres e que poderia ser morta pelos vapores ferventes. Daniel começou a recitar

estatísticas a respeito do número de ataques de ursos-pardos a seres humanos que tinha ocorrido recentemente em Yellowstone. Até minha mãe ficou olhando apreensiva e longamente para trás quando caíamos da cidadezinha.

- Acho que é mesmo melhor nós tentarmos chegar à casa do vovô antes de escurecer – disse ela.

- As montanhas já estão bem na nossa frente agora – observou papai, animado. - Não estamos vendo nada – murmurou Daniel.

- Isso é porque as nuvens estão baixas hoje. Num dia claro podem-se ver daqui os picos nevados. É uma vista linda – disse papai.

Ninguém acreditou nele. O mundo inteiro parecia plano e cinza. Estivera tentando lembrar-se da minha última viagem à casa do vovô e não me lembrei da região ser plana e aberta. Na verdade, lembrei-me de um monte de árvores

enormes que faziam barulhos assustadores quando o vento soprava e de um rio de correnteza rápida em que eu tinha caído certa vez, por estar tentando

seguir o menino que vivia um pouco mais abaixo na estrada, um calafrio ao me lembrar do pânico que me produzira àquela coisa fria e deslizante presa dentro da minha camiseta. Se aquilo era o que os garotos da região faziam para se

divertir, então seria melhor eu tratar de vestir roupas de gola alta e apertada durante todo o tempo em que estivemos no Wyoming.

Abandonamos o que era ridiculamente chamado de “estrada principal” e entramos numa ainda menor. A estradinha começou a subir. Logo as árvores apareceram e depois um riacho. As curvas ascendentes das montanhas se

mostraram com clareza, cobertas por um negro manto de pinheiros e por vacas e cavalos que estavam pastando nas encostas. - Preste atenção para não passar da estrada dessa vez, Billy – mamãe disse a

papai. - Eu morei aqui por dezoito anos, Maria – papai retrucou.

- Eu sei, mas da última vez você passou da entrada, lembra? Fomos parar quase no topo de uma montanha.

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- É logo depois da cerca de madeira – afirmou papai. – Logo depois do posto

de gasolina. Uma placa ao lado da estrada dizia “Indian Falls, população: 625.”

- Onde fica essa cidade? – perguntou Daniel, desconfiado. Estava me perguntando a mesma coisa. Através da chuva eu podia ver algumas casas rodeadas de árvores, mais alguns cavalos, uma igrejinha

branca, um armazém, uma loja de ferragem e ferramentas com um anúncio de equipamentos de pesca, um posto de gasolina com dois ou três carros parados

em frente e um bonito sobrado com uma cerca de madeira. - Indian Falls é isso ai? – perguntei. - É isso ai. Há várias comunidades desse tipo ao longo dessa estrada, e acho

que há alguns ranchos comunitários também – explicou papai. - Ya-hu! – disse eu sarcástica, já experimentando o meu novo vocabulário. –

Que fascinante! Não vejo a hora de conhecer melhor a região e seus habitantes! Saímos da estradinha de asfalto e começamos a andar no meio de um estreito

vale. A estrada agora era de terra. Já chovia realmente forte, com o vento batendo contra o para-brisa e dificultando muito a visibilidade.

- Estou com frio. Quero ir para casa – gemeu Ana. - Não se preocupe meu bem, já estamos quase lá – disse papai com suavidade. – Aposto como o vovô vai estar com um grande fogo aceso na

lareira e um delicioso jantar quentinho esperando por nós. As árvores se sacudiam loucamente ao longo da estrada, e papai teve de

acender os faróis de neblina. Então, de repente, ele disse: - Cá estamos em casa por fim. Fomos subindo aos trancos e barrancos por um caminho sulcado por pneus de

carros, no meio de árvores escuras e bamboleantes. No meio daquela escuridão mal conseguíamos divisar as formas de uma torta casa de fazenda.

Uma luz fraca brilhava nas janelas do andar de baixo. A casa era bastante grande, e parecia o lugar mais solitário do mundo. O vento uivava quando estacionamos o carro e descemos quase nos levando pelos ares enquanto

subíamos os degraus da varanda. A grande lareira acesa e o jantar quente de fato soavam como uma ótima ideia naquele momento.

A porta da frente se abriu e um facho de luz se precipitou para fora. Um homem alto e musculoso, com o rosto escondido por um chapéu de cowboy, surgiu no umbral e ficou parado, me olhando enquanto eu era varrida ao longo da

varanda por uma forte rajada de vento. - Upa! – gritei enquanto lutava para segurar minha bolsa e meu porta CD.

Quando recuperei o equilíbrio me agarrando a uma das colunas da varanda, reparei que ele não estava usando um gesso na perna. Ele estava andando! Tinha sido tudo um mal-entendido, e poderíamos voltar imediatamente para

casa! - Vovô! – gritei. – Você está andando! Isso é um milagre!

Pude ver uns dentes brancos brilhantes debaixo daquele chapéu. - Sinto muito desapontá-la, mais isso não é um milagre e eu não sou o seu avô, apesar de dizerem que pareço bastante maduro para minha idade – respondeu

uma voz de rapaz. Dei mais uns passos na direção dele. Quando as luzes do carro não estavam

mais me ofuscando, pude ver que se tratava de um jovem cowboy, alto, e com um olhar amigável. Ele ergueu o chapéu para mim e o recolocou na cabeça

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com um só gesto.

- Sou vizinho do Sr. Blanco. Meu pai pediu para eu vir aqui e dar uma olhada se ele não estaria precisando de mantimentos, estava planejando ficar mais um

pouco para ver se precisava de ajuda em alguma outra coisa; mas, já que a família veio para tomar conta dele, acho que já vou indo para casa. Tenho certeza de que vocês não querem nenhum estranho zanzando por aqui. Bom,

meu nome é Arthur. E você é...? - Lua – respondi, tentando fazer meus dentes pararem de bater por causa do

frio e da chuva. - Lua! – repetiu, com uma expressão subitamente iluminada. – Agora me lembro! Nossa você sem dúvida cresceu bastante desde a última vez em que a

vi. Lua... Isso mesmo. Sabia que a conhecia de algum lugar. Estava tentando desesperadamente me lembrar de onde o tinha visto antes

quando, de repente, uma imagem do passado brotou na minha cabeça: um garotinho miúdo pulando com facilidade de pedra em pedra e gritando para mim: “Não é difícil! É só me seguir! Não tenha medo!” E depois nós dois

sentados na grama alta, ele se aproximando de mim, e... - Ei, você é aquele garoto que colocou um sapo nas minhas costas! – exclamei.

Um sorriso se espalhou pelo rosto dele. - Depois de tanto tempo ainda se lembra! – disse ele, balançando a cabeça e sorrindo. – Querida, a sua reação foi algo chocante. Parecia até que eu tinha

tentado te matar pelo jeito que saiu correndo na direção da sua mãe. Pensei que ficaria tão encrencado que não iria conseguir nem me sentar por uma

semana. - E ficou? – perguntei. Havia alguma coisa de cativante no sorriso franco e simpático dele, algo que

me fazia continuar conversando mesmo com o vento e a chuva rodopiando à nossa volta.

- Bah, que nada. Só umas cintadas do meu pai – respondeu ele. - Lua, venha dar uma mão a sua mãe com estas malas! – gritou meu pai. - Vocês precisam de ajuda? – perguntou Arthur.

- Não tudo bem. Dá para a gente se virar – respondi. Por alguma razão me pareceu importante que ele não achasse que uma família

de burguesinhos da cidade estava chegando. - Bom, eu vou para casa então – disse ele. – O seu avô com certeza vai ficar contente de ter vocês todos por aqui. A gente se vê por ai, Lua.

E, dizendo isso, ele saltou por cima do parapeito da varanda, desaparecendo na escuridão da noite.

- Ora, ora, não fique aí parada deixando todo o ar frio entrar aqui! Entre de uma vez! – explodiu uma grande e sonora voz. Era meu avô, parado no arco da porta com muletas debaixo dos braços. Uma

das pernas dele estava engessada, mas mesmo assim se parecia bastante com o que eu me lembrava: alto, largo, uma densa cabeleira branca e um

cabelo grisalho. Uma figura realmente imponente e assustadora. - Que noite para chegar! – exclamou ele. – Faz uns dois meses que não chove. Todo mundo tem reclamado do calor e da seca, e agora vocês trazem isso.

Acho que a gente deveria contratá-los como fazedores de chuva! Papai escalou os degraus na direção dele.

- Como você está pai?

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- Não tão mal, não tão mal – respondeu vovô. – Esta droga de perna dói um

pouco, mas de resto não posso reclamar. Reparei que não se abraçaram.

- Entrem, entrem – disse vovô. Nós todos seguimos meu pai e meu avô pelo corredor de entrada. - Você se lembra da Maria Cláudia... – disse meu pai, como se estivesse

apresentando minha mãe a um estranho. Mamãe sorriu timidamente.

- E das crianças – continuou papai. – Lua, Daniel e Ana. Digam “oi” para o vovô. - Meu Deus do céu, não me diga que esses são os seus filhos! – vociferou

vovô. – A última vez que nos vimos mal passavam do chão! Você os tem alimentado demais, Maria Cláudia.

Ana tinha se aproximado dele. - Só ficamos mais velhos, bobinho – disse ela, enquanto vovô a acariciava nos cabelos.

Daniel e eu ficamos quietos, pouco ansiosos por travar novas amizades. - Oi, vovô – murmuramos ao mesmo tempo.

- Daniel, venha cá – ele pediu. – Deixe-me sentir os seus músculos para ver se vai ser de alguma utilidade para mim laçando novilhos nesta temporada. Daniel me lançou um olhar aterrorizado, mas foi até o nosso avô e teve seus

braços inspecionados por ele. - Nossa... Você chama isso de braços? – disse vovô, balançando a cabeça. –

Isso são palitos de fósforo. Não dá para laçar nem um coelhinho. Vamos ter de colocar você para trabalhar logo, para criar musculatura. O olhar de vovô passou então para mim.

- E esta é a Lua – supôs. – Já se tornou uma mocinha, pelo que estou vendo. Você ainda tem medo da própria sombra?

- Nunca tive medo da minha sombra – respondi com frieza. Vovô riu. - Mas tinha de quase tudo – afirmou ele. – Aranhas, trovões, gado, sapos...

- Só nas minhas costas – emendei rapidamente. Pude ver um brilho divertido nos olhos dele.

- Você cruzou com o jovem Arthur Aguiar ai fora antes de ele ir embora, não é? Ele tem tomado conta do meu gado. Com essa perna ruim não tenho como fazer isso sozinho. Ele esteve se preparando para receber você, Lua. Andou

coletando sapos a semana toda. - Nesse caso – repliquei, jogando meus cabelos para trás -, é melhor você

espalhar por aí que, se algum cabeça-de-vento da região tentar se aproximar de mim com um sapo, vai se arrepender amargamente. Pratique caratê e não tenho o menor remorso de exercitar tudo o que aprendi.

Aquilo fez vovô rugir de prazer. - Mais que vespinha você se tornou! – riu. – Gosto disso.

Então olhou para nós todos parados e desamparados lá no meio do gelado hall de entrada. - Bom, não fiquem aí parados como estátuas, vamos entrando. Desculpem-me

por não haver aquecimento – disse ele quando já entrávamos na sala. – Não receberei óleo diesel para o aquecimento central antes do começo de

novembro, e do jeito que estou não tenho como ir lá fora para cortar lenha.

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- Tudo bem – disse mamãe -, nós vamos nos sentir bem depois de uma

refeição quente. - Deem uma olhada na cozinha e vejam o que conseguem encontrar – disse

vovô. – Não tive condições de sair desde que me trouxeram do hospital. Receio que haja poucos mantimentos. A cozinha era uma graça, com todos os detalhes típicos de uma casa de

campo. Havia uma grande mesa de centro, cortinas feitas à mão e muitas plantas. Estava equipada com tudo o que é preciso haver numa cozinha.

Exceto, é claro, a comida. A dispensa se encontrava quase vazia. E a geladeira também. - Já sei, vamos pedir uma pizza – disse Ana, animada.

- Mas parar de comer comida ponta e passar a comer comida caseira não era um dos principais motivos de nos mudarmos para cá? – observei.

- Bom, mais como vamos comer comida caseira se não há o que cozinhar? – perguntou papai. – Simplesmente vamos ter de abrir uma exceção e comer comida pronta mais uma noite. Vou pegar a lista telefônica.

Vovô começou a rir de novo. - Mais onde você acha que vai pedir uma pizza, hein? Isso aqui não é Nova

York, sabe? Nem precisava ter se dado ao trabalho de nos lembrar disso. Em Nova York não havia casas frias e úmidas a quilômetros de distância da civilização.

- Então vou sair para comprar uma pizza para nós – disse papai. – deve haver algum lugar que venda comida para viagem. Até uma pizza congelada no

mercadinho serviria. - Eles fecham as cinco – informou vovô. - Bom, mas precisamos comer algo – replicou papai, com o seu bom humor

desvanecendo rapidamente. – Essas crianças ficaram o dia todo sentadas no carro. Vou rodar por ai até encontrar alguma coisa.

Nós descarregamos o resto das coisas do carro sob a chuva e observamos papai tornar a descer a estrada. - Tome cuidado, amor – gritou mamãe quando ele já saía, com certeza sem ser

ouvida por causa do barulho infernal que fazia o vento. - Imagino que queira arrumar as camas e os quartos lá em cima – disse vovô. –

Estive dormindo aqui embaixo no sofá, por causa da perna, e por isso deixo tudo em suas mãos, Maria. Vai encontrar lençóis limpos no grande armário do corredor.

- Vou ajudar você, mamãe – me dispus. - Eu também – bradaram Daniel e Ana ao mesmo tempo, não querendo ficar

sozinhos com vovô no andar de baixo. Encontramos várias pilhas limpas e bem-arrumadas de lençóis e fizemos as camas juntos enquanto a chuva batia nas janelas e o vento uivava por entre os

batentes. E papai não voltava. Tornamos a descer, e Daniel começou a citar todas as possíveis causas de acidente no Wyoming.

- Talvez uma árvore tenha sido derrubada por um raio e caído em cima do carro do papai. Talvez uma vaca tenha pulado uma cerca e aterrissado em cima do papai. Talvez tenha havido uma enchente relâmpago.

- Cala a boca! – gritamos todos ao mesmo tempo, fazendo-o parar por um tempo.

- Garotos esquisitos o seu, Maria – comentou vovô.

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- Estão cansados e famintos, é só isso – replicou mamãe. – Onde será que

está o Billy? - Poderíamos assistir a um pouco de TV – disse Daniel. – Jeopardy deve estar

passando agora. Daniel se levantou de um salto, mas vovô fez um gesto com o braço para ele voltar a se sentar.

- A TV não está funcionando – revelou vovô. - A TV não está funcionando? – perguntou Daniel, como se vovô tivesse dito

que nunca tomava banho. - Não ter TV vai ser bom para todos nós – ponderou mamãe. – Nunca tivemos tempo para conversar ou ler, e sempre quis ter tempo para essas e outras

coisas. Imagine só uma colcha feita em casa estendida na minha cama e saber que eu mesma teci cada ponto!

- Minha esposa fez a colcha que está na cama do antigo quarto de Billy – disse vovô. – Ela ficava sentada naquele canto costurando durante as noites quando ele era pequeno.

Olhei de um rosto para o outro. Estava acontecendo de verdade: minha família já começara a se “ruralizar”. E pelo bem deles eu tinha de aparentar que estava

achando tudo normal! - Como vamos poder alugar fitas de vídeo se não há TV? – perguntei. – Aposto que não há nenhum cinema mais perto do que em Cody.

- Nem videoclube – disse vovô, rindo por entre os dentes. – Nem sei dizer se em Cody eles permanecem abertos durante o inverno. A maioria dos

estabelecimentos por aqui fecha as portas quando termina a temporada turística. Fica tudo tranquilíssimo no outono e no inverno. - O que os garotos fazem para se divertir, então? Aonde eles vão? – insisti.

- Acho que inventam as suas próprias formas de se divertirem – explicou vovô. – Gostam de pescar e têm seus cavalos para fazer coisas como torneios de

laço ao novilho. A maior parte deles tem de acordar ao amanhecer para cumprir as tarefas no sítio e, portanto, não podem ficar acordados até tarde da noite como os garotos da cidade.

Olhei para ele boquiaberta de horror. Mamãe olhou para o seu relógio.

- Já são nove e meia – disse ela com uma voz preocupada. – Vocês acham que deveríamos ligar para o xerife? Talvez papai tenha se perdido. Justo nesse momento a porta de entrada se escancarou dramaticamente,

deixando entrar um redemoinho de folhas mortas e um vento frio e úmido. Papai ficou lá parado, ensopado pela chuva, com uma caixa na mão e um olhar

selvagem. - Não há uma única pizza daqui até Chicago! – vociferou ele. - Tentei te avisar, filho. Eu estava justamente explicando a sua adorável esposa

que a maioria dos estabelecimentos comerciais fecha as portas depois da temporada turística.

- Estávamos ficando preocupados com você – disse mamãe, se levantando para pegar a caixa que ele trazia e ajudá-lo a tirar o casaco molhado. – Pensamos que você tivesse se perdido.

- Pensei que você tivesse sido atingido por uma árvore, ou que uma vaca tivesse pulado em cima de você – acrescentou Daniel.

- Quase – revelou papai. – A situação está preta lá fora, principalmente na estrada principal. Quase fui arrastado por essa ventania.

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- Então você trouxe uma pizza para a gente, papai? – perguntou Ana. –

Encontrou um pouquinho em Chicago? - Não, meu amor, não encontrei nenhuma pizza. Na verdade tive sorte de

encontrar algo. Havia um lugar em Cody que ainda estava aberto, e eles me deram uma caixa de costeleta e um pote de biscoitos. Ele abriu a caixa e um cheiro quente e gostoso encheu a sala. Sophia tinha me

convencido havia pouco tempo de que comer carne era tão errado moralmente quanto maléfico para a saúde. Hesitei dividida entre os meus novos princípios e

o desejo de não passar fome. O cheiro estava me enlouquecendo. O resto de minha família já havia se lançado ao ataque e estavam todos devorando as costeletas como uma tribo da Idade da Pedra. Se eu não agisse rápido, não

sobraria nada. Minha fome venceu: peguei um prato e o enchi de costeletas até o topo. Elas estavam macias e suculentas, cheirando a lenha, e com tempero

no ponto certo. Fiquei impressionada. Depois de comermos, Daniel e Ana não precisaram de que lhes dissessem nem uma palavra para irem para a cama. Afinal de contas, já era mais de meia-

noite em Nova York, e no Wyoming estávamos em outro fuso horário: o da zona das Montanhas. Meus pais e meu avô foram para a cama também. Eu me

sentei na cama do antigo quarto de meu pai, prestando atenção nos assustadores ruídos da noite e me sentindo com muito frio e muito sozinha. Silenciosamente, abri de leve a porta do quarto, de forma que a luz da sala

penetrasse um pouco e tirei papel e caneta da minha mala.

Querido Chay – comecei a escrever -, bem, já estamos aqui, e tudo é mesmo tão ruim quanto imaginei que fosse ser. Não, na verdade é pior. Não posso imaginar um lugar mais deprimente em todo o planeta. Um gelo, sem televisão,

um avô rabugento, e estamos tão no cafundó-do-judas quanto alguém poderia estar nesse mundo. O único vizinho é o garoto que uma vez colocou um sapo

nas minhas costas. Não se surpreenda se você me vir batendo à sua porta dentro de uma semana...

Parei de escrever porque minha mão estava congelando e eu não conseguia mais continuar. Deslizei para debaixo das cobertas e puxei a colcha feita à mão

por cima da minha cabeça. A chuva martelava na janela e o vento assobiava. “Eu não vou aguentar isto. Eu não vou aguentar isto”, sussurrei uma e outra vez para mim mesma.

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Capítulo cinco: Um Cowboy de verdade

Acordei com o brilho da luz do sol, que pintava uma listra amarela na parede do meu quarto. A parede era forrada com um papel cor-de-rosa de desenho floral, que resplandecia com a luz solar. O ar estava decididamente frio e seco, e

debaixo da colcha tão quentinho e aconchegante, que eu não sentia o menor desejo de me mexer. Virei à cabeça, observando os detalhes do quarto. Havia

um armário no canto, uma velha e surrada arca, e uma bela escrivaninha com agarradores de metal e tampa do tipo esteira contra a parede. Um tapete tecido à mão estendia-se no chão, e a janela era coberta por uma graciosa cortina de

laços. Era tudo tão campestre, e tentei imaginar o meu sofisticado pai advogado vivendo naquele quarto. Com certeza não havia sobrado nenhum

traço da personalidade adolescente dele naquele ambiente: nenhuma bandeirola de times de beisebol nas paredes, nenhum pôster de mulheres ou cachorros, nada enfim que pudesse revelar o tipo de pessoa que ele devia ter

sido.

Ainda agarrada à colcha, me sentei apenas o suficiente para poder enxergar o que havia do outro lado da janela, e tive de suspirar com o que vi. O céu estava profundamente azul, límpido, e as árvores atrás da casa era uma espetacular

mistura de vermelho e dourado. Por trás delas uma série de pradarias se enfileirava até chegar num rio margeado por árvores, e por trás do rio as

montanhas se elevavam até os picos já brancos de neve. Eu me perguntei se teria nevado lá em cima durante a noite. A neve parecia fresca, tão branca e brilhante a luz do sol que quase doía olhar para ela. E, enquanto eu admirava

tudo isso, um cavaleiro solitário apareceu a galope através dos prados. A crina do cavalo tremulava ao vento, e o cowboy parecia bastante à vontade em cima

da sela. Era quase como se eles fossem uma só criatura. Quando se aproximaram mais, reconheci o cavaleiro: Arthur Aguiar, o rapaz que andara caçando sapos para me dar as boas-vindas. Desviei o olhar da janela,

subitamente desinteressada pela vista. Senti um aroma de café e estiquei o braço para pegar o meu roupão.

Vovô estava acordado, mancando para lá e para cá na cozinha. - O café está pronto – disse ele assim que me viu, apontando para o bule em cima do fogão.

- Obrigada, mas eu não tomo café de manhã. - Não toma? – perguntou ele, parecendo aterrorizado.

- Bem, gosto de tomar um cappuccino ou um moncha na cafeteria com os meus amigos em outras horas do dia. Mas no café da manhã eu não gosto. Ele me olhou como se eu estivesse falando uma língua estrangeira e balançou

a cabeça. - Cresci tomando uma bela caneca de café forte para começar o dia e não acho que isso tenha me feito mal algum – disse ele. – Então o que você toma

normalmente? Chá? - Suco de laranja fresco. A gente tem um espremedor em casa.

- Bom, pois hoje vai ser café ou nada – retrucou-o. – Acho que vai ter de aprender a mudar os seus hábitos extravagantes se for morar aqui.

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- Não pretendo ficar aqui mais do que o estritamente necessário – repliquei.

- Oh... - Para começar, eu nem queria vir para cá – declarei. – E continuou não

querendo ficar aqui. Estou contando os dias até eles me deixarem voltar para Nova York... Ele sorriu.

- E o que te dá tanta certeza de que vai querer voltar correndo para aquela ratoeira?

Olhei de esguelha. - E o que há aqui para mim? Vou morrer de tédio – respondi. Ele sorriu como se soubesse de algum segredo, e naquele momento decidi que

o odiava. Eu já o detestara quando era pequena e ele caçoara de mim por ter medo das coisas. Ele não tinha evoluído nada. Não me surpreendia nem um

pouco que papai tivesse ido embora assim que pudera. A única coisa que eu não conseguia entender era por que raios ele tinha querido voltar! O grande relógio da sala bateu às sete horas.

- Sete horas! – exclamei. – Estou em pé as sete, e nem sequer é dia de aula! - Já é tarde para estas bandas, acordo às cinco, como a maioria das pessoas

por aqui. As tarefas do sítio têm de ser feitas cedo. Naquele momento o resto da família chegou à cozinha em grupo, todos vestido com jeans e suéteres.

- Estou congelando aqui embaixo – disse mamãe. – Estava tão quentinho na cama, debaixo da colcha!

- A minha cama estava quente como um forno – disse Ana. - Se vocês querem mais quente aqui embaixo, alguém vai ter de ir lá fora cortar lenha – comentou vovô.

- Esse é um trabalho para os homens – afirmou papai. – Vamos lá Daniel, venha comigo.

Eles colocaram seus casacos, e logo os sons de machado batendo na madeira infiltraram pela janela. Do machado e de inúmeras exclamações impublicáveis de meu pai e de risadas histéricas de Daniel. Eu estava louca para ir lá fora

assistir a tudo, mas fiquei com receio de que meu pai se distraísse e arrancasse um dedo do próprio pé com uma machadada. Então nós

esperamos. Mamãe cozinhou um mingau de aveia e farelo de trigo, e vovô fez algumas torradas, e eu até bebi um copo de café para me aquecer. A porta se abriu e “os homens” entraram papai com uma braçada de toras e

Daniel com alguns gravetos. Vovô começou a rir.

- Em todo esse tempo só conseguiram cortar esse pauzinhos? - Perdi a prática – disse papai tranquilamente. – Faz vinte anos que não faço isso, lembra? Nós não temos de cortar muita lenha em Nova York. Mas no

finalzinho eu já estava retornando a velha forma. - Acho que vocês se saíram maravilhosamente – elogiou mamãe. – Os dois.

- Ensine o menino a rachar lenha, Billy – recomendou vovô. – Vai ajudar a fortalecer esses bracinhos de mosquito. - Vou fazer isso todo dia – disse Daniel, orgulhoso. – Assim, quando nós

voltamos à Nova York, vou poder dar uma surra em todos aqueles garotos que roubaram o meu dinheiro do lanche.

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- Todos nós precisamos fortalecer os músculos se quisermos ser de alguma

utilidade aqui – observou papai. – Eu, por exemplo, não tenho forca suficiente nem para laçar um novilho.

- Eu também tenho de fortalecer os meus músculos se quiser plantar uma horta – concluiu mamãe. Olhei para um e para outro, atônita. Eles estavam realmente desejando pôr à

mão na massa. Eles estavam realmente entusiasmados! - Acho que vou lá para cima terminar a minha carta para o Chay – acabei

falando. Mas, quando cheguei ao quarto, achei difícil escrever. Sentei-me na velha escrivaninha de papai, olhando para as montanhas pela janela, e tentei pensar

em alguma coisa boa quanto a estar no Wyoming. Eu me perguntei como era possível que o resto da minha família estivesse tão interessado naquele tipo

primitivo de vida. “Talvez haja neste exato momento uma família civilizada e normal em algum ponto de Nova York com uma filha que andar por ai dizendo ya-hu.”

Subitamente senti uma necessidade urgente de sair de casa. Coloquei minha malha mais quente, calças, botas, e me dirigi para o andar de baixo.

- Estamos todos indo fazer compras em Cody, Lua – disse Ana. – Você quer vir? A ideia de fazer compras numa cidadezinha nula como Cody me deprimiu

ainda mais. - Não, obrigada – respondi. – Vou dar uma caminhada.

Peguei a estrada na direção oposta àquela para a qual nós tínhamos chegado no dia anterior e me dirigi para o alto do vale. Havia campos verde-dourados de ambos os lados da estrada, que logo se encontravam com o rio. Eu podia ouvi-

lo borbulhando atrás de mim. A chuva forte do dia anterior devia tê-lo enchido, porque agora ele lambia o topo das bordas. Era o lugar mais solitário que eu

tinha visto em minha vida. Não havia casas, nem pessoas, nem carros, nem sons além dos suspiros do vento e os gritos dos pássaros. Nada. Eu nunca estivera tão sozinha.

Já devia ter andado quase dois quilômetros quando escutei um som atrás de mim. Em meio ao barulho da correnteza pude ouvir o farfalhar do mato alto se

movendo e em seguida uma bufada que quase me fez desmaiar de susto. Virei-me rapidamente, bem a tempo de ver um enorme animal a apenas alguns metros de mim, com o corpo ainda semioculto pelo capim alto. Ele tinha chifres

enormes e pontudos, e continuava a bufar para mim de uma maneira muito pouco amigável. Eu não sabia muito a respeito de fazendas e vida campestres,

mas já vira alguns filmes de touradas. Sabia muito bem o que os touros fazem quando não gostam de você. Justo quando estava pensando nisso, o animal abaixou a cabeça, emitiu um som longo, grunhiu e começou a vir na minha

direção. Não esperei mais nem um segundo. Comecei a correr o mais rápido que pude

pela estrada. - Socorro! Socorro! – gritei. Nem sei quem esperava que pudesse me ouvir naquele lugar selvagem e

solitário. Nem sei o que pretendia fazer. Só sei que queria encontrar um lugar seguro antes que os chifres do touro me alcançassem. Mas não havia nenhum

lugar seguro. Uma cerca de arame farpado corria pelos dois lados da estrada. Comecei a procurar com o olhar por uma porteira que eu pudesse saltar

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rapidamente – e essa seria uma vez em que todos os meus esforços para

aprender ginástica olímpica teriam sido muito compensadores –, mas nenhuma porteira apareceu. Podia ouvir claramente as pesadas batidas das patas do

touro na terra lamacenta atrás de mim se aproximando cada vez mais. Ele soltava uns estranhos gemidos enquanto corria, e eu já estava esperando sentir a qualquer momento os chifres da fera penetrar na minha carne como

uma lâmina de aço. Uma imagem de meus pais encontrando meu corpo pisoteado e mutilado

passou pela minha mente. “Se nós não a tivéssemos trazido para cá...”, diriam eles. “Se pelo menos nós a tivéssemos deixado na segurança de Nova York...”. Mas não tinha mais tempo nem energia para pensar nisso, porque o touro me

alcançara. Já podia sentir o ar quente dele no meu pescoço, e eu mesma não tinha mais

ar nem sequer para gritar por socorro. Então, de repente, ocorreu o milagre. Escutei o som do galope de um cavalo se aproximando rapidamente.

- Socorro! Aqui! – consegui gritar. Tropecei e olhei para cima, sentindo um enorme alivio ao ver que era Arthur.

- Ajude-me! – suspirei quase sem voz. – Touro louco... Ali... Quase me chifrando. Instantaneamente Arthur ficou em alerta.

- O touro está solto? Onde? – perguntou ele, alarmado. - Bem atrás de mim! – gaguejei.

Arthur devia ser idiota ou cego. Eu ainda podia sentir o bafo do touro no meu pescoço! - Bem atrás de você? – disse ele, começando a rir. – Você quer dizer isto aqui?

Ele fez seu cavalo andar a passo até o lado do escuro monstro e deu um amigável tapinha nas costas da fera.

- Esta aqui é a velha Manteiga – revelou-o. - A velha Manteiga? - Com certeza. Não machucaria nem uma mosca. Meu pai deveria ter abatido a

Manteiga há alguns anos, mas ele a criou desde pequenininha e ficou apegado. Diz que ela lhe deu bons novilhos e um ótimo leite, e que agora é

como um bicho de estimação. Fica solta perambulando por ai, até encontrar alguém que faça um carinho nela. Às vezes pode chegar a ser maçante. Já me seguiu até a escola uma vez.

Ele moveu seu cavalo ao longo do corpo de Manteiga. - Vamos lá, garota! Para casa! – ordenou, dando-lhe um ressoante tapa na

anca, o que a fez trotar de volta pelo caminho por aonde viera me seguindo. Enquanto isso acontecia, tive tempo de olhar e ver o que não tinha visto antes: por trás da “feroz” cabeça havia um gordo e flácido corpo de vaca. Fiquei sem

saber o que dizer de tanta vergonha. - Há somente um touro com que você tem de se preocupar por aqui –

continuou Arthur. – É o velho Barnaby, que fica no pasto perto do rio. - É um erro fácil de cometer – disse eu, desafiadora. – Só tinha visto a cabeça dela. O resto do corpo estava oculto no meio do capim. Como eu poderia

saber? Arthur me olhou com um ar gozador.

- Um erro fácil para uma garota da cidade – replicou ele.

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Agora, na brilhante luz do sol, eu podia vê-lo com clareza pela primeira vez.

Cabelos castanhos escapando por debaixo do chapéu de cowboy, uma pele morena e uns chamativos e cintilantes olhos castanhos. Tive de admitir que ele

tinha crescido bastante com relação ao menino mirrado que ficava na minha memória. Arthur era decididamente forte. Apesar do frio, vestia somente uma camiseta de maga comprida e jeans, e a camiseta aderia-se aos músculos dele

como se fosse uma segunda pele. - É melhor eu voltar – murmurei, por não saber o que mais dizer e por querer

escapar o quanto antes daquele sorriso zombeteiro. - Acho que a gente vai se ver bastante – disse Arthur – já que vamos pegar o mesmo ônibus para a escola todas as manhãs. Talvez isso dê a chance de

ensinar a você a diferença entre um touro e uma vaca! - Obrigada, mas não tenho a mínima intenção de me sentar perto de você no

ônibus – disparei. – Ainda tenho certa aversão a sapos. O sorriso dele cresceu ainda mais. - Ah, desisti de sapos há alguns anos – disse ele. – É coisa de criança.

- Fico feliz em saber. - Agora prefiro as cascavéis.

- Puxa, vocês garotos do campo são tão divertidos – repliquei. – Não sei como vou fazer para aguentar o agito daqui. Ele não capturou o meu sarcasmo.

- É, acho que devemos mesmo ser mais interessantes do que aqueles almofadinhas da cidade. Eles já nascem de paletó?

Eu estava ficando mais irritada a cada segundo. “Espere só até esse caipira deste fim de mundo sentir o gostinho amargo de um bom insulto nova-iorquino, do velho e bom sarcasmo nova-iorquino”, pensei. “Aí ele vai saber o que é bom

para a tosse.” Infelizmente eu ainda estava cansada da viagem do dia anterior e minha mente

devia estar um pouco atordoada por causa do encontro com o touro, desculpe vaca. Não consegui me lembrar de nada muito espirituoso. - Com licença, seu cavalo está bloqueando a minha passagem – disse eu com

frieza glacial. – Meus pais já devem ter voltado das compras. Ele girou seu cavalo para o lado e voltou em trote fácil pela trilha por aonde viera, ao mesmo

tempo que eu caminhava para casa com o máximo de dignidade que consegui reunir.

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Capítulo seis: Eu não sou daqui

“Não é justo”, pensei enquanto caminhava. Havia ficado meio cega pelo pânico, por ter pensado que estava sendo caçada por um touro furioso, e lá ficava ele sentado em seu cavalo, me olhando de cima e rindo. Eu não estava habituada

a ser olhada de cima ou gozada, e muito menos por um cowboy caipira!

“Espere só até eu me recuperar. Ele vai se arrepender”, prometi a mim mesma, pensando em todas as espirituosas e desmoralizantes palavras ofensivas que poderia usar contra Arthur.

Quando ia me aproximando de casa, pude ver que minha família tinha acabado de chegar e estavam todos descarregando sacos de mantimentos do carro.

- Como foi a sua caminhada, amor? – perguntou mamãe. – Viu algo interessante? - Não muito. Um monte de vacas – respondi, tentando parecer neutra.

- Vacas? Você me leva para vê-las? – pediu Ana. – A gente não pode visitá-las?

- Depois do almoço – grunhiu papai, carregando uns pesados sacos de compras. – Dê uma mão, Lua. - Vocês compraram o suficiente para alimentar um batalhão – comentei,

pegando uma das sacolas. - Bom, o armário da cozinha estava completamente vazio – disse mamãe. – e é

uma bela viagem daqui até o armazém. Eu não queria me esquecer de nada. Vovô ficou lá em pé comandando a nós todos como se fosse um general, enquanto passávamos com sacos e caixas cheias de provisões.

O almoço foi sem dúvida bem melhor do que tinha sido o café da manhã. Mamãe tinha comprado montes de frios, ingredientes para fazer uma bela

salada, e pão fresco. - Vou ter de aprender a fazer o meu próprio pão – observou ela. – A padaria mais próxima fica a quase quarenta quilômetros daqui. Não podemos rodar

tudo isso cada vez que precisarmos de pão. - Você poderia pegar pão quando for nos levar à escola. Assim não precisaria

fazer pão em casa – sugeri. - Mas eu quero fazer pão – retrucou-a. – Além de quê, que história é essa de levar vocês para a escola? Tem um ônibus que recolhe todos os alunos por

aqui. - Mãe, não quero ir num ônibus com um monte de caipiras. Vão colocar sapos

nas minhas costas de novo ou coisas ainda piores. - Você vai ter de aprender a lidar com isso, Lua – disse mamãe. – Vamos viver com simplicidade de agora em diante. Só vamos usar o carro quando não

houver outra saída. Eu estremeci. Provavelmente eles iam acabar trocando o carro por um cavalo ou uma charrete, ou por um par de mulas. A vida tal qual eu a conhecia estava

se evaporando rapidamente. - A gente pode dar um passeio para ver as vacas agora: - perguntou Ana assim

que o almoço terminou. - Está bem – respondi, tentando soar mais animada do que realmente estava.

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Andamos pelo mesmo caminho que eu tinha feito pela manhã. Já era tarde

avançada, e o sol parecia uma bola vermelha pendurada por cima das montanhas do oeste. Os picos nevados brilhavam com os reflexos rosados do

crepúsculo. - É bonito aqui. Eu gosto – disse Ana. – Você gosta também? - É bonito – respondi -, mas sinto falta dos meus amigos. Não vou conseguir ter

amigos aqui. Vou odiar este lugar. - Vou ter amigos – afirmou Ana, se afastando de mim aos pulinhos e cantando.

– Vou ter uma vaca. Vou ter um cachorrinho. Vou ter um gato. Reparei que um pássaro enorme, talvez uma águia, estava voando em círculos lá no alto. Parei para admirar são maneiros, preguiçosa e suave de deslizar

pelo ar sem sequer mexer as asas. Eu adoraria ser capaz de voar daquele jeito, só aproveitando as correntes e planando. “Vou ter de descobrir que tipo

de pássaro é aquele”, pensei. “Vou ter de aprender esse tipo de coisa para viver por aqui.” Então me lembrei de Ana. Provavelmente ela já se aborrecendo de me esperar.

Olhei para todos os lados, mas não a vi em lugar algum. - Ana? – chamei ao mesmo tempo em que me apressava pela estrada abaixo.

– Ana, não vá se perder! Espere por mim! - Eu estou aqui, Lua! – gritou Ana. – Encontrei uma vaquinha amiga. Olhe! Segui na direção do som de sua voz e de repente estaquei com o coração

batendo a mil por hora. Ana estava no meio de um pasto, andando em direção a um gigantesco touro negro. Agora eu percebi que não havia como confundir

um touro de verdade com uma vaca. Uma imensa cabeça, um corpo possante pesado, uns chifres enormes e ameaçadores. O que Arthur tinha me dito? “Só há um touro por aqui com que você tem que se preocupar: o que fica no pasto

ao lado do rio.” - Ana... – chamei suavemente, esperando que minha voz chegasse até ela, já

que eu não queria gritar para não chamar a atenção do touro. Contudo, ela não pareceu me ouvir e continuou a se aproximar mais do touro a cada segundo, com o braço esticado como se quisesse cumprimentá-lo.

Só havia uma coisa que eu podia fazer: entrar no pasto e ir atrás dela. Vovô tinha dito uma vez que você tem de mostrar aos animais quem é o chefe, mas

eu não achava que um touro daquele tamanho iria me levar muito a sério. Eu tremia como geleia quando pulei a porteira e comecei a andar na direção de Ana. Ela se virou e me viu.

- Ei, Lua, venha comigo conversar com a vaquinha – disse. - Ana, preste atenção em mim – sussurrei com a voz mais calma possível. –

Quero que você comece a andar de volta para cá, na minha direção, bem tranquilamente. Não corra. Não grite. Aquilo ali é um touro, e nós não queremos irritar ele. Entendeu?

- Talvez ele só esteja se sentindo sozinho – argumentou Ana. – Ele tem uma cara simpática. Aposto que quer um amiguinho.

O touro finalmente reparou na nossa presença. Ele levantou a vista da sua pastagem e bufou. - Nós vamos sair daqui agora – ordenei. – Apenas ande, com calma e o mais

rápido possível. Se ele começar a vir atrás de nós, então corra como uma louca na direção da porteira.

Dessa vez ela não argumentou. Percebeu o meu medo e ficou com medo também. Só rezei para que o touro não tivesse percebido. Começamos a

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atravessar o pasto, e escutei o touro bufar de novo. A porteira parecia mais

distante. E aí escutei algo mais: o som seco de uns cascos de cavalo. Arthur Aguiar apareceu de repente.

- Oh, meu Deus! – exclamou ele. – Não se mexam! Fiquem exatamente onde estão e não corram! Então ele desmontou, pulou a porteira, e foi andando na direção do touro.

- Oi, Barnaby. Oi, meu velho – disse Arthur, dando uns tapinhas no pescoço do monstro e falando o tempo todo com uma voz doce e apaziguadora. – Quem é

o touro mais bonzinho do Wyoming, hein? Epa, Barnaby, meu velho Barnaby... Arthur olhou na nossa direção. - Agora andem até a porteira. E, pelo amor de Deus, não corram.

Arthur ficou com o touro até que nós duas estivéssemos a salvo, e então começou a voltar, conversando com o touro o tempo todo até ele próprio ficar a

salvo também. - Obrigada... – comecei. Mas ele me olhou com uns olhos cheios de fúria e começou a gritar.

- Por acaso você é completamente idiota? Eu não disse a você hoje mesmo de manhã que esse é o único touro por aqui com que tem que se preocupar? E o

que você faz? Vem fazer uma visitinha de cortesia a ele! Você tem um parafuso a menos, não tem? Será que toda a gente da cidade tem uma cabeça de titica como você? Foi uma ideia estúpida do seu avô trazer vocês aqui! Deveriam ter

ficado na cidade, que é o seu lugar! A essa altura eu já estava tão brava quanto assustada.

- Pode acreditar – rebati, também gritando – que não foi ideia minha vir para este fim de mundo! Não havia nada do que quisesse mais do que ter ficado na cidade! E, para sua informação, não sou nem um pouco idiota. Minha irmãzinha

não sabia nada sobre o touro, e ela estava no meio do pasto. Alguém tinha de tirá-la de lá.

Ele me olhou fixo. - E você entrou para pegá-la? - Ela não ia sair sozinha – respondi dando os ombros.

- Caramba! Isso foi realmente um ato heroico – disse ele. – Ainda mais considerando o quanto ficou assustada com uma vaca hoje de manhã.

- Eu não tinha escolha. Esse touro é mesmo tão perigoso? - Ele matou um peão tempos atrás – respondeu Arthur. – E quase arrancou a perna do meu pai uma vez em que ele não soube cair fora na hora certa.

- Então também foi um ato heroico da sua parte entrar lá agora – retruquei com a voz ainda trêmula. – Especialmente para resgatar duas forasteiras inúteis

como nós. Ficamos parados alguns segundos nos encarando, os olhos dele fixos nos meus. Então ele encolheu os ombros.

- O velho Barnaby me conhece – disse Arthur. – Ele gosta que eu o afague. Mas me prometa uma coisa: que você não vai mais visitar nenhum bicho até eu

poder te ensinar a diferença entre vacas e touros. Ele colocou o chapéu de volta e sorriu enquanto pegava nas rédeas de seu cavalo.

- Eu queria ver você sobreviver na cidade! – gritei pelas costas dele. – Queria ver você atravessar uma rua na hora do rush, escapar dos táxis que quase

atropelam a gente, encontrar a linha certa do metrô e conseguir não ter sua a

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carteira roubada. Sei fazer tudo isso maravilhosamente bem. Porque é o meu

território, o lugar ao qual eu pertenço. Agarrei a mão de Ana e comecei a caminhar na direção de casa, praticamente

arrastando-a. Mas logo escutei os passos de Arthur atrás de mim. - Desculpe-me – pediu ele. – Não foi por querer que gritei com você agora pouco. É que eu fiquei nervoso demais quando vi vocês duas lá no meio do

pasto com aquele touro. Eu sei como ele pode ser rápido quando quer. E você está certa com relação à Nova York. Eu não saberia mesmo como escapar dos

táxis e dos batedores de carteiras. Então ele se agachou até a altura de Ana. - E você, pequena, está tudo bem agora? Quer uma carona?

Quando ela solenemente fez que sim com a cabeça, Arthur a colocou em cima da sela. Foi estranho, mas tive uma indefinível sensação ao vê-la sendo

erguida por ele com tanta facilidade, como se não tivesse peso algum. E me peguei divagando sobre como seria sentir aqueles braços fortes ao meu redor, meus cabelos roçando no rosto dele. Será que me colocaria sobre a sela com

um tapinha amigável como o que dera na perna de Ana? Subitamente fiquei furiosa comigo mesma por causa daqueles pensamentos ridículos.

- Você está bem aí em cima? – perguntei a Ana. Ela assentiu balançando a cabeça, com um ar sério e compenetrado. - É só segurar nesse chifre da sela que não tem perigo – explicou Arthur.

Ele começou então a caminhar a pé ao meu lado, puxando o cavalo a passo pelas rédeas.

- Vou acompanhar vocês até em casa. Só por segurança. Fomos andando pela beira da estrada. Eu estava tão perturbada pela presença dele que era difícil colocar os meus pensamentos em ordem. Queria bater um

papo leve e espirituoso, de maneira que ele pudesse perceber que nós, nova-iorquinos, somos sofisticados. Mas não me vinha nem uma palavra à cabeça.

Quando um alto caule de centeio selvagem roçou na minha mão, dei um salto. Por um segundo pensei que fosse a mão dele pegando na minha. - O que foi agora? – perguntou Arthur, sorrindo de novo.

- Nada. Só um inseto – menti. Andamos quietos, ouvindo apenas o barulho dos cascos do cavalo. Finalmente

ele quebrou o silencio. - Deve ter sido duro para você se separar de todos os seus amigos bem no meio do colegial.

Balancei a cabeça afirmativamente. Ele estava sendo gentil, e eu não sabia como lidar com isso.

- Você nem imagina como – respondi. – Eu estudava numa escola maravilhosa, que tem tudo: arte, música, teatro. Poderia depois ter conseguido entrar em qualquer faculdade que eu quisesse, e agora estou atolada aqui, no meio do

nada. Ele tentou digerir aquilo.

- É verdade, a Indian Valley High School com certeza não é a melhor escola do mundo – disse ele. – Para começar, é muito pequena. Mas a gente se diverte bastante. Bailes, reuniões e coisas assim. Temos uma grande festa-baile agora

no Dia das Bruxas, no dia 31 de outubro. Você quer ir? Eu não tinha certeza se ele estava me fazendo um convite genérico ou me

convidando como sua acompanhante. Ainda não sabia nada a respeito dos costumes entre garotos e garotas do Wyoming. Se aceitasse a oferta, seria eu

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oficialmente condecorada como “a garota do Arthur”? Eu podia até imaginar a

reação de Sophia: “Espero que você tenha aprendido a gritar ya-hu e a evitar os chutes das botas dos cowboys”, diria ela. Acabei me decidindo pela opção

mais segura. - Hã... Não, obrigada – respondi. – Deixei o mais maravilhoso namorado do mundo em Nova York, e acho que ele não gostaria de me ver indo dançar por

aí com outros garotos. - Era só como amiga – disse Arthur, parecendo magoado. – Estava só tentando

ser amigável, já que não conhece ninguém por aqui. Você quer se adaptar e se enturmar e se divertir, não quer? - Não, não quero – retruquei. – Não queria nem vir para cá e não vejo a hora de

voltar para Nova York. Meu pai prometeu que vai me deixar voltar se até junho eu ainda estiver miseravelmente triste. Por isso pretendo ficar miseravelmente

triste até lá. Arthur me olhou com uma expressão de estranheza. - Eu diria que essa é uma maneira burra de encarar as coisas – observou. –

Em minha opinião, a gente tem de tentar sempre fazer o melhor em cada situação.

- E imagino que acha que você é o melhor que Indian Falls tem a oferece - revidei pega com a guarda baixa pela aspereza da crítica dele. - Foi você quem disse não eu – brincou ele, com um largo sorriso no rosto.

- Vamos, Ana, já estamos quase chegando em casa agora. Podemos andar o resto do caminho a pé – disse eu, puxando-a da sela.

- Mas eu gosto de cavalgar! – protestou ela quando a agarrei pela mão. - Tudo bem, se é assim que você quer – ponderou Arthur. – De todo jeito, não há mesmo nenhum touro daqui até o seu portão.

- Obrigada de novo pela ajuda – murmurei. - De nada – disse ele. – Afinal essa é a característica pela qual nós, caipiras,

somos conhecidos: simples, porém prestativos. Ele fez uma careta e tive de rir quando pulou para cima de seu cavalo e saiu a galope. Fiquei lá parada, olhando ele ir embora. Se for mesmo apenas um

caipira simplório, porque então eu ficara tão afetada por suas palavras e sua presença?

Ana deu um puxão na minha mão. - Acho que ele gosta de você, Lua – falou. - Ele vai ser o seu novo namorado? - Para sua informação, Ana, não pretendo ter nenhum namorado por aqui.

Chay está esperando por mim em Nova York. - Então porque você ficou vermelha? – perguntou.

- Estou quente por causa de toda essa caminhada, só isso. Agora pare de fazer perguntas cretinas – disparei e saí andando tão rápido que ela teve de correr para me alcançar.

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Capítulo sete: Estranhos gritos nos ventos

Fiquei muito confusa pelo resto da tarde. Por que Arthur Aguiar me fizera sentir como uma menininha idiota? Estava brava com ele por ter aparecido e me provocado à sensação de ser uma panaca. Não queria pensar nele e não

queria gostar dele. Então porque não conseguia tirá-lo da minha cabeça?

- Posso ligar para o Chay hoje? – perguntei à minha mãe depois de tirarmos a mesa do jantar. – Preciso sentir que ainda há pessoas sãs e normais neste mundo.

Ela sorriu e me disse para não ficar metade da noite falando ao telefone. Isso dificilmente aconteceria, já que o único aparelho da casa ficava no hall de

entrada, ao qual o calor da lareira não chegava e de onde todo mundo poderia ouvir cada uma das minhas palavras; de maneira que me esforcei para manter uma certa neutralidade quando a profunda e maravilhosa voz de Chay soou na

linha. - E ai, Lua, como vai tudo? – perguntou ele naquele seu típico jeito solto e

relaxado. – Você já aprendeu a dizer ya-hu? - Não, mais já aprendi a diferença entre uma vaca e um touro – respondi e em seguida contei tudo a ele.

Chay riu tanto que chegou a ficar sem ar. Gostaria de tê-lo ouvido dizer algo como “Puxa, você deve ter ficado realmente assustada. Eu também teria

ficado”. Mas ele não disse. - Comecei a escrever uma carta para você – confessei timidamente. - Eu também. Escrevi uma página inteira durante a aula de história. Você sabe

como o professor Roth é aborrecido. Ah, e a Mel ficou com o seu papel na peça. Ela não para de dançar e se comportar como uma doida desde que

pegou esse papel. Você sabe como ela é. Então ouve uma longa pausa. - Já estou com saudades – confessou docemente. – Fica tudo esquisito aqui

sem você. Fico achando que a qualquer instante você vai aparecer pela porta. - Eu também – disse eu. – Só que, quando passo pela porta, tudo o que vejo é

um monte de montanhas e vacas. – Lancei um olhar para a sala de estar. – Preciso desligar, Chay – afirmei, olhando o meu relógio. – Todo mundo lá na sala está prestando atenção na nossa conversa e está um frio de lascar aqui

no hall. Só tem um único ponto de aquecimento na casa inteira, que é a lareira da sala.

- Viu só? Eu disse que você não precisava se preocupar – retrucou-o. - O que você quer dizer? - Você acha que os seus pais vão aguentar passar o inverno todo numa casa

gelada? Logo vão brigar um com o outro para pegar o primeiro avião para Nova York, e você vai estar de volta na Dover School no começo da primavera. - Você acha mesmo?

- Eu garanto – disse ele, imitando uma fala de um comercial de TV, o que me fez rir.

“Ah, Chay”, tive vontade de dizer, “eu preciso tanto de você aqui!” Mas por alguma razão não conseguia colocar as palavras para fora. Droga, não era justo! Mal tivéramos tempo de nos conhecer um ao outro. Não havíamos

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atingido aquele estágio em que a gente se sente totalmente à vontade para

dizer qualquer coisa. Se eu pudesse ter ficado só mais algumas semanas em Nova York, talvez tivesse descoberto que ele era o garoto por quem tinha

estado esperando toda a minha vida... - Você ainda está ai, Lua? – perguntou ele, com uma voz que soou muito distante.

- Estou. Acho que preciso desligar Chay. Tchau. Ligue logo para mim. - Ligo. Tchau, Lua. Estou com saudades!

Então ouvi um clique. Quando recoloquei o fone no gancho, já não tinha mais certeza se fora ou não uma boa ideia telefonar para ele. Agora sentia ainda mais saudades, e ele me soara muito, muito distante.

Naquela noite fiquei acordada na cama por um bom tempo, prestando atenção em todos os estranhos ruídos noturnos. Não eram os ruídos familiares da

cidade – sirenes, buzinas, caminhões de lixo, varredores de rua – que me ninavam até eu dormir. Eram somente estranhos gritos contra o sopro do vento, corujas ou coiotes talvez, que me recordavam a cada instante que eu

estava muito, muito longe de casa. Segunda-feira era o meu primeiro dia na nova escola. Acordei com um nó no

estômago e desejei poder estar em qualquer outro lugar do planeta. Era quase fim de outubro, de forma que os garotos de Indian Valley High School já estavam em seu terceiro mês de aula e já haviam tido tempo de se entrosar

entre si e com os professores. Nunca iria me adaptar bem, mesmo que quisesse. E eu não queria.

Tomei bastante cuidado com a minha aparência naquele dia. Era importante que aquelas caipiras soubessem que falariam com uma pessoa que estava “por dentro”, que sabia das coisas, mais sofisticadas do que eles jamais

poderiam sonhar em ser. Devo ter experimentado todas as combinações possíveis que meu guarda-roupa proporcionava, mas acabei escolhendo meu

velho e folgado macacão de brim com buracos nos dois joelhos, uma igualmente folgada camisa de flanela xadrez com capuz, de um número bem maior que o meu, e um colete para jogar por cima de tudo. O colete, que era

todo coberto de botões e pequenos remendos de vários tecidos diferentes, era o máximo. Eu o havia comprado numa feira de arte no Central Park.

Sorri para mim mesma quando vi meu reflexo no espelho. “Espere só até esses jecas me verem!”, pensei. Usei meu ferro de cachear para fazer longos cachos em espiral nos meus cabelos e gastei um tempão me maquiando. Quando

terminei, tinha ficado exatamente como queria: maquiagem suficiente para esconder o escuro tom de ameixa nos lábios. Totalmente artístico! Eu adorei.

Minha mãe me levou para me matricular na Indian Valley. A escola me surpreendeu. Eu estava esperando por uma modera escola de uma sala só, mas aquela era até moderna, toda de concreto e vidro, com um enorme campo

de rúgbi ao lado. Odiei o diretor, Mr. Houghton, à primeira vista. Ele era grandalhão, vermelho e

alegre, e me chamou o tempo todo de “jovem senhorita”. Perdemos uma excitante hora com ele, tentando decidir uma programação que me permitisse frequentar as aulas que me interessavam. Ao que parecia os secundaristas de

lá geralmente aprendiam geometria, mas eu já estava estudando álgebra. Mr. Houghton ficou com receio de me colocar junto com os alunos do terceiro ano,

e também ficou com receio de me deixar comparecer às aulas de biologia porque a classe já estava lotada. Sugeriu economia doméstica em vez de

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biologia. Mamãe não parava de me lançar olhares ansiosos, respondendo por

mim antes que eu perdesse totalmente a paciência e dissesse ao Mr. Houghton o que realmente pensava dele e de sua maldita escola.

Ao fim da entrevista já confirmara todas as minhas piores suspeitas. Nada de teatro, nada de música, a não ser uma estúpida banda de marchinhas, e nada de artes plásticas. Eu saí de lá com uma programação curricular chata, chata e

chata. - Tchau, meu bem – despedia mamãe, me dando um beijo na bochecha. –

Tenha um ótimo primeiro dia. - Tchau – respondi com uma expressão no rosto que deixasse bem claro para ela o que pensava daquele primeiro dia. – Tenho certeza de que vai ser

maravilhoso. Lá pela hora do almoço já me sentia como um extraterrestre. Todo mundo

reparava em mim no ato e me perguntava de onde eu era. Quando respondia que era de Nova York, perguntavam as coisas mais ridículas. - Você já levou um tiro?

- Lá na sua antiga escola todo mundo carregava facas e revólveres? - Você era assaltada com muita frequência?

Todos queriam saber o que eu estava fazendo no Wyoming. Achei mais fácil dizer que tínhamos vindo cuidar de meu avô do que explicar as outras razões. - Então me conte Lua – pediu uma das garotas, Carla Díaz -, lá em Nova York

todo mundo se veste como você? - Bom, não exatamente. Quem trabalha normalmente usa terno. As pessoas do

Village geralmente se vestem como eu. Elas encontram todo tipo de coisas incríveis em lojas alternativas e depois dão uma reformada. Sempre compro roupa dos anos 70.

Elas aprovaram educadamente com um movimento de cabeça, mas com os olhos arregalados.

- Imagino que seja um alívio para você está aqui, onde ninguém liga para o jeito como você se veste – disse uma delas. – Uma vez tive de usar os mesmos jeans por um mês. Foi horrível.

Eu não tinha certeza de onde ela queria chegar, mas sorri com polidez. - Imagino que esteja contente de estar aqui, onde as pessoas são amigáveis e

você pode sair por aí sem medo, não é? – me perguntaram uma e outra vez. Fiquei tentada a dizer a eles exatamente o que pensava a respeito de minha permanência no Wyoming. Não tinha a mínima intenção de fazer amizade com

ninguém. Estava determinada a odiar tudo. Mas pela primeira vez em minha vida era o centro de todas as atenções. E também não conseguia me esquecer

do que Arthur dissera a respeito de tentar fazer o melhor em todas as situações. Portanto engoli as minhas palavras e me esforcei para sorrir o tempo todo. E quando num dado momento levantei a vista, vi que ele cruzava o

refeitório e vinha em minha direção. - Oi – disse ele. – Como você conseguiu se manter viva até agora?

- Ainda estou aqui – respondi corando. - É, reconheço que aqui você está segura – brincou. – Colocaram cercas e porteiras ao redor da escola para manter longe os animais selvagens.

- Não sei, não – retruquei. – Já vi um monte de lobos e ursos por aí. O rosto dele se iluminou com um sorriso.

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- E reconheço também que você sabe lidar bem com eles – continuou Arthur. –

Bom preciso ir andando. Só queria saber se estava tudo bem com você. A gente se vê à noite, no ônibus de volta para casa.

Então ele se dirigiu ao meu grupo de admiradoras: - Sejam legais com a Lua, garotas. Ela ainda está sob choque cultural. E foi embora.

- Menina, você não perde tempo, hein? – exclamou Carla Díaz. – Arthur Aguiar, o maior gato da escola.

- Ele só está sendo gentil comigo porque é o meu vizinho mais próximo – expliquei, tentando aparentar neutralidade. – Tenho em Nova York um namorado que eu adoro.

- Bom, eu diria que Nova York está terrivelmente longe daqui – especulou outra das garotas. – Não me importaria muito com o outro namorado, por mais bonito

e bacana que ele fosse se Arthur Aguiar estivesse interessado em mim. Peguei-me seguindo Arthur com o olhar através do refeitório. “Não seja idiota”, disse a mim mesma. Não estava tão desesperada a ponto de agarrar o

primeiro cowboy caipira que demonstrasse algum interesse por mim. Mesmo que tivesse deslumbrantes olhos castanhos e músculos possantes. Arthur

estava apenas sendo gentil, e eu realmente, de verdade, não estava interessada nele.

- E então, como foi? – me perguntou Arthur mais tarde, quando subíamos para o ônibus escolar para voltar para casa. – Um pessoal legal, não é? Realmente

amigáveis. - Muito amigáveis – concordei. E eram mesmo. O problema é que era de Lugar Nenhum City. Tinha prestado

atenção nas conversas deles e não havia conseguido entender do que estavam falando. Tinham me perguntado de que tipo de música eu gostava, mas nunca

ouviram falar dos meus conjuntos favoritos. Tentara falar a eles sobre filmes que vira, mas fora alguns com Bruce Willis ou Julia Roberts tampouco tinham a menos ideia a que eu me referia. E o mesmo com as roupas... Bom, com

certeza precisavam de alguma ajuda para aprender a se vestir. Havia os clássicos jeans e camisas de flanela, mais tudo sempre novinho. Nenhuma

velha Levi’s 501s. Algumas garotas usavam camisas lisas, e outras até vestiam saias com pregas. Todo mundo muito arrumadinho e limpinho, e todos iguais. Nada de rasgões, nada de roupas folgadas, nada de superminissaias, nada de

couro, nada de divertido, incomum, ou artístico. E eles olhavam para as minhas roupas como se nunca tivesse visto nada parecido antes.

- Uma garota me perguntou se eu tinha percebido que a parte dos joelhos do meu macacão estava rasgada – contei a Arthur achando muito engraçado. - Isso foi grosseria dela – comentou, serio. – Quem é ela?

- Não sei seu nome. Mas achei bastante engraçado – disse eu. No entanto Arthur não riu.

Quando cheguei em casa, encontrei Daniel e Ana já sentados na mesa da cozinha, comendo pão com creme de amendoim. Peguei um prato. - Passem o pão, por favor – pedi.

- Tem certeza? – perguntou Daniel. - Foi à mamãe que fez.

- Parece bom – observei.

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- Então vá em frente. Tente – disse Daniel, empurrando o pão na minha

direção. Espalhei bastante creme de amendoim nele e dei uma mordida. Foi como

morder uma rocha. Senti meu queixo estalar quando tentei mastigar. - Duro, não é? – indagou Ana. – Quase perdi o meu dente de leite, e a mamãe ia ter de me dar um dólar.

- Não tente engolir – advertiu Daniel. – Você vai ter um colapso, uma morte terrível. É preciso que ele fique de molho no leite uma eternidade antes que

possa ser engolido. Naquele instante mamãe apareceu. - E então, que tal está o pão? – perguntou ela com um grande e esperançoso

sorriso. - Está... Hã... Muito bom – dissemos todos.

- Sei que ainda não está perfeito, mais é a minha primeira tentativa – explicou. – Fico contente de que tenha saído tão bom. Acho que já estou pegando o jeito da vida no campo.

Ela saiu da cozinha e ficamos olhando um para o outro, tentando decidir como lidar com a situação. Vovô chegou, pegou uma fatia, passou geleia e deu uma

grande mordida. Nós o olhamos em silêncio. - Santo Moisés, o que é isto? – espantou-se ele. - “Isto” é a primeira tentativa de mamãe de fazer o seu próprio pão – contei a

ele. - Caramba, quase perdi o resto dos meus dentes! – exclamou vovô.

- Eu também, vovô – disse Ana. – Meu dente de leite está mais mole agora, está vendo? - Você quer que eu o arranque para você? – perguntou ele.

- Não, vai doer. - Bah, que nada. Em um segundo está resolvido. Sempre arranquei os dentes

de leite do seu pai. Então você pode colocá-lo em baixo do travesseiro e ganhar uns trocados. - Trocados? Vovô, eu sempre ganho um dólar!

- Um dólar inteiro por um dente! Isso é um assalto a mão armada – observou ele. – Por essa dinheirama toda é capaz até de eu comer mais desse pão e

fazer os meus próprios dentes caírem! Ana morreu de rir. Mamãe entrou na cozinha novamente.

- Ah, vovô, você provou o meu primeiro pão! Que tal? - Já experimentei piores – respondeu, piscando para nós.

Quando ouvimos o som das solas do sapato de minha mãe se afastando, ele sussurrou: - Vai ser muito útil quando precisarmos atirar algo nos corvos para afastá-los

das plantações! Nós todos caímos na gargalhada e começamos a nos perguntar se no fim das

contas ele era tão chato assim. Havia acabado de terminar a minha lição de casa quando ouvi o som de um carro se aproximando pela entrada do rancho. Olhei pela janela e vi uma velha

caminhonete estacionar em frente à nossa casa e Arthur sair dela. Imediatamente meu coração começou a bater mais rápido. Ele tinha vindo me

visitar. “Por quê?”, me perguntei. Talvez quisesse fazer a lição de casa junto comigo, como Chay e eu tínhamos começado a fazer. Ou talvez quisesse sair.

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Eu poderia mostrar a ele os meus CDs mais recentes... E pensei como seria

divertido contar à minhas novas amigas a respeito dessa visita. Escutei vozes no hall, e logo mamãe gritou:

- Lua, visita para você! Desci. Arthur estava parado no hall de entrada com uma grande caixa nas mãos.

- Trouxe isto para você – disse ele. - O que é? – perguntei surpresa.

E fiquei ainda mais surpresa quando abri a caixa e a primeira coisa que vi foi um par de jeans. Arthur parecia encabulado. - Algumas garotas da escola ficaram com pena de você não ter nada melhor

para vestir no seu primeiro dia de aula do que aquele macacão velho e rasgado nos joelhos. Então fizemos uma vaquinha e arranjamos alguns jeans e algumas

camisas em bom estado. - Vocês o que?! – perguntei gaguejando. Ele continuou gentilmente, sem perceber que eu estava a ponto de perder o

controle. - As garotas ficaram tristes por você não ter nada melhor do que aquele

macacão rasgado e aquele colete todo emendado com pedaços de tecido e botões velhos. Espero que não fique ofendida. Foi com as melhores intenções. - Para o seu governo – comecei fria como o gelo -, aquelas roupas que eu

estava usando hoje custaram uma fortuna. - Sério?

- Sério. Tudo aquilo veio das butiques mais in do Village. Aquele é o jeito como as pessoas-cabeça de Nova York se vestem. Isso se chama fashion. - Roupas com buracos? – perguntou ele, me olhando como se não estivesse

seguro se eu o estava enganando ou não. Hesitou um pouco e disse:

- Olha, Lua, tudo bem, você não precisa fingir para mim. Nós ouvimos falar a respeito do seu pai ter perdido todo o dinheiro e por isso ter trazido vocês para cá.

A raiva que eu estava reprimindo finalmente explodiu. - Que meu pai perdeu todo o seu dinheiro? Que história é essa? Ele é um

tremendo advogado! A gente tem um apartamento de frente para o Central Park! A gente só veio para cá por causa do idiota do meu avô, para cuidar dele! Temos dinheiro de sobra, e paguei mais de cinquenta dólares por aquele

macacão! - Cinquenta! Santa Maria, você foi roubada! Por aqui você pode comprar um

par de jeans em perfeito estado, sem buracos nos joelhos, por vinte! Eu já não sabia se ria ou chorava. Como ele podia ser tão ingênuo? Será que as pessoas por ali não liam revistas, não assistiam à TV? Meu rosto estava

vermelho de raiva e vergonha ao mesmo tempo. Afinal, Arthur não viera porque queria sair comigo, mas porque ficara com pena de mim! Nunca ninguém

sentira pena de mim, e eu estava odiando a sensação. - Você não entende mesmo, não é? – continuei. – Mas como você poderia entender se está atolado aqui neste fim de mundo? Provavelmente vocês

compram todas as suas roupas por catálogos. Por favor, leve tudo isso de volta e diga “não, obrigada”. Tenho roupa de sobra, na verdade um guarda-roupa

abarrotado. A essa altura eu já estava quase gritando:

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- Você poderia ir agora, por favor? – pedi.

- Tudo bem – disse ele. – Eu não queria chatear você. - Mas chateou. Você me ofendeu, e isso apenas confirma o que eu já sabia:

que não pertenço a este lugar. Ele pegou a caixa. - Só estávamos tentando ser amigáveis – desculpou-se Arthur. – Queríamos

que se sentisse bem-vinda. - Não quero fazer amigos aqui – rebati. – Só quero voltar para o meu lugar.

- Faça como quiser – concluiu, desaparecendo na escuridão da noite. Minha mãe me parou quando eu subia as escadas correndo. - Foi muito gentil da parte de Arthur te visitar... – disse ela.

- Ah, sem duvida, foi maravilhoso. Adorei cada minuto dessa visita – repliquei. – Ele me trouxe roupas, mãe. As garotas da escola ficaram todas com muita

pena de mim porque o meu macacão tinha buracos nos joelhos. E não tem graça nenhuma! – acrescentei ao ver que ela começara a rir. - Desculpe meu bem, mas é que tem muita graça, sim – observou ela, ainda

rindo. – E você pediu por isso, se vestindo com as suas roupas mais rebeldes logo no primeiro dia. Eles são muitos conservadores por aqui, sabe? Com

certeza não entendem a moda do Greenwich Village. - O que prova mais uma vez que o meu ponto de vista está certo – retruquei. – Disse que ia odiar isto aqui. Vocês percebem agora pelo que estão me fazendo

passar? Não posso voltar àquela escola e encarar aquelas garotas de novo. Vou ser um motivo de riso para todo mundo.

- Claro que não vai. Acho que esse gesto de te mandarem as roupas foi muito gentil da parte deles. Tudo o que você precisa colocar é umas roupas menos espalhafatosas até se entrosar.

- Não quero me entrosar! – gritei. – Quero voltar para casa!

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Capítulo oito: Piruetas e saltos-mortais

Meus pais tiveram praticamente que me arrastar até o ônibus da escola na manhã seguinte. Eu não sabia como iria fazer para encarar todos aqueles caipiras ignorantes. E mais importante, não sabia como iria conseguir encarar

Arthur. Com certeza àquela altura ele já devia ter comentado com todo mundo sobre a cena que eu fizera na noite anterior. Eles estariam todos cochichando

pelas minhas costas e dando risadinhas abafadas quando eu passasse. Foi só quando meu pai ameaçou me carregar até a sala de aula em seus ombros que concordei em ir.

Estava determinada a fazer com que ninguém mais tornasse a pensar que eu

era pobre. Vesti minha calça de seda pura, meu suéter importado de caxemira inglesa e minha jaqueta de couro preta. Para que eles vissem que eu podia me vestir como uma garota de um milhão de dólares se quisesse.

Os olhos de Arthur se arregalaram de surpresa quando entrei no ônibus. Lancei lhe o meu mais hostil e desafiador olhar quando passei ao seu lado. Ele corou

e fingiu estar ocupado com uma apostila. Mas logo que me sentei comecei a me sentir mal pela forma como tinha gritado com ele na noite anterior. Afinal, ele fora apenas o mensageiro. Estava só tentando ajudar. Não era culpa dele

que nós fossemos pessoas de dois mundos diferentes com absolutamente nada em comum. Mas eu não sabia o que lhe dizer para melhorar a situação.

Assim, continuei sentada em silêncio durante todo o caminho até a escola. Na hora do almoço, o grupo de garotas com que eu tinha andado no dia anterior veio falar comigo, em tom de desculpa:

- Sentimos muito pelo que aconteceu ontem à noite. Só queríamos ajudar – disse Carla. – Não queríamos ofender você, Lua.

- Tudo bem – me esforcei para dizer com alguma simpatia. – Como vocês poderiam saber? Eu estava a ponto de acrescentar alguma coisa a respeito de morar naquele

fim de mundo, mas mordi a língua no último segundo. - Então você nos perdoa? – perguntou Ester. – Não queremos que fique com

raiva da gente. Talvez possa nos contar sobre à moda de Nova York. Ia ser legal. Elas estavam fazendo o melhor que podiam. Eu sorri.

- Você quer vir ao treino de animadoras de torcida depois da escola? – perguntou ela.

Eu já ia dizendo que achava a animação de torcida uma das atividades mais idiotas do mundo quando ela acrescentou: - Não sei se alguém já contou a você, mas terça, quarta e quinta-feira não têm

a última aula. Os garotos têm treino de rúgbi, e assim eles têm tempo de pegar o ônibus escolar de volta para casa. - Quer dizer que encurtaram o dia de aula só por causa do rúgbi dos garotos? –

perguntei assombrada. - Por cauda do rúgbi e por causa das animadoras de torcida. Ou, se você não

quiser participar da nossa equipe, pode ir à biblioteca e fazer a sua lição de casa. Ou assistir ao jogo dos garotos.

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- Quer dizer que não há nenhuma atividade esportiva para as meninas? –

indaguei. - Bom, por enquanto, não – disse Ester. – No inverno jogamos basquete,

quando os meninos não precisam da quadra. E na primavera podemos fazer caminhadas. - Grande coisa! – exclamei brava. – Não é ilegal não oferecer as mesmas

atividades dos meninos para as meninas? Carla Díaz riu.

- Não seja boba, Lua – disse ela. – Garotas não podem jogar rúgbi. Além do que, a gente não liga. Gosto de poder terminar a minha lição de casa mais cedo. Isso me dá tempo de fazer as minhas outras tarefas em casa.

Logo percebi que não ia conseguir fazer a cabeça dela tão rápido, mas decidi falar sobre aquilo mais tarde com meu pai, o advogado. Tinha certeza de que

era ilegal não oferecer nenhuma atividade esportiva as garotas enquanto todo aquele tempo e dinheiro eram usados com os garotos. Por um segundo me vi modernizando aquela escola, reformando tudo. Teríamos vôlei, tênis e talvez

até ginástica olímpica. Então lembrei que de qualquer jeito aquilo não me interessava. Que me importava o que acontecesse na Indian Valley High

School? Eu voltaria no ano seguinte para Nova York mesmo... Carla foi para a biblioteca fazer a sua lição, mas decidi ir com a saltitante Ester para o treino de animadoras de torcida. Nunca havia estado numa escola com

animadoras de torcida antes, e fiquei um pouco curiosa. Além disso, tinha ficado o dia todo sentada na sala de aula e ia ser bom fazer algo físico.

- É divertido, não é difícil – me confidenciou Ester enquanto caminhava ao meu lado. – A maioria das garotas não é muito boa, e por isso fazemos movimentos bastante simples. Todo mundo consegue. Tenho certeza que você vai pegar

logo o jeito, se quiser participar. Minha primeira olhada para a equipe de animadoras de torcida de Indian Valley

High School me demonstrou que Ester com certeza estava certa. Elas não tinham a manha. Movimentos de pernas com os joelhos dobrados, pompons sacudindo de qualquer jeito, uma bagunça total. Depois que elas terminaram

uma série, Ester me apresentou a todas. A escola era tão pequena que a maioria já sabia quem eu era.

- E, então, você vai nos ensinar algum número de animadoras de torcida nova-iorquinas? – perguntou uma ruiva grandalhona, com um ar algo desafiador. - Nunca fui animadora de torcida – respondi. – Minha escola não tinha time de

rúgbi. - Não tinha? Mas que tipo de escola era essa? – perguntaram elas me olhando

com piedade, como se eu viesse de uma escola para deficientes e retardados. - Tínhamos várias outras atividades – expliquei. – Um ótimo grupo de teatro, dança arte...

Reparei que várias delas começaram da dar risadinhas com as mãos sobre os lábios. Provavelmente estavam achando que eu vinha de uma escola de

burguesinhos afrescalhados. - Você é muito bem-vinda para assistir a nós hoje e julgar se vai ser capaz de fazer as séries que fazemos – disse outra garota com gentileza.

Era a garota que Carla tinha me apresentado antes como a secretária do Clube de Alunos.

- Apesar de que já estamos no meio do semestre – continuou ela. – A gente

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ensaiou bastante desde agosto, e, se você não tem nenhuma experiência, vai

ser difícil... - Vou tentar – repliquei. – Eu aprendo rápido.

Sentei-me educadamente e assisti ao ensaio. Depois de algum tempo algo começou a me inquietar e impulsivamente perguntei: - Vocês não fazem séries de semimortais, ou pirâmides?

- Nós fazemos estrelas – respondeu outra garota. Não consegui resistir mais.

- Mas nada como isto? – perguntei com doçura. Então fui para perto delas e fiz uma série de semimortais percorrendo toda a extensão do salão. Quando terminei, havia um silêncio absoluto.

- Onde você aprendeu isso? – alguém perguntou por fim. - Eu fiz ginástica olímpica durante anos.

- Nossa! Você está indo para as Olimpíadas ou algo parecido? - Não sou boa o suficiente para isso. E cresci demais, fiquei muito alta. Foi por isso que parei. Mas cheguei ao nível mais alto.

- Faça isso de novo, Lua! – pediu Ester, excitada. Fiz uma nova demonstração.

- Será que você conseguiria ensinar algo disso para nós? – perguntavam todas, agora me rodeando no auge do entusiasmo. - Poderia ensinar a vocês algumas acrobacias básicas – respondi. – Isso

tornaria as séries de vocês bem mais divertidas e atraentes. - Com certeza! – disse Beatriz. – Faça algo mais para a gente ver.

Então fiz tudo de que me lembrava: piruetas, paradas de mãos, estrelas sem mãos e alguns saltos-mortais de frente e de costas. Elas ficaram impressionadíssimas.

- Esperem só até aqueles garotos do rúgbi verem isso! – comentou Ester. – Eles se acham o máximo!

Olhei de um rosto para o outro. Apenas quisera demonstrar a elas que não era uma burguesinha que pensavam que eu fosse e que Nova York era melhor do que o Wyoming. Não pretendera dar início a um verdadeiro movimento

feminista na Indian Valley High School, mas parecia que era exatamente isso o que acabara de fazer.

- Talvez a Lua pudesse nos ensinar uma série nova para o jogo de sábado – sugeriu Beatriz. – Sei que a gente não poderia aprender essas coisas que ela faz até lá, mas poderíamos aprender o suficiente para surpreender as pessoas.

Fazê-las se levantarem dos assentos e repararem em nós. Elas se aglomeraram ao meu redor.

- É, boa ideia! O que você acha Lua? – perguntaram. – Você poderia ensinar alguns desses truques para a gente? Talvez haja alguns mais fáceis e que impressionem bem...

Elas estavam tão excitadas que queriam começar imediatamente. Tive de me esforçar para me lembrar das minhas primeiras aulas e fiz com que todas elas

plantassem bananeiras contra a parede. Uma coisa ficou clara desde o começo: todas tinham bons músculos, por causa dos afazeres do campo. Lá pelo fim da tarde já haviam aprendidos truques básicos, e então comecei a

ensiná-las a fazer uma pirâmide. Era muito simples, e logo subi ao topo escalando os fortes ombros de uma garota parruda.

- Tchã!- gritou uma das que olhavam, e todo mundo aplaudiu.

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Olhei ao redor e percebi que alguns dos garotos do time de rúgbi tinham

entrado sorrateira e silenciosamente no salão, e que Arthur estava lá também, a apenas alguns metros, olhando para nós. Não sei por que, mas aquilo me

desequilibrou. Já fizera acrobacias na frente de outras pessoas muitas vezes. Talvez as outras garotas tenham ficado nervosas todas ao mesmo tempo ao reparar que os jogadores de rúgbi estavam lá. Tudo o que sei é que de repente

os ombros de Luiza começaram a tremer como se houvesse um terremoto, e perdi o equilíbrio.

- Ai! – gritei enquanto caía. Mas subitamente uns braços fortes me seguraram no ar. - Não se preocupe, peguei você! – disse Arthur.

Ele estava me olhando com uma expressão preocupada, e me senti alterada pelo calor e pela proximidade dele, pela potência de seus braços fortes me

enlaçando. - Obrigada – murmurei. – Mas não precisava se preocupar. Nós, ginastas, sabemos como sair corretamente.

- Desculpe – disse ele, meio tenso. – Tudo o que vi foi você e o chão prestes a se encontrarem.

Lembrei-me de como gritara com ele na noite anterior. Não tinha o direito de fazê-lo se sentir mal de novo. - Como é que você poderia saber? – observei. – Obrigada.

Os olhos dele sorriram para mim. - Foi uma acrobacia realmente impressionante. Não sabia que você tinha

trabalhado para o circo em Nova York – concluiu Arthur enquanto me depositava no chão. - Pois é – repliquei, sorrindo para ele. – Domadora de feras.

O sorriso dele se abriu ainda mais. - Olha, sinto muito por ter irritado você ontem à noite. Realmente não tinha a

mínima ideia. Caramba, como é que a gente poderia saber como se fazem as coisas lá em Nova York? Não quis ofender. - Não ofendeu – afirmei ao mesmo tempo em que reparava que a mão dele

ainda repousava sobre o meu braço. A pirâmide estava sendo refeita pelas garotas, e os garotos estavam rindo

delas feito uns bobocas. - Uma pirâmide! Ah-ah! Realmente impressionante, garotas. Só não envergonhe a gente tentando fazer isso no intervalo do jogo.

- É melhor você se preparar, Chuck Harris! – rebateu Beatriz. – Talvez envergonhemos vocês por fazer o jogo parecer um pouco interessante em

comparação com o nosso show no intervalo. - Claro, claro – disseram os garotos, saindo do salão. - Vamos mostrar para eles – murmurou Ester.

Eu me virei para ver Arthur já saindo também, junto com os outros. Ele olhou para trás, e lhe lancei o meu melhor sorriso. Ele me retribuiu com um dos mais

maravilhosos sorrisos que eu já vira. - Incrível o jeito como Arthur te pegou no ar! – disse Beatriz, admirada. – A gente podia incluir isso no programa.

- Você está louca! – repliquei. – Da próxima vez ele poderia me deixar cair! Elas me enlaçaram com os braços enquanto voltávamos para o vestiário

feminino.

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- Estou tão ansiosa! – disse Beatriz. – Não vejo a hora de fazermos o nosso

show. - Vai ser o melhor show de todos os tempos – observou outra. – Talvez até

ganhemos o campeonato estadual entre equipes de animadoras de torcida, agora que temos a Lua. Elas estavam tão excitadas e falando alto, completamente diferente das

garotas doces, tímidas e inseguras que eu tinha encontrado uma hora antes. De repente me vi pega de roldão pelo entusiasmo delas. Imaginei todos os

maravilhosos números que eu havia ensinado a elas. E me vi segurando a taça que ganháramos no campeonato estadual. Eu seria a heroína da escola. “Espera aí”, disse a mim mesma, voltando à realidade num estalo, “você não

está querendo se envolver com nada nem com ninguém por aqui. Você não quer se divertir. Você quer voltar para casa”.

Eu me lembrei do que Chay dissera a respeito de meus pais desistirem e voltarem para Nova York no fim do ano. Considerando o talento de mamãe para fazer pão e as tensas relações de papai com vovô, bem que isso poderia

mesmo acontecer. Tinha sido a minha esperança secreta o tempo todo, mas de repente me peguei pensando que o fim do ano seria muito cedo. O

campeonato estadual era só em fevereiro! Trabalhamos duro a semana toda, tanto na hora do almoço quanto na última aula, que era livre, praticando como umas loucas. Fui obrigada a admirar o

entusiasmo delas. Em Nova York não era de bom-tom demonstrar entusiasmo. Tudo devia parecer um tédio, e você tinha de se ligar só na última hora.

Aquelas garotas ferviam de entusiasmo, como os atores das propagandas de chiclete na TV. E não desistiam de jeito nenhum. Caíam se machucavam, se sentiam umas idiotas, mas logo davam a volta por cima e tentava de novo. E,

apesar de achar que um show daqueles no intervalo de um jogo de rúgbi era um fato totalmente insignificante para mim, acabei me contagiando com o

entusiasmo delas. Agora eu queria que fizessem sucesso. Lá pelo fim de semana já conseguira ensinar a elas algumas acrobacias que impressionava bastante, mas que eram na realidade muito simples. E encontrei

um uniforme para mim que daria conta do recado. Fiquei parada na frente do espelho do voo, me olhando. Lua Blanco, uma animadora de torcida, com

pompons e tudo. Achei que tinha ficado muito bom, até me lembrar de Chay e Sophia. Eles morreriam de rir da minha cara se me vissem. Não falei nada sobre a equipe de animadoras de torcido na minha carta

seguinte para Chay. Nem mencionei Arthur também, apesar de ter me sentado ao lado dele no ônibus escolar nas últimas duas tardes. Continuava a dizer a

mim mesma que não havia nada ali além de um garoto amigável e simpático tentando ser gentil com uma recém-chegada. Tinha direito de ter amigos homens, não tinha? Quando pensei nisso, percebi que não estava disposta a

passar um ano inteiro na infelicidade. Só queria que os meus pais achassem que eu estava infeliz, para que assim me mandassem de volta para Nova York

e para a Dover School. De volta para Chay e Sophia. E ter Arthur como amigo e sair com ele não seria a pior maneira de passar o ano. Arthur era uma pessoa simples, um garoto do campo. Nunca seria como Chay.

Nunca seria capaz de fazer observações inteligentes e sofisticadas como Chay, ou de me fazer rir como o Chay fazia ou de me fazer sentir pegando fofo

quando me beijasse, como Chay. Então me perguntei como seria se Arthur me agarrasse com aqueles seus braços possantes e musculosos, seus lábios se

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movendo em direção aos meus e... “Chega! Pare com isso!”, gritei para a

minha imaginação. Chay era especial e maravilhoso, e ele era o meu garoto. “Chay Suede” escrevi em todas as margens da minha agenda. Meu Chay

Suede. Foi estranho eu estar pensando nele naquela quinta-feira à tarde, porque logo em seguida, quando entrei em casa, o telefone tocou, e era ele próprio. Dessa

vez não havia ninguém por perto escutando. - Nós acabamos de voltar do Fiorelli – disse ele – e eu precisava ouvir sua voz.

Estávamos planejando uma festa de Dia das Bruxas, e de repente me senti péssimo quando pensei que você não iria estar aqui. Tivemos ideias incríveis para as fantasias. Pensei em ir fantasiado de Aladim, mas a minha princesa

não está aqui. Depois pensei em ir de Dom Quixote, mas não tenho a minha Dulcinéia. Pensei em ir de Romeu, mas não tenho a minha Julieta. Nunca vou

ganhar o prêmio sem você... A Sophia vai de Cleópatra. Ela vai ficar ótima! A maravilhosa risada dele flutuou pelo friorento ar do nosso hall de entrada. Fechei os meus olhos, tentando imaginá-lo ali, na minha frente.

- E os seus pais, já começaram a afrouxar? – perguntou Chay, ainda rindo. – Eles ainda não foram chifrados por algum bode maluco, ou pisoteado pelo

estouro de uma boiada? Nem estão mortalmente congelados? - Nem perto disso – respondi. – Na verdade parece que estão gostando de morar aqui.

- Não se preocupe, vai acontecer logo. Lembre-se: “Eu garanto!” Fiquei olhando o telefone por um bom tempo depois que Chay desligou. Fiquei

contente por ele ter ligado, porque me fez recordar como era legal e divertido. “Eu realmente sinto falta dele”, disse a mim mesma. Tudo bem ter Arthur para sair e me divertir um pouco enquanto estiver no Wyoming, mas ele nunca seria

do nível de Chay. Foi só depois de pensar nisso que percebi que não tinha contado nada a Chay a respeito do jogo de rúgbi, da equipe de animadoras de

torcida e da festa de Dia das Bruxas. Ele teria rido bastante. A festa e o jogo seriam no sábado seguinte. O jogo aconteceria à tarde, e haveria também uma parada. E depois, à noite, haveria um baile na escola,

àquele que tinha dito a Arthur que não iria. Ele não tocara mais no assunto, e eu tirara aquilo da minha cabeça até que Carla perguntou:

- Você já está sabendo do baile, não está? Não me diga que não vai! - Acho que não – disse eu. – Já avisei ao Arthur que não iria. - Arthur Aguiar convidou você para o baile? – indagou Ester, assombrada. – E

você recusou? - Acho que o meu namorado de Nova York não gostaria de me ver dançando

com outro cara – respondi devagar, tentando me esquecer do telefonema de Chay. - Você jamais me vai ver recusando um convite de Arthur Aguiar – afirmou

Carla. – Ele só teria de estalar os dedos para mim e eu iria correndo. - Ele não tem namorada? – perguntei em tom casual.

- Ele não saiu com ninguém desde a Emily, saiu? – comentou Carla com Ester. Elas olharam uma para a outra. - O que aconteceu com Emily? – investiguei.

- A família dela se mudou. Foi muito duro para ele – confidenciou Ester. Concordei com um gesto de cabeça, digerindo a informação. Fiquei

impressionada com a onda de agitação que sentira surgir em mim mesma ao saber que Arthur não tinha namorada. E também comecei a me sentir mal por

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tê-lo rejeitado. Talvez eu o tivesse magoado. Mas agora era tarde para voltar

atrás. Não dava para chegar nele e simplesmente dizer “Bom, no fim decidi ir”. E ainda por cima não queria que meus pais me vissem indo a um baile depois

de apenas uma semana de aula. “Está vendo”, diriam eles com ar triunfante, “no fim das contas você está se dando muito bem por aqui”. Tampouco tinha qualquer intenção de contar a eles sobre os meus planos de

participar do show de animadoras de torcida durante o jogo de rúgbi, mas no sábado de manhã me pegaram descendo as escadas vestidas com as roupas

de animadora de torcida e com os cabelos cuidadosamente presos num rabo-de-cavalo. - Ora, ora – disse meu pai, dando uma piscadela para a minha mãe -, quem

diria! - Isso porque não há esportes para as meninas nessa droga de escola –

retruquei, na defensiva. – E não quero ficar totalmente fora de forma. Por isso decidi ser a treinadora da equipe de animadoras de torcida. - Você tem um jogo hoje?

- É a abertura da temporada, um dia importante por aqui. Vamos ter um desfile primeiro, e depois o jogo – expliquei, sem mencionar o baile à noite.

- Porque não nos disse nada, Lua? – perguntou minha mãe. – Gostaríamos de ir. - Mãe, tenho certeza de que vai ser algo patético – afirmei.

- Quero ir! Quero ver o desfile – disse Ana. - Não vai ser nenhuma maravilha, Ana. Nada a ver com os desfiles a que já

assistiu em Nova York – expliquei. – Na verdade, acho que vai ser ridículo. - É bom se integrar na comunidade – sugeriu meu pai. – Vamos levar você até a escola e depois vamos assistir ao evento.

- Tudo bem. Mas estou indo de carona com o Arthur, na caminhonete dele, e vocês não precisam se preocupar em me levar.

- Você que ir também, pai? – disse meu pai, voltando-se para o vovô. – Ou acha que vai ser demais para você? - Gostaria de ir, se houver lugar – respondeu vovô. – Faz anos que não vou a

um desfile. Ainda me lembro de quando íamos vê-lo participar. - Você fazia parte do time de rúgbi, pai? – perguntei.

Ele balançou a cabeça negativamente. - Nunca fui durão o suficiente para o rúgbi. Além do mais, achava aqueles caras uns desmiolados idiotas. Eu tocava tambor na banda.

- Você tocava tambor? Nunca soube disso – espantei-me. - Há inúmeras coisas do meu passado que vocês não sabem – disse ele, com

um sorriso matreiro. – É bem capaz de eu reencontrar muitas velhas namoradas nessa parada de hoje. - Isso é o que eu quero ver – provocou mamãe, dando-lhe um empurrão

amigável. Reparei que os dois pareciam mais relaxados e tranquilos. As rugas na testa e

entre as sobrancelhas deles estavam começando a suavizar, e eles sorriam com bastante frequência. Então mamãe deu uma palmada na mesa da cozinha.

- Ah, não – disse ela. – Estava planejando fazer pão hoje de manhã. Agora nós não vamos ter pão para amanhã.

- Não se preocupe! – dissemos todos em uníssono. Ela olhou um por um de nós.

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- Estava tão ruim assim, é? – perguntou.

- Não se preocupe Maria – disse vovô. – A mãe de Billy quase me matou com seu pão logo que nos casamos e depois acabou ganhando o primeiro prêmio

na feira regional. Você só precisa de um pouco de prática. Mamãe andou até ele e lhe deu um beijinho na bochecha. - Obrigada, vovô – agradeceu ela.

Uma buzina soou do lado de fora. - É Arthur. Preciso ir – informei.

- Estão vendo, o que foi que eu disse a vocês? – escutei meu pai comentar. Virei-me com o que pensei que parecesse uma expressão gélida no rosto e disparei:

- O fato de eu estar pegando uma carona com Arthur até a escola não quer dizer nada além de que não pretendo andar quase dez quilômetros a pé. Arthur

simplesmente é o nosso vizinho mais próximo, tem uma caminhonete e por coincidência deve estar na escola exatamente a mesma hora que eu. Entendido?

- Entendido, meu bem, fique tranquila – respondeu papai, ainda com uma expressão zombeteira. – Ninguém aqui insinuou nada. A gente se vê mais

tarde. Divirta-se. Meu rosto estava roxo de raiva quando saí pela porta. - O que aconteceu com você? – perguntou Arthur, se inclinando dentro da

caminhonete para abrir a porta para mim. - Pais chatos! Sempre tirando interpretações absurdas das coisas mais

simples. - Como, por exemplo? - Como achar que há algo por trás do fato de você estar me dando uma carona.

- Sei o que você quer dizer – disse ele, com um sorriso. – Os meus velhos são exatamente a mesma coisa. Meu pai estava me gozando tudo o que podia por

achar que estou pretendendo dar em cima de uma nova-iorquina. - Ah é? - É. - Mas cortei a insinuação dele. Expliquei que seria uma perda de tempo,

considerando que você já tem um namorado em Nova York e não vê a hora de voltar para lá.

- Fez bem – respondi, me endireitando no assento da caminhonete e olhando reto para frente.

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Capítulo nove: Assustador dia das bruxas

O desfile com certeza foi bastante comum, e muito, muito modesto. Qualquer um que tivesse visto uma parada do Dia de Ação de Graças em Nova York teria morrido de rir. Mas as pessoas de lá pareciam achar que estava tudo

muito bom. Começamos no campo de rúgbi, com fogos de artifício e um carro da polícia encabeçando o desfile. Em seguida vinha a fanfarra e um caminhão

aberto com o time de rúgbi em cima. Nós, animadoras de torcida, íamos logo atrás deles, em outro caminhão, acenando com os pompons e seguidas por grupos de todas as classes da escola. O último caminhão carregava a rainha e

sua princesa. Desfilamos pela entrada até chegar aos prédios dos serviços públicos, demos a volta no parque e retornamos. Isso foi tudo. Todos gritavam

para nós quando passávamos:

- Não deixe cair esses pompons, Ester!

- Que belo vozeirão, hein, Beatriz? - Está bonita hoje, hein, Laura?

Mas às vezes os comentários não eram tão bem-educados. Ester, que andava ao meu lado, fez uma careta. - Só porque ele é meu primo, pensa que pode me dizer coisas desse tipo –

resmungou ela. O jogo de rúgbi era contra os Tigers de Cody. Foi disputado e emocionante,

com bastante animação nas arquibancadas. Nunca fora a um jogo de rúgbi antes. Tudo parecia acontecer tão rápido que muitas vezes não dava nem para saber o que se passava. Apenas mantive meus olhos em Arthur, que usava a

camisa número 84. Vi que ele dava alguns piques impressionantes através do campo. Num dado momento um beque fez um longo passe que Arthur pegou

espetacularmente bem em cima da linha de saída, com um salto que fez a nós, animadoras de torcida, pararmos e observarmos, pois parecia que ele havia se desconjuntado todo ao cair. Por um momento fiquei preocupada e quase sai

correndo para ver se estava bem, mas ele imediatamente se recompôs e se ergueu, sob selvagens gritos da nossa torcida.

- Um lance de trinta jardas! – explodiu o locutor do estádio. – Com uma belíssima recepção de Arthur Aguiar! Senti-me tão orgulhosa quanto ficaria se tivesse sido eu mesma a fazer a

jogada. Então veio o intervalo, e fomos para o centro do campo para o nosso show.

Quando a nossa música começou a soar pelos alto-falantes, meus joelhos realmente tremeram. Talvez fosse por causa do frio. Nunca tinha me sentido nervosa nas minhas apresentações na Dover School, e algumas vezes havia

pessoas importantes entre o público. Pode ser que fosse pelo fato de eu sempre estar no fundo, em segundo plano, e nunca ter sido a estrela. Jamais tinha importado se eu errava ou não. Desta vez sabia que todas aquelas

garotas estavam contando comigo. A música começou. O resto das meninas se posicionou em linha, com os

pompons por cima de suas cabeças. Então entrei em cena e fiz uma série de cambalhotas de costas ao longo da fila que elas formavam, pegando meus pompons quando fazia a última cambalhota. Escutei um suspiro coletivo, e

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então todo mundo gritou e aplaudiu com um entusiasmado aguerrido. Não

podia acreditar que aquela pequena multidão pudesse fazer tanto barulho. Eles adoraram tudo o que fizemos. Gritaram e berraram, e quando finalizamos com

a pirâmide, nos ovacionaram de pé. As garotas estavam completamente loucas de excitação quando deixamos o gramado. - Vocês escutaram isso? – diziam umas às outras. – Eles adoraram! Somos um

sucesso! Ficamos famosas! Nós nos abraçávamos e pulávamos juntas, e eu estava bem no centro da festa.

- Lua, foi você quem fez isso! – disse Beatriz, apertando meu braço. - Nós todas fizemos, Beatriz! – repliquei. – Vocês se esforçaram e conseguiu aprender tudo aquilo em menos de uma semana.

- Mas não poderíamos ter feito nada sem você – afirmou Ester. – Estou tão contente por você ter vindo para a nossa escola, Lua! Aposto como vamos

ganhar o campeonato estadual deste ano! Retornamos ao campo para assistir ao resto do jogo. Os nossos garotos ganharam. Quando Arthur passou perto de mim, estendeu a mão aberta no ar

na minha direção. - Ei, Lua, toca aqui! – gritou ele.

- Vocês foram grandes em campo, Arthur! – disse eu, espalmando minha mão na dele. - E vocês também não foram nada mal – comentou ele sorrindo. – Um belo

show, na verdade. Ficamos lá de pé por uns segundos, com a multidão se avolumando à nossa

volta. - Bom, então nós dois fomos muito bem – concordei. - Está vendo – disse ele -, no fim das contas nós dois temos algo em comum:

somos ambos brilhantes! - E ambos humildes! – acrescentei com uma risada, enquanto o fluxo da

multidão começava a nos afastar um do outro. Ele olhou para trás ao ser arrastado para longe pela maré de gente. - Ei, Lua... – gritou Arthur.

Mas eu já não conseguia mais ouvi-lo. Foi difícil chegar ao vestiário. Pessoas que eu não conhecia continuavam a me

dar tapinhas nas costas e a dizer como o show havia sido incrível. Eu tinha um grande sorriso estampado na face quando cheguei à porta do vestiário e fiquei surpresa quando um dos jogadores do time me segurou pelo

braço. - Oi, novata – cumprimentou ele. – Você já está sabendo da nossa festa hoje à

noite? Alguns de nós estamos planejando uma festa de Dia das Bruxas antes do baile. Vamos nos encontrar na velha casa dos Samsom às sete. É aquela casa que tem umas árvores enormes, logo depois do posto de gasolina. Está

abandonada e por isso é um lugar perfeito para uma festa de Dia das Bruxas. Espero que você possa ir.

- Claro. Preciso levar alguma coisa? – perguntei. - Não, só você mesma. Mas não se esqueça de colocar alguma fantasia. E não comente por aí. Essa festa é só para o pessoal do time e alguns amigos mais

chegados – concluiu-o, me dando uma piscadela de cumplicidade e se afastando.

Continuei a andar com um sorriso de assombro no rosto. Estava naquele lugar havia apenas uma semana e já fazia parte de um grupo seleto, o das estrelas

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do rúgbi e das animadoras de torcida. Acho que era inevitável que aquilo me

subisse um pouco à cabeça. Depois de ter sido uma espécie de membro do segundo time na Dover School, era agora a estrela da Indian Valley High

School, e a sensação não era nada má. E logo mais me passou pela cabeça: se a festa era para os jogadores de rúgbi e seus amigos e amigas, então Arthur estaria lá, e seria algo muito natural que alguns de nós fôssemos ao baile

depois... Minha família fez um grande alvoroço ao meu redor quando cheguei em casa.

Parecia que eu ganhara uma medalha olímpica, ou algo do gênero. Tinha certeza de que toda aquela festa era em patê porque eles queriam me transmitir boas vibrações e me fazer notar o quanto eu era útil e importante por

lá. De qualquer jeito, me senti bem. Não conseguia me lembrar de nenhuma vez em toda a minha vida em que minha família tivesse me tratado como uma

heroína. - Você era a melhor, Lua! – disse Ana, me abraçando. - Não a elogiem tanto – grunhiu vovô. – O peito dela vai inflar tanto que vou ter

de construir uma porta mais larga para que ela possa passar. - Mas foi a melhor, não foi? – insistiu Daniel. – Você mesmo disse que ela era

incrível, eu ouvi muito bem. - Hum! – grunhiu ele de novo, fingindo estar ocupado com o fogo na lareira. – Vão pensar que eu tenho um circo como família, com a Lua saltando pelos ares

desse jeito. Bom, agora vou me sentar e ler. Fiquei muito tempo de pé hoje. Esses jogos de rúgbi são intermináveis.

Então ele se deixou cair pesadamente na poltrona, largando as suas muletas no assoalho. Meus pais olharam um para o outro e sorriram. - Ele ficou muito impressionado, Lua – sussurrou papai. – Não parava de dizer

a todo mundo que você era a neta dele. Só que agora está encabulado. Continuamos a conversar sobre o jogo e o desfile durante todo o jantar. Não

sei quem se divertiu mais naquele dia, se eu ou a minha família. - Preciso me arrumar – disse eu, quando acabamos de comer. – Fui convidada para uma seleta festa de Dia das Bruxas, e ainda tenho de inventar uma

fantasia. - Você poderia ser uma bruxa, como eu – sugeriu Ana.

- Não tenho tempo de criar uma fantasia de bruxa agora. Vou lá em cima ver o que dá para fazer. Olhei no meu armário e decidi que o único jeito seria ir fantasiada de hippie, já

que tinha muitas roupas dos anos 70. Escolhi uma calça boca-de-sino e uma blusa tomara-que-caia bem justa. Trancei os meus cabelos, coloquei uma faixa

na cabeça e pintei um símbolo da paz na testa. Achei que tinha ficado ótima e saí na direção da casa dos Samsom, seguindo as instruções do vovô. No caminho cruzei com um pirata e um fantasma “anões” à caça de adultos para

as suas brincadeiras de Dia das Bruxas. Havia pequenos lampiões acesos ao lado de fora das portas das maiorias das casas. As árvores dançavam e

rangiam com o vento. Era a primeira vez que viva um Dia das Bruxas realmente fantasmagórico, com toda a ambientação apropriada, e estava gostando da sensação de estar sozinha no meio da noite escura e fria.

O velho e raquítico portão da casa dos Samsom estava aberto quando cheguei. No meio da escuridão mal conseguia distinguir a silhueta do velho casarão.

Não havia nem sinal de luz nas janelas, e me perguntei se os garotos as teriam pintado de preto para obter o melhor efeito. “Eles sabem como fazer essas

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coisas aqui no Wyoming”, pensei. “Meus amigos de Nova York não teriam se

dado a todo esse trabalho.” Olhei em volta na esperança de ver outras pessoas chegando, mas o caminho

em direção a casa estava escuro e deserto. As velhas árvores rangiam enquanto eu andava. Pouco antes de chegar ao casarão, atravessei uma pequena e velha ponte por cima de um estreito riacho e finalmente subi os

degraus que conduziam até a porta da frente. Parei na varanda, esperando e tentando ouvir algum som, algum sinal de vida. Nada. “Deve ser cedo ainda”,

pensei. “talvez eles ainda estejam armando tudo numa sala no fundo da casa.” Hesitante, bati na porta. - Oi! – chamei. – Tem alguém ai?

Pareceu-me ter visto um leve e trêmulo brilho de uma luz se apagando à minha esquerda. Eu estava certa. Eles estavam numa sala no fundo da casa.

Provavelmente com o som alto e não conseguiam ouvir quem chegava. Atravessei o hall de entrada e comecei a andar por um corredor lateral. Subitamente um violento clarão se acendeu como se fossem os faróis altos de

um carro na estrada. E ali, bem na minha frente, surgiu aquela... Coisa. Ela estava flutuando no arco da porta, branca, fantasmagórica, assustadora.

Gemeu e começou a ondular na minha direção. - Ah! – gritei, tropeçando para trás. Estiquei minha mão na total escuridão, esperando encontrar uma parede. Em

vez disso, encostei-me a uma viscosa teia de aranha. Virei-me e saí correndo da casa o mais rápido que pude. Enquanto tropeçava pelas escadas abaixo,

olhei para trás. O fantasma ainda parecia estar vindo no meu encalço. Fugi pelo caminho em direção à ponte e já estava colocando os pés nela quando descobri que não havia mais ponte alguma. Gritei de novo, respirei fundo e caí,

aterrissando de joelhos na água gelada do riacho. Um grande troar de gargalhadas explodiu, e inúmeras lanternas se acenderam.

Lá estavam todos, rindo e apontando para mim, que continuava de pé no meio do riacho, horrorizada e desamparada. - Ei, nova-iorquina, bem-vinda ao Wyoming – rugiu uma voz masculina.

- Você não vai sair daí dando umas cambalhotas? Que tal uns saltos-mortais agora? Ah, ah, ah!

E mais e mais risadas estúpidas. Reconheci os rostos dos garotos do time de rúgbi, todos parecendo horripilantes com a luz irregular das lanternas. Saí da água gelada com a máxima dignidade que pude. Não foi fácil, com

aquelas calças boca-de-sino encharcado, que de repente pareciam pesar uma tonelada, e os sapatos plataformas de sola de cortiça, que guinchavam quando

eu pisava. - Vou explicar a vocês qual é a diferença entre os garotos de Nova York e os daqui – disse eu com imponência. – Lá já estão crescidinhos no colegial. Já

são homens e não uns moleques patéticos como vocês. Não me surpreende que tenham de passar o Dia das Bruxas desse jeito. É porque nenhuma garota

ia querer sair com uns idiotas imaturos como vocês. Agora saiam da minha frente e fiquem longe de mim! Houve mais risadas. Saí aos empurrões por entre eles e rumei em direção ao

portão, e já estava quase saindo quando vi Arthur lá, parado. - Até posso entender que esses imbecis tenham feito isso comigo – ponderei,

tentando não gritar. – Mas pensei que você fosse meu amigo. Lá de onde eu venho, amigos são pessoas em quem se pode confiar. Meus amigos nunca me

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fariam algo assim.

Ele tentou segurar meu braço. - Lua, escute, eu não...

- Fique longe de mim! – gritei, afastando-o. – Não chegue perto de mim de novo. O que acaba de acontecer apenas demonstra o que eu já sabia: que este lugar é uma droga!

Abri caminho afastando-o e tomei a estrada de volta para casa. Escutei Arthur gritando por trás de mim, mas simplesmente andei mais e mais rápido, até

chegar em casa. Daniel e Ana estavam no hall de entrada junto com meu pai. Acabavam de chegar da festa de Dia das Bruxas da escola de Ana.

- Lua, o que aconteceu? – perguntou papai. - Você fez isto comigo! – berrei. – Você me trouxe aqui e me colocou nesta

situação. Minha vida está totalmente arruinada, nunca mais vou ser feliz até me deixar voltar para o meu lugar!

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Capítulo dez: Animando a torcida Escondida embaixo do meu edredom jurei que não cometeria o mesmo erro de novo. Por um estúpido momento tinha chegado a pensar que apesar de tudo poderia ser feliz no Wyoming, mas agora já sabia que isso não iria acontecer.

Odiava aquele lugar e não queria mais fazer amizade com ninguém, muito menos com Arthur Aguiar. No que me cabia, ele não existia mais. Nunca o

perdoaria. Nunca, nunca, nunca.

Minha mãe me disse que Arthur telefonara várias vezes, mas eu disse a ela

que nunca mais queria falar com ele. E era sério. No ônibus escolar me sentei sozinha e fiquei o tempo todo lendo um livro. Não levantei a vista nenhuma vez.

Sempre que percebia que Arthur estava olhando na minha direção, ou vindo à minha direção, me virava para o lado oposto. Tinha decidido abandonar a animação de torcida também, mas, quando contei isso a Ester, ela ficou

arrasada. - Lua, você não pode nos deixar agora! Simplesmente não pode! - implorou.

- E por que eu deveria fazer algo por esta droga de escola? – perguntei. – Não vejo a hora de voltar para Nova York, onde as pessoas são civilizadas. - Tudo bem, os meninos fizeram uma brincadeira de mau gosto com você –

disse ela. – Mas eles sempre fazem isso com os alunos novos. Não havia intenção de ofender. Só estavam querendo pôr você no seu lugar, porque ficou

com todas as glorias no dia do jogo. Você sabe que os jogadores de rúgbi têm um ego enorme... – explicou ela, me dando um grande e esperançoso sorriso. - Alguns deles, talvez – repliquei. – Mas há um que não posso perdoar de jeito

nenhum. - Qual?

- Arthur Aguiar. Justo quando parecia... Cortei a frase quando senti que um soluço ameaçava explodir na minha garganta. Respirei fundo e continuei:

- Eu realmente pensava que ele gostava de mim, Ester. - Ah, Lua, tenho certeza que Arthur... – começou ela.

Balancei a cabeça negando com firmeza. - Foi igualzinho à primeira vez que estive aqui. Tinha gostado de Arthur e achava que estávamos nos tornando bons amigos e nos divertimos bastante.

Mas daí ele colocou aquele sapo horrendo nas minhas costas. Ester pareceu horrorizada.

- Quando foi isso? - Quando eu tinha dez anos – confessei. Os lábios de Ester estremeceram e então ela rompeu a rir.

- Ah, Lua! Todos os meninos de dez anos fazem essas bobagens! - Espera-se que já tenha crescido um pouco aos dezesseis – retruquei. – Mas

não se preocupe. Não vou dar mais nenhuma chance a ele. Vou ficar longe de Arthur e de todos os amigos retardados dele. Aliás, vou ficar longe de todo mundo. Só quero que me deixem sozinha e em paz!

Ela pareceu magoada. - Então você não vai mais mesmo continuar a trabalhar com a nossa equipe de

animadoras de torcida? Quer dizer que não vamos mais ao campeonato estadual?

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- E como posso ter certeza de que vocês todas não estavam envolvidas

naquela brincadeira estúpida do Dia das Bruxas? – interroguei, sabendo que não era verdade.

- Lua, juro que nenhuma de nós sabia nada a respeito daquilo. Teríamos avisado você. Nós, garotas, sempre ficamos unidas nessa escola. Os rapazes querem mandar em tudo e que tudo seja do jeito deles. Sempre foi assim. É

por isso que é tão importante e incrível termos essa chance de ir ao campeonato estadual deste ano.

- Tudo bem – disse eu, rudemente. – vou treinar vocês todos os dias na hora do almoço. Mas isso é tudo o que vou fazer. E foi exatamente o que fiz. Trabalhei com Ester e as outras no campo nos dias

de sol e no ginásio nos dias de chuva. E depois da escola voltava para casa com o nariz enfiado num livro, fazia minha lição de casa e ia para cama. Que

vida emocionante, não? Isso foi o que contei a Chay por carta. Você não precisa se preocupar com a possibilidade de eu encontrar alguém

por aqui, escrevi. Não há nenhum cara para quem eu olharia duas vezes. São todos uns retardados, uns adolescentes repulsivos, com uma idade mental de

dois anos. Eu podia imaginar Chay sentado num banco do Central Park, me olhando com aquele seu jeito todo especial. Sinto tanto a sua falta..., terminei. Peguei a última carta dele e reli. Inúmeras novidades sobre os professores da

escola, sobre como Sophia tinha conseguido entrar numa danceteria com uma carteira de identidade falsa, e várias outras amenidades. Mas nada a respeito

de como ele estava se sentindo, ou quanto sentia a minha falta. Suspirando, coloquei a carta de lado. Os nossos telefonemas não haviam sido muito melhores. Já havia implorado

para colocarem uma extensão no meu quarto, mas por enquanto ia ter de fazer os meus telefonemas do hall de entrada, morrendo de frio e com todo mundo

escutando cada uma das minhas palavras. Chay tinha me prometido telefonar todas as noites, mas a frequência tinha caído para uma curta ligação por semana.

Dei uma sugada na caneta e olhei pela janela. O outono já estava se transformando em inverno. As folhas amareladas tinham ficado castanho-

escuros e a maioria delas jaziam em grandes montes ao longo do quintal, deixando as árvores em seus esqueletos. As montanhas não estavam mais apenas encapuzadas de neve. Ela já se estendia em grandes lençóis brancos

pelas encostas, quase chegando às árvores que ficavam mais abaixo. Havia geado pelas manhãs, fazendo os campos faiscarem sob a luz matutina.

Imaginei que o outono deveria estar se transformando em inverno lá em casa também, mas lá eu nunca havia reparado nessa fase de transação. O aquecimento central sempre era ligado automaticamente no nosso edifício.

Colocávamos os nossos casacos de inverno quando fazia frio e pegávamos os nossos guarda-chuvas quando chovia, mas isso era tudo.

Outros pequenos milagres começaram a acontecer. O pão de mamãe tornou-se comestível. Papai pegou a sua velha escrivaninha no meu quarto, levou-a para o sótão, se sentou lá com um fogareiro de querosene servindo de

aquecedor e digitou as palavras “Capítulo Um” em seu notebook. Um companheiro de escola de Ana prometeu a ela dar-lhe um cordeirinho de

estimação na primavera, e Daniel não voltou para casa com as marcas da última briga no corpo. Na verdade ele estava ficando conhecido na escola

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como o menino mais inteligente da classe, um Doutor Sabe-Tudo, e estava

adorando. De forma que acho que se poderia dizer que todos nós estávamos mais ou

menos adaptados ao Wyoming lá pela época em que veio a primeira nevada. Ela nos pegou de surpresa, nos acordando numa manhã com uma luz fria e azulada e deixando o campo quase irreconhecível. O gado estava parado num

cantinho do pasto, como com pena de si próprio, o bafo dos animais saindo como nuvens de vapor de suas narinas e bocas. A neve chegou a cobrir as

minhas botas quando caminhei até a estrada, e o ônibus escolar apareceu quinze minutos atrasado. Alguns alunos nem sequer foram à escola aquele dia, já que muito dos sítios e fazendas ficaram bloqueados até que as máquinas

limpa-neves pudessem abrir caminho. E muitos outros permaneceram em casa, com gripe.

Eu sempre achava que nós todos éramos muito saudáveis, porque raramente ficávamos doentes em Nova York. Mas certa noite Daniel reclamou que estava com a garganta doendo, e papai disse que a dele também. Na manhã seguinte

ambos estavam com febre, e mamãe tinha uma forte dor de cabeça. Continuei esperando que a minha garganta e a minha cabeça começasse a

doer também, mas nada aconteceu. Lá pelo fim da semana vovô e eu éramos os únicos membros da família que não estavam de cama. - Bom, Lua, está tudo em suas mãos agora – disse ele, aparecendo na cozinha

quando eu fazia um chá de ervas medicinal para os pacientes do andar de cima.

- O que está em minhas mãos? – perguntei. - Tudo. O sítio. Ainda estou inutilizado com esta perna que não sara, e por isso estou contando com você. Precisamos de mais lenha antes de você ir para a

escola. E não se esqueça de tirar o leite e alimentar as galinhas, está bem? - Mas o que você está pensando que eu sou? Uma escrava? – interpelei. – A

escravidão foi abolida nos tempos de Abraham Lincoln. - Alguém tem de fazer isso – ponderou-o. – Todos os garotos e garotas da região são capazes de cumprir essas tarefas simples. Alguns deles têm de

ordenhar um rebanho leiteiro antes de ir para a escola. Ele apontou para a porta, imperativo.

- Vá buscar o leite e a lenha, e eu termino de preparar o café da manhã. Coloquei o meu casado e as minhas botas e me arrastei até o estábulo para tirar o leite. Depois, quando fui pegar a lenha, descobri que só havia duas ou

três toras já rachadas. Nunca em minha vida tinha rachado lenha. Na verdade, mesmo com os meus princípios feministas, achava que cortar lenha era

trabalho para homens. Mas, como vovô já dissera alguém tinha de fazer o serviço. A casa não ficaria quente o suficiente sem um grande fogo na lareira. Apertei os dentes de raiva e fui buscar o machado. Em seguida peguei uma

tora que me pareceu adequada, bati o machado com toda a minha força e constatei que não tinha conseguido dar nada mais do que uma pequena

dentada na madeira. - Você não vai me derrotar! - murmurei para o pedaço de tronco. Coloquei-o de pé e desci de novo o machado sobre ele com toda a força, uma

e outra vez. De repente ele se abriu em duas peças. Depois de meia hora de suor e de ter quase arrancado o meu dedão do pé com uma machadada por

uma questão de milímetros, cambaleei de volta para a casa com a lenha nos braços.

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- Bom, acho que vamos ter de nos virar só com isso – murmurou vovô.

- “Só com isso?” – repliquei indignada. – Vou perder o ônibus escolar se não me apressar. Não vou ter tempo de arrumar os cabelos e me maquiar, e você

não é capaz nem de dizer “obrigado”? Cortar madeira não é trabalho de garotas, sabia? - É mesmo? – disse ele.

Pude perceber um sorriso safado no rosto dele quando saí de novo para jogar milho para as malditas galinhas. Quando voltei, vovô apontou para uma

bandeja em cima da mesa. - É melhor você subir o café para eles – sugeriu. – Eu ainda não dou conta de enfrentar essas escadas.

Estava começando a me sentir aprisionada num desses pesadelos dos quais não há saída. Agarrei a bandeja com raiva, derramando o chá nas xícaras, e

rumei para as escadas. Toda a minha família jazia nas camas e gemia. Ninguém quis os ovos que vovô tinha preparado e ninguém me agradeceu por levar os alimentos. Agora sabia muito bem como Cinderela se sentira. Se uma

fada madrinha não aparecesse num futuro próximo, eu iria pensar seriamente em fugir daquela casa!

Quando cheguei na estrada o ônibus já estava começando a ir embora. Gritei, ele parou de novo. Caras risonhas se apertavam contra os vidros, gritando comentários cretinos enquanto eu corria até o ônibus.

- O que aconteceu? Dormiu demais? – perguntou Arthur com gentileza. Limitei-me a lhe lançar o mais frio dos olhares.

Mal consegui ficar acordada nas aulas durante o resto do dia, e estava morta de cansaço e toda dolorida quando cheguei em casa à noite. Vovô tinha feito sopa, e a minha primeira tarefa foi levá-la para os doentes. Depois tive de

cortar mais lenha, subir mais chá... Era como ser um hamster numa daquelas gaiolas com uma pequena roda giratória. Quanto eu mais corria. Mais tarefas

surgiam. Por volta das nove da noite já me preparava para ir para a cama quando o telefone tocou. Era Chay. - Estamos todos numa festa na casa da Mel, e achamos que seria legal te ligar

– disse ele, animado. – Estamos ouvindo um som bem legal. Escute só o novo CD do Smashing Pumpkins que Mel comprou.

Ele segurou o fone da direção dos alto-falantes, e pude ouvir uma mistura de música a todo volume, vozes e risadas. - Gostou? – ele voltou a falar – A Sophia está aqui e quer dar uma palavrinha

com você. - Espere aí, Chay, eu preciso falar... – comecei, mas ele já havia passado o

fone para outra pessoa. Um a um, todos os meus amigos vieram dizer algo no telefone. - Oi, Lua! Estamos com saudades! Queríamos que você estivesse aqui...

Senti uma lágrima começar a rolar pela minha bochecha, e percebi depois de eles terem desligado que ninguém tinha me perguntado como a minha noite de

sexta-feira estava sendo. Fui para a cama, puxei a coberta para cima da cabeça e caí exausta num sono profundo. Na manhã seguinte foi tudo igual de novo: lenha, galinhas, leite, bandejas de

café da manhã. Felizmente era sábado. Quando estava terminando o meu próprio café da manhã, vovô me encarou do outro lado da mesa.

- Você já sabe dirigir? – perguntou ele.

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- Não. Papai não quis que eu aprendesse na cidade, e ainda não tenho

dezesseis anos. Vovô grunhiu, como que confirmando que eu não seria útil.

- Bom pelo menos alguma ideia de como fazer a coisa você deve ter – continuou ele. – Alguém tem de ir alimentar o gado. Deviam ter sido feito uns dois dias atrás, mas seu pai ficou doente. Tudo o que você tem de fazer é

encher a carreta com os fardos de feno e depois puxá-la com o trator até o pasto. Não tem mistério. Vou ver se consigo atravessar o quintal para pelo

menos ajudar você a dar a partida. - Não posso dirigir um trator e uma carreta! – exclamei horrorizada, me lembrando do monstruoso trator que tinha visto papai dirigindo. – Nunca dirigi

nem mesmo um carro! - O gado não pode ficar esfomeado – disse vovô. – E dirigir um trator é muito

mais fácil do que dirigir um carro. Atravessamos lentamente o quintal coberto de neve em direção ao celeiro. O trator me pareceu ainda maior do que eu me lembrava. Precisei de toda a

minha força para carregar a carreta com os fardos de feno, e minhas pernas tremiam quando subi para o assento lá no alto.

- Muito bem, agora gire a chave e dê umas aceleradas – ordenou vovô lá de baixo. O pedal fica ali. Mais forte. Pode apertar fundo. O motor ressuscitou com um grande rugido. O trator inteiro tremia de cima a

baixo. - Agora pise na embreagem e... Não, não com esse pé! O outro! E agora ponha

em primeira. Para frente e para cima. Use os músculos. Isso, assim está bem. Agora vá soltando a embreagem devagar, e lá vai você. Eu fui soltando o pedal, e o trator deu um solavanco para frente sem morrer.

Fui atravessando o quintal devagar, aos trancos e com sofrimento, e peguei o caminho que subia para o pasto. No fim do caminho havia uma porteira. Eu me

arranjei para puxar o breque, descer do trator, abrir a porteira, subir de novo, e continuar em frente. Havia algumas cabeças de gado no fim do pasto, mas a maioria estava bem mais para o fundo, pequenas manchas escuras na neve

branca que cobria o sopé da montanha. Continuei a rodar mais um pouco antes de parar de novo, trepar na carreta e

despejar o primeiro fardo de feno. Repeti essa operação mais um par de vezes, e subitamente percebi que estava rodando em neve profunda. Quando a neve sobre passou a altura das rodas, o trator atolou e parou. Não consegui fazê-lo

andar de novo. Não queria de jeito nenhum pular para a neve e voltar a pé. Era uma longa caminhada até a casa, e tinha certeza de que vovô iria me dar uma

bronca por abandonar o seu precioso trator no meio do campo. Fiquei lá sentada, sem saber o que fazer. “Muito bem, fada madrinha”, pensei em voz alta, “onde você se enfia quando preciso de você?”

Foi nesse momento que ouvi um grito atrás de mim e o som de um cavalo galopando na neve.

- Ei, você! – gritou um homem. – A sua porteira está aberta e o gado está saindo! Quando ele se aproximou não me surpreendi ao ver que era Arthur.

- Você deixou o portão aberto! – gritou ele, acusador. – Agora o seu gado está vagando por ai.

- Ah, que bom! – gritei. – Realmente uma maravilha! Era só o que me faltava para completar o meu dia!

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Ele me olhou com um ar de surpresa, como se acabasse de perceber quem eu

era. - Lua, o que você está fazendo ai?

- Boa pergunta – respondi. – Estava pensando exatamente a mesma coisa. Não foi ideia minha, pode acreditar. Meu rabugento avô me informou que o gado precisava ser alimentado, e não havia ninguém para fazer isso, da

mesma forma que não havia ninguém para cortar a lenha, alimentar as galinhas, tirar o leite... Qualquer coisa que você nomear eu fiz.

- E os seus pais? - Eles estão doentes – disse eu. – todo mundo está com gripe, menos eu e o vovô.

- Então você está fazendo tudo sozinha? – perguntou ele, solidário. – Caramba, isso é dureza. Eu estava a caminho da cidade, mas aguenta aí que vou

recolher o seu gado e já venho lhe dar uma mão. Só pude ficar lá sentada, esperando e olhando. Um pouco depois Arthur reapareceu, com cinco novilhos andando na frente dele. Ele jogou um fardo de

feno para eles, e os animais começaram a comer. - Agora ligue o trator e dê uma ré, devagar – disse ele.

- Não consigo ligar o trator e não sei como dar marcha ré. Nunca dirigi em minha vida – confessei. - Você não sabe dirigir?

Balancei a cabeça negativamente. - Então preciso lhe dizer que você se saiu incrivelmente bem só por ter

chegado até aqui – elogiou-o. – Venha, desça aqui e segure o meu cavalo enquanto desatolo o trator. Ele escorregou do cavalo e foi abrindo caminho no meio da neve até o trator.

Então, esticou o braço para me ajudar a descer, me segurou no ar como se eu não tivesse peso algum e voltou através da neve em direção ao cavalo, comigo

em seus braços. Estava plenamente consciente da sensação que me produziam o calor, a proximidade e a força dele.

- Você não come o suficiente, garota – observou ele sorrindo. – Eu poderia tranquilamente carregar você daqui até Cody.

- Gostaria que você pudesse me carregar até Nova York – disse eu. - Eu carregaria se pudesse – replicou Arthur. – Se achasse que isso faria você feliz.

- Ah, claro! Até parece! – retruquei com uma risada amarga. – Vai me carregar até o próximo monte de neve mais profundo que encontrar e então vai me jogar

nele e dar mais umas boas risadas à minha custa. Se quiser, espero até você ir chamar os seus colegas, assim eles podem rir também. - Lua, do que você está falando? – perguntou, me descendo suavemente até o

chão. - Como se você não soubesse! Vi você lá, no Dia das Bruxas. Estava junto com

aquele monte de imbecis, me assistindo a quase morrer de terror e depois cair no riacho gelado. Aposto como se divertiu à beça, como quando colocou sapo nas minhas costas.

- Não dá para você esquecer essa historia do sapo? – disse ele. – Eu tinha só dez anos, caramba, e fiz aquilo porque não sabia como te dizer que gostava de

você. - Você gostava de mim? Pois encontrou uma bela maneira de demonstrar isso.

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- Eu sei – concordou. – Eu era um garoto bobo e desajeitado. Não sabia como

lhe dar com as meninas. Mas não participei daquela armação do Dia das Bruxas, pense você o que quiser pensar.

- Ah é? Mas vi você – disse meio trêmula e hesitante. Ele ainda estava muito próximo de mim. - Você me viu correndo pelo caminho para adverti-la – corrigiu ele. – Só que

cheguei tarde demais. Estava na casa de um amigo quando fiquei sabendo do que eles planejavam fazer. Corri com a caminhonete até a sua casa, mas você

já havia saído, e então fui como um louco a casa dos Samsom. E cheguei tarde. Você não me deu a chance de explicar. Arthur quisera me ajudar! Ele fora tentar me salvar!

- É... – comecei a falar devagar. – Não dei... Tinha certeza de que estava envolvido naquilo.

Levantei os olhos na direção de seu rosto forte e expressivo, suas bochechas avermelhadas pelo ar frio. - Sinto muito... – conclui.

- Tudo bem – disse ele, com o rosto se abrindo num sorriso que fez surgirem umas adoráveis linhas nos cantos dos olhos. – Acho que teria sentido o mesmo

se alguém tivesse me assaltado no meio da cidade de Nova York. Especialmente se estivesse longe dos meus amigos – acrescentou, dando ênfase a ultima palavra.

- Bom, acho que estou aprendendo a sobreviver bastante bem sem esses amigos – disse eu, insegura. – E Nova York está tão longe agora...

Ficamos lá de pé, olhando fixo um para o outro. Era como se houvesse um magnetismo circulando entre nós dois. - Então você acha que talvez esteja ficando um pouco mais disposta a dar uma

chance a este fim de mundo, afinal? – perguntou Arthur, suavemente. - Acho que seria uma idiota se não desse – respondi.

Um alto mugido soou bem atrás de nós, jogando-nos subitamente de volta à realidade. - Gado chato – grunhiu Arthur. – Eles estão reclamando porque nós não lhes

demos o resto da comida ainda. Venha, vamos dar logo a partida nesse trator velho antes que vire uma pedra de gelo, e ai você pode dirigir enquanto vou

jogando o feno. Ele pulou para cima do assento. Fiquei lá olhando e matutando. Se o mugido do gado não tivesse nos interrompido, acho que Arthur teria me beijado bem

ali.

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Capítulo onze: Uma janela para o amor Arthur fez o trator pegar, e eu dirigi lentamente. Subindo o resto da ladeira do pasto com ele na carreta jogando fardos de feno a intervalos regulares.

- Isso deve mantê-los felizes por uns dias – concluiu. – Agora vamos vê-la levar o trator de volta sozinha – comentou, aparentando total confiança em que eu

seria capaz de fazer aquilo. Consegui dirigir todo o caminho de volta até o quintal, enquanto ele me seguia atrás com seu cavalo.

- Certo – disse ele, amarrando o cavalo ao mourão da porteira. – Que outras coisas precisam ser feitas?

- Você não tem de ir a outro lugar? – perguntei. - Está tentando se livrar de mim? – replicou Arthur. - Você está louco? Não queria nem me livrar do monstro Frankenstein se ele

estivesse querendo me ajudar. Arthur riu.

- Muito bem minha ama. Estou às suas ordens! – exclamou com uma voz diferente e começando a andar como um monstro em direção a casa. Corri até ele.

- Arthur. Isso é mesmo muito gentil da sua parte e fico muito grata, mas você não estava indo fazer algo quando me viu lá no meio da neve?

- Bom isso pode esperar – respondeu ele, sorrindo. Meu estomago deu uma ligeira contraída. - Nesse caso – disse eu –, adoraria que você me desse uma mão com a lenha.

Sou uma negação para rachar toras. - Essas ai não parecem tão ruins – observou, reparou nos poucos e patéticos

pedaços que eu tinha cortado de manhã. – Você pegou o jeito realmente rápido. Ele pegou a tora e a partiu com uma única e fácil machadada.

- Ah, tá bom – brinquei, rindo das minhas débeis tentativas ao ver a facilidade com que ele partia a madeira. – Com certeza peguei o jeito. Levo meia hora

para conseguir uns pedacinhos miseráveis, e você faz isso num piscar de olhos. - Mas fiz isso a minha vida inteira! Você teve de aprender muita coisa muito

rápido e de uma só vez. - É bom ouvi isso – concordei.

Enquanto carregava uma braçada de lenha para levar para dentro de casa, repassei mentalmente tudo o que havia feito: o trator e os fardos de feno, a lenha, o leite, as galinhas, cuidar de quatro pessoas doentes... E fiquei

bastante impressionada comigo mesma. Era a primeira vez em minha vida que tinha que fazer algo realmente duro, e conseguira. Em Nova York sempre

esperara que alguém tomasse conta de mim enquanto me divertia. Nunca precisara fazer nada que fosse realmente um desafio, como as coisas que estava fazendo agora. Senti-me autêntica. E orgulhosa de mim mesma.

- Vamos levar esse carregamento de lenha para dentro – sugeriu Arthur – e então vemos o que mais precisa ser feito.

- Isso é muito legal da sua parte, Arthur – agradeci novamente. - Sempre ajudamos os vizinhos por aqui – afirmou. – Faz parte do código de honra das montanhas.

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No começo pensei que estava falando sério. Mas logo percebi um brilho maroto

em seu olhar. - Ora, Arthur, sem essa – disse rindo, dando-lhe uma pequena cotovelada. –

Não acredito que você seja mesmo o montanhês rústico por que se faz passar. Arthur sorriu e foi andando na minha frente rumo a casa. - Agora sim! – ouvi vovô dizendo quando viu Arthur se aproximar com os

braços cheios de lenha. – Ela conseguiu trazer o meu trator de volta em uma peça só, Arthur?

- Com certeza, Sr. Blanco – Arthur respondeu. – Ela fez o serviço como uma profissional. O senhor arranjou uma neta muito bem-dotada. - Eu estava pensando a mesma coisa – assentiu vovô. – Lembra-me bastante a

avó dela. Parei no corredor e olhei surpresa para o meu avô. Então no fim das contas ele

não me achava uma mimada e inútil! Mas porque não podia vir me dizer essas coisas pessoalmente? Havia construído um muro protetor envolta de si mesmo e não parecia disposto a derrubá-lo tão cedo.

Quando entrei na sala com os braços carregados de lenha, vovô me olhou sem expressão alguma.

- Perdeu algum dedo do pé hoje? – rosnou ele. – Ou Arthur mostrou a você o jeito certo de fazer isso? - Estou mostrando a ela o jeito certo de fazer várias coisas – interrompeu

Arthur, com seus olhos flertando comigo de uma forma tão descarada que eu corei, mesmo não tendo nenhuma razão para isso. – O que mais precisa ser

feito, Sr. Blanco? - Já que você se oferece, estava pensando que seria bom limpar a neve do caminho de entrada, para o caso de nevar mais depois.

- Sem problemas – disse Arthur. – Vamos lá, Lua. Mostre-me onde estão as pás. Isso vai fortalecer os seus músculos.

Um mês antes eu teria reclamado como uma louca por ter de limpar a neve da entrada com uma pá. Mas por alguma razão a ideia me pareceu divertida naquele dia. Troquei as minhas luvas sujas e molhadas por outras limpas e

secas, e me dirigi para a porta da frente. - O último a chegar é mulher do padre! – gritei.

Nós dois saímos aos trancos e barrancos pelo corredor e chagamos a porta ao mesmo tempo, rindo alto, soltando gritos e lutamos para ver quem conseguia passar primeiro.

- Não façam tanto barulho! – disse Daniel lá de cima. – Estou com dor de cabeça. E, já que vocês estão ai, daria para alguém me trazer um pouco de

molho apimentado, umas batatinhas e uma taça de sorvete? - Parece que alguém está sarando – comentou Arthur sorrindo, enquanto se afastava para me deixar passar pela porta primeiro.

- Se você está bom o suficiente para comer molho apimentado, então também está bom o suficiente para descer aqui e se servir! – vociferei.

Não houve resposta. Encontramos as pás e trabalhamos na neve profunda no fim do caminho de entrada do rancho. Era trabalho duro. Depois de pouco tempo a neve parecia

tão pesada quanto o cimento, e tinha a sensação de que minhas mãos iam se partir a qualquer momento. Mas Arthur estava lá do meu lado, trabalhando dez

vezes mais duro do que eu.

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- Ei, Lua! – chamou ele quando eu já estava aponto de sugerir que

parássemos. Levantei os olhos para ele e uma bola de neve veio explodir bem na minha

cara. - Você pediu e vai ter! – gritei. Preparei também uma bela bola de neve e a atirei nele.

- Errou! – retrucou Arthur. - Brincadeira besta – disse eu. – Não vamos conseguir terminar de limpar o

caminho antes de escurecer se não voltarmos ao trabalho já. Comecei a trabalhar com a pá de novo, mas fiquei vigiando Arthur com o canto do olho. Dissimuladamente preparei mais uma bola de neve com as mãos e,

justo quando ele estava se curvando para levantar uma grande massa de neve com sua pá, deslizei por trás dele e enfiei a bola por dentro de seu colarinho.

- Isso é por ter colocado um sapo nas minhas costas! – grunhi, pulando e dançando ao redor de Arthur enquanto ele tentava tirar a bola de neve de dentro da sua camisa.

- Agora você vai ter garota! – disse ele. Joguei no chão a minha pá e saí em disparada quando vi que ele já vinha na

minha direção. Tentei correr, mas a neve estava terrivelmente profunda, e Arthur conseguia ser mais rápido do que eu. Nós nos aproximávamos da casa. O quintal com o celeiro e o barracão estava à nossa direita, e havia uma cerca

entre nós e o celeiro. Eu sabia que algum dia todos aqueles anos de ginástica olímpica iriam ser úteis. Aproximei-me da cerca e voei por cima dela com um

pulo. - Não é justo! - gritou ele. – Tinha me esquecido dessas suas habilidades circenses!

Ficamos lá, com a cerca nos separando, em pé e rindo desafiadoramente um para o outro.

- Volte aqui – disse Arthur. – Temos de acabar de limpar o caminho. - Só se me prometer não jogar mais bolas de neve em mim. - Certo, eu prometo.

Escalei a cerca, e Arthur esticou os braços para me pegar quando eu pulei. Ficamos em silêncio de mãos dadas, nos olhando.

- Tem uns flocos de neve nos seus cílios – observou ele por fim. – Fazem você ficar incrivelmente bela. - Como é, é para hoje ou para amanhã que eu vou ver esse caminho limpo? –

esbravejou vovô da porta da casa. – E você pergunte ao rapaz aí se ele não quer almoçar – acrescentou, dirigindo-se a mim. – Vocês ainda não comeram e

já são quase três da tarde. Fiz uma grande panela de ensopado. Olhei interrogativamente para Arthur. - Você não tinha outras coisas para fazer hoje?

- Nada importante. Fica para depois – respondeu. Terminamos o nosso trabalho e depois andamos num amigável silêncio pelo

caminho agora limpo e cheio de listras amarelas pintadas na neve pelo sol. Vovô já havia posto a mesa e nós nos lançamos com avidez às nossas enormes tigelas de ensopado, praticamente terminamos com elas antes de

fazer a primeira pausa para conversar. Arthur olhou para mim.

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- Eu estava matutando... – começou ele devagar – Se não for fazer nada de

especial hoje, você gostaria de... Pensei que talvez pudesse gostar de fazermos algo juntos. Dar uma volta por aí, sair um pouco de casa...

- Claro – respondi. – Seria ótimo. Só preciso trocar essas roupas indecentes. Já volto. Antes disso, levei uma última bandeja de comida para os inválidos. Percebi que

já estavam melhorando porque todos reclamaram que não gostavam de ensopado. Daniel queria pizza e Ana, sorvete de chocolate. Tomei um banho

rápido e vesti uns jeans sem rasgões nos joelhos e uma bela camisa de seda. Meus cabelos ainda estavam úmidos depois de uma rápida secada com o secador.

- Opa! Foi mesmo super-rápido – observou Arthur, quando retornei à sala, aprovando o meu aspecto com um movimento de cabeça. – Eu ia sugerir que

fôssemos dançar, mas depois me ocorreu que provavelmente você já teve atividade física de sobra por hoje. Concordei com um gesto de cabeça.

- Você está certo. Duvido que consiga fazer minhas pernas dançarem agora. Não sei nem se consigo fazê-las chegar até a sua caminhonete.

- Que tal um filme então? – perguntou ele. - Um filme? – exclamei maravilhada. – Então há cinema em Cody? - Bom, não exatamente – respondeu ele, meio embaraçado. – Tem um

videoclube. Agente podia tirar uma fita. - Isso já é bom o bastante para alguém que está há semanas sem televisão –

desabafei. – Você vai ficar bem, vovô? – perguntei. - Vá em frente. Divirtam-se. Vocês estão merecendo – respondeu meu avô. - Vamos lá então – disse Arthur pegando na minha mão e me levando até a

porta da frente.

Rodamos quarenta quilômetros até Cody para pegar uma fita no videoclube e retiramos um filme que nós dois gostávamos. Descobri que ambos tinham gostos parecidos. Imaginava que Arthur tinha preferência por filmes de ação e

violência, mas gostava de antigas comédias românticas. Então pegamos Uma janela para o amor.

- Sempre quis ver este filme – observou Arthur. – Mas a minha família teria me gozado até a morte se chegasse em casa com ele. - Já entendi – disse eu, sorrindo do constrangimento dele. – Agora pode jogar a

culpa em mim. - Pois é – admitiu também sorrindo.

- Nunca imaginaria que esse era o tipo de filme que você gosta – observei quando caminhávamos de volta para a caminhonete. – Lentos e sentimentais. - Sempre sonhei em ir à Itália algum dia – confessou, enquanto me ajudava a

subir na caminhonete. – Estive pensando em comprar umas fitas para aprender italiano sozinho.

- Sério? - Sério. Um sonho besta imagino. - De jeito nenhum – disse eu. – É muito bom ter sonhos. Mas porque a Itália?

Ele deus os ombros, com uma expressão de cordeirinho. - Alguém que conheci esteve por lá uma vez. Ela me contou a respeito.

- Foi a Emily? - Foi – respondeu surpreso. – Como você sabe sobre ela?

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- As garotas da equipe de animadoras de torcida.

Ele suspirou. - Acho que esse assunto já é de domínio público lá na escola. Sofri bastante

quando ela foi embora. Nada mais parecia igual ao que era. - E não foi visitá-la depois que ela partiu? Ele balançou a cabeça de modo negativo.

- Nunca tive dinheiro para isso. Comecei a economizar, mas parei. Não ia ser a mesma coisa. O pai dela é pintor. Sempre havia artistas de visita na casa

deles, e só ouviam música clássica. Acho que viver aqui começou a ficar muito entediante para eles. Mudou-se para Nova Inglaterra, Connecticut. Fica perto de Nova York, não é?

- É – confirmei. A revelação a respeito de Emily me pegou de surpresa. Eu a havia imaginado

como uma garota da fazenda ao lado que tinha se mudado para uma fazenda um pouco mais distante, e durante esse tempo todo o pai dela era um pintor! De repente me senti ameaçada por aquela Emily, apesar de ainda jurar de pés

juntos que não queria Arthur para mim. Queria continuar a vê-lo como um garoto simples do campo fascinado com o meu jeito nova-iorquino. Mas ele já

havia namorado alguém ainda mais cabeça do que eu, alguém que já fora a Itália e tinha um pai artista! - Estranho, não é? – disse eu, tentando falar de modo leve e despreocupado. –

A garota que você ama se muda para perto do garoto que eu amo. - Então você realmente ama esse garoto de Nova York?

A pergunta me pegou meio de surpresa. - Ainda não tenho certeza do que é realmente o amor – respondi. – não chegamos a ficar juntos o tempo necessário para saber se o que havia entre

nós era algo mais do que uma paixãozinha. Tudo o que sei é que ele era muito especial para mim. E me fazia sentir especial.

- Eu realmente amava a Emily – revelou Arthur com simplicidade. – Pensei que meu coração fosse explodir quando ela foi embora. Por muito tempo achei que nunca mais iria me arriscar a me aproximar de alguém novamente. Era doído

demais. - E agora?

- Agora estou chegando à conclusão de que não se pode viver no passado para sempre – respondeu Arthur. – Tenho a vida inteira pela frente e inúmeros sonhos e planos para realizar: terminar o colegial, ir para uma super

universidade... E o que tenho de fazer é ir atrás desses sonhos, e não ficar pensando naquilo que não posso mais ter.

- Talvez você esteja certo – disse eu lentamente. Eu estava pensando no dia em que Chay me ligara da festa. Era óbvio que ele estava se divertindo por lá, mesmo sem mim. Talvez já tivesse até beijado

outra garota. Seria estupidez da minha parte permanecer fiel à ele? Seria estupidez até mesmo ficar pensando em voltar para Nova York?

Quando chegamos à casa de Arthur, encontramos o lugar às escuras. - Parece que todos saíram esta noite. Tanto melhor – observou. Campainhas de alarme soaram na minha cabeça. Arthur parecia ser um cara

respeitoso e confiável, mas... E se ele tivesse planejado tudo? Será que já sabia de antemão que nós dois ficaríamos sozinhos naquela casa deserta?

Será que aquela não era uma estratégia de ação daqueles “garotos simples do campo”? Talvez achassem que as garotas de Nova York fossem fáceis, soltas

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e rápidas...

Arthur me deu a mão para me ajudar a descer da caminhonete. - Assim não vamos ter de brigar para usar o videocassete – concluiu.

Nós entramos. - Sinta-se em casa – disse Arthur. – Estou suado e preciso de um banho urgente.

Ele me levou até a sala de estar e subiu para o andar de cima. A casa de Arthur era realmente gostosa: aconchegante e confortável. Havia

inúmeras fotos de família por todos os cantos. E inúmeros troféus: ao que parecia, Arthur ganhara tudo o que havia para ganhar. Só de olhar para todos eles fiquei tonta.

- Puxa, você levou menos tempo do que eu! – exclamei quando ele retornou à sala menos de quinze minutos depois, vestindo um jeans e uma malha de

moletom, com os cabelos molhados cheirando a torta de maçã. - Não queria que você se entediasse ai sozinha – disse, fazendo um gesto para que o seguisse.

Fizemos pipoca na grande e acolhedora cozinha e depois nos acomodamos num aconchegante e macio sofá em frente à TV. Dois simpáticos pastores-

alemães que antes estavam do lado de fora da casa vieram se sentar aos nossos pés e ficaram catando a pipoca que caíam enquanto comíamos. O filme era tão bom quando me lembrava de quando o vira pela primeira vez.

Delicado, romântico e divertido, com uma linda trilha sonora e belíssimas vistas da Itália. Arthur se sentou perto de mim, mas sem que nossos corpos se

tocassem. Então, no meio da história, quando a heroína volta para casa, na Inglaterra, e confessa seu envolvimento com outro homem, Arthur se voltou para mim, bravo:

- Que estupidez perder alguém só porque você não consegue dizer o que sente! - exclamou. – E deixar que outras pessoas digam o que você deve fazer!

Se arriscar a arruinar toda a sua vida... Estávamos lá sentados olhando um para o outro, nossos joelhos se tocando. - Lua – disse ele suavemente -, Nova York é muito longe daqui. E Connecticut

também... - É verdade – concordei hesitante.

- Quem pode dizer se você vai voltar para lá algum dia, ou se algum dia vou poder ir para o Leste? E mesmo que consigamos, será que as coisas dariam certo como davam antes? Será que íamos querer isso?

Uma deslumbrante voz estava cantando uma ária de Puccini no filme. - Acho que eu não quereria – sussurrou Arthur. – E acho que você também

não. - Talvez – sussurrei de volta. - É isto que quero que dê certo – murmurou Arthur, se aproximando de mim

lentamente, como que puxado por cordas invisíveis. Os lábios deles encontraram os meus produzindo em mim uma sensação de

emoção, de aventura, de não estar tudo totalmente sob controle, como se meu corpo estivesse respondendo com uma vontade própria, independente da minha. O beijo de Arthur me fez senti algo completamente diferente. Foi como

um ardor quente que começou nos meus lábios e se espalhou por todo o meu corpo, me envolvendo numa belíssima bolha cor-de-rosa. Queria que aquilo

não acabasse nunca. Quando por fim abri os olhos, vi Arthur me contemplando com um olhar ardente

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e brilhante.

- Se você tentar fugir de volta para Nova York, senhorita Lua Blanco – disse ele -, jogo-a em cima da mina sela e cavalgo para o alto das montanhas com você.

- Vocês homens das montanhas são muito agressivos – repliquei, provocando-o com o olhar. - É melhor você acreditar – retrucou. – Nunca desistimos sem lutar. Muito

tempo atrás minha família esteve envolvida nas guerras do campo entre criadores de gado e criadores de ovelhas. Os forasteiros tentaram nos

empurrar para fora da nossa terra e cortaram o nosso acesso à água, mas nos mantivemos firmes e aqui estamos muito tempo depois daqueles intrusos irem embora.

Estava a ponto de fazer um comentário zombeteiro a respeito do que ele dissera, mas subitamente me iluminei: eu descendia daquele lugar e daquela

gente também. Meus ancestrais provavelmente tinham combatido junto com os de Arthur naquelas mesmas guerras. Talvez fosse por isso que partilhava com ele aquela determinação em lutar pelo que acreditava e desejava.

- Arthur – lembrei -, estamos perdendo o filme. Está justamente chegando à parte boa.

Ele riu. - Dane-se o filme – respondeu. – Também estamos chegando justamente na parte boa.

Então me puxou para perto de si e dessa vez o beijo não foi nem delicado, nem hesitante. Deixou-me sem fôlego, com o coração batendo acelerado.

Depois do que me pareceram ser apenas alguns minutos, olhei para o lado e descobri que o filme tinha terminado e o relógio na parede marcava onze da noite.

- Acho melhor levá-la para casa – sugeriu Arthur, me puxando e me pondo em pé.

- Espero não ter nenhuma encrenca lá ao chegar – observei preocupada. Mas Arthur deu uma risada. - Seu avô é o único que vai estar acordado, e ele me acha um bom menino. Ele

vai ficar satisfeito ao saber que estamos nos emparelhando. - Você fala como se fôssemos duas mulas – disse eu.

Ele remexeu em meus cabelos e riu. No caminho de volta para a minha casa nos sentamos bem próximos na cabine da caminhonete. Fazia tanto frio que meu hálito ficava suspenso no ar como uma nuvem de fumaça.

- Apareço na sua casa amanhã de manhã para ver se é preciso fazer mais alguma tarefa – se dispôs Arthur – e depois, se você quiser, podemos dar uma

cavalgada. Preciso exercitar o Blackbird. Não tive chance durante a semana. - Não sei andar a cavalo – confessei dividida entre meu desejo de ficar com ele o dia inteiro e a realidade de que provavelmente iria cair do cavalo e ficar com

cara de idiota. - Não tem problema. Em alguma hora você teria de aprender – ponderou. –

Você pode montar o velho Traveller. E tenho lá uma velha e grande sela do tipo das do Velho Oeste da qual você não conseguiria cair mesmo que tentasse. - Está bem – concordei -, desde que a gente não vá a nenhum lugar onde

alguém da escola possa nos ver. Não quero que riam de mim depois. - Não se preocupe. Sei de um lugar perfeito.

Ele me deu um beijinho na testa enquanto eu descia da caminhonete. - A gente se vê amanhã – gritei.

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Meu avô estava esperando com a porta semiaberta.

- Como é que você me chega a esta hora da noite? – perguntou ele. – Imagino que meia-noite seja cedo para vocês da cidade.

- Ora, vovô, a gente queria ver o fim do filme – menti. – Não precisava ficar me esperando. - Hum! – grunhiu ele. – Vai, vai logo para a cama se não você não servirá para

nada amanhã de manhã. Dei uns passos rápidos até ele e lhe lasquei um beijo na bochecha.

- Boa noite, vovô. - Vai, vai, sobe logo – disse ele esfregando a bochecha com a mão e mal conseguindo disfarçar a sua alegria por eu ter estado com Arthur.

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Capítulo doze: Longe e ardente beijo Na manhã seguinte Arthur chegou por volta das nove e meia, e terminamos as tarefas em tempo recorde. Era um dia quente, e a neve estava se derretendo rapidamente.

- Todo aquele nosso trabalho de ontem para limpar o caminho por nada –

comentei, apontando para a entrada da casa. - Eu não diria isso – retrucou Arthur, me olhando nos olhos. – Sem toda aquela neve duvido que tenha me dado à chance de ficar com você durante a tarde de

ontem. E à noite também – provocou. Depois de dizer “tchau” a todos em minha casa, Arthur me levou até sua casa e

me apresentou aos pais. - Estou tão contente por finalmente ter conhecido você! – disse a mãe dele. Ela era alta e bonita, e seus cabelos eram da mesma cor dos de Arthur.

- Ele não fala de outra coisa desde que você chegou por aqui – continuou ela. – Fiquei impressionada ao saber que você estava cuidado de tudo aquilo

sozinha, com todo mundo doente. Fico feliz por você poder tirar um dia de descanso. Olha aqui, Arthur! – disse, mostrando um alforje ao seu filho. – Preparei um lanche para vocês, para o caso de sentirem fome durante o

passeio. O alforje estava cheio, com comida o suficiente para uma jornada de uma

semana. - Pensei em fazermos um piquenique na cachoeira do prado – sugeriu Arthur. - Ah, Arthur, vai estar cheio de neve lá, não vai? – perguntou ela, parecendo

preocupada. - Acho que não. É um lugar bem abrigado.

- Mas tome cuidado com as avalanches – advertiu ela. - Mãe, por Deus, a gente só está indo aqui pertinho, um pouco mais além na estrada! – exclamou Arthur, virando os olhos para mim em desespero. – Não

se preocupe Lua, é um passeio seguro – acrescentou, tentando me confortar. Estava ansiosa por ter de montar um cavalo. Minha única experiência

semelhante tinha sido numa fazenda na Nova Inglaterra. Fui dar minha maçã a um cavalo e ele tentou me morder. Fiquei ainda mais nervosa quando vi o Traveller.

- Mas ele é enorme! – exclamei. – E parece bravo! Traveller assemelhava-se a um daqueles antigos cavalos de batalha: uma

cabeça grande e impressionante e músculos salientes. Logo o imaginei galopando pelo vale abaixo comigo em cima, me agarrando desesperada e desamparada ao chifre da sela.

- Ele? É um velhote doce e manso – explicou Arthur, me dando um sorriso tranquilizador enquanto me ajudava a montar. – Não se preocupe. Vai dar tudo

certo. Saímos a passo, nos distanciando das casas e subindo pelo vale. A neve estava se derretendo ao longo de toda a estrada, e havia um som de água

correndo pelos córregos. Os cascos dos cavalos faziam um barulho gostoso – clope, clope – quando afundava na neve macia. O sol nas nossas costas

estava realmente quente. O Traveller avançava pesadamente com passos grandes e regulares, e a sela acompanhava seus movimentos, me mantendo sempre no lugar. Como Arthur dissera, seria quase impossível cair.

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Depois de uns três quilômetros saíram da estrada e pegamos uma trilha

estreita que subia por entre as árvores. Havia ao lado um riacho que corria no meio das pedras, formando inúmeras e pequenas cascatas e produzindo um

delicioso e leve ruído de água batendo e borbulhando. Tudo exalava um cheiro limpo e fresco. O céu, por entre os galhos dos pinheiros recobertos por uma neve resplandecente, era de um azul profundo e diáfano, pontilhado de

pequenas nuvens que pareciam bolotas de algodão. A trilha continuava a subir mais e mais alto. Havia pedras enormes ao nosso

lado agora, e um paredão rochoso na frente. O Traveller estava firme e se mantinha andando pesadamente atrás de Blackbird. Ao chegar ao paredão, passamos por uma fenda estreita entre duas imensas rochas e desembocamos

num maravilhoso prado. Mechas de grama verde emergiam aqui e ali sob o lençol de neve. Numa das extremidades da pradaria uma cachoeira dançava

ao descer pelas rochas e formava um pequeno riacho que atravessava a campina. A clareira era cercada por um anel de árvores altas e majestosas, a não ser um dos lados, no qual a vista se estendia eternamente, deixando

entrever uma montanha após a outra até as mais distantes se fundirem no infinito azul do céu. Uma pequena coluna de fumaça lá longe era o único sinal

a nos lembrar de que nós dois não éramos os únicos seres humanos do planeta. - E então, o que você acha? – perguntou Arthur num sussurro.

- Simplesmente perfeito – respondi baixinho. Aquele era o tipo de lugar em que parecia mais natural falar baixinho.

- Criei esta paisagem especialmente para você – brincou Arthur. Ele deslizou de seu cavalo e esticou os braços para mim. Com o som das nossas vozes, dois cervos que lá pastavam levantaram a vista do chão, nos

olharam e fugiram para dentro da floresta. - É o nosso pequeno mundo privado – murmurei, deslizando da sela também.

Os braços de Arthur ainda me enlaçavam, e ele me olhava com tanta ternura que pensei que fosse derreter. Com gentileza, ele me puxou mais para perto de si e me deu longo e ardente beijo.

- Sabe o que quero agora? – sussurrou ele. - Não.

- Comida! – respondeu, agarrando o alforje. Ele limpou os últimos restos de neve de uma pedra grande e plana e esticou uma esteira sobre ela. O sol do meio-dia batia com força em meu rosto.

- A gente podia ficar aqui por uma semana – comentei, enquanto tirava do alforje um salpicão de galinha, meia torta de maçã, uma garrafa térmica com

sopa de tomate quente, vários bolinhos de chocolate e duas bananas. - Por mim, tudo bem – disse Arthur, dando um sorriso matreiro. – Só nós dois no nosso pequeno refúgio. Se nevasse de novo, eu poderia construir um iglu

pra gente. - Obrigada, mas não, obrigada – repliquei, jogando uma migalha na direção

dele. - Os iglus são quentes mesmo, pode acreditar. Eu já acampei em um, certa vez.

- Para mim, aquecimento central todo dia – afirmei. – Sou uma nova-iorquina da gema, não se esqueça.

Arthur me olhou longamente e com certa dureza.

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- Não – disse ele por fim -, acho que é uma de nós “da gema”. A casca de

nova-iorquina já está começando a se desmanchar. Comemos com calma, sem falar. Não tinha notado que estava tão faminta.

Depois nos deitamos sobre um cobertor, minha cabeça no ombro de Arthur, e ficamos olhando as nuvens navegarem por cima dos picos brancos das montanhas e os pássaros saltitarem nos galhos dos pinheiros. Estava me

sentindo confortável e sonolenta, até que o sol mergulhou por trás de uma grande rocha e subitamente começou a fazer um frio tremendo.

Lentamente percorremos o nosso caminho de volta, enquanto a luz rosada começava a se transformar no vermelho profundo do crepúsculo. Já havia luzes acesas nas casas quando retornamos à civilização.

- E, então, foi bom? – perguntou a mãe de Arthur ao nos receber quando irrompemos na cozinha.

- Foi o dia mais perfeito da minha vida – respondi. Quando chegamos à escola na segunda-feira de manhã todo mundo já sabia sobre Arthur e eu. As fofoqueiras não perdiam tempo na Indian Valley High

School! - Estamos muito contentes por você, Lua! – disse Ester.

Eu estava contente por mim também. Arthur era maravilhoso, muito mais maravilhoso do que jamais teria imaginado. E não só isso: de repente tinha me tornado motivo de inveja de todas as garotas da escola.

- E agora o que vai dizer para aquele garoto lá de Nova York? – perguntou Carla

- Eu... Eu ainda não decidi! – respondi. – Preciso pensar nisso. - Nova York é tão longe... – disse Ester, me dando um cutucão com um sugestivo ar de cumplicidade. – Quem sabe se vai tornar a ver esse garoto

algum dia... Ela estava certa. Decidi que não contaria nada a Chay. Na verdade, eu já, não

sabia mais o que sentia por ele. Tampouco disse nada à minha família sobre eu e Arthur sermos agora algo mais do que amigos. Mas eles não eram bobos. No terceiro dia seguido em

que Arthur apareceu em casa para me buscar para sairmos à noite, eles perceberam tudo.

Minha família encarou a novidade com grande alívio. Pelo menos eu não o atormentaria mais com a ideia fixa de querer voltar para Nova York no dia seguinte.

As coisas estavam caminhando bem em casa. Papai já completara quatro capítulos de seu romance, e mamãe tinha começado a fazer alguns trabalhos

para fora. Vovô tirou o gesso da perna e começou a cambalear para lá e para cá, colocando aos poucos as duas pernas para funcionarem em conjunto novamente. Em poucos dias ele estava jogando fardos de feno pelo pasto e

nos mostrando a maneira certa de cortar a lenha. Meus dias nunca tinham sido tão cheios: não só tinha a lição de casa, a equipe de animadoras de torcida e

as tarefas do rancho – também tinha Arthur. Num frio dia de inverno fiquei até mais tarde na escola para assistir ao nosso time de rúgbi dar uma lavada nos Sheridan Mustangs, em jogo das semifinais

do campeonato. Quando cheguei em casa, meu pai estava descendo do sótão. - Nós ganhamos pai! – disse eu, toda contente. – Foi Arthur quem fez o ponto

da vitória. - Parabéns – exclamou papai. – Lua, você realmente amadureceu desde que

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nos mudamos para cá. Aposto como vai sentir falta disso tudo quando voltar

para a Dover School. - O quê? Nós estamos voltando para Nova York? – perguntei gaguejando.

- Nós não, você. Você nos disse que só queria ficar um ano aqui. Ainda quer voltar para lá, não quer? Não sabia o que responder. Pensei no quanto estava me divertindo na escola.

Mas depois pensei nas aulas de arte, de teatro, de francês, de ciências avançadas e de tudo o mais que estava perdendo. Que chance teria de entrar

numa boa faculdade se terminasse o colegial na Indian Valley High School? E Chay, Sophia, Mel... Amigos que falavam a minha linguagem, que sabiam que moncha era um tipo de café árabe, e não um jogo de cartas, e que jeans com

buracos nos joelhos eram in. - Eu não sei. Acho que sim – respondi lentamente. – Mas ainda tenho tempo

para pensar, não tenho? - Claro – disse papai. – É com você. Dei um beijo nele e corri para o meu quarto. A Dover School parecia tão

distante agora... E eu não podia imaginar minha vida sem Arthur. Não queria.

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Capítulo treze: Com os olhos rasos de lágrimas À medida que o natal se aproximava nós todos ficávamos cada vez mais ocupados. Tínhamos feito uma reunião familiar e mamãe sugeriu que esquecêssemos o comercialismo e fizéssemo-nos mesmos os presentes de um

para o outro.

- Esses são presentes de coração – dissera ela. Estava sendo duro para eu descobrir algo que eu pudesse fazer bem o suficiente para que servisse como presente de Natal. Para mamãe, arranjei

uma garrafa antiga e criei um desenho interessante nas laterais com cera de vela derretida de diferentes cores. Para os projetos literários de papai, colei

várias fotos de revistas numa caixa e grudei nela uma etiqueta dizendo “Ideias”. Um editor andava interessado no trabalho dele, e isso o tornara mais determinado do que nunca a tirar algum dinheiro de sua aventura literária.

Assim poderíamos continuar no sítio com o vovô e ainda ter uma entrada extra de dinheiro.

Tentei tricotar um cachecol para o vovô, mas não consegui passar dos quinze centímetros de comprimento. Pelo ritmo em que conseguia trabalhar com as agulhas, quando já faltavam somente cinco dias para o Natal, tive um

pressentimento de que não iria mais longe do que aquilo. Fiz também uma coroa de papelão para Ana, com algumas pedras falsas incrustadas, e um

cofre de papier-mâché em forma de porquinho para Daniel. Quando examinei meus presentes à luz fria do dia, tive de admitir que não fosse lá nenhuma maravilha, mesmo que fossem “presentes de coração”. Senti

a tentação de dar um pulo até Cody com Arthur e comprar pelo menos algumas lembranças “de reserva” no bazar local. No mínimo para o vovô eu precisava

comprar algo. Ele não poderia ficar com um cachecol de quinze centímetros, e eu não seria capaz de ter nenhuma ideia brilhante para transformar aquilo em alguma outra coisa. “Feliz Natal, vovô, veja só que carteira diferente fiz para

você!”. Não, decididamente o cachecol teria de ser deixado de lado. - Gostaria de saber o que dar para o vovô – comentei com Arthur quando

voltávamos da escola. – Esse negócio de cachecol não vai funcionar. Estive pensando em arranjar um cachorro para ele. Ele me contou que seu velho cão morreu no ano passado.

- É – disse Arthur -, o velho Mack. Aquele cachorro era tudo para o seu avô. Ei, sabe o quê? – exclamou Arthur de repente. – Os Johnson estão com uma nova

ninhada de filhotes. E acho que são mestiços de collies, exatamente como o falecido cão do seu avô. Você quer dar um pulo lá para ver? Assim, no sábado fomos fazer uma visita aos Johnson. Os filhotes eram todos

tão lindos que foi duro escolher um dentre eles. - Você tem que escolher um que não vai ficar com medo de correr no meio do

gado e levar um coice – disse o sempre pragmático Arthur. Eu o ignorei e escolhi um preto e branco, que parecia uma bolinha de lã e começou a me lamber e se aninhar no meu colo logo que o peguei. Arthur me

prometeu mantê-lo guardado em sua casa até o dia do Natal. - Já que estamos aqui na cidade, o que mais gostaria de fazer? – perguntou

Arthur. Os Johnson ficariam com os filhotes até a hora em que voltássemos para casa. - Quer saber? Tomei uma decisão – respondi. – Já que vamos ter um Natal à

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base de presentes feitos em casa, quero que pelo menos tenha comida

natalina de verdade. Então me dirigi à mercearia, enquanto ele foi perambular sozinho pelas ruas de

Cody. Arthur foi cantarolando de boca fechada durante o caminho de volta para casa. “Será que ele comprou algo para mim?”, pensei agoniada, sem saber o que eu

mesma lhe daria de presente. Queria lhe dar algo especial, mas não sabia o quê. Bem que gostaria de ter começado a tricotar antes e de ser bom o

suficiente com as agulhas para ter feito um cachecol ou uma malha para Arthur. Isso sim teria sido um presente de coração. Foi só quando voltei à cidade com papai para uma compra de última hora que

encontrei o presente perfeito: a trilha sonora de Uma janela para o amor. Meu pai e eu cambaleamos de volta para o carro pela neve semi derretida com um

carregamento de comida suficiente para sobreviver a uma longa nevasca. Então papai começou a agir de forma estranha, dizendo que tinha se esquecido de algo. Ele correu de volta para a loja, enquanto eu fiquei

congelando dentro do carro. Na véspera saímos para cortar a nossa própria arvore de Natal. Não foi difícil:

havia pelo menos um bilhão de pinheiros no nosso vale, e todos nós já estávamos com os músculos bem desenvolvidos àquela altura. Nós a arrastamos para casa num trenó ao longo da paisagem nevada, nos sentimos

como se fizéssemos parte de uma antiga pintura natalina. Então mamãe nos trouxe bolas de algodão e pinhas, e nós ficamos decorando a árvore enquanto

ela se ocupava de preparar a ceia. Deliciosos odores vinham da cozinha. - Ainda bem que ela evoluiu um bocado como cozinheira – sussurrou Daniel. – Vocês podiam imaginar um Natal com a mesa cheia de uma comida impossível

de comer? Quando escureceu já havíamos colocado as luzes, algodão, pinhas e bolas

ornamentais na árvore. Vovô me mandou subir ao sótão para pegar a sua velha caixa de enfeites. Havia dentro dela pássaros de vidro, trombetas e outros enfeites tão antigos que a pintura tinha saído quase toda deles,

deixando o vidro incolor de que eram feitos. E havia também uma grande e bela estrela de vidro para colocar no topo da árvore.

Com o forte toar da lareira e aquela árvore de Natal cintilante perto da janela, a casa parecia mágica, encantada. Mamãe tinha feito cidra e biscoitos de gengibre, e nos sentamos em circulo, cantando velhas canções e

compartilhando as nossas lembranças do passado. Na manhã seguinte me levantei cedo, como sempre fazia no dia de Natal, e

comecei a correr para o andar de baixo, até que me lembrei de que dessa vez não haveria nenhum aparelho de som nem nenhuma jaqueta de couro esperando por mim debaixo da árvore. Eu não conseguia nem imaginar o tipo

de presentes iria ganhar. Daniel e Ana pulavam pelas escadas abaixo, tão excitadas como sempre.

- Vamos, mamãe, levante. Você não quer receber os seus presentes? – gritou Daniel. - Que barulheira é essa numa hora tão imprópria? – interrogou vovô. – Toda

essa zoeira só por causa de uns presentinhos de nada? - Você não gosta de ganhar presente, vovô? – perguntou Ana com doçura.

- Faz tanto tempo, que até me esqueci de como é – murmurou ele, colocando Ana no colo e se acomodando ao lado da árvore.

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Papai, como de costume, fez papel de porta voz de papai-noel, e começou a

distribuir presentes. Começamos a abri-los, um por um. - É um peso de papel, papai – exclamou Daniel quando papai abriu uma caixa

contendo uma pedra pintada com cores fortes. Daniel me deu um bloco de folhas de papel grampeadas, com uma capa florida.

- É um diário, Lua, para você escrever os seus segredos mais profundos. Mamãe tinha feito uma gargantilha com velhas contas e lantejoulas que

encontrara numa loja de segunda mão. Papai me construíra uma estante para livros. Ana ganhou uma almofada grande e macia feita de pele de ovelha, e ela e Daniel também ganharam pequenas estantes para livros. Vovô não deu nada

a ninguém. Logo todos os presentes estavam abertos e nós ficamos lá sentados, fingindo estarmos todos muito contentes e animados. Foi Ana a

primeira a quebrar a farsa. - Isso é tudo? – perguntou ela com a voz trêmula. - É, filhinha. E agora que tal um belo café da manhã? – disse mamãe, toda

animada. - Mas isso é tudo o que eu vou ganhar de Natal? – insistiu Ana.

- Mas, meu bem, você não se lembra de que conversamos sobre os presentes feitos em casa serem mais interessantes? Ela rompeu num choro desatado.

- Mas não são mais interessantes! São horríveis! – soluçou ela. – Este é o pior Natal que eu já tive!

Papai se levantou e saiu da sala apressado. Mamãe idem. E eu idem. Eu sabia exatamente como Ana estava se sentindo. Era legal ganhar presentes feitos em casa, mas eles pareciam exatamente isso: feitos em casa. Não era a

mesma coisa do que abrir uma caixa da Bloomingdale e tirar de dentro uma linda malha. Corri para o meu quarto, agarrei a minha sacola de presentes e

desci. - Aqui! – disse eu, dando a Daniel e a Ana uma bela caixa de chocolates com formas de animais e brinquedos para cada um. – Resolvi comprar estas

lembrancinhas, por via das dúvidas. - Nossa! – exclamou Daniel.

- Vejam o que Lua comprou para a gente! – gritou Ana quando mamãe e papai voltaram à sala. - Aqui! – disse papai por sua vez, tirando uns pacotes de uma grande sacola. –

Resolvi comprar estes aqui para o caso dos feitos em casa não funcionarem. - E eu também – informou mamãe, passando-nos outros pacotes.

Quando abrimos os pacotes de brinquedos, roupas e CD que nossos pais tinham comprado e os de guloseimas importadas que eu mesma houvesse comprado, nós todos caímos na gargalhada, rindo da nossa própria estupidez.

De repente reparei que vovô estava muito quieto e fui até ele. - Sei que ainda não dei nenhum presente a você, vovô – afirmei -, mas ele já

está vindo, daqui a pouquinho. - Não conseguiu acabar de tricotar a tempo? – perguntou, piscando um olho para mim.

- Como você sabe? – perguntei. - Desconfiei – disse ele. – Ah, e eu também gostaria de vê-la no seu quarto

depois do café. - Está bem - assenti.

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Talvez no fim das contas ele tivesse presentes para nos dar e não o fizera por

ter ficado tímido com todo mundo olhando. O café foi à base de panquecas de maçã, frutas frescas e uma rosca salgada

quentinha. Vovô deu uma mordida na rosca e olhou para nós surpresos. - Então era isto que cheirava tão bem no forno ontem à noite! É a recita da vovó! – exclamou, olhando para Daniel, para Ana e para mim. – Ela sempre

fazia esta rosca no Natal. - Eu sei – confessou mamãe serenamente. – Encontrei o livro de receitas dela

e pratiquei até chegar à perfeição. - Está idêntico ao que ela fazia – afirmou vovô com a voz trêmula. Depois que acabamos de tirar a mesa, fui para o meu quarto e logo ouvi os

passos pesados do vovô subindo as escadas. - Eu queria que você ficasse com isto – pediu rudemente, me estendendo uma

caixinha de veludo desbotado. Dentro da caixinha havia um anel de granadas e pérolas na forma de uma flor. - Era da sua avó – disse ele. – Foi o primeiro anel que comprei para ela. Eu

queria pedi-la em casamento mais não tinha muito dinheiro naqueles tempos, e expliquei a ela que não poderia comprar um anel de diamantes. Ela

simplesmente respondeu: “Até parece que o gado vai ligar se estou usando diamantes ou não”. Uma mulher sensata a sua avó. Você me lembra muito ela. Tem alguma coisa, quando você gira a cabeça...

Meus olhos estavam rasos d’água. - Vovô, não posso aceitar. É precioso demais.

- Mas quero que você fique com ele. Ela não chegou a te conhecer, mas tenho certeza de que ela iria querer que você usasse esse anel. Você tem a firmeza de caráter dela. Ela sempre o usou neste dedo. Use-o no mesmo lugar.

Subitamente ele olhou para cima. - Sei que não tem sido fácil para você se adaptar a este lugar... – continuou ele.

– Mas têm dado duro e superado muitos obstáculos, e acho que se tornou uma pessoa muito especial. Igual à sua avó. Joguei meus braços ao redor dele.

- Ah, vovô, é tão bom ouvir você dizer isso! Lentamente os braços dele se fecharam em torno de mim.

- É muito bom ter você aqui – disse ele com voz rouca. – É bom ter uma família de novo. Eu... Eu não quero que vocês vão embora nunca mais. Um ronco abafado de motor soou do lado de fora, fazendo com que me

afastasse de vovô e corresse até a janela. - Vovô, o seu presente acabou de chegar! – exclamei.

- Você vai me dar o Arthur Aguiar de presente de Natal? - Não, seu bobo. Ele está trazendo o presente. Venha ver – disse eu rindo e arrastando o meu avô para o andar de baixo.

Todo mundo saiu para a varanda ao mesmo tempo em que Arthur trazia a caixa de papelão da sua caminhonete.

- Vá em frente! Abra! – pedi, passando a caixa para vovô. - Parece pesado. Você andou fazendo pão? – brincou ele, referindo-se as primeiras tentativas de mamãe.

Então ele abriu a caixa, e um focinho preto e branco emergiu dela timidamente. - Um filhotinho! – gritou Ana.

Vovô olhou para o cachorrinho e em seguida para mim.

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- Igualzinho ao velho Mack! – exclamou ele, com uma voz quebrada pela

emoção. – Outro pequeno Mack! Como você adivinhou? Não quis confessar que simplesmente escolhera o filhotinho mais bonitinho.

Limitei-me a sorrir com um ar enigmático. - Você não podia ter me dado um presente melhor – disse ele. Enquanto vovô carregava o filhotinho para dentro de casa, meu pai me puxou

para o lado. - Isso foi muito especial, Lua. Estou orgulhoso de você – sussurrou.

Então ele me beijou na testa e entrou com os outros, me deixando a sós com Arthur. - Parece que você acabou de marcar um golaço – disse Arthur sorrindo.

- Obrigada por guardar o filhote para mim. Você não quer entrar um pouquinho e comer algo? – perguntei.

- Não posso. Estamos indo à casa do meu tio para o jantar de Natal. Mas eu queria ver você antes. - Não vá embora ainda – pedi, pondo a minha mão no braço dele. – Tenho uma

coisa para você. - Sério?

Corri para dentro de casa e voltei com o CD. - Que lindo! – exclamou ele, contemplando o disco. – Nem sabia que existia a trilha sonora em CD. E a capa é a cena do filme...

Era uma vista de Veneza. - Também tenho uma coisa para você, Lua – contou me passando um pequeno

embrulho. Dentro do embrulho havia uma caixinha, e dentro da caixinha havia um medalhão de prata em forma de coração.

- Espero que você já não tenha um – disse ele, encabulado. Neguei com um movimento de cabeça.

- É perfeito, Arthur. Por favor, coloque-o em mim. Eu me virei e ele apertou o fecho da corrente para trás do meu pescoço. - Nunca vou tirar esse medalhão – sussurrei. – Muito obrigada.

- E vou ganhar um beijo de Natal? – perguntou ele. - Acho que você merece – disse eu, adiantando os meus lábios e encostando-

se aos dele por um segundo. - Só isso? - indagou. - O meu irmão e a minha irmã podem estar olhando – expliquei. – E os meus

pais também. Nós não queremos que fiquem preocupados de novo e me mandem para o Alasca dessa vez.

- Eu iria atrás. - Nesse caso – falei baixinho -, ele que se preocupem. E dessa vez o beijei de verdade.

- Obrigada de novo pelo medalhão – disse quando nos afastamos. – É o melhor presente que já ganhei na vida.

- Eu poderia arranjar alguma foto, se você quiser colocar dentro do coração – sugeriu-o. - De quem, de uma de suas vacas? – provoquei.

Ele se abaixou, pegou um punhado de neve e a atirou em mim. Eu ri e atirei uma bola muito maior de volta. Então ele segurou os meus punhos.

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- Chega, chega – disse, rindo. – Já estou todo vestido para ir visitar os meus

parentes e não dá mais tempo de trocar de roupa. Por isso, comporte-se, garota!

- Sim, amo – retruquei, sorrindo para ele. - E espere só até eu não estar todo arrumado – continuou Arthur. – Se você quer uma guerra de neve, vai ter uma!

- Por mim tudo bem! À hora que você quiser – gritei quando ele já saltava na caminhonete.

Eu corri até a porta do carro. - Feliz Natal, Arthur. E eu gostaria muito de uma foto sua para colocar dentro do medalhão.

- Você mesma poderia tirar uma – disse ele. – Ah, já ia me esquecendo de te avisar: sempre vamos passar o ano-novo na cabana de Ester nas montanhas.

Os pais dela vão estar lá, mas eles são legais. É uma tradição nossa. Eu queria muito que você viesse. Ele se inclinou para fora da janela e me beijou de novo.

- Feliz Natal, Lua. Eu... Eu acho que estou me apaixonando por você – confessou ele, tímido, saindo rapidamente com a caminhonete.

-Feliz Natal, Arthur! – gritei, esperando que o ronco do motor não encobrisse a minha voz. – Eu te amo também – sussurrei para a traseira do carro dele. Nunca tinha dito aquelas palavras para ninguém antes... E estava quase

contente por Arthur não as ter ouvido. Era um passo enorme, que eu não tinha certeza se nós já estávamos prontos para dar.

Estávamos lá no meio da nossa ceia de Natal quando o telefone tocou. - Se for a sua tia-avó Dorothy diga a ela para ligar mais tarde – vociferou vovô quando eu já corria para atender.

Mas não era ela - Lua, feliz Natal – disse uma familiar voz masculina.

- Chay? – perguntei surpresa com o telefonema que não estava esperando de forma alguma. – Feliz Natal! - É bom ouvir sua voz – afirmou ele. – Adivinhe uma coisa, Lua! Tenho grandes

noticias para você. - O quê?

- Nós estávamos falando sobre você no Fiorelli, e a Sophia disse: “O que vocês acham de a gente ir vista-la?”. Todo mundo achou a ideia ótima. E nós estamos indo.

- Vocês estão vindo? Para cá? - É! Não é demais? Sophia, Micael, Mel e eu. Estamos todos nos organizando

para pegar o avião para estar ai no Ano Novo. Todo bem para você, não é? Não vá me dizer que está indo esquiar, ou algo do gênero. - Não... – disse eu gaguejando. – Nada de esqui.

- Ótimo. Vamos levar sacos de dormir, e por isso não precisa se preocupar com as camas nem nada. Meu pai está olhando os vôos. Caramba, você está

mesmo morando no fim do mundo, hein?... Lua? Diga algo! Você consegue acreditar que vamos nos ver dentro de poucos dias? - Não, Chay– consegui responder por fim. – Não consigo acreditar. Estou em

estado de choque. Fiquei paralisada no corredor segurando o telefone depois de termos

desligado. Esse era um presente pelo qual não esperava. E não estava certa de que o queria.

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Capítulo catorze: Visita dos amigos Dizer que as novidades de Chay me desorientaram seria pouco. Simplesmente não sabia o que fazer nem o que sentir. Será que realmente amava Arthur? Então como é que ainda amava Chay? Não era possível que estivesse

apaixonada por dois garotos ao mesmo tempo, era? Arthur me fazia sentir protegida, feliz, aconchegada. Porque então ficar tão animada com a

perspectiva de rever Chay?

Lembrei-me da maneira como Chay me fazia sentir quando eu olhava para ele.

Lembrei-me de seu doce adeus no último dia que passamos juntos. E me lembrei de como tinha adorado morar em Nova York. Talvez, se tivesse uma

chance de comparar Chay com Arthur, conseguisse decidir com qual dos dois queria ficar. As novidades inesperadas lançaram toda a minha família num redemoinho de

atividades. Tínhamos nos fechado em nosso pequeno mundo nevado por tanto tempo que receber visitas o mundo exterior era algo de realmente excitante.

Papai desceu sua escrivaninha para o quarto da frente e mamãe preparou as camas no grande quarto do sótão. - Os dois garotos podem dormir aqui – disse ela. – E as duas garotas podem

dormir no seu quarto, nos sacos de dormir. Vocês vão ficar até altas horas conversando e rindo, tenho certeza.

Dei a ela um sorriso apagado. - A, e preciso começar a fazer o pão já – continuou mamãe. – Estava me perguntando se eles iriam gostar daquela rosca salgada que fiz no natal. E

aquelas panquecas de maçã também estavam... Ela fez uma pausa e olhou para mim.

- Você não está contente, Lua? – perguntou. Concordei com um gesto de cabeça. - Mas não parece muito animada – observou ela. – Durante todo esse tempo

ficou falando do quanto sentia falta dos seus velhos amigos e, agora que eles estão vindo, parece que não os quer aqui...

- Quero vê-los sim... – comecei longo parado para dar um profundo suspiro. – Mas, mãe, o que vou fazer com relação ao Chay? O que eu vou dizer ao Arthur?

Minha mãe tentou digerir aquilo. - É você está mesmo com um problema, não é? – disse ela. – Então que dizer

que ainda gosta do Chay? Pensei que isso tinha ficado para trás. Porque não conta para ele que encontrou outra pessoa? Tenho certeza que ele vai entender.

Aquela frase de mamãe foi uma clara demonstração do quanto os pais podem ser desmiolados às vezes.

- Mãe, pense bem! Você ia gostar de fazer uma viagem de Nova York até aqui para ouvir alguém te dizer: “Desculpe, obrigada por ter vindo, mas encontrei outra pessoa”?

- Bom, se vai se sentir mal encontrando o Chay de novo, então a única coisa decente a fazer é ligar para ele e lhe dizer para não vir.

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- Mas quero vê-lo de novo – disse eu. – Quero ver todos os meus amigos de

novo. E não tenho certeza de como me sinto com relação a Chay. Quero dizer, Arthur está aqui agora e eu... Eu realmente gosto muito dele. Mas talvez Chay

seja o cara, e eu só goste de estar com Arthur porque é ele quem está mais perto. Eu não sei. E não vou saber até passar algum tempo com Chay novamente.

- Isso é uma coisa que não posso responder por você – disse mamãe. – Mas me parece que não vai poder realizar esse teste comparativo sem ferir os

sentimentos de alguém, Lua. - Não quero magoar nenhum dos dois – afirmei. – O que eu acho é que estou querendo demais. Quero o Arthur enquanto estou aqui, mas, se voltar para

Nova York, quero o Chay me esperando lá. Mamãe riu e remexeu em meus cabelos.

- Acho que a criei para ser gulosa. Nunca tive dois namorados ao mesmo tempo – disse ela. - Bem que eu gostaria de não ter – repliquei. – É terrivelmente complicado. Se

pelo menos eu conseguisse inventar um plano! Quando estava terminando de fazer as camas, subitamente me ocorreu que

talvez pudesse inventar um. Afinal, seriam só poucos dias, não seriam? Chay e Arthur não precisariam se encontrar em nenhum momento. Arthur estaria na cabana de Ester nas montanhas durante a maior parte do tempo. Mesmo que

dissesse a ele que alguns amigos de Nova York estariam vindo me visitar e que ficaria ocupada com eles quase o tempo todo, não precisaria contar que o

meu namorado viria no grupo. E para Chay eu também permaneceria de boca fechada quanto a Arthur. Se chegasse a conclusão de que Chay pertencia ao meu passado, então aqueles quatro dias passariam rapidamente, e eu já

saberia que garoto escolher. Tinha de funcionar! Só revi Arthur na manhã seguinte, quando estava no campo com meu pai

levando comida para o gado com o trator até a parte mais alta do pasto, onde a neve ainda era profunda. Levantei a vista quando ouvi o chamado dele ecoando pelo vale.

- Ei, Lua! Oi! As palavras de Arthur foram rebatidas pelas montanhas do vale, fazendo o meu

nome dançar ao meu redor por todos os lados. Arthur acenou com o chapéu e então apertou seu cavalo num galope acelerado, cavalgando com tanta naturalidade que parecia que ele e a sua montariam eram um só. Fiquei

olhando até que emparelhasse o Blackbird ao meu lado. Suas bochechas brilhavam por causa do ar frio, e seus cabelos estavam repartidos. Eu nunca o

tinha visto tão bonito. - Parece que você pegou o jeito do trator com muita rapidez – elogiou. – Ainda vamos fazer de você uma rancheira. Quando a neve derreter, vou ensinar-lhe a

dirigir a minha caminhonete. É bem fácil! Engoli em seco ao ouvi-lo falar do nosso futuro juntos. “Como posso estar

fazendo isso com ele? Como posso até mesmo deixar o Chay vir aqui e entrar no nosso mundo?” Mas então pensei nos olhos escuros de Chay e em como ele tinha feito sentir. Precisava vê-lo de novo. Seria a única maneira de saber

se eu ainda guardava algum sentimento por ele. - Adivinhe só! – exclamei, simulando um tom leve e animado. – Alguns amigos

da minha antiga escola de Nova York estão vindo me fazer uma visita no Ano Novo. Sophia e Chay e Micael e Mel.

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- Isso significa que não vou poder ir para a cabana com você, Arthur.

- Não vai? – perguntou ele, parecendo arrasado. – Puxa, estava ansiando tanto por isso. Já me via assando marshmallows e levando-a para admirar o luar

sobre as montanhas à meia-noite... - Eu sei – respondi mordendo o lábio. – Eu estava ansiosa por isso tudo também. Meus amigos me surpreenderam completamente me ligando no dia

de Natal e se auto convidando. - Eles devem ter muito dinheiro para poder pegar um voo assim, com essa

facilidade. - É verdade – concordei. – São todos bem riquinhos. Você sabe filhos de médicos, advogados...

- Porque você não os leva para a cabana? Poderiam gostar. Sacudi a cabeça apressadamente. Chay e Arthur na mesma cabana? Que

horror! - Acho que não, Arthur. Eles são típicos nova-iorquinos. Acho que estão pensando que vão poder fazer coisas como sair para tomar um cappuccino às

duas na manhã. - Sair para quê?

- Um café – me corrigi. - E têm permissão para passear pela cidade às duas da madrugada? - Alguns deles. Meus pais, por exemplo, sempre foram muito rigorosos.

- Dá para entender – comentou Arthur. – Eu nunca deixaria um filho meu ficar andando solto pela cidade de Nova York às duas da manhã.

- De qualquer jeito – continuei -, acho que vão estranhar muito tudo por aqui. Vou tentar diverti-los, mas acho que talvez não dê para nós dois nos vermos muito nesses dias, enquanto eles estiverem por aqui. Espero que você

compreenda. Eles provavelmente vão querer que meu pai os leve a Yellowstone, ou a Jackson Hole, enfim, todos esses programas tipicamente

turísticos. Ele concordou com um movimento de cabeça. - Tudo bem, eu entendo. Fico contente por você poder ver os seus amigos de

novo. Eles devem ser legais para se proporem a lhe fazer uma baita surpresa dessas – disse ele, soando um pouco decepcionado.

- É só por uns poucos dias – completei. – Nós dois temos o resto do inverno inteiro para completar o luar brilhando na neve das montanhas. - Estou contando com isso – confessou ele, me fitando com um olhar ardente.

Antes de ir embora, esticou o braço e passou a mão com suavidade pelo meu rosto.

- Tchau, Arthur. Ele acenou e desapareceu do outro lado da colina. Fiquei olhando. Como me atrevia a pensar em outro cara? Como me atrevia a correr o risco de magoar

Arthur? Mas já era tarde... Dois dias depois fomos de carro até Cody para pegar Chay, Sophia, Micael e

Mel. Um ônibus de linha os trazia do aeroporto, a uma hora de distância, até a cidadezinha. Sophia e Mel foram as que desceram primeiro. Com seus longos casacos de lã e botas de couro macio, pareciam duas nova-iorquinas super in,

supertransadas, e completamente fora de lugar. Micael veio logo atrás, vestido com roupa de esqui, o que também destoava da maneira de vestir os

habitantes locais, com sua camisa de brim e flanela.

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Chay foi o último a descer. Ele estava tão deslumbrante como sempre, e senti

meu coração dar uma sacudida quando o vi. Ele me pareceu alto, enxuto e maduro com sua jaqueta de couro negra e seu cachecol enrolado no pescoço

de forma aparentemente casual. Não houve nenhuma necessidade de parar para pensar se eu ainda sentia algo por ele. Eu podia sentir o meu coração pular através da minha espessa jaqueta.

Os quatro olharam ao redor com um ar de perdidos. - Lá está ela! – gritou Sophia, e todos saíram correndo na minha direção.

Quando o olhar de Chay se encontrou com o meu, todo o seu rosto se iluminou com aquele maravilhoso sorriso. - Lua – o disse enquanto pegava em minhas mãos -, não consigo acreditar que

estou mesmo aqui. Você parece tão bem! Eu estava com medo de que tivesse mudado, sei lá, mas está exatamente igual. Para falar a verdade, está ainda

melhor do que me lembrava! - Faz só três meses que vim pra cá, Chay! – exclamei, rindo nervosa e me sentindo totalmente feliz pelo prazer de estar com ele de novo. – Você

esperava que tivesse ficado grisalha, ou o quê? Ele riu comigo. As mãos dele estavam quentes e firmes ao agarrar as minhas,

e eu sentia pequenas ondas elétricas correndo pelos meus braços. A essa altura os outros já haviam nos rodeado e estavam se amontoando à nossa volta, berrando e gritando enquanto tentavam me abraçar.

- Não consigo acreditar que finalmente estamos aqui! – observou Sophia. – Depois de todo esse tempo!

- Lua, você está usando um casaco de pele! – exclamou Mel com uma voz chocada. - O quê, isto? – perguntei rindo. – É um velho casaco da minha avó. Não é

legal? - Mas é pele. Ninguém mais usa pele em Nova York.

- Ah, mas é velho! Os bichos que eram donos destas peles já morreram há muito tempo. Além do que, é só coelho, Mel! – disse eu, ainda em tom divertido.

- Até mesmo os coelhos têm sentimentos, sabia? – replicou Mel. – Como você se sentiria se alguém matasse e arrancasse a sua pele só para jogá-la sobre

as costas? - Não muito bem – respondi. – Mas os coelhos só são criados para ser comidos e para se usar sua pele. Não teriam crescido e vivido se alguém não os tivesse

alimentado. - Cara, acho que os fazendeiros por aqui já fizeram uma lavagem cerebral nela.

– disse Micael. - Tudo bem, então não uso mais esse casaco – concordei. - Não ligue para nós, Lua, é que estamos exaustos – explicou Sophia. – Que

viagem! Parecia que a gente estava indo para o Polo Norte. Todo esse caminho de ônibus! Ninguém vem de avião até aqui?

- Pouca gente – admiti. - Dá para entender – comentou Mel, passeando o olhar pelo belo vilarejo de Cody. – Lua, você não pode nem imaginar por que lugares a gente passou.

Ponha primitivo nisso! Paramos numa lanchonete de beira de estrada e eu pedi um cappuccino e um croissant de queijo, e o homem detrás do balcão olhou

para mim como se eu fosse uma criatura recém-chegada de Marte. - É, eles são bem básicos por aqui – concordei.

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- E este lugar, ponha parado nisso! Onde estão os cinemas, os restaurantes?

Não tem ninguém aqui, Lua! – disse Micael em tom acusador. – Onde fica Jackson Hole? Onde estão as pessoas famosas?

- Estamos fora da estação turística agora, Micael – expliquei, na defensiva. – Quase tudo fecha no inverno. - E como você se vira para se divertir? – perguntou Sophia. – Eu ficaria pirada

num lugar destes. - Ainda mais sem croissants – concordou Mel.

- Sempre damos um jeito de nos manterem ocupados – disse eu. – Há toneladas de tarefas para cumprir no sítio. Meus amigos acharam que eu estivesse brincando.

- Sei, sei... – ironizou Mel. - Por quê? Vocês não acreditam que eu trabalhe no sítio?

- Que tipo de trabalho? – perguntou Chay. - Alimentar o gado, colher os ovos, cortar a lenha... Qualquer coisa que imaginarem eu já fiz. Contei isso a você nas minhas cartas, Chay – repliquei,

sentindo o meu sangue subir. - Pensamos que estivesse só brincando conosco – observou Sophia.

- É, mas não estava. Faço isso tudo mesmo. - Mas por que, caramba? – perguntou Micael, dando um olhar de esguelha para Mel. – Você gosta mesmo de fazer esse tipo de coisa? Eu colocaria peões

para fazer todo o trabalho duro. - Os únicos peões que temos no rancho somos nós mesmos, a nossa família –

expliquei. – Temos de fazer tudo. No começo, quando meu avô ainda estava engessado, foi bastante duro, porque era a única pessoa que realmente sabia como fazer as coisas. Mas acabamos aprendendo a fazer quase tudo muito

bem. Eu os vi olhando um para o outro com um misto de piedade e surpresa.

- Isso tudo soa horrível, Lua – concluiu Chay. – Você deve realmente estar odiando este lugar. E duvido que os seus pais estejam gostando também. Talvez consiga levá-la de volta com a gente.

Dei de ombros. - Meus pais estão adorando – revelei. – Mamãe vive fazendo pão e tricotando,

e meu pai está escrevendo um romance e tomando conta do gado. Meu irmão agora adora a escola, e minha irmãzinha vai ganhar um cordeirinho de estimação. Eu diria que estão todos muito adaptados e felizes.

- Ai, ai, ai, Lua, mas isso é terrível! – exclamou Sophia. – Então parece que você está mesmo entalada aqui. Talvez consigamos convencer os seus pais a

deixar você voltar conosco e morar com alguma de nós. - Acho que não – repliquei apressada. – Além do mais – acrescentei -, já prometi à equipe de animadoras de torcida que as ajudaria a se prepararem

para as finais do campeonato estadual e não posso deixá-las na mão. - Campeonato estadual de equipes de animadoras de torcida?

Mel e Sophia olharam uma para a outra e caíram na gargalhada. - Você, uma animadora de torcida? - É o único esporte de inverno para garotas na escola – expliquei na defensiva

de novo. – E é o único jeito que arranjei de continuar a praticar ginástica. - Mas animação de torcida é uma coisa tão machista... – comentou Mel. – Lua,

onde está o seu carro? Estou ficando mortalmente congelada. - Ah, desculpe – disse eu. – Está ali.

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Eu me dirigi para a velha e surrada perua do vovô, que nós estávamos usando

porque tinha pneus melhores para andar na neve. - Você tem que ir para a escola nisso? – perguntou Micael.

- Não, vou de ônibus – respondi. - De ônibus? Você vai num ônibus escolar com aquele monte de garotos de fazenda? Eles não cheiram a esterco e vacas?

- Todos têm água corrente em casa. Eu estava começando a me sentir incomodada com a atitude deles, mas um

pouco culpada também. Ocorreu-me que também havia me comportado daquela maneira estúpida logo que chegara ao Wyoming. Meu pai saiu da perua para cumprimentá-los e ajudá-los a colocar as malas no

bagageiro. Chay subiu no assento da frente e se sentou ao meu lado, colocando o braço por cima dos meus ombros e me dando uma piscadela

quando olhei para ele. Senti o meu coração acelerar de novo. Chay estava mesmo lá, sentado bem ao meu lado. Depois de todos aqueles meses de sonhos, eles tinham finalmente se tornado realidade. Sabia que deveria estar

me sentindo muito feliz e animada, mas em vez disso a imagem do rosto de Arthur sob um chapéu de cowboy continuava a surgir na minha mente.

Os outros três se acomodaram no assento de trás, se espremendo um no outro por causa do frio. - Vocês estão vendo agora porque uso um casaco de pele de coelho? – não

pude resistir a comentar. Eles foram o caminho todo reclamando exageradamente a respeito dos

solavancos e buracos na estrada e de como era longe e frio aquele lugar, e me contando entre uma queixa e outra as últimas novidades da escola. A montagem de Sonho de uma noite de verão ficara incrível. Os figurinos das

fadas tinham ficado lindos e as asas tão perfeitas que da plateia pareciam que estavam voando de verdade. Havia até saído um comentário no New York

Times, e vários atores da Broadway tinham ido à estreia. De repente Sophia soltou um grito. Com o susto, meu pai deu uma desviada brusca na direção e quase saiu da estrada.

- O que foi isso? – perguntou ele. - Aquela vista lá na frente! As montanhas! – exclamou ela. – É fantástico!

Igualzinho aos Alpes suíços! - É lá que moramos – disse eu orgulhosa. – Tenho essa vista da janela do meu quarto.

- Eu adoraria ter uma vista dessas da janela do meu quarto... Se houvesse uma delicatessen na esquina e um cinema no fim do quarteirão – comentou Mel, e

dessa vez nós todos rimos. Enquanto íamos aos trancos pela estrada coberta de neve, olhei dissimuladamente para Chay. Não conseguia acreditar que ele estava lá ao

meu lado. E não conseguia acreditar no que estava fazendo com Arthur!

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Capítulo quinze: Miss ranchete Quando começamos a subir pelo vale em direção à nossa casa, eles pararam de reclamar tanto e passaram a ficar mais animados. As meninas não paravam de soltar exclamações a respeito dos cavalos nos pastos e das lindas cabanas

e pontes sobre o riacho. Tudo parecia um cartão de Natal para eles. Fiquei com a respiração presa quando fizemos a curva na entrada do caminho que levava

à porta da nossa casa. Era muito importante para mim que eles gostassem dela.

- É aqui? – perguntou Sophia - É.

- É lindo! – disse ela. – Tão charmosa igualzinha a um filme de Walt Disney. - É mesmo, é bem o tipo de lugar em que eu esperaria encontrar sete anões dentro – arremedou Mel.

Bem naquele momento a porta da frente se abriu e Daniel, com um gorro de tricô na cabeça, saiu da casa.

- E lá está um deles! – disse Chay, fazendo nós todos cairmos na gargalhada. Eu me sentia como uma pessoa que estivesse saindo de um longo sonho. Estava começando a me lembrar do quanto me divertia com Chay, de quantas

maluquices havíamos feito juntos, de estar sentada ao lado dele na aula de biologia e de ele ficar me sussurrando as coisas mais terríveis e engraçadas no

ouvido, daquelas tardes no Fiorelli, em que eu ficava horas em transe, me sentindo feliz e plena só de ficar olhando para ele e escutando-o falar... Não tinha rido daquele jeito por muito tempo. Simplesmente parecia que o meu

senso de humor não estava na mesma sintonia do senso de humor dos garotos do Wyoming.

Minha família veio rapidamente para a porta da frente dar as boas-vindas aos meus amigos, ridiculamente parecida com uma família de caipiras das montanhas. Minha mãe estava vestida com um avental.

- Desculpe-me por não os abraçar, pois estou coberta de farinha – disse ela. – Eu estava justamente colocando umas rosquinhas no forno.

Sophia me cutucou. - Você não estava brincando mesmo, hein? – sussurrou ela. – A sua mãe está parecendo a chefe de cozinha de uma confeitaria ou algo do gênero.

Levei-os direto para cima com as bagagens. - Chay e Micael vão ficar no quarto do sótão – expliquei. – Vocês duas ficam

comigo, no meu quarto. Eu vi Sophia e Mel correndo a vista por todo o meu simples e pequeno dormitório.

- Certo – disseram. - Temos uns colchões para vocês jogarem no chão, para não pegarem friagem

– acrescentei. – Vamos, garotos. Vou mostrar a vocês o quarto lá de cima. Eu os conduzi pelas escadas íngremes até o pequeno quarto do sótão. - Cara, está um gelo aqui – disse Micael.

- É, sinto muito. O calor do aquecimento central não chega até aqui. Meu pai tem um pequeno aquecedor elétrico que usa quando está escrevendo. Vocês

podem ficar com ele – sugeri. Chay me puxou para perto de si.

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- Talvez você possa escapulir aqui para cima depois que todos estiverem

dormindo e me manter aquecido – sussurrou ele em meu ouvido. - Chay, fique sabendo que meu avô ouve absolutamente tudo nessa casa –

adverti, rindo nervosamente. - Ei, Lua, qual é o nosso banheiro? – perguntou Mel quando descemos de volta.

- O que fica no fim do corredor. É o único que temos. - Para todo mundo?

- Receio que sim. - Como você sobrevive? – indagou Sophia. – Vamos ter de sequestrá-la daqui, gente! Isso é abuso infantil!

- Acabei me acostumando – respondi. – Faz tanto frio no banheiro que não dá nenhuma vontade de ficar lá mais do que o estritamente necessário.

- Ainda bem que nós não vamos ficar por muito tempo – concluiu Mel, corando logo em seguida ao se dar conta do fora que cometera. – Não estou dizendo que não me sinta feliz ao te ver, Lua, mas você tem que admitir que tudo é

bastante rústico por aqui. Sophia já estava fuçando no meu guarda-roupa.

- E então, o que você comprou depois que chegou aqui? Onde você faz comprar? - Na verdade não comprei nada, Sophia.

- Nenhuma roupa nova em três meses? Oh, meu Deus, eu morreria! Simplesmente definharia e morreria – disse Sophia. – Mel comprou um vestido

deslumbrante para a festa de fim de ano da escola. Custaram trezentos dólares e estava lindo. - Pelo menos o que dava para ver dele – completou Chay sardônico, trocando

um de seus famosos olhares comigo. Sophia, que tinha se aproximado da janela, subitamente soltou um gritinho

excitado. - Olha só lá fora! É um cowboy de verdade! Arthur estava cavalgando através das terras de sua família, vestido, apesar do

clima, apenas com uma jaqueta de brim e jeans. Ele parecia não sentir nunca o efeito do frio! Mel empurrou Sophia para o lado para poder enxergar melhor.

- Nossa! E é do tipo forte e silencioso! - Do tipo forte e burro, você quer dizer. O QI médio por aqui deve ser de trinta para baixo. Aposto como não se dedicam muito a cultivar a força da mente por

essas bandas. As conversas devem se limitar a coisas como “a minha vaca é maior do que a sua vaca”. Certo, Lua?

Os quarto começaram a rir com aquilo. - São novilhos – observei, em tom aborrecido. - O quê? – me perguntaram quatro rostos surpresos.

- Aqueles animais que estão vendo lá embaixo. São machos, não fêmeas. - Bom, perdoe-nos, Miss Ranchete – ironizou Sophia, fazendo todos

começarem a rir de novo. - Então você conhece o fortão montado no cavalo?- perguntou ela. - Claro – respondi. – Conheço todo mundo por aqui. O nome dele é Arthur

Aguiar e frequenta a mesma escola que eu. - Você tem de nos apresentar – observou Mel. – Sempre quis ter uma aventura

com um cowboy. Talvez você possa nos levar a uma festa de quadrilha, para dançarmos juntos.

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- Posso até imaginar você numa dança de quadrilha – disse Micael. – Iria virar

para o lado errado e trombar com todo mundo. - Não iria, não. Sou muito jeitosa com os pés. Todo mundo disse que fiz uma

fada maravilhosa na peça de teatro – replicou Mel. Senti uma pontinha de ciúmes. A fada maravilhosa era para ter sido eu. - Não se preocupem. A gente nem vai precisar ir a uma dança de quadrilha –

interrompeu Chay. – O cowboy está vindo para cá. Mel e Sophia lutaram uma com a outra para chegar ao fim da escada primeiro.

Fiquei atrás, sem saber ainda como agir, e Chay aproveitou a oportunidade para me encurralar no patamar no meio da escada. - Espero que você e eu tenhamos chance de ficarmos a sós em algum

momento – sussurrou ele. – Meus pais só teriam me deixado vir se os outros viessem também, e por isso não tive escolha. Espero que não estrague essa

nossa chance de ficarmos juntos. Ele estava me pressionando contra a parede, sua mão apoiada ao lado do meu rosto e o rosto a poucos centímetros do meu.

- Talvez você pudesse acasalar Sophia e Mel com o cowboy e seu fiel companheiro, e arranjar uma cowgirl para Micael. Assim nos deixariam

sossegados. Pensamentos confusos corriam pela minha cabeça. A proximidade física de Chay estava me perturbando. Eu me lembrei de como me sentia quando ele

me beijava, e uma parte de mim queria sentir seus lábios sobre os meus novamente. E Arthur estava aponto de atravessar aquela porta lá embaixo a

qualquer instante e nos ver. - Chay, aqui não – implorei baixinho. – Meu avô pode nos ver ou nos ouvir. - E daí? Por acaso sou algum Frankenstein?

Preferia que ele não tivesse dito aquilo. De repente a imagem de Arthur cambaleando pelo pasto e fazendo sua imitação de monstro Frankenstein

naquele primeiro dia em que me ajudara em todas as tarefas do sitio surgiu com toda a força em minha mente. Fora o dia em que nos apaixonamos. Porque raios eu tivera a pretensão de achar que seria capaz de levar aquela

farsa adiante? Tinha sido a ideia mais estúpida da face da terra, agora eu via com clareza. Não se tratava apenas de tapear dois garotos e manter um

afastado do outro. Tratava-se de tapear as duas metades do meu coração. Eu me liberei de Chay bem no momento em que a sombra de Arthur encheu o umbral da porta. Como deveria agir agora, na frente dos dois? Deveria dar um

beijo de oi em Arthur e ter de responder a toneladas de perguntas dos meus amigos depois? Ou deveria simplesmente me manter distante e magoar os

sentimentos dele? - Oi, gente – disse Arthur, cumprimentando meus amigos com uma batidinha com a ponta do dedo na aba do chapéu, no mais puro estilo cowboy. – Vocês

devem ser as visitas de Nova York de que a Lua andou me falando. Ester me ligou e disse que tinha visto a perua vindo para cá cheia de gente, então

imaginei que deviam ser vocês chegando. - Olha só, ele não é um idiota! – escutei Mel sussurrar com Sophia. Sophia já havia dado um passo à frente.

- Oi! Eu sou Sophia – disse ela – e estes três debilóides aqui são Mel, Micael e Chay.

- Puxa muito obrigada, Sophia! – rebateu Mel. – Se alguém aqui é debilóides, esse alguém é você.

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- Meu nome é Arthur, e eu sou o... Hã, o vizinho de Lua – apresentou-se, meio

desconfortável a se ver rodeado pelos quatro. - Nós sabemos. Nós o vimos cavalgando através do campo, feito o Cavaleiro

Solitário – disse Sophia. – Você vai ter de nos mostrar como laça as vacas e todas essas coisas divertidas. Nós todos assistimos a Chaparral, sabe? Arthur olhou na minha direção com uma expressão irônica.

- A gente não costuma laçar no inverno – explicou. – Força muito os cavalos, e não é nada divertido aterrissar de cara no gelo e na neve.

- Então o que vocês fazem para se divertir por aqui? – perguntou Sophia, provocativa. – A gente não viu nem um único cinema, nem danceteria, nem nada desde que saímos de Nova York!

Arthur afirmou com um movimento afirmativo de cabeça. - É verdade, somos meio carentes no departamento cultural por aqui. Claro, há

varias atividades e locais culturais em lugares como Jackson Hole, mas é muito longe para ir de carro daqui até lá num dia só. A gente acaba tendo de inventar as nossas próprias formas de diversão.

E de novo me olhou com um sorriso secreto nos lábios. Foi então que percebi que o meu plano tinha funcionado. Arthur estava mesmo pensando que Sophia

e Chay e Mel e Micael eram dois casais que tinham vindo me visitar. Não estava se sentindo nem um pouco ameaçado. - Como, por exemplo? – perguntou Micael.

- Como, por exemplo, subirmos todos na noite de réveillon para a cabana de Ester nas montanhas. Lá fazemos muitas brincadeiras: guerra de neve,

passeios de trenó, cantorias ao redor de uma enorme fogueira à noite... - Parece interessante – comentou Sophia. - Vocês serão bem-vindos se quiserem ir – disse Arthur. – Eu já falei isso a

Lua, mas ela achou que não seria o tipo de programa que gostariam de fazer para se divertirem.

- Eu pessoalmente adoraria ir – afirmou Mel. – Acho que seria uma maneira bem original de passar o réveillon. - Eu também – emendou Sophia. – Parece bem legal e muito romântico...

Arthur abriu os braços. - Certo por mim tudo bem. Vou avisar a Ester e os outros que vocês estão indo

também. Podemos subir com a minha caminhonete, se alguns de vocês não se importarem de ir à parte traseira. É bastante frio, mas a gente coloca uns tapetes, além de não ser uma viagem muito longa.

- Ah, a gente não liga nem um pouco. Acho que vai ser super legal! – concluiu Sophia, justamente ela que uma hora atrás tinha sido a que mais reclamara de

estar congelando até a alma na nossa perua. - Então está combinado – disse Arthur. – Amanhã à tarde. A gente sai daqui mais ou menos às três, para garantir que vamos chegar lá antes de escurecer.

Levem roupas bem quentes. Fui à única que não disse uma palavra. Estava tentando desesperadamente

pensar no que poderia dizer para que eles mudassem de ideia, algo como falar-lhes de ursos comedores de gente que frequentemente atacavam as cabanas solitárias, avalanches de neve que enterravam as pessoas vivas, ou

até mesmo dizer-lhes que as camas de lá estariam infestadas de percevejos. Mas, pela forma como Sophia e Mel estavam se comportando naquele exato

instante, iriam achar qualquer uma dessas situações apenas algo de exótico a mais para se vangloriarem quando voltassem para casa: “E então nós fomos

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atacadas pelo urso-pardo, pouco antes da avalanche...” E desconfiei também

que ter uma aventura amorosa com um cowboy de verdade era outro troféu que elas estavam determinadas a obter, para contar vantagem depois.

Olhei do corpo bronzeado e musculoso de Arthur para a caríssima malha tricotada à mão de Chay, e engoli em seco. Os dois numa pequena cabana ao mesmo tempo? Não haveria absolutamente nenhum jeito de evitar que a

verdade viesse à tona. Não mesmo.

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Capítulo dezesseis: Perigo na neve No dia seguinte considerei seriamente a possibilidade de inventar que estava com alguma doença misteriosa e deixar que fossem para a cabana sem mim. Parecia a única forma de escapar da desgraça que estava a ponto de desabar

sobre a minha cabeça. Como chegara a pensar que aquilo daria certo? Não queria machucar Arthur e não queria machucar Chay. Queria o impossível.

Tinha me apaixonado pela ideia de ter Arthur no Wyoming, bem ao meu lado, me levando para cavalgar ao luar, e Chay lá em Nova York, ansioso por mim e esperando para me levar para ver filmes estrangeiro quando eu voltasse. Só

agora que eles eram pessoas de carne e osso na minha frente é que estava percebendo o que tinha aprontado. Teria de escolher: entre a velha Lua e a

nova.

Fiquei caminhando para lá e para cá no meu quarto, olhando pela janela para

os campos cobertos de neve. Não queria continuar no Wyoming, queria? Ainda estava sonhando em voltar para Nova York, fazer comprar em todas aquelas

lojas chiques e ir aos cafés e aos teatros, não estava? E, se voltasse, iria querer ter Chay esperando por mim. Mas magoar Arthur era algo inadmissível... Acabara de tomar consciência do quanto tinha sido egoísta.

Ficara realmente envaidecida com a ideia de dois garotos deslumbrantes me disputando. Parecera-me um jogo perigoso e excitante confrontar um com o

outro e ao mesmo tempo tentar mantê-los afastados. Mas finalmente estava percebendo que aquilo não era um jogo. Havia sentimentos sérios envolvidos. As peças do jogo que eu estava jogando eram os corações de duas pessoas.

O dia transcorreu placidamente. Depois do almoço meus amigos foram brincar na neve, enquanto fui de carro com minha mãe à mercearia mais próxima

comprar provisões para a nossa aventura na cabana. Estávamos saindo da mercearia, com sacolas cheias de mercadorias até o topo, quando avistei Arthur atravessando o estacionamento em direção à loja.

- Ei, Arthur, se você estiver indo comprar chocolate em pó não se preocupe – gritei. – Já comprei o suficiente para um batalhão.

Esperava que ele sorrisse, mas invés disso me fitou com um olhar gélido. - Obrigado, mas prefiro cuidar das minhas próprias necessidades – retrucou. - O que? – perguntei confusa, começando a caminhar na direção dele.

- E, já que nos encontramos aqui – continuou Arthur -, você quer que compre um quepe preto para hoje à tarde?

- Um quepe preto? Do que você está falando? - Quero dizer, para ficar mais de acordo quando eu for fazer o papel de chofer para você e os seus amigos.

- Arthur, o que há com você? Ele continuava a me fitar com um olhar frio e duro.

- Você não é capaz de adivinhar? – perguntou. – Ah, claro, imagino que eu esteja agindo como um cowboy imbecil e conservador. Afinal, o que sei eu a respeito dos costumes de Nova York, não é? Talvez sair com dois caras ao

mesmo tempo seja algo correto e até bonito por lá. - Arthur, pelo amor de Deus, me diga o que aconteceu! – implorei.

- É que o idiota aqui pensou que significasse algo para você, só isso. - Mas é claro que você significa muito para mim, Arthur.

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- Se fosse verdade, você não teria mentido para mim. Não teria dito “ah, Arthur,

estes aqui são uns amigos que vieram me visitar”, em vez de “este é o meu verdadeiro namorado. O número um. O que realmente me importa”.

- Arthur, onde você ouviu isso? - Não faz diferença – disparou ele. – E não quero mais falar nesse assunto. Vou levar vocês até a cabana, mas a partir de agora fique longe de mim.

Pensei que podia confiar em você, Lua. Mas estava completamente enganado. Ele começou a ir embora.

- Arthur, não é justo! – explodi. – E essas coisas que você ouviu por ai nem mesmo são verdade. Por favor, me deixe explicar. Arthur, por favor! Mas ele já havia partido. Fiquei lá em pé, olhando enquanto se afastava. Não

conseguia suportar aquela expressão de dor em seu rosto. Teria feito qualquer coisa no mundo para consertar a situação, mas simplesmente não sabia o que

fazer. Minha mãe apareceu ao meu lado. - Venha, meu bem, vamos para casa – disse ela. – Não há nada que possa

fazer por enquanto. Ele está com o orgulho ferido. - Não queria magoá-lo, mãe – expliquei. – E não quero perdê-lo.

- Disse a você que o risco de deixar Chay vir aqui era muito grande – ralhou mamãe. – avisei que teria de escolher entre os dois e machucar um deles no processo. Agora você já machucou.

- Ótimo, muito bem – disparei. – Já estou me sentindo mal o suficiente. Não precisa me fazer sentir ainda pior. Só queria saber quem contou tudo a ele e

arruinou a minha vida. É só para isso mesmo que a minha família é boa: arruinar a minha vida uma vez atrás da outra. Saí andando na frente dela com passos pesados e raivosos em direção à

perua e fiquei sentada num silêncio pétreo durante todo o caminho de volta para casa. Não conseguia tirar a expressão de dor de Arthur da minha mente.

Pela primeira vez na minha vida tomei consciência de que tinha poder sobre outro ser humano, poder de fazê-lo feliz ou magoá-lo. E aprendi que, quando você machuca uma pessoa especial, uma pessoa com a qual se importa muito,

isso machuca você mesma também. Meus amigos estavam esparramados ao redor da lareira quando entrei em

casa. - Lua, que aspecto tem a gangrena nos seus estagio iniciais? – vociferou Chay. – Acho que um dos meus dedos está a ponto de cair.

Atravessei a sala em direção à cozinha sem falar nada e comecei a desempacotar as compras.

Sophia veio se juntar a mim. - Adivinhe só! – disse ela. – Saí para dar uma caminhada e trombei com o seu cowboy gostosão de novo. Tivemos uma longa conversa. E foi uma sorte isso

acontecer, porque você nem imagina o que ele estava pensando. Ele achava que Chay e eu fôssemos um casal!

Abri a minha boca, mas nenhum som saiu dela. Sophia continuou a tagarelar, toda excitadinha. - Tratei de esclarecer as coisas tintim por tintim com relação a esse mal-

entendido. Contei a ele que Chay nunca tinha olhado para outra garota a não ser você, e que você não via a hora de voltar a ficar junto com ele. Contei

também como se telefonaram todas as noites durante esses meses todos, como vocês se jogaram um nos braços do outro quando ele desceu do ônibus,

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e como e delicioso e inspirador ver os dois se olhando apaixonadamente e

suspirando – continuou ela rindo. – Então contei a Arthur que eu estou livre como um pássaro, caso ele não tenha nenhuma garoa em especial no

momento. E ele me disse que também está livre como um pássaro. Não é bom? - Ah, claro, Sophis, bom demais. Mil vezes obrigada – repliquei.

- O que há com você? – perguntou ela. - Acabou de destruir todas as minhas chances de ser feliz, só isso.

- Você quer dizer... Você e o cowboy? – interrogou ela, desconfiada. - Ainda não tinha percebido o quanto ele é importante para mim – confessei só me dando conta do que dissera quando ouvi as minhas próprias palavras

suspensas no ar. – E agora eu o perdi, Sophia. Eu o machuquei de verdade, e agora não sei o que fazer.

- E o Chay? – perguntou ela, lançando um olhar na direção da sala. – Pensei que você ainda estivesse ansiando por ele. - Eu também pensava – respondi. – Até ele chegar aqui e eu perceber que

mudei. O Chay é o máximo, e eu estava tão envaidecida por ele gostar de mim... Mas Arthur se tornou uma pessoa muito especial para mim nesses

meses. E agora o feri profundamente. Sophia pousou a mão em meu ombro. - Sinto muito, Lua. Não tinha a mínima ideia. Como eu poderia? Você nunca

me contou nada! - Eu sei. A culpa é toda minha. Acho que estava envaidecida demais pela ideia

de dois garotos estarem gostando de mim ao mesmo tempo. E achei que conseguiria administrar a situação, sei lá, como se fosse a garota mais tranquila e cabeça fria do planeta. Queria ter os dois na minha frente ao mesmo

tempo para poder ver de qual gostava mais. E me esqueci de pensar no que isso poderia causar a eles. Nunca imaginei que o coração de um garoto

pudesse se partir da mesma forma que o de uma garota. Deixei-me desabar uma das cadeiras da cozinha. - O que eu faço Sophia?

- Espere até nós termos ido embora e então explique tudo ao Arthur. - Mas assim vai parecer que estou dando a ele o segundo prêmio – gemi. –

“Chay voltou para casa, e por isso agora você é o meu número um de novo.” Ele jamais aceitaria. - Então tem de encontrar um jeito de convencê-lo de que ele é o número um.

- Mas isso machucaria o Chay. Ele fez toda essa viagem só para me ver, Sophia. Também não quero magoá-lo.

Sophia encolheu os ombros. - Então não sei Lua. Não sou nenhuma conselheira sentimental de revista feminina, além do que, estava meio que querendo o seu cowboy para mim

mesmo. Decidi que não iríamos mais para a cabana. Iria dizer a eles que a estrada

estava bloqueada e a viagem tivera de ser cancelada na última hora. Mas a mãe de Arthur estragou o meu pequeno plano telefonando para avisar que ele estaria na porta da minha casa às duas e meia em ponto e queria ter certeza

de que já nos acharíamos todos prontos. Agarrei o braço de minha mãe quando ela estava empacotando as nossas

provisões numa caixa de papelão.

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- Mãe, você acha que seria alguma coisa de outro mundo se eu não fosse com

eles? – perguntei. – Poderia dizer a todos que não estou me sentindo bem. Ela me olhou com surpresa.

- Claro que você tem de ir, Lua! São seus convidados e é obrigação sua diverti -los. Estão realmente esperando por essa aventura na cabana, mas não conhecem ninguém lá, e eles já devem ter toda uma programação de passeio e

atividades planejada. Você não vai nem ter tempo de ficar sozinha com nenhum dos dois garotos.

- Mas não vou conseguir encarar essa situação, mãe. Não consigo suportar nem o pensamento de estar lá em cima com Chay e Arthur. Ela deu de ombros.

- Foi você que armou essa situação, Lua. Acho que agora não tem outra opção a não ser administrá-la o melhor possível – opinou. – É só por uma noite, e vai

haver uma grande turma de garotos e garotas lá. Não vejo porque precise ter um confronto dramático com algum dos dois. Percebi que ela não estava levando a coisa toda muito a sério.

- Você está achando graça, não está? – perguntei. - Não. Não estou achando graça nenhuma – respondeu ela. – Mas também

não é o fim do mundo, sabe? Acho que nunca na vida tinha me sentido mais sozinha do que naquele momento. “Se pelo menos eu conseguir manter a calma por esta única noite”,

pensei, “posso pedir ao meu pai para levá-los ao parque nacional de Yellowstone até o fim da estadia deles aqui. Vou contar a verdade a Chay. E

depois vou procurar Arthur e me humilhar me jogar aos pés dele e implorar para que me aceite de volta”. Arthur fingiu não me ver quando passei ao lado dele e joguei meu saco de

dormir na traseira da caminhonete. Eu me acomodei no bagageiro e deixei Mel e Sophia ocuparem o assento na cabine ao lado de Arthur. Talvez um milagre

acontecesse e Sophia dissesse a Arthur que tinha interpretado tudo erradamente, que na verdade eu nunca gostara de Chay. Mas então me lembrei de que Sophia também estava afim de Arthur. Ela nunca tinha sido

muito boa para compartilhar nada, e sempre conseguira o que queria. Começamos a subir pelo vale, com a caminhonete saltando e deslizando pela

neve batida. Tinha nevado forte nas duas noites anteriores, e o mundo havia se transformado numa irreconhecível série de valetas e lombadas. Só o gado, com sua cor castanho-escuro, fazia algum contraste com o branco da neve que

cobria tudo. Logo deixamos os pastos para trás, e a estrada começou a subir em ziguezague. Os galhos dos pinheiros quase se vergavam com o peso dos

grossos mantos de neve que os cobriam, e nada se movia na silenciosa paisagem. O sol já começava a descer para trás das montanhas distantes, e em pouco tempo mergulhamos numa sombra profunda. Fazia frio demais para

falar. Chay, Micael e eu nos aconchegamos juntos, com os sacos de dormir e os cobertores à nossa volta e com os cachecóis cobrindo os nossos rostos e

fazendo-nos parecer uma quadrilha de bandidos. - Vai ter uma lareira nessa cabana, não vai? – murmurou Micael. - E vai ter um médico que saiba cuidar de gangrena, não vai? – observou Chay,

sarcástico. – Espero que ele não tenha que arrancar todos os meus dedos. Chay deslizou seu braço ao redor dos meus ombros e me puxou para mais

perto de si. - Você e eu vamos ter de passar a noite enlaçados um no outro, Lua. Tenho

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certeza de que os seus pais vão compreender que fizemos isso por uma

questão pura de sobrevivência. E eu tinha certeza de que Arthur nos havia visto pelo espelho retrovisor através

da janela que separava a cabine do bagageiro. - Chay, não! Você está tirando o cobertor dos meus ombros - exclamei me sacudindo, apesar de estar querendo me sentir com frio e miserável, de estar

querendo sofrer do mesmo jeito que Arthur estava sofrendo por minha culpa. Continuávamos a subir.

- Mas onde fica essa cabana afinal, no topo do Everest? – gritou Micael. A voz dele, sobrenaturalmente alta e poderosa, ecoou pelos paredões rochosos acima de nós.

- Ei, ouçam só isso! – disse Micael, satisfeito consigo mesmo. – Sou poderoso! Alô, ai fora! – berrou ele, dando início em seguida a uma patética tentativa de

imitar o grito cantarolado dos montanheses. Como se fosse uma resposta ouviu-se um som profundo e gigantesco de algo se quebrando e explodindo muito acima de nós, e depois um estrondo

descomunal. - O que foi isso? – perguntou Micael, nervoso. – Será que tem alguém atirando

na gente? - Talvez não tenham gostado do som da sua voz – observou Chay. – Não os culparia por isso.

Arthur deve ter ouvido o estrondo também. Tendo nascido nas montanhas, ele sabia muito bem o que significava aquilo. Subitamente enterrou o pé no

acelerador e começou a dirigir feito um louco. Começamos a dar solavancos violentos, guinando e derrapando para todos os lados. - Caramba, será que o cowboy pirou? O que diabos ele está fazendo? – gritou

Chay. Olhei para o alto da montanha e então compreendi. O que parecia uma linha de

poeira branca estava se precipitando montanha abaixo na nossa direção, engolindo todas as árvores no caminho. - Uma avalanche! – exclamei num grito sufocado. – Arthur deve estar tentando

escapar dela. - Ele é louco! Veja só como está correndo!

- Melhor do que ficar parado esperando a avalanche nos atingir – disse eu por entre os meus dentes, que já estavam batendo. O motor roncou em protesto quando Arthur apertou fundo o acelerador numa

subida mais íngreme. Mas logo depois já não podíamos mais ouvir o som do motor, por causa do estrondoso rugido acima de nós. Pedaços de gelo, que

chegaram na frente do paredão principal da avalanche, bateram na lateral da caminhonete. Chay me puxou para debaixo do saco de dormir. Eu não conseguia desgrudar os olhos da descomunal massa de neve que se

aproximava. Era lindo e aterrador ao mesmo tempo, como se fosse uma criatura gigantesca com vida própria.

Por um instante fugaz pareceu que Arthur ia mesmo conseguir escapar, mas a extremidade final do paredão da avalanche batera na traseira da caminhonete quando passou varrendo a encosta da montanha, nos cobrindo de neve e nos

lançando em rodopio furioso barranco abaixo. Arthur acelerou ainda uma última vez quando fomos puxados para baixo. As rodas giraram em falso, guincharam

e finalmente descansaram contra uma árvore, enquanto a destruição branca continuava em seu inexorável mergulho rumo ao fundo do vale.

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Capítulo dezessete: A chance de ser feliz Ninguém se mexeu. Acho que estávamos todos convencidos de que a caminhonete iria rolar pela montanha abaixo se alguém se atrevesse a falar. Até que lentamente um a um, começamos a pular para fora. Ficamos em pé na

ladeira íngreme, olhando para as árvores partidas como palitos de fósforo à nossa volta. Meus dentes começaram a bater de novo. Não era fácil aceitar a

ideia de que a morte tinha passado a poucos centímetros de nós.

- Todo mundo está bem? – com a voz trêmula e com seus olhos fixos em mim.

- O que vamos fazer agora? – perguntou Sophia. – Como vamos levar a caminhonete de volta para a estrada?

Arthur deu de ombros. - Seria preciso um grande guincho. Vão ter de trazer lá do vale. Ele olhou para o muro de escombros que bloqueava a estrada bem atrás de

nós. - Então o que vamos fazer? – insistiu Sophia. – Vamos congelar se ficarmos

parados aqui. Arthur olhou para cima, acompanhando a trilha que a caminhonete tinha aberto ao cair, e depois para baixo, com ar pensativo.

- Acho que eu não conseguiria chegar até a casa mais próxima antes de escurecer – ponderou. – Poderíamos tentar acampar na caminhonete até

alguém nos encontrar. - Você enlouqueceu? – disse Chay. – Fazia um frio de congelar os ossos na traseira daquela caminhonete.

- Mas talvez seja a melhor alternativa – sugeriu Arthur. – A regra de ouro é nunca abandonar o seu veículo se quiser ser localizado.

- Mas e a cabana para qual estávamos indo? – perguntou Mel. Arthur balançou a cabeça. - É longe. A noite vai cair logo e é muito fácil perder a estrada na escuridão. Se

nós a passássemos, não haveria mais nada depois. - Bom, cowboy, foi você quem nos trouxe até aqui e é você que vai buscar

ajuda – disparou Mel. – Espera-se que saiba o que fazer. Não estamos acostumados a esse tipo de coisa. - É isso mesmo, Arthur. Você não tinha nenhum direito de nos trazer aqui para

cima sabendo que poderia haver uma avalanche – concordou Sophia. - E não há a menor chance de sobrevivermos a uma noite nessa caminhonete

– acrescentou Chay. – Não caberíamos todos na cabine, e eu, para começar, não me candidato a ficar no bagageiro. Estavam todos olhando para Arthur com um ar de desafio. Ele franziu a testa

enquanto tentava decidir o que fazer. - Há uma pequena choupana em algum lugar por aqui perto – disse ele. – Meu

pai a usa às vezes. Talvez devêssemos tentar encontrá-la antes de escurecer. - A que distância ela fica daqui? – perguntou Sophia. - A uns quatro quilômetros, talvez.

- Quatro quilômetros? – gritou Mel. – Você pretende que eu ande quatro quilômetros com estas botas de design italiano?

- Então fique na caminhonete se quiser – replicou Arthur.

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Em minha opinião ele estava mantendo a calma admiravelmente.

- Sabe, cara, você está numa grande fria – acusou Micael, com voz trêmula. – Você pôs as nossas vidas em risco nos trazendo aqui para cima. Meu pai é

advogado. - Então me processe se conseguir voltar lá para baixo vivo – retorquiu Arthur, bravo. – Apenas tratem de manter as suas vozes em tom baixo, se não

quiserem provocar outra avalanche. Lancei um olhar fulminante a Micael, e o rosto dele ficou de um vermelho vivo.

Ele acabara de se conscientizar de que talvez a sua gritaria tivesse detonado a coisa toda. - Certo, vamos começar a andar, se não nunca encontraremos a tal choupana

antes de escurecer de vez – disse Arthur. - Que situação estúpida – lamuriou-se Mel. – Vou estragar as minhas botas se

andar na neve profunda com elas. Até então eu não tinha dito nada, em parte porque ainda estava em estado de choque com o acidente, em parte porque me sentia dividia. Queria me

posicionar do lado de Arthur, mas aqueles eram os meus convidados. Podia entender que estivessem alterados. Também estava, sendo que já tivera três

meses para me acostumar ao lugar. Mas tudo tem um limite. Estavam culpando Arthur por uma avalanche que provavelmente um deles provocara. Eles o estavam culpando, quando na verdade o mais provável era que Arthur lhes

salvara a vida. - Deem um tempo, gente – comecei. – Vocês têm sorte de estarem vivos. Se

Arthur não tivesse usado a cabeça e dirigido com tanta destreza, nós todos estaríamos agora debaixo daquela neve no pé da montanha. – Peguei meu saco de dormir e minha mochila. – Vamos, vamos andando – continuei. –

Senão vai escurecer, e aí é que nunca vamos conseguir encontrar a choupana. - Só espero que Arthur saiba para onde está indo – murmurou Sophia enquanto

pegava suas coisas na traseira da caminhonete. – E espero que alguém tenha trazido chocolate em pó. - Vamos ter de dividir os mantimentos – disse Arthur, tirando pacotes de

alimentos das caixas de papelão. – Cada um leva um pouco. - Eu já tenho coisas demais para carregar – disse Mel. - Eu não tenho lugar

para o chocolate em pó na minha mochila. Além do mais, a gente não está acostumada a andar desse jeito. - Deixe algumas dessas coisas na camionete, Mel – pedi. – Tudo o que você

realmente precisa para esta noite é do seu saco de dormir e de uma malha extra, se tiver uma.

- E para trocar de roupa amanhã, Lua? – perguntou Mel, horrorizada. – Não consigo vestir de dia as mesmas roupas com que dormi a noite toda. Tenha bom senso!

Dei um olhar desamparado na direção de Arthur, e ele sorriu. Por um segundo foi como se nós dois estivéssemos exatamente na mesma sintonia e todos os

outros fossem alienígenas. - Tudo bem – repliquei. – Tenho espaço para a caixa de chocolate em pó. E chega de reclamar.

- Isso não é muito legal da sua parte, Lua – rebateu Sophia. – Afinal somos os seus convidados.

- Vocês que quiseram vir – retruquei. – Não convidei ninguém.

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Não queria ter dito aquilo, pelo menos não com aquele sentido, mas as

palavras simplesmente escorregaram da minha boca. - O que? – exclamou Sophia. – Puxa muito obrigada! A gente gasta toda essa

grana para vir passar as férias com você neste inferno e vem me dizer que nem mesmo nos queria aqui? Grande amiga que você é. - Não foi isso o que quis dizer, Sophia – comecei a me desculpar, me

apressando em segui-la, mas sem conseguir fazê-la parar para me ouvir. Saímos da estrada principal e começamos a subir por uma estreita trilha de

lenhadores, quase invisível sob a neve. - Espero que saiba para onde está indo – disse Chay a Arthur. Arthur o olhou com frieza.

- Acho que a única coisa que vocês podem fazer é confiar em mim – replicou ele. – Agora, vocês não têm muita escolha, a não ser que queiram dar um

passeio a pé de volta até o vale. - Muito espertinho – grunhiu Chay. Sophia e Mel estavam se debatendo na neve profunda. As duas calçavam

botas de couro com bicos pontudos e talões pequenos. Sophia tropeçou e foi escorregando deitada. Quando se levantou, estava coberta de neve.

- Odeio este lugar! – berrou ela, histérica. – É o pior lugar em que já estive em toda a minha vida. É frio, entediante e cheio de pessoas burras e estúpidas que não são capazes nem mesmo de dirigir uma camionete por uma estrada na

montanha sem ser varridas por uma avalanche! Aquilo soou tão patético, tão ridiculamente engraçado, que tive de me esforçar

para engolir uma risada. Olhei na direção de Arthur, mas ele mantinha a boca apertada como uma linha dura e reta. - Vamos lá, mexa-se – ordenou, agarrando o braço de Sophia e começando a

arrastá-la pela trilha acima. – Temos de levá-la para dentro da choupana antes que essa neve derreta e atravesse a sua roupa.

Dei um salto quando Chay agarrou meu braço. - O que foi? – perguntei. Ele fez um gesto para eu ficar quieta.

- Escute - sussurrou -, acho que não vamos conseguir com Sophia indo tão devagar. Vamos todos congelar até morrer se ficarmos aqui no relento. Então,

o que você acha de nós dois voltarmos de mansinho para a camionete? Iria ser quente o suficiente na cabine, só nós dois... - Não, não acho boa ideia. Não posso deixar o Arthur sozinho com elas –

retruquei, surpreendendo a mim mesma. - Claro que pode – afirmou Chay, como se fosse à coisa mais simples do

mundo. – Ele colocou a gente nisso. É obrigação de ele nos tirar disto. Olhei para Chay. O que afinal eu tinha visto de tão interessante nele? Ali, no meio das montanhas, onde não era mais tão autoconfiante a estrela do lugar,

não era nem um pouco atraente. E as suas queixas e lamúrias estavam começando a me irritar.

- Por aqui a gente não costuma deixar os amigos na mão – replique, dando alguns passos rápidos à frente dele. – Vamos lá, gente – disse eu alto e bom som para que todos me ouvissem, enquanto começava a caminhar ao lado de

Arthur -, chega de lamúrias! Vocês estão se comportando como um bando de filhinhos de papai, sempre procurando alguém para culpar. Mas a vida não é

assim, não. Por estas bandas temos de contar com nós mesmos. Por isso mexam-se, ou Arthur e eu vamos deixar vocês para trás.

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Vi Arthur me dar um olhar aprovador quando passei por ele. E escutei Micael

dizer: “Nossa gente! Escute só a Lua, a pioneira do Velho Oeste!” Isso fez todo mundo rir, e eles começaram a andar mais rápido.

Mas a frente, uma forma escura surgiu por entre as árvores. - Lá está! – gritei. Nos últimos metros que nos separava da choupana todos começamos a correr.

Demorou um pouquinho para conseguirmos entrar, mas a força cominada dos três garotos estourou a fechadura e nos precipitamos para dentro. A choupana

cheirava a despejo e mofo, e não havia luz. - Você não vai querer que passemos a noite aqui! – começou Mel. Mas Arthur já estava fuçando nas prateleiras. Encontrou fósforos e jornal velho,

e em poucos minutos um fogaréu já brilhava na lareira. Havia um pequeno estoque de lenha seca empilhada num canto e um primitivo

catre ao longo de uma das paredes. Tiramos as roupas úmidas de Sophia e a colocamos dentro de um saco de dormir, enquanto Arthur colocava água para ferver. Havia somente três canecas, mas pelo menos por uma vez ninguém se

importou em partilhar. - Você acha que vamos ter de passar a noite inteira aqui? – perguntou Mel. –

Será que ninguém vai vir nos procurar em breve? - Vão dar pela nossa falta quando não aparecermos na cabana, não vão? – indaguei.

Arthur balançou a cabeça negativamente. - Apenas vão pensar que no último minuto vocês decidiram não ir. Ninguém vai

começar a nos procurar até no mínimo amanhã de manhã. E não vão ter como chegar do vale até aqui em cima sem um limpa-neve. - Ai, meu Deus! – lastimou-se Sophia. – Só espero que essa história não acabe

se parecendo com aquele filme em que pessoas ficam presas na neve e têm de começar a comer os mortos.

Arthur e eu caímos na gargalhada ao mesmo tempo. - Você se candidata a ser a primeira, Sophia? – perguntei carinhosamente. Agora que estava me sentindo aquecida e segura de novo, me sentia também

mais despachada e decidida. A essa altura já havia chegado à conclusão de que os meus amigos me aborreciam terrivelmente. Estar ali na choupana era

uma verdadeira aventura, e não conseguia parar de pensar no quanto seria aconchegante ficar ali sozinha com Arthur. Os outros também estavam descongelando e relaxando, fazendo o tipo de

piadas imbecis que as pessoas costumam fazer quando passam por um grande susto. Arthur ficou de pé.

- É melhor eu ir checar se há mais lenha escondida em algum lugar lá fora – o comentou. – Esta não vai durar a noite inteira. - Já que você vai lá fora – disse Mel quando Arthur já saia -, seja um anjo e me

traga um cappuccino. Estou louca por um cappuccino. - Sinto muito, madame, mas acho que não tem nenhum desses bichos nas

florestas daqui – replicou Arthur, fazendo todos os meus amigos rirem da cara dele e se cutucarem um ao outro, comentando como ele era um caipira burro e ignorante.

Fiquei vermelha de raiva e embaraço ao mesmo tempo. Percebi muito bem que Arthur estava representando o papel de caipira para eles porque sabia que

esse era o rótulo que aqueles garotos da cidade lhe tinham colocado. Eu me levantei e o segui. Não pude vê-lo imediatamente quando sai, mas ele tivera

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certo quanto ao luar das montanhas: a floresta transbordava um brilho prateado

e mágico que fazia a neve cintilar como milhões de diamantes. Não escutei Chay se aproximando de mim por trás, e dei um salto quando

colocou a mão sobre o meu ombro. - Enfim sós – sussurrou ele. – Estava começando a achar que nunca ia conseguir ficar a sós com você durante toda a viagem, com esse seu avô

abelhudo e a fedelhinha da sua irmãzinha sempre por perto. Mas agora temos a desculpa perfeita, estamos procurando nos manter aquecidos.

Tentou me puxar para perto de si, suas mãos deslizando para dentro da minha japona, mas o repeli sacudindo o meu corpo. - Chay, não – disse com firmeza.

Ele estava sorrindo. - Ah, sem essa, Lua. O que é que há agora? Você está tão tensa. Relaxe...

- Sinto muito, Chay – repliquei. – Foi muito bom de a sua parte vir me visitar, e eu estava apenas tentando levar as coisas em banho-maria até o fim da sua estadia, sem lhe contar a verdade. Eu... Eu acho que fui uma covarde, mas é

que não queria ferir os seus sentimentos. Chay deu uma risada curta.

- O quê? Você está tentando me dizer que não me quer mais? - Acho que sim – respondi. Respirei fundo e comecei:

- Entenda Chay, eu... Mas antes que eu pudesse continuar, ele me agarrou.

- Este ar frio deve estar afetando o seu cérebro – concluiu, começando a esfregar os seus lábios nos meus. Ele me agarrava com tanta brutalidade que estava começando a doer.

- Não, Chay! – exclamei, empurrando-o com toda a minha força. Ele saiu voando para trás e aterrissou na neve. Até então não tinha percebido

ainda o quanto todos aqueles afazeres no sitio haviam fortalecido os meus músculos. Chay parecia estarrecido, e bastante bravo. Ele se ergueu cambaleante.

- Puxa, você mudou mesmo – reclamou. - Sinto muito – desculpei-me. – Não queria empurrá-lo desse jeito. Mas você

estava certo, Chay. Eu mudei. Coisas diferentes são importantes para mim agora. “Arthur é importante para mim agora”, quis dizer, mas Chay me cortou.

- É já percebi. Você não é mais divertida nem interessante. Ficou tão entediante e sem graça quanto todo mundo por aqui. Não vejo a hora de ir

embora deste maldito lugar amanhã de manhã. Voltou para dentro da choupana, batendo a porta atrás de si. Fiquei lá parada, sozinha na noite, sem saber o que fazer em seguida.

- Belos músculos, moça – disse uma voz no meio da escuridão. – Acho que vou inscrevê-la nos torneios de laço ao novilho na próxima primavera.

Virei-me e vi a silhueta de Arthur inclinada contra o tronco de um grande pinheiro. - Você viu a cena toda?

Ele fez que sim com um movimento de cabeça. - Estava quase indo salvá-la, mas logo vi que você não ia precisar de mim.

- Está muito enganado – retruquei. – Preciso de você, sim. - Ah é?

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- É – respondi, respirando fundo. – Estive procurando um jeito de contar a

verdade a Chay desde que ele chegou. Para começar nem mesmo queria que viesse, mas fui covarde demais para dizer isso a ele.

Os olhos de Arthur brilhavam com o luar. - Bom isso não é completamente verdade – continuei devagar, já que era muito difícil dizer o que tinha a dizer com aqueles olhos de Arthur penetrando direto

em minha alma. – Queria checar se ainda guardava algum sentimento por Chay. Tinha lembranças tão boas, Arthur... Queria ter certeza de que estava

chegando à conclusão certa. - E qual é a conclusão certa? – ele perguntou com firmeza. - Que não pertenço mais a Chay nem a nenhum dos meus amigos de Nova

York. Eles não sabem o que é verdadeiro. - E o que é verdadeiro? – indagou baixinho, agora tão próximo de mim que eu

tinha dificuldade para pensar com clareza. - Você e eu – sussurrei. – Acho que o que existe entre nós é muito, muito verdadeiro. Não tinha percebido isso até ontem, Arthur. Nada em toda a minha

vida me magoou tanto quanto saber que havia ferido você. E então decidi que faria qualquer coisa que pudesse para consertar a situação e fazer tudo voltar a

ser como era antes. Lentamente seus braços se fecharam ao meu redor. - Pois acho que você conseguiu – disse ele.

Os lábios de Arthur estavam surpreendentemente quentes quando encontraram os meus. Nem sei por quanto tempo ficamos lá, nos abraçando

com força enquanto a neve cintilava a nossa volta. Quando finalmente nos separamos, ele riu. - Acho melhor a gente entrar. Não seria nada bom sermos encontrados

congelados juntos assim amanhã de manhã. - Não posso imaginar um jeito melhor de morrer – afirmei, contemplando-o com

adoração. - Vamos lá – disse ele, tocando na minha bochecha. – Ajude-me a carregar estas toras.

- Bem que gostaria de poder entrar lá com uma fumegante garrafa de cappuccino. – comentei rindo. – Ia adorar ver a cara de Mel!

Na manhã seguinte acordamos com o barulho do ronco dos motores. Um helicóptero estava voando baixo por cima de nossas cabeças, e descemos

correndo até a linha principal, onde demos de cara com um limpa-neve. Meus pais e vários de nossos vizinhos estavam bem atrás dele.

- Graças a Deus que vocês estão a salvo! – exclamou meu pai com uma voz trêmula, me abraçando com seus braços enormes. – Ficamos tão preocupados quando vieram inspecionar a avalanche e disseram que tinham visto a

camionete, mas nenhum sinal de vida... - Bah, nem precisava se preocupar com a gente – disse eu sorrindo e

segurando a mão de Arthur. – Tínhamos um autêntico homem das montanhas conosco. Ele tomou conta de todos muito bem. - Tudo está simplesmente maravilhoso – respondi, me virando para sorrir para

Arthur. Ele se inclinou para me beijar.

- Para ser mais exata – continuei -, tudo está perfeito.

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Tão perfeito que me dei conta até de que estava ansiando mais do que nunca

por terminar o colegial ali mesmo, no Wyoming, com minha família, meu avô... E, é claro, com Arthur.

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