coração de cristal

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Sofia Duarte – www.sofiaduarte.com – Rascunho do primeiro capítulo Coração de Cristal Capítulo I Eram os primeiros tempos de uma humanidade, aquela criada e temida pelos deuses. A minha missão estendia-se pelos confins do sangue gerado dos deuses. E eu, simples humana, mancharia minhas mãos, minha alma e minha energia através da morte. Um breve suspiro trouxe o fim, um momento que se desfez de mim tal como eu dele. Mas nada chega ao seu fim sem que o início se faça… Passo a passo eu corria pelo tempo infinito da minha infância. Era uma bela ilha, aquela dos meus melhores tempos, em que eu corria pelos luminosos recantos nas ruas cheias de vida. Uma utopia feita real, que se perdia pelos segundos em que os deuses se serpenteavam dentre os ventres de nossas mães. Seria eu um deles? Semideus renegado pelos pais e vivido pelas tempestades que rompiam nas vidas. Ainda me recordava das cores que minha mãe usava na hora em que meu pai voltava das suas constantes missões. - Um dia, serás grandiosa. Não por seres meu sangue, mas porque és aquilo que tua coragem dita. Os sonhos só se tornam utopias quando a alma não os vive. Agora, não existia nada além das recordações que brotavam de meus olhos ou se ouviam de sorrisos silenciosos. Pai morto por uma besta criada pelos senhores de Atlante e uma mãe que se perdeu à procura da sua besta vida. E eu, que serpenteava pelas ruas, era o zé-ninguém que Atlante desconhecia.

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Imensidão que se faz num passado que jamais foi calculado. Uma loucura que parece não ter fim. O que será este coração que se torna cristal nos dias de hoje?

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Sofia Duarte – www.sofiaduarte.com – Rascunho do primeiro capítulo

Coração de CristalCapítulo I

Eram os primeiros tempos de uma humanidade, aquela criada e temida pelos

deuses. A minha missão estendia-se pelos confins do sangue gerado dos

deuses. E eu, simples humana, mancharia minhas mãos, minha alma e minha

energia através da morte.

Um breve suspiro trouxe o fim, um momento que se desfez de mim tal como

eu dele. Mas nada chega ao seu fim sem que o início se faça…

Passo a passo eu corria pelo tempo infinito da minha infância. Era uma bela

ilha, aquela dos meus melhores tempos, em que eu corria pelos luminosos

recantos nas ruas cheias de vida. Uma utopia feita real, que se perdia pelos

segundos em que os deuses se serpenteavam dentre os ventres de nossas

mães. Seria eu um deles? Semideus renegado pelos pais e vivido pelas

tempestades que rompiam nas vidas.

Ainda me recordava das cores que minha mãe usava na hora em que meu pai

voltava das suas constantes missões.

- Um dia, serás grandiosa. Não por seres meu sangue, mas porque és aquilo

que tua coragem dita. Os sonhos só se tornam utopias quando a alma não os

vive.

Agora, não existia nada além das recordações que brotavam de meus olhos

ou se ouviam de sorrisos silenciosos. Pai morto por uma besta criada pelos

senhores de Atlante e uma mãe que se perdeu à procura da sua besta vida. E

eu, que serpenteava pelas ruas, era o zé-ninguém que Atlante desconhecia.

Sempre ouvi dizer que as paixões eram pequenas fontes para lágrimas doces

que flutuariam do coração, manchariam nossa alma e acabavam como

torrentes salgadas pela nossa pele tão castigada na morte propagada dos

tempos. E eu era uma sombra dessa paixão, gerada na vida e perdida no

passado que já fugira de mim. Ou talvez eu não fosse a paixão em si, apenas

um suspiro esquecido daquela chama de atracção constante que se aniquilou

aos poucos até que tudo fosse cinza. Enfim, o meu futuro se convertia pelo

passado e presente que me atormentavam e eu os fazia tremer, deixando que

breves palavras ditas há muito tempo que fizessem crescer na loucura dos

tempos. Eu não precisava de uma casa ou família que me mostrassem quem

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eu era, as águas cristalinas das lagoas mo mostravam a cada momento que eu

olhasse sobre elas. Não estava apenas o meu passado e futuro que

escurecera, a minha pele detinha do obstáculo que germinava ao longo da

minha sobrevivência. Talvez fosse por uma utopia que eu lutava e me mantinha

viva, mas seria esse meu último suspiro. As areias do tempo se moviam sem

que eu as observasse e eu crescia, perdendo-me de mim.

Hoje, meus olhos estão fechados e meu corpo permanece deitado dentre a

sombra das árvores, o vento transmite a calmaria que meu sono rouba de mim,

deixando-me acordada na contagem das estrelas. Dizem que cada uma delas

é filha dos deuses, mas eu acredito que estas sejam pequenas fontes de

sonhos de quem não consegue sonhar de olhos fechados.

Ouvi o meu nome pela ilusão dos meus sonhos acordados, deixei que o vento

falasse, que ele me contasse quais as cores das estrelas. A solidão é um prato

cheio de inspirações brotadas pela nossa pele. Senti uma respiração sobre a

minha face e meus olhos se abriram para um rosto diabólico que sorria para

mim. Um ser de olhos dourados como as estrelas, cabelos prateados e pele

morena. Permaneci congelada, não fosse uma besta que me desejasse morta.

- Não necessitas de te preocupar. Não me conheces, mas eu conheço-te. –

Disse-mo, afastando-se um pouco, sentado numa rocha perto do lago.

Por mais que tentasse pensar em algo, existia um sentimento, como se fosse

uma intuição, que fazia querer aproximar-me dele. Não uma sensação de paz,

como eu habitualmente sentia a cada novo perigo que vivia… Era algo mais

que me intrigava, deixando-me alheia aos meus pensamentos ou medos.

Possivelmente porque fora a única criatura que me falara desde a perda do

meu passado.

- Eu sei que te sentes bem completamente só, porém acredito que isso não

perdorará por muito tempo. Consegues pressenti-lo, mesmo antes que tenhas

consciência disso.

- O que acontecerá? O que isso tem a ver comigo?

- Terás de escolher entre o futuro vazio ou o fado que se aproxima. –

Levantou-se, observando o infinito que seus olhos viam.

- Quem és tu? – O silêncio ecoou minhas palavras, apenas se ouviam meus

passos. Toquei-lhe no ombro na esperança de ouvir uma resposta.

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- Sou apenas uma sombra de um destino que se abate sobre todos nós. –

Esfumou-se, deixando-me novamente com a minha solidão.

Meus olhos se abriam, deixando-me incerta do sonho que acabava de ter. O

que sentia misturava-se com a realidade, minha utopia seria a minha loucura.

As horas passavam e meus olhos procuravam respostas para as questões

que a minha mente teimava a crescer. Tantas eram as faces que os meus

olhos viam e nenhum deles me daria respostas. Como encontrar algo que nem

sabia ao certo existir? Talvez fosse a loucura que começasse a envolver-me

com ternura. Ou simplesmente a morte viera sem que eu desse conta,

deixando-me na ira dos deuses, castigada pelos meus constantes silêncios, no

terror das almas castigadas. Minha mãe me dizia que seriamos deuses caso

vivêssemos nossas vidas de penitência sem mancha e, caso não o fizéssemos,

faríamos parte do holocausto festivo da morte. E eu sempre lhe respondera

que não poderia falar para quem eu nunca vira ou conhecera. Para quê saber

os seus nomes se não me interessavam? As suas histórias de poder, guerras,

sexo e insanidade já me bastavam.

E agora meus sonhos se convertiam nas suas loucuras, talvez fosse uma

ironia, ou simplesmente um castigo. Não que me importasse, pois quebrava o

silêncio da minha vida.

Não que realizasse verdadeiras preces, porém, o que procurava me

encontrara mais uma vez. Ou simplesmente fosse a minha mente a pregar-me

partidas, mostrando-me o que queria ver e que saberia não existir. Observei-o

ao longe, encostado numa parede das tantas casas que a cidade tinha, mas

ninguém o parecia ver. Ele me sorriu, fazendo-me sinal para que o seguisse.

Meus pés iniciaram a marcha mesmo antes de eu pensar em fazê-lo. Inspirei

profundamente, ao pensar que talvez meus pés me levariam para os meus

últimos suspiros. Se eu me importava? Verdadeiramente? Não, não me

importava para onde caminhava, movia-me pelo desejo insaciável de obter

resposta para este novo enigma nesta minha vazia vida.

- Nunca reparara o quão vazia era, até sentir-te. Até correr-te. Até viver-te,

mesmo sem realmente saber quem és. – Murmurei para mim mesma e, ao

mesmo tempo, para aquele estranho ser que seguia.

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Não havia nada mais, seria uma cidade cheia de gente completamente vazia

para mim. E quem disse que os deuses não se mostram? Ninguém. Todos

sabiam as suas faces, descrever-lhas-iam como especiais e eu nunca vira

nenhum deles. Ironicamente, conseguiria descrever cada um, caso fosse

necessário. As suas faces eram memoráveis por cada ser vivo que se

atravessasse nesta ilha.

Senti um embate no meu corpo, e observei de perto uma senhora que

murmurava um pedido de desculpas.

- Eu é que não estava a prestar atenção por onde andava. Não precisa de se

desculpar, eu é que me desculpo. – Inclinei-me, junto a ela, para apanhar o que

ela tinha deixado cair no chão.

- Não. Não se aproxime de mim. – Disse ela assustada, no momento em que

nossas mãos se tocaram enquanto a ajudava a apanhar as verduras. Logo se

levantou e correu, deixando tudo para trás. Ninguém reparara, ninguém se

importara. O que tinha acontecido com ela? Seria eu?

Aproximei-me de uma fonte de águas cristalinas e observei minha pele

enlameada, meus olhos estavam rodeados por uma sombra escura e o seu

azul parecia cada vez mais a tempestade que vivia por dentro. Seria pela

minha aparência que ela fugira? Minhas mãos tocaram na água fresca, passei-

as pelo meu rosto, alinhei o meu cabelo negro e olhei em volta. Por onde teria

ido aquela sombra? Talvez nunca mais o encontraria. Suspirei e sentei-me,

caindo levemente até alcançar o chão. E era eu pior do que um fantasma,

deambulante pelo mundo dos vivos. Eu era o vazio sem razão de ser…

Não te tortures tanto, não vale a pena. Disse uma voz, aquela que pertencia

ao ser que eu pensara ter sonhado. À minha volta tudo continuava o mesmo

vazio de sempre, cheio de gente que passava sem realmente reparar em mim,

sem ele. E eu adoraria poder observá-lo novamente, nem que fosse

simplesmente em sonhos.

- Onde estás? – Ouvi-me dizer, deixando que o desejo de vê-lo fosse bem

maior do que a vontade de permanecer sã. Talvez fosse uma alucinação que a

minha loucura criara para mim. Ou simplesmente apenas um sonho que me

levaria à insanidade.

Não saberia dizer se valeria a pena procurar respostas que, por mais que

tentasse solucionar, me trariam constantes incertezas. Quem seria aquele que

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me surgia? O seu magnetismo tornava-o ainda mais desejável. Como poderia

eu sentir tal coisa de um ser desconhecido para mim?

Meus pensamentos permaneceram cada vez mais fortes, um outro mundo já

se criara na minha mente sem que eu o notasse. Acordei com a sensação de

que eu acabaria por morrer no final desta cruzada.

- Não deverias chamar-me. – Sua voz atravessou todo o meu corpo ao

mesmo tempo que ele aparecia. – Tens a certeza que é isso que queres?

- Do que me falas?

- O teu inconsciente sabe melhor que eu. – Foi tudo o que disse ao sentar-se

a meu lado.

- A minha morte? – Ele afirmou, acenando. – Tu, eu, qualquer pessoa sabe

que ao estarmos vivos que ao estarmos vivos nos condenamos à morte. Não

há qualquer dúvida sobre isso.

- Não gostarias de viver um pouco mais?

- O tempo é apenas algo que inventamos para tentar escapar ao nosso fim. O

tempo não passa por mim e nem eu o procuro.

- Parecem ser pensamentos muito concretos. Um tanto concretos demais,

penso eu. – Eu olhei-o curiosa e ele apenas sorriu. – Tudo muda, até que

pensamos ou somos hoje, amanhã não será nada mais além de uma sombra

atirada ao vento.

- A realidade é o que nos faz sábios ou loucos.

- Nós somos loucos por pensar que a realidade existe. – Suas mãos

ampararam meu rosto para que nossos olhos se cruzassem. – Nada nos diz

que teu rosto e o meu existem. Eu te vejo, toco-te e ouço-te mas, quem me

disse que tudo isto que penso ser não é uma simples história criada, sem vida.

E este mundo, porque existiria se cada parte de nós se diz objecto dos

deuses? – Calou-se por um momento, como se encontrasse palavras para

descrever o que pensava. – Serei rascunho dos teus sentires até que teus

lábios toquem nos meus.

- Talvez sejamos um simples reflexo dos desejos de todos aqueles que são

insanos ao ponto de se acharem poderosos. O que enlouquecida com tantos

sentires. Seus olhos mostravam as mesmas tempestades que os meus?

- És especial. Eu sou especial por estar aqui contigo. É por isso que nos faz

existir, não porque pensamos. Somos reais pelo que vivemos um no outro. É

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essa a maior loucura, o nosso futuro será certamente a morte de nós, que

existimos nesta realidade, mas o que somos não deixará de existir. – Senti que

se aproximava do meu rosto, fechei os olhos e deixei que o sentimento fosse

maior do que a realidade.

A realidade se fora ao mesmo tempo que apenas as recordações tocavam no

meu rosto. Procurei chamá-lo, mas eu nem sabia o seu nome.

Mas nunca ninguém falou que enamorar-se é deixar que essas pequenas

lágrimas salgadas se cristalizem, fazendo-se rainhas do puder que a fénix nos

dá. Reavivar-se… Desprender-se da sua vida, fazendo-se algo bem mais do

que alguma vez pudesse ser sequer imaginado.