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Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente
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EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR DO PLANTÃO NOTURNO
DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
Paciente: XXXXXXX
Autoridade Coatora: EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA
DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE E DO IDOSO DA COMARCA DA
CAPITAL – autos: XXXXXXX
EUFRÁSIA MARIA SOUZA DAS VIRGENS, Defensora
Pública titular da 1ª DP da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança
e do Adolescente (CDEDICA) e GUSTAVO CIVES SEABRA, Defensor
Público, matrícula 3032.138-4, subcoordenador da Coordenadoria de Defesa
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) e FREDDERICO
BIZZOTTO, Defensor Público da Vara de Infância e Juventude da Capital,
vêm, respeitosamente, perante uma das Colendas Câmaras desse Egrégio
Tribunal, com fulcro no art. 5o, LXVIII, da Constituição da República,
impetrar ordem de
HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR
em favor de XXXXXXX, adolescente com 17 anos, nascida em XXXXX, ID
número XXXX SSP/DETRAN, residente na XXXXXX (qualificação de
acordo com oitiva informal realizada no MP) que se encontra em cumprimento
de medida de internação provisória no PACGC , e seu filho XXXXXX,
acolhido institucionalmente de apenas 2 meses de idade, indicando como
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Autoridade Coatora a EXMA. SRA. DR. JUÍZA DE DIREITO DA VARA
DA INFÂNCIA, DA JUVENTUDE DA COMARCA DA CAPITAL, nos
autos XXXXXXXX, de acordo com os argumentos a seguir aduzidos:
I.
DOS FATOS
A Paciente foi representada pela prática de ato infracional análogo
ao descrito no art. 33, caput da Lei 11.343/06, tendo o magistrado, mesmo
ausente violência ou grave ameaça, determinado a internação provisória, o que
enseja o presente habeas corpus.
Fato é que o ato imputado à adolescente não pode ensejar medida
privativa de liberdade tais como internação e semiliberdade.
II.
DA IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDA PRIVATIVA
DE LIBERDADE A ADOLESCENTE QUE RESPONDE A
PROCEDIMENTO POR ATO ANÁLOGO A TRÁFICO
De acordo com o artigo 227, § 3°, V, da Constituição da
República, a aplicação de medidas privativas de liberdade está sujeita aos
princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento.
Não há dúvida de que a internação implica privação de liberdade.
Aliás, a internação é a medida mais gravosa e em tudo se assemelha a uma
prisão preventiva
Como o ato infracional em tela foi cometido sem grave ameaça ou
violência à pessoa, impõe-se a imediata colocação da adolescente em meio
aberto, ou seja, em liberdade assistida.
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Vale transcrever a súmula 492 do STJ: O ato infracional
análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à
imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente.
Mais do que os argumentos jurídicos, é importante demonstrar as
peculiaridades do caso:
a) A adolescente foi apreendida com 4 gramas de maconha e 3
gramas de cocaína, ou seja, estamos diante de quantidade ínfima
de entorpecente;
b) Em oitiva informal (juntada a esse writ a adolescente esclareceu
que a droga se destinava ao próprio consumo e não há outros
elementos que possam afastar essa versão);
c) A adolescente estava com seu filho de apenas 2 meses. É de se
dizer: uma criança que se alimenta única e exclusivamente do
leite materno, como recomenda a OMS, foi afastada de sua mãe.
Os efeitos de dar complemento vitamínico e alimentos outros
são nefastos nessa fase da vida, pois podem causar alergias, além
de diminuir a imunidade da criança que, pelo leite materno,
recebe os anticorpos da mãe. Além da questão alimentar, existe
ainda a questão do vínculo afetivo e os efeitos prejudiciais desse
rompimento nos primeiros anos de vida;
d) O STF recentemente concedeu HC coletivo a mães que tenham
filhos ou estejam grávidas para determinar que aguardem o
julgamento em liberdade (HC 143641).
Aprofundando nos argumentos acima:
Não faz qualquer sentido manter a privação de liberdade (a
internação sem dúvida possui esse caráter) de uma mãe com criança tão
pequena sob sua responsabilidade.
O ato praticado, mesmo que não seja desclassificado para análogo a
uso de drogas, não possui violência ou grave ameaça (ausente a condição do
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artigo 122, I da Lei 8069/90, portanto). Nesse sentido, importante ressaltar que
a adolescente não foi apreendida em local de domínio de facção criminosa,
mas sim em uma praça.
Outro ponto merece destaque: a Defensoria ingressou com pedido
de reconsideração da decisão, mas até o momento não foi apreciado.
Em relação ao HC coletivo deferido pelo STF, extraem-se os
seguintes trechos:
As narrativas acima evidenciam que há um descumprimento sistemático de regras
constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos. Por isso,
não restam dúvidas de que “cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização
da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro” de violações a direitos humanos que vem se
evidenciando, na linha do que já se decidiu na ADPF 347, bem assim em respeito aos compromissos
assumidos pelo Brasil no plano global relativos à proteção dos direitos humanos e às recomendações
que foram feitas ao País A atuação do Tribunal, nesse ponto, é plenamente condizente com os textos
normativos que integram o patrimônio mundial de salvaguarda dos indivíduos colocados sob a
custódia do Estado, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, os Princípios e Boas
Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, a Convenção das Nações
Unidas contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e as
Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (Regras de Mandela).
No dispositivo do julgamento o Ministro relator enfatiza:
Em face de todo o exposto, concedo a ordem para determinar a substituição da prisão
preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas
previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de
crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo
DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de
crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda,
em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que
denegarem o benefício. Estendo a ordem, de ofício, às demais as mulheres presas, gestantes,
puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a
medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições
previstas no parágrafo acima.
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Os argumentos acima deixam claro que a internação da adolescente
não pode subsistir. Insta acentuar que a decisão da autoridade coatora negou a
aplicação da decisão do STF ao argumento de que a paciente e seu filho são
moradores de rua. Nada mais equivocado! Com efeito, não é possível que a
pobreza seja base para negativa de direitos; além disso, pessoas e famílias em
situação de rua merecem receber apoio da assistência social, e não serem
privadas da liberdade e do convívio familiar.
Apesar de ser matéria afeta à área protetiva do Direito da Criança e
Adolescente, vale transcrever o artigo 23 e seu parágrafo primeiro da Lei
8069/90:
Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.
§ 1o Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida,
a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá
obrigatoriamente ser incluída em serviços e programas oficiais de proteção, apoio e
promoção.
Ora, a pobreza foi utilizada no caso concreto para retirar uma
pequena criança de sua mãe, além de privar a adolescente de sua liberdade.
Como último argumento desse tópico, frisamos que a criança
XXXXX foi acolhida e levada para instituição de acolhimento situada em
Jacarepaguá e, mesmo com a presença de integrantes da família extensa, foi
colocado em medida protetiva excepcional longe na região de residência da
paciente de seus familiares (residem no centro do Rio de Janeiro).
Conforme consulta realizada na página desse E. Tribunal de Justiça
acerca dos bairros de abrangência das Varas de Infância, seja a residência da
avó paterna da criança, com quem a mãe também residia, seja de acordo com a
moradia da avó materna, com quem também mantinha convivência a Vara da
Infância competente para aplicação de medidas protetivas, a exemplo do
acolhimento institucional, é a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da
Capital, não havendo justificativa para a determinação do acolhimento
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institucional em área de competência da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do
Idoso da Capital, dificultando, sobremaneira, a visitação, além da privação da
criança do cuidado parental sem a necessária fundamentação, violando o artigo
19 da Lei 8069/90, artigo 227 da Constituição da República e artigo 9 da
Convenção da ONU sobre Direitos da Criança.
III
VIOLAÇÃO DA CONVENÇÃO 182 DA OIT
Participação no tráfico como uma das piores formas de trabalho infantil
E DA CONVENÇÃO DA ONU SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA
Ainda sobre o ato infracional análogo ao tráfico de drogas (que
provavelmente será desclassificado para uso), outras considerações devem
ser feitas:
A parcela da população submetida a essa prática encontra-se em
especial situação de vulnerabilidade uma vez que são pessoas em
desenvolvimento, conforme a Lei 8.069/90 reconhece expressamente em
seu art. 6°.
Soma-se a tal circunstância o inegável fato de que o Estado falha
em fornecer oportunidades para todos, inclusive e especialmente para
crianças e adolescentes, mesmo diante das exigências constitucionais e
legais de promoção de políticas públicas que visem a garantir a tal segmento
populacional com “prioridade absoluta” a proteção integral de seus direitos.
Em consonância com a dura realidade envolvendo o trabalho
adolescente em atividades ilícitas como o tráfico de entorpecentes, o Brasil,
pelo Decreto 3597/00, internalizou a Convenção n. 182 – Sobre Proibição
das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua
Eliminação - da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
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O referido Acordo Internacional, em seu artigo 3°, inclui sob a
denominação de “as piores formas de trabalho infantil” a utilização,
recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de atividades
ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com
definidos nos tratados internacionais pertinentes.
O artigo 3° da Convenção sobre as piores formas de trabalho
infantil foi regulamentado através do Decreto n° 6481 de 12 de junho de
2008, que prevê no seu artigo 4°:
Para fins de aplicação das alíneas “a”, ‘b” e “c” do artigo 3° da
Convenção n° 182, da OIT, integram as piores formas de
trabalho infantil: I- todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como
venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho
forçado ou obrigatório;
II- a utilização, demanda, oferta ou aliciamento para fins de
exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações
pornográficas;
III- a utilização, recrutamento e oferta de adolescentes para
outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e
tráfico de drogas;
IV- o recrutamento forçado ou obrigatório de adolescente para ser
utilizado em conflitos armados.
Cabe salientar que a Convenção utiliza o termo “criança” para
designar toda pessoa menor de 18 anos, conforme artigo 1° da Convenção
sobre Direitos da Criança ratificada pelo Brasil através do Decreto 99.710,
de 21 de novembro de 1990.
O artigo 33 da Convenção sobre Direitos da Criança, por sua
vez, prevê como compromisso do Brasil ao ratificar a referida Convenção
da ONU
Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas, inclusive medidas
legislativas, administrativas, sociais e educacionais, para proteger a criança contra o uso
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ilícito de drogas e substâncias psicotrópicas descritas nos tratados internacionais
pertinentes e para impedir que crianças sejam utilizadas na produção e no tráfico ilícito
dessas substâncias.
Cabe ainda destacar o artigo 37, alínea b, da Convenção sobre
Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil através do Decreto 99.710/90:
“Os Estados Partes zelarão para que:
b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou
arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será
efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso
durante o mais breve período de tempo que for apropriado.”
Numa interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico
brasileiro, incluindo-se naturalmente os tratados internacionais acima
mencionados, é preciso reconhecer que o adolescente que se encontra
submetido a um trabalho degradante e arriscado como o tráfico de drogas
está em situação de flagrante perigo e desrespeito aos seus direitos mais
básico, e é, portanto, vítima.
De tal modo, afigura-se incongruente que seja o mesmo
adolescente submetido a uma medida socioeducativa de cunho tão drástico
como a internação ou mesmo a semiliberdade, quando deveriam ser
aplicadas medidas de proteção, inclusive voltadas para o aprendizado de
trabalho lícito e práticas de esportes e lazer. Ressalte-se que outra não é a
situação em que se encontra o Paciente deste remédio constitucional.
No caso em tela, a adolescente está sendo duplamente violada em
sua dignidade e direito a um desenvolvimento moral, social e mentalmente
sadio, além da violação do direito de uma criança em tenra idade, que
nasceu prematura, ao convívio familiar, seja com a mãe ou com a família
extensa, através das avós.
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Pedimos vênia para trazer a lição do mestre Emílio García Mendez,
jurista argentino e que já foi consultor do UNICEF para a América do Sul, no
comentário ao art. 121 da Lei 8069/90, a propósito da excepcionalidade da
medida de internação:
“A utilização da expressão “privação da liberdade” resulta
altamente conveniente no sentido de não se ignorar o complexo
sistema de garantias de fundo e processuais que devem acompanhá-la.
Tradicionalmente, os sistemas de Justiça de “menores” produzem
uma alta quota de sofrimentos reais encobertos por uma falsa
terminologia tutelar. Neste sentido, o espírito e a letra do art. 121
traduzem, plenamente, aquilo que está disposto no inc. “b”, ponto 10,
das “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens
Privados de Liberdade”.
Os três instrumentos internacionais que se referem
explicitamente ao tema da privação da liberdade dos jovens
(Convenção Internacional, Regras de Beijing e Regras Mínimas das
Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade) são
absolutamente claros em caracterizar a medida de privação da
liberdade como sendo de: a) última instância; b) caráter excepcional; e
c) mínima duração possível. Os instrumentos internacionais são tão
categóricos neste ponto que permitem afirmar que “invertem o
ônus da prova”, no sentido de que praticamente obrigam a
demonstrar ao sistema de Justiça que todas as alternativas
existentes à internação já foram tentadas ou, pelo menos,
descartadas racional e equitativamente. Refiro-me, aqui, aos arts.
13, 13.1, 13.2, 17b, 17c e 19.1 das Regras de Beijing; ao ponto 45 do
capítulo de Política Social das Diretrizes de Riad; ao ponto 1 das
Perspectivas Fundamentais das Regras Mínimas citadas, que,
inclusive, chegam a utilizar o termo “abolir”(“o sistema de Justiça da
Infância e Adolescência deverá respeitar os direitos e a segurança dos
jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental. Não deveriam
poupar-se esforços para abolir , na medida do possível, o
encarceramento de jovens”).
O art. 37 da Convenção Internacional refere-se com a
mesma clareza e intensidade no que diz respeito a essa situação”.
(Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Coordenador
Munir Cury, 12ª edição, revista e atualizada, Malheiros Editores,
2012, pág. 606, grifei)
IV.
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 227 DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA
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O artigo 227, § 3°, V, da Constituição da República, determina:
O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
[...] obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e
respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando
da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade.
V
DA NECESSÁRIA CONCESSÃO DA ORDEM DE HABEAS
CORPUS A XXXXXXXXX
Na mesma decisão que decretou a internação provisória de XXXXXX,
a autoridade coatora determinou também o acolhimento institucional de XXXXXXX.
De plano, consigne-se que o acolhimento institucional, apesar de não
ser medida de privação de liberdade, pode ser atacado por habeas corpus, de acordo
com jurisprudência do STJ sobre o assunto:
“DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RELAÇÃO DE PARENTESCO. ADOÇÃO.
BUSCA E APREENSÃO DE MENOR. SUSPEITA DE SIMULAÇÃO.
MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL.
HABEAS CORPUS.
1. O Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, ao preconizar a doutrina da
proteção integral (artigo 1º da Lei n. 8.069/1990), torna imperativa a
observância do melhor interesse da criança. As medidas de proteção, tais
como o acolhimento institucional, são adotadas quando verificada quaisquer
das hipóteses do art. 98 do ECA.
2. No caso em exame, a avaliação realizada pelo serviço social judiciário
constatou que a criança E K está recebendo os cuidados e atenção adequados
às suas necessidades básicas e afetivas na residência do impetrante. Não há,
assim, em princípio, qualquer perigo em sua permanência com o pai registral,
a despeito da alegação do Ministério Público de que houve adoção intuitu
personae, a chamada ‘adoção à brasileira’, ao menos até o julgamento final
da lide principal.
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3. A hipótese dos autos, excepcionalíssima, justifica a concessão da ordem,
porquanto parece inválida a determinação de acolhimento de abrigamento da
criança, vez que não se subsume a nenhuma das hipóteses do art. 98 do ECA.
4. Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que, salvo evidente
risco à integridade física ou psíquica do infante, não é de seu melhor interesse
o acolhimento institucional ou o acolhimento familiar temporário.
5. É verdade que o art. 50 do ECA preconiza a manutenção, em comarca ou
foro regional, de um registro de pessoas interessadas na adoção.
Porém, a observância da preferência das pessoas cronologicamente
cadastradas para adotar criança não é absoluta, pois há de prevalecer o
princípio do melhor interesse do menor, norteador do sistema protecionista da
criança.
6. As questões suscitadas nesta Corte na presente via não infirmam a
necessidade de efetiva instauração do processo de adoção, que não pode ser
descartado pelas partes. Na ocasião, será imperiosa a realização de estudo
social e aferição das condições morais e materiais para a adoção da menor.
Entretanto, não vislumbro razoabilidade na transferência da guarda da
criança - primeiro a um abrigo e depois a outro casal cadastrado na lista
geral -, sem que se desatenda ou ignore o real interesse da menor e com risco
de danos irreparáveis à formação de sua personalidade na fase mais
vulnerável do ser humano.
7. Ordem concedida.
(HC 279.059/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 10/12/2013, DJe 28/02/2014)
Visto isso, percebe-se que a decisão viola todas as normas do Estatuto
da Criança e do Adolescente a respeito da família natural e substituta. Isso porque a
prioridade é que a criança seja educada e criada no seio de sua família natural. Caso
não seja possível, com a família extensa e, somente na absoluta impossibilidade, e de
forma excepcional, deve ser afastada do convívio familiar e em última hipótese,
colocada em família substituta.
Essa ordem lógica não foi obedecida e UMA CRIANÇA DE
APENAS DOIS MESES DE IDADE se encontra atualmente acolhida no Lar de
Baltazar e Augusto, localizado na Rua Gazeta da Tarde, 55, Taquara, telefone 3689-
0941.
Também é importante mencionar que XXXXX tem avó paterna
conhecida e preocupada com o caso: trata-se de XXXXX, residente na XXXXX.
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Além disso, a avó materna também se faz presente: XXXX, residente
na Rua XXXXX.
Imediatamente após tomarem conhecimento do local onde a criança
estava acolhida as avós compareceram na Defensoria Pública junto ao Juízo da
Infância, da Juventude e do Idoso Regional de Madureira e já realizaram visita ao
neto nesta data, conforme encaminhamento da Defensoria Pública e confirmação pela
assistente social Renata, presente nesta data na instituição e com quem a primeira
signatária manteve contato por telefone.
Como se vê, a medida de acolhimento é teratológica e apenas
contribui para que um recém-nascido perca o necessário alimento de leite materno e
seja afastado da família natural e extensa, com a privação do cuidado parental que
pode trazer graves consequências para o seu desenvolvimento físico e psicológico,
cabendo destacar que se trata de bebê que nasceu prematuro.
Ao se afastar a criança da referência materna e não substituir
adequadamente esse vínculo nas hipóteses de descumprimento dos deveres inerentes ao
poder familiar, e não mera suposição de incapacidade para exercício da maternidade por
mulheres pobres e alegadamente usuária de alguma substância entorpecente, ou vivendo
em situação de rua, o que está acontecendo é uma violação do direito dessas pessoas em
formação à manutenção e fortalecimento do vínculo essencial ao desenvolvimento
humano.
A lei é muito clara ao dizer que a falta de condições materiais não pode
ser causa para perda do poder familiar. A despeito disso, seguem decisões que utilizam
qualquer pretexto para o afastamento da criança do convívio materno, prejudicando
muitas vezes de forma irreversível o desenvolvimento saudável da criança, em especial
quando se trata de famílias pobres.
Em nome de suposta proteção acaba-se por violar o direito fundamental à
convivência familiar e comunitária, impondo uma institucionalização em momento que
o vínculo estabelecido com a mãe não poderia ser rompido.
Conforme Bowlby, em Formação e rompimento dos laços afetivos1,
indispensável para quem trabalha com a temática da infância, os efeitos do rompimento
dos vínculos maternos podem ser muito trágicos: “Voltemos agora ao nosso tema e vejamos o que acontece quando, por
qualquer razão, as necessidades de um bebê não são suficientemente satisfeitas no
momento certo. Há alguns anos venho investigando os efeitos nocivos que
acompanham a separação de crianças pequenas de suas mães, depois que entre elas se
formaram relações emocionais. Foram muitas as razões pelas quais escolhi esse tópico
para as minhas pesquisas: em primeiro lugar, os resultados têm aplicação imediata e
valiosa; em segundo lugar, é uma área em que podemos obter dados comparativamente
1Bowlby, John. Formação e rompimento dos laços afetivos, tradução Álvaro Cabral, revisão da tradução
Luís Lorenzo, Rivera, 5. ed. - São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2015, p. 23/24
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sólidos e, assim, mostrar àqueles que ainda são hipercríticos da psicanálise que esta
possui boas razões para reivindicar o status científico; finalmente, a experiência de
uma criança pequena, ao ser separada de sua mãe, fornece-nos um exemplo
dramático, quando não trágico, desse problema central da psicopatologia – a
geração de um conflito de tal envergadura que os meios normais para resolvê-lo
são destroçados.
Parece existir agora uma razoável certeza de que é por causa da
intensidade da demanda libidinal e do ódio gerados que a separação de uma criança
de sua mãe, depois que formou com ela uma relação emocional, pode acarretar
efeitos tão devastadores para o desenvolvimento de sua personalidade.
Conhecemos há vários anos a saudade intensa e a agitação que tantas crianças
pequenas manifestam quando da internação num hospital ou instituição residencial, o e
o modo desesperado como, mais tarde, depois que seus sentimentos acalmaram com o
regresso ao lar, se agarram a suas mães e as seguem obstinadamente. O aumento de
intensidade de suas necessidades libidinais não precisa ser enfatizado. Também
tomamos conhecimento do modo como essas crianças rejeitam suas mães quando
voltam a vê-las pela primeira vez, e as acusam amargamente por as terem abandonado.
Muitos exemplos de intensa hostilidade contra a figura mais amada foram
registradas por Anna Freud e Dorothy Burlingham nos relatórios das Hampstead
Nuseries durante a guerra. Um exemplo particularmente pungente é o de Reggie, que, com exceção de um intervalo de dois meses, passou toda a sua vida em creches desde
os cinco meses de idade. Durante sua estada, ele formara
duas relações apaixonadas duas jovens assistentes que
cuidaram dele em diferentes períodos. A segunda relação foi subitamente quebrada aos dois anos e oito meses, quando “sua” assistente casou. Reggie
sentiu-se completamente perdido e desesperado quando ela saiu, recusou a
olhá-la quando, quinze dias depois, ela o visitou. Virou a cabeça para o outro
lado quando ela lhe falou, mas fixou os olhos na porta, que a moça fechou ao
sair. À noite, sentou-se na cama e disse: “Minha, muito minha, Mary-Ann!
Mas não gosto dela” (Burlingham e Freud, 1944:51).
Experiências como essa, especialmente se repetidas, levam a um sentimento
de desamor, abandono e rejeição. São esses sentimentos que se expressam nos poemas
tragicômicos de um delinquente de onze anos cuja mãe morreu quando ele estava apenas com
quinze meses de idade e que, a partir de então, conhecera numerosas mães-substitutas. (…
VI
DO PEDIDO
Assim, restou, concessa venia, demonstrado o constrangimento
ilegal sofrido pela Paciente em sua liberdade de locomoção, pois está
privada de liberdade em razão de procedimento onde foi aplicada medida de
internação provisória por ato SUPOSTAMENTE análogo a tráfico de
drogas.
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Sobre o respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, também não pode prosperar a decisão de internação,
considerando a completa ilegalidade na aplicação da medida privativa de
liberdade.
No caso concreto fica evidente a violação do direito à liberdade
da paciente, que somente poderia ser restringida nas hipóteses legais
previstas no artigo 122 da Lei 8069/90, diante do princípio constitucional da
excepcionalidade da aplicação da medida privativa de liberdade (artigo 227,
§ 3°, V).
Ex positis, requer seja concedida a ordem para determinar:
1 - imediata cessação da internação provisória aplicada
concedendo-se LIMINARMENTE a ordem a fim de afastar o evidente
periculum in mora consistente na privação à liberdade de locomoção
imposta à paciente, determinando-se a colocação da paciente em
liberdade e, na hipótese alternativa, a aplicação de medida de
Liberdade Assistida;
2- o imediato retorno da criança XXXXXXXXXXXXX ao
seio de sua família natural ou extensa, concedendo a ordem de Habeas
Corpus, para determinar a entrega do recém-nascido a membro de sua
família natural ou extensa, com a revisão da medida de acolhimento
emergencial aplicada, oficiando-se o Lar de Balthazar e Augusto para
entrega à família (mãe ou avó), comunicando-se o Juízo da 3ª Vara da
Infância, da Juventude e do Idoso da Capital.
3- caso seja concedida a ordem, total ou parcialmente, seja
expedido ofício ao DEGASE informando o conteúdo do V. acordão.
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Rio de Janeiro, 6 de abril de 2018
EUFRÁSIA MARIA SOUZA DAS VIRGENS
Defensora Pública/Mat 819.908-4
GUSTAVO CIVES SEABRA
Defensor Público/Mat 3032.138-4
Fredderico Bizzotto
Defensor Público/ Matr. 860.730-1