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Contos Exemplares

Autoria: Sophia de Mello Breyner AndresenData de publicação: 1962Local de publicação: Lisboa

Antologia de contos de Sophia de Mello Breyner Andresen publicada em 1962.O livro inicia-se com uma citação do Prólogo das Novelas Ejemplares (1613) de Cervantes, através da qual é salientada a virtualidade didática de cada um dos textos da obra do escritor espanhol e, correlativamente, da obra em causa de Sophia.O paralelo de tal obra de Cervantes com os textos desta autora poderá não ser óbvio à primeira vista, sobretudo se pensarmos que os seus «exemplos» se apoiam numa sabedoria popular e humorística mais próxima do picaresco do que da moralidade tal como ela é tradicionalmente entendida. Recordemos, porém, que uma das características subversivas do popular e do humorístico se relaciona com a questionação da teia de relações convencionais que constituem o «eu» e o mundo. O didatismo «exemplar» tanto dos textos de Cervantes como daqueles de Sophia assenta justamente nesse mecanismo.Em Os Três Reis do Oriente, não por acaso o último conto da antologia, deparamos com três personagens - Gaspar, Melchior e Baltasar - a quem os pontos de vista convencionais não satisfazem. O primeiro não aceita como deus um ídolo de ouro «compacto, duro, pesado» que renega os pobres, os envergonhados e os humildes. O segundo recusa o niilismo dos sofismas, aporias e ateísmos da ciência e da filosofia. O terceiro problematiza os valores na base da sua riqueza e do seu poder. Os três partem em busca de uma crença válida capaz de fornecer uma resposta, crença corporizada polissemicamente pelo topos da estrela: «sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tateando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria».Esta atitude nómada, uma das características do romance picaresco, recusando o peso dos valores tradicionais, relaciona-se com a noção de que a vida é ela própria uma viagem com um percurso desconhecido. Em A Viagem, os protagonistas (um casal), que simbolicamente se perdem de um destino que haviam rigorosamente delineado à partida, vão adquirindo gradualmente a noção da efemeridade das coisas e, correlativamente, da necessidade da fruição dos frutos do presente, sobretudo dos mais inesperados, dos que vêm em vez daqueles inicialmente planeados. A ambição de recuperar o caminho inicial implica que eles ignorem as virtudes do caminho que vão trilhando: abrigo, alimentos, água fresca, etc., que vão desaparecendo e não são encontradas quando eles voltam atrás. Esta caminhada acaba por conduzi-los a um abismo que engole a personagem masculina e cerca de escuridão a personagem feminina, a qual, nestas circunstâncias desanimadoras, descobre afinal em si a fé na validade de um chamamento.A dimensão da esperança na possibilidade de uma resposta contida no infinito silêncio (de Deus?) é, nos dois contos supracitados, atingida através da

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aprendizagem da redução, do despojamento e da leveza, características opostas àquelas de personagens extremamente negativas como Mónica, em Retrato de Mónica, cujo sucesso social assenta na renúncia «à poesia, ao amor e à santidade» e numa relação de proximidade com o chamado «Príncipe deste Mundo». Esta personagem tem um estatuto muito semelhante àquele de o «Dono da Casa» de O Jantar do Bispo, que, com a ajuda do «Homem Importantíssimo» e um cheque destinado ao restauro do teto de uma igreja, tenta aliciar o bispo que convida para jantar a transferir o pároco da freguesia onde vivem os seus assalariados, pois este o acusa justamente da miséria deles, assim ameaçando a sua opulência capitalista.O carácter alegórico de algumas das personagens referidas é desde logo indiciado pela sua nomeação. De resto, há afinidades profundas entre personagens como «o Príncipe deste Mundo» e o «Homem Importantíssimo», ambos perspetivados de forma extremamente negativa pelo narrador, assim como há uma grande proximidade entre uma personagem como o pobre que visita a casa onde decorre o Jantar do Bispo e aquele, em O Homem, em cujo olhar ecoa a pergunta de Jesus Cristo («Pai, pai, porque me abandonaste?»).No capítulo que dedica à «Leveza» em Seis Propostas para o Próximo Milénio, Italo Calvino defende um conhecimento emergente da «dissolução da compactidade do mundo» e da perceção da multiplicidade dos corpúsculos invisíveis, móveis e leves de que é composta a matéria. A poética dos já referidos despojamento, redução e leveza de Sophia parece identificar-se com esse postulado.O impulso alegórico que alimenta estes contos é uma das consequências da abstração que tal perspetiva implica. Contudo, é a nível verbal que esta se materializa desde o início. O estilo destes contos, tal como aquele dos discursos que o vagabundo de Homero enuncia na praia, cresce de «Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias» que «reuniam os restos dispersos da alegria da terra».No entanto, como lembra Calvino, a «leveza» não implica uma fuga ao real mas antes uma maior precisão do discurso para atingir a substância última da sua multiplicidade. É assim que, num conto como Praia, é a partir de um cenário marítimo, noturno e nebuloso, onde se desenrola uma vaga reunião social, que surge uma concreta telefonia com notícias da Segunda Guerra e a noção de uma humanidade como parte essencial de um cenário onde reinam «as sombras e a doçura das areias, o brilho lucidíssimo das estrelas, o mistério, a presença suspensa do inimigo invisível, a orla da morte, o terror, a paixão e o denso, agudo e exato peso de cada momento.».