continuidade e mudança na tradição dos pauliteiros de miranda do douro
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8/14/2019 Continuidade e mudana na tradio dos Pauliteiros de Miranda do Douro
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Continuidade e mudana na tradio dosPauliteiros de Miranda
(Trs-os-Montes, Portugal)1
BarbaraAlge
T e s e d e M e s t r a d o
na rea de musicologia, apresentada Faculdade de Cincias Humanas e Culturais
da Universidade de Viena,
orientada pelo Prof. Dr. Gerhard Kubik
Viena, Fevereiro de 2004
1 Verso aumentada e traduzida do alemo por Barbara Alge, reviso do portugus por Miguel Gomes da Costa.Dezembro de 2006.
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Este trabalho dedicado gente mirandesa,e escrito em homenagem a Belmiro Castro de Caro (+ 2005).
Bi benir la gaita,Al cimo del llugar,
Pousei la mie roca,
I pus-me a bailar!(Mourinho 1984: 357)
Pauliteirosde Crcio (foto: Jos Martins, arquivo privado de Barbara Alge)
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Agradecimentos
... pelo apoio neste trabalho agradeo cordialmente s pessoas e instituies seguintes:
A Prof. Dr. Gerhard Kubik pela orientao e o estabelecimento dos contactos com o MuseuNacional de Etnologia e com etnomusiclogos portugueses;
Universidade de Viena pela disposio do gravador DAT e dos microfones;
Ao Servio das Relaes Internacionais da Universidade de Viena pela bolsa de trabalhocientfico de curta durao no estrangeiro;
Ao Prof. Domingos Morais pelas suas propostas, informaes, disposio das suas recolhas edas recolhas de Ernesto Veiga de Oliveira, assim como a sua hospitalidade;
A Prof Dr Salwa El-Shawan Castelo-Branco e aos estudantes da Universidade Nova deLisboa pelas propostas e informaes;
A Prof. Dr. Jorge Freitas Branco pelas suas propostas e o apoio;
Ao Museu Nacional de Etnologia, especialmente Dr Ana Carrapato pelas informaes e aorientao no Arquivo Sonoro do MNE, e a Dr. Paulo Maximino pelas informaes e acorrespondncia;
A Dr. Mrio Correia que me deixou pesquisar no Centro da Msica Tradicional Sons da Terra,que me deu propostas e informaes e que me entusiasmou muito;
A Dr. Antnio Rodrigues Mourinho e aos membros do Museu da Terra de Miranda pelasinformaes;
A Prof Dr Roslia Martinez e Prof Dr Sandrine Loncke pelas primeiras sugestes no meutrabalho;
A Domingos Aires pela sua ajuda no princpio da minha primeira estadia em Miranda;
A Irene e Fortunato Preto pela sua hospitalidade, generosidade e a minha integrao nafamlia;
Ao Prof. Domingos Raposo e a Dr. Duarte Martins pelas informaes a respeito do mirands;
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ndice
Parte I
A Introduo........................1
1. O que so os Pauliteiros?......................................................................................1
[2. Como entrei em contacto com Trs-os-Montes e com osPauliteiros de Miranda
2.1 Porqu Portugal?
2.2 Como entrei em contacto com osPauliteiros
2.3 Definio do tema da tese
2.4 Primeiro contacto com a populao mirandesa
(s na verso alem)]
3. Relatrio de pesquisa ................................................................................................2
3.1 Pesquisas em Miranda (Agosto de 2003)............................................................2
3.2 Pesquisas em Lisboa e Miranda (Setembro de 2003 a Janeiro de 2004).....3
3.3 Situao do trabalho............................................................................................5
4. Ponto de partida e organizao da tese..................................................................6
4.1 Pesquisas doutros investigadores........................................................................6
4.2 Ponto de partida da minha pesquisa....................................................................7
4.3 Organizao da tese.............................................................................................8
5. O mtodo aplicado na pesquisa bibliogrfica, de arquivo e de campo......................9
5.1 Pesquisa bibliogrfica..........................................................................................9
5.2 Pesquisa nos arquivos........................................................................................10
5.3 Procedimento nas pesquisas de campo......................................11
6. Terminologia...........................................................................................................13
B Delimitao do assunto de pesquisa..............................................................18
1. Delimitao geogrfica............................................................................................18
2. Contexto scio-cultural............................................................................................22
2.1 Unidade etnogrfica.......................................................................................22
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2.2 Condicionantes polticos no desenvolvimento de Portugal...............................23
2.3 A particularidade de Trs-os-Montes................................................................23
2.3.1 Comunitarismo agro-pastoril.....................................................................23
2.3.2 Industrializao..........................................................................................24
2.3.3 As barragens..............................................................................................25
2.3.4 Soldados e emigrantes...............................................................................26
2.3.5 O mirands.................................................................................................27
3. Delimitao etnomusicolgica................................................................................283.1 Panorama musical de Portugal..........................................................................28
3.2 Panorama musical de Trs-os-Montes, particularmente, das Terras de
Miranda 29
3.2.1 Formas vocais...........30
3.2.2 Formas instrumentais...............30
3.2.3 Danas..........39
3.3 Classificao da dana dos paulitos..................................................................41
3.3.1 elementos guerreiros: dana de espadas,pyrrhica, mourisca..................43
3.3.2 elementos rituais: fertilidade, ritos de passagem......................................45
3.3.3 elementos religiosos: procisso, festas religiosas.....................................47
3.3.4 A dana dos paulitos: uma sub-gnero da dana de espadas pan-
europeia...48
Parte II
A OsPauliteiros de Miranda.................................................................................50
1. OsPauliteiros de Miranda actuais..........50
2. Elementos gerais da dana dos paulitos e a sua realizao nos diversos grupos dos
Pauliteiros de Miranda............................................................................................55
2.1 Composio.......................................................................................................55
2.1.1 Os danadores .........................................................................................55
2.1.2 Os msicos................................................................................................57
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2.1.3 A figura pastoril....................................................................................59
2.1.4 Pessoas acompanhantes............................................................................60
2.2 Vesturio e acessrios.......................................................................................62
2.2.1 O traje dos danadores.............................................................................62
2.2.2 Os instrumentos dos danadores..............................................................68
2.2.3 A Capa de Honras....70
3. Tradio e a sua realizao actual nas Terras de Miranda ..............71
3.1 A figura do Pauliteironas festas tradicionais................................................723.2 A funo dosPauliteiros no procedimento das festas religiosas......................77
3.3 A tradio hoje...................................................................83
3.4 OsPauliteiros de So Martinho de Angueira (Solstcio de Vero) e de Constantim
(Solstcio de Inverno) como exemplos para a sobrevivncia da tradio dos
Pauliteiros de Miranda...................................................88
3.4.1 So Martinho de Angueira.......88
3.4.2 Constantim...95
4. Folclore e folclorismo nosPauliteiros de Miranda...............................................106
4.1 O fenmeno dos ranchos folclricos...........................................................107
4.2 OsPauliteiros de Miranda como espectculo.................................................110
4.3 OsPauliteiros como bem comercial............................................................113
4.4 OsPauliteiros nas comunidades portuguesas.............................................114
4.5 A expanso dosPauliteiros em Portugal.........................................................116
4.6Lhaos no repertrio dos Grupos Urbanos de Recriao da Msica Tradicional
Portuguesa..................................................................................116
B Anlise dos lhaos dos Pauliteiros repertrio, coreografia, msica
...119
1. O repertrio dos Pauliteiros os lhaos........119
1.1 O termo lhao..............................................................................................119
1.2 O repertrio dosPauliteiros de Miranda....119
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1.3 Diferenas no repertrio dosPauliteiros de diferentes concelhos ...124
1.4Lhaos laos entre Portugal e a Espanha..................................................125
2. As letras dos lhaos .............................................................................................125
2.1 Os vrios lhaos e as suas letras....................................................................127
2.2 Variantes das letras dos lhaos dentro dos grupos dePauliteiros de
Miranda..127
3. Coreografia dos lhaos.........................................................................................129
3.1 Termos coreogrficos dosPauliteiros ...........................................................1303.2 Particularidade coreogrfica de alguns lhaos...............................................133
3.3 Diferenas coreogrficas como expresso da identidade de grupos particulares
dePauliteiros de Miranda..............................................................................138
4. A msica dos lhaos.............................................................................................140
4.1 Indcios musicais genricos dos lhaos..........................................................140
4.1.1 Anlise da estrutura dos lhaos.............................................................141
4.1.2 Anlise rtmica......................................................................................142
4.1.3 Anlise do material tonal.......................................................................142
4.1.4 Ornamentao dagaita..........................................................................143
4.2 O problema da distino entre diferentes lhaos ............................................144
4.3 Comparao musical dos lhaospor gravaes..................................146
4.4 Adaptaes nos lhaos.....................................................................................147
Concluso..........................................................................................................149
Anexo...........................................................................................................................153
Anexo A repertrio........................................................................................153
Anexo B letras dos lhaos ............................................................................161
Anexo C coreografia......................................................................................169
Anexo D transcries.............................................................................173
Anexo E festas...............................................................................................184
Anexo F gravaes....................................................................................188
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Anexo G relatrio das pesquisas em detalhe.................................................204
Bibliografia...............................................................................................................208
discografia...............................................................................................214
videografia...............................................................................................216
ilustraes................................................................................................217
Exemplos musicais no CD anexo ().....221
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Parte I
A Introduo
1. O que so os Pauliteiros?
O termo Pauliteiros denomina os danarinos de uma dana do Nordeste de Portugal,
executada por 8 homens, que batem dois pauzinhos uns contra os outros. Eles so
acompanhados pelo conjunto musical de gaiteiro, tocador da caixa (em Miranda chamado
caixeiro) e tocador do bombo (em Miranda chamado bombeiro) ou pelo tamborileiro (o
tocador da flautapastoril (fraita) e do tamboril). Nalgumas partes da dana os paus so
substitudos por castanholas. O termo Pauliteiros deriva da palavra portuguesa pau
respectivamente paulito.2 O repertrio, as danas ou figuras dos Pauliteiros so conhecidas
sob a denominao lhaos (mirands) ou laos (portugus), a dana sob a denominao dana
dos paulitos ou dana dos Pauliteiros. A populao das Terras de Miranda, a regio onde esta
dana tem as suas razes em Portugal, no chama os danarinos Pauliteiros, mas danadores e
a dana simplesmente la dana ou dana de palotes. O termo Pauliteiros podia ser uma
inovao do povo portugus, que, em seguida, foi tambm aceite na regio mirandesa. No se
sabe ao certo quando este termo foi utilizado pela primeira vez. Em relao aosPauliteiros de
Miranda,j aparece nasMemrias do Abade de Baal (Alves 1990 [1925], IX: 696]).
De forma semelhante, a dana encontra-se tambm em Espanha: a danza de palos oupaloteo
(Mourinho 1984: 453). Os danarinos espanhis so denominados, como por exemplo, por
Jlio Caro Baroja (1984), danzadores ou danzantes. Na dana dos paulitos trata-se muito
provavelmente de uma forma da dana de espadas pan-europeia (ver I, B, 3.3.4).Embora a dana dos paulitos, respectivamente a danza de palos, exista nas regies espanholas
da Galiza, Zamora, Salamanca, Burgos, vila, Len e Valladolid, e em Portugal em todas as
2 Segundo J. Leite de Vasconcelos (1900: 43),paulito uma palavra mirandesa. Portanto, a populao deMiranda designa um pau comopalo, o seu diminutivo comopalote e, por conseguinte, a dana de paus comodana de palotes (Mourinho 1957: 153).Paulito uma composio da palavra portuguesa pau o infix -l- e osuffix -ito e utiliza-se para designar um pequeno pau utilizado em alguns jogos (Diccionrio Houaiss daLngua Portuguesa 2003: 2792).
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Terras de Miranda, at ao concelho de Macedo de Cavaleiros, este trabalho estuda
principalmente o concelhodeMiranda.
2. Como entrei em contacto com Trs-os-Montes e com os
Pauliteiros de Miranda (s na verso alem que se encontra na Biblioteca
Nacional em Lisboa)
3. Relatrio de pesquisa3.1 Pesquisas em Miranda (Agosto de 2003)
Por proposta de Domingos Aires, um emigrante de Duas Igrejas (Miranda) que vivia em Paris,
fui a Miranda no dia 14 de Agosto de 2003. S depois de chegar a Miranda do Douro soube da
feira Famidouro, uma feira de artesanato, na qual um dos vrios grupos de Pauliteiros se
apresentava quase todas as tardes. Em vez de como tinha previsto - passar 3 dias em
Miranda, a fim de obter uma primeira impresso da regio, passei l 11 dias
Fiquei surpreendida por Trs-os-Montes no corresponder ao mito da regio onde oprogresso tecnolgico ainda quase no tinha chegado. Como era Vero, havia muitos
emigrantes e turistas, sobretudo de Franca e de Espanha, e isto assim me parecia - trazia uma
certa agitao regio. Devido feira, pude entrar em contacto com diversos grupos de
Pauliteiros, e com alguns msicos importantes da regio mirandesa - sem ter de visitar as
aldeias onde estes moram.
Alm das actuaes de vrios Pauliteiros na feira Famidouro, assisti a um casamento em
cujo quadro os Pauliteiros de Duas Igrejas danaram a 16 de Agosto de 2003. Uma tarde
passei em Sendim, onde encontrei o Dr. Mrio Correia, director do Centro de Msica
Tradicional Sons da Terra que, entre outras actividades, estuda a msica tradicional das Terras
de Miranda, sobretudo os gaiteiros. Em Miranda do Douro, encontrei o director do Museu da
Terra de Miranda, Prof. Dr. Antnio Rodrigues Mourinho, que me deu informaes sobre
diversas tradies mirandesas. Alm disso, fui ver a Festa da Santa Brbaraem Fonte de
Aldeia. Por depender dos transportes pblicos - a saber, no Vero ainda no arrisquei ir de
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boleia - no vi a dana dos Pauliteiros em Fonte de Aldeia, mas pude reconstruir as funes
deles na festa, por entrevistas com danadores.
Lamento que na minha primeira estadia em Miranda s tenha podido gravar as entrevistas e as
actuaes dos Pauliteiros num gravador de cassetes e em fotografias, porque estava previsto
que s a partir de Setembro a Universidade de Viena me daria a disponibilidade de um
gravador DAT e microfones ORTF. Isto irritou-me sobretudo quando, graas a Fortunato
Preto, o representante dos Pauliteiros de S. Martinho de Angueira, tive a oportunidade de
assistir a uma festa tradicional, a saber, a Festa da Nossa Senhora do Rosrio em So Martinhode Angueira (Miranda), onde vi os Pauliteiros executar as funes tradicionais pela primeira
vez.
equipamento tcnico:
gravador cassete: Sony TCM 353 V
microfones: Sony ECM-MS 907 stereo sem alimentao externa
ORTF CK 91 stereo com alimentao externa (disponibilizados pela
Universidade de Viena)
documentos:
cassetes com gravaes musicais e entrevistas*
135 fotografias
notas pessoais
3.2 Pesquisas em Lisboa e Miranda (Setembro de 2003 a Janeiro de 2004)Depois da minha primeira estadia em Miranda, dei-me conta da complexidade do fenmeno
Pauliteiros, sobretudo por eles existirem, no s nas aldeias mirandesas, mas tambm
noutras regies de Trs-os-Montes, e por causa das diferenas de organizao dos diversos
grupos. Alm disso, fiquei confusa por causa da discordncia dos informadores em relao
existncia, ou no, de um grupo de Pauliteiros. Finalmente, delimitei a minha zona de
prospeco aosPauliteiros de Miranda, ou seja, a todos os grupos do concelho de Miranda.
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A estadia seguinte em Portugal, financiada por uma bolsa de 2 meses atribuda pela
Universidade de Viena, comeou a 20 de Setembro 2003. Passei as primeiras semanas em
Lisboa, onde pesquisei em bibliotecas e arquivos e onde encontrei os etnomusiclogos Prof.
Domingos Morais e Prof Dr Salwa Castelo-Branco, assim como Dr Ana Carrapato e Dr.
Paulo Maximino, do Museu Nacional de Etnologia, e Miguel Costa, da Associao
Portuguesa para o Estudo e Divulgao da Gaita-de-Foles.
A 16 de Outubro de 2003 voltei a Miranda. Vivendo em S. Martinho de Angueira (Miranda)
durante 3 semanas, mas tambm pernoitando s vezes em Miranda do Douro e Sendim, fizgravaes de diversos gaiteiros de Miranda, fiz entrevistas, assisti V Fista de la Gaita de
Fulhes na Pvoa, fui a Bragana, assisti a alguns ensaios de vrios grupos de Pauliteiros,
visitei o CMT Sons da Terra em Sendim, e gravei a Festa da Nossa Senhora do Rosrioem
Sendim e a Festa do S. Martinho em S. Martinho. Alm disso, entrei em contacto com a
populao, visitando diversas aldeias.
Depois da estadia em Miranda, fiquei outra vez algumas semanas em Lisboa, onde comecei a
escrever este trabalho e continuei pesquisas em bibliotecas e arquivos.
A partir de 9 de Dezembro, passei um ms no concelho de Miranda: Pernoitei em S. Martinho
e fui ver o Dr. Antnio Rodrigues Mourinho no Museu da Terra de Miranda, Mrio Correia no
CMT Sons da Terra, assim como Prof. Domingos Raposo, um professor de mirands.
Pesquisei na Cmara e na Biblioteca Municipais, assisti a algumas aulas na escola de msica
em Miranda do Douro, vi uma matana do porco em S. Martinho, gravei gaiteiros e
Pauliteiros, a festaRezosa em Fonte de Aldeia, a Festa do Carocho e da Velhaem Constantim,
assim como a Festa da Velhaem Vila Ch de Braciosa. Alm disso, passei o Natal e o Ano
Novo com a famlia do Fortunato Preto em S. Martinho e Miranda do Douro. Finalmente,tinha a oportunidade de conhecer tradies natalcias de Miranda.
equipamento tcnico:
miniDV cmara de video: Sony Digital Handycam DCR-TRV 14E
gravador DAT: Sony Digital udio Tape Walkman AVLS TCD-D8 (disponibilizado pela
Universidade de Viena)
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microfones: Sony ECM-MS 907 stereo sem alimentao externa
ORTF CK 91 stereo com alimentao externa (disponibilizados pela universidade
de Viena)
documentos:
cassetes de vdeo com msica, entrevistas, rituais, impresses da regio etc.*
cassetes DAT com msica e entrevistas*
notas pessoais transcries
* no arquivo privado Barbara Alge e no Arquivo Sonoro da Academia Austraca das Cincias
em Viena
3.3 Situao do trabalho
Por ter amigos em Lisboa e contactos com o Museu Nacional de Etnologia, com Prof.
Domingos Morais, Prof. Dr. Jorge Freitas Branco, Prof Dr Salwa Castelo-Branco, a
Universidade Nova e com diversos msicos, a minha vida em Lisboa distinguiu-se muito da
minha outra vida em Trs-os-Montes. Todavia, foi a ltima que se tornou mais atraente para
mim:
Durante 3 semanas, entre Outubro e Novembro, e 4 semanas em Dezembro, pernoitei numa
casa em S. Martinho, mais precisamente, em casa de Fortunato Preto, chefe dos Pauliteiros de
S. Martinho. Como a famlia Preto vive em Miranda do Douro, vivi sozinha, mas logo me
tornei um membro da aldeia; obtive legumes e castanhas dos vizinhos e esperei o vendedor depo, que visita todas as aldeias de automvel e se anuncia comfadopelos altifalantes. Em toda
a parte fui acolhida com um amvel Ah, a Austraca!. Alm de dois cafs e duas pequenas
lojas de gneros alimentcios, no h supermercados nem bancos em S. Martinho e no podia,
sequer, utilizar o meu telemvel o que no me incomodava (pelo contrrio!)
O facto de viver em S. Martinho tornava-se uma vantagem, pois podia chegar mais facilmente
a outras aldeias da zona raiana de Miranda.
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Como a maior parte das casas em Trs-os-Montes, a minha casa no tinha aquecimento,
nem electricidade suficiente para utilizar um fogo elctrico, mas logo me acostumei a ir
buscar lenha para fazer lume na cozinha (- mas no me acostumei ao frio em casa depois de
me levantar de manh!!!). De vez em quando, pernoitei em Miranda do Douro, em Sendim ou
em Constantim. Isto acontecia quando no tinha boleia para voltar a S. Martinho, quando
queria poupar tempo ou assistir a uma festa que comeava logo de manh. Quando gravava
noite, trazia, por vezes, coisas para pernoitar na aldeia de prospeco. importante mencionar
que os Mirandeses so muito solcitos: quase sempre algum me dava boleia. No Inverno, forado perodo de Natal, no tinha medo de ir boleia, porque no havia turistas e emigrantes. Era
quase s a populao mais velha a viver em Miranda, porque a maior parte da populao mais
nova , por razes econmicas, contratada para trabalhar ou estudar noutras regies
portuguesas, nas grandes cidades ou mesmo no estrangeiro. Sempre que foi possivel, utilizei
transportes pblicos, ou quando a temperatura o permitia uma bicicleta.
Sobretudo no perodo natalcio, tive a oportunidade de provar refeies tradicionais que, por
causa do perodo da matana do porco, consistiam, na sua maioria de carne e chourio (posta
de vitela, chourio, butelo, etc.).
Um dia antes da minha partida para Lisboa, andei mesmo de burro com a Maria Rosa
Gonalves que, como a maior parte da populao idosa, analfabeta e que guarda as vacas
mirandesas (uma raa particular de Miranda!) quase todos os dias. Depois de 2 horas em cima
do burro, aqueci as minhas costas doentes em frente ao lume, saboreando uma sopa de
abbora.
4. Ponto de partida e organizao da tese
4.1 Pesquisas doutros investigadores
Autores que, nas suas obras, descrevem os Pauliteiros de Miranda ou se preocupam de
aspectos particulares da dana dos paulitos, so Jos Leite de Vasconcelos (1900), no quadro
das suas pesquisas filolgicas do mirands, o Abade de Baal, no quadro das suas memrias
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(1925 [1990]), o musiclogo americano Kurt Schindler, que fez pesquisas de campo em
Espanha e Portugal, por volta de 1932, o diplomata ingls Rodney Gallop, no quadro da sua
recolha da msica popular em aldeias portuguesas, por volta de 1934, Padre Antnio Maria
Mourinho (1957, 1982, 1983, 1984) na sua funo do chefe do Grupo Folclrico Mirands de
Duas Igrejas Pauliteiros de Miranda, Ernesto Veiga de Oliveira em 1960/63, por ocasio de
uma sistematizao dos instrumentos musicais populares portugueses, Michel Giacometti, no
quadro da srie O Povo que Canta da RTP em 1969, a etnomusicloga Anne Caufriez
(1981), nas pesquisas sobre o romanceiro de Trs-os-Montes e Mrio Correia (2001), nocontexto de uma edio fonogrfica dos gaiteiros de Trs-os-Montes. Estes investigadores
descrevem, por um lado, os Pauliteiros, onde aparecem, como se compem e uma provvel
origem da dana dos paulitos, por outro lado, do transcries da msica e/ou das letras de
alguns lhaos. Letras de alguns lhaos encontram-se nas publicaes de Albino Moraes
(1898), de Jos Leite de Vasconcelos (1900), de Serrano Baptista (1938), de Kurt Schindler
(1979 [1941]) e do Padre Antnio Maria Mourinho (1984). H transcries musicais dos
lhaos nas obras de Kurt Schindler (1932 Crcio), Serrano Baptista (1938), Michel Giacometti
(1981), Antnio Maria Mourinho (1984), Jesida Melo Figueiredo (1995) e Ernesto Veiga de
Oliveira (2000 [1964]: 356).
As funes dos Pauliteiros nas festas religiosas das Terras de Miranda e as actuaes dos
Pauliteiros em Portugal e no estrangeiro so tambm mencionadas em algumas obras destes
autores.
4.2 Ponto de partida da minha pesquisa
Depois de uma primeira impresso dos Pauliteiros de Miranda durante a minha estadia emMiranda em Agosto 2003, surgiram questes cujas respostas procurei, em vo, nas obras
mencionadas. Eram questes como:
Em que alturas havia que grupos de Pauliteiros no concelho de Miranda?
Quando e porque que se dissolveram alguns grupos de Pauliteiros?
Que funes executaram e executam os diversos grupos?
Que elementos tradicionais dos Pauliteiros sobreviveram?
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Qual a diferena entre os grupos individuais de Miranda?
E as questes seguintes surgiram depois das primeiras conversas com velhos e novos
danadores:
At que ponto mudou o estatuto dos Pauliteiros de hoje em comparao com os de
antigamente?
H uma identificao dos jovens Pauliteiros e gaiteiros com a sua cultura?
Regista-se uma perda do repertrio ao longo do tempo?
A interpretao musical dos lhaos mudou ao longo do tempo?Percebi que, at agora, nenhum investigador se tinha preocupado com um retrato actual de
todos os aspectos dos Pauliteiros de Miranda e considerava ser meu dever levar a cabo essa
tarefa.
Pretendi comparar os Pauliteiros de Miranda actuais com os antigos, assim como comparar a
realizao dos grupos individuais entre si sob os aspectos da composio, da funo, do
repertrio, da coreografia e da msica.
4.3 Organizao da tese
Antes de entrar na dana dos paulitos, defino a minha zona de prospeco geograficamente e
musicalmente. De maneira geral, apresento a regio de Trs-os-Montes e as formas da msica
popular portuguesa. Em seguida, tento uma classificao da dana dos paulitos e uma
comparao com algumas danas de espadas da Europa, baseando-me em Maurice Louis
(1963 [1984]).
Na parte II A, descrevo a composio geral dos Pauliteiros de Miranda atravs de fontes
literrias e a sua actuao por observao directa. Nesta parte, mostro, entre outras, as funesdos Pauliteiros nas festas religiosas das aldeias mirandesas e, baseando-me nas minhas
pesquisas de campo, at que ponto estas funes ainda so realizadas. Como exemplos para a
sobrevivncia de elementos tradicionais, escolhi a Festa da Nossa Senhora do Rosrio de S.
Martinho e a Festa do Carocho e da Velhade Constantim, s quais assisti pessoalmente. Alm
disso, na terceira parte descrevo a aparncia mais recente dos Pauliteiros, que compilei por
fontes literrias, observaes pessoais e entrevistas.
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A parte II B dedica-se a uma anlise do repertrio dos Pauliteiros, principalmente aos assim
chamados lhaos, que comparei entre grupos de Pauliteiros individuais, em relao s letras,
coreografia e msica. Alm de incluir observaes de alguns autores, a maior parte da
anlise resulta da minha observao pessoal.
No anexo encontram-se transcries das letras de alguns lhaos, uma descrio detalhada das
figuras coreogrficas, assim como transcries da melodia de quase todos os lhaos recolhidos
por mim. A transcrio meldica apoia a anlise na parte II B da tese.
Alis, no anexo, apresento uma viso geral sobre o repertrio dos Pauliteiros de Miranda,sobre as recolhas efectuadas por outros investigadores e por mim, assim como sobre as festas
cclicas de Miranda.
5. O mtodo aplicado na pesquisa bibliogrfica, de arquivo e
trabalho de campo
5.1 Pesquisa bibliogrfica
Durante as minhas pesquisas na Fundao Gulbenkian em Paris, j tinha compreendido adificuldade de obter informaes cientficas sobre os Pauliteiros, porque o nico livro
contendo os Pauliteiros como assunto principal, a saber, Os Pauliteiros de Salselas de Antnio
Cravo, um livro que se encontra mesmo na Bibliothque Nationale de Frana e no Muse de
lHomme, mais uma histria dos Pauliteiros de Salselas do que um texto explicando o
fenmeno Pauliteiros. Em Paris, encontrei informaes importantes nas obras de Antnio
Maria Mourinho, um Padre de Duas Igrejas (Miranda), que tinha fundado um grupo de
Pauliteiros em 1945, e que tinha escrito muito sobre Miranda e os Pauliteiros, assim como nas
obras da etnomusicloga Anne Caufriez, que tinha estudado o romanceiro de Trs-os-Montes.
Alm disso, artigos sobre vrios costumes de Trs-os-Montes, dos quais alguns aparecidos na
revista Brigantia, e obras sobre a regio e a sua gente em geral (entre outros, Dias (1981)),
tornaram-se elementos fundamentais para obter uma impresso da minha zona da prospeco.
Em Portugal, continuei a pesquisa bibliogrfica na Biblioteca Nacional, na Fundao Calouste
Gulbenkian, no Museu Nacional de Etnologia e na Universidade Nova de Lisboa. Como em
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Paris, no me limitava apenas aos Pauliteiros, mas inclua tambm obras sobre Trs-os-
Montes, a sua gente e a msica popular portuguesa em geral.
Em Miranda, ajudaram-me a Biblioteca Municipal de Miranda do Douro e o CMT Sons da
Terra em Sendim, onde, alm de obras e gravaes da msica e cultura transmontanas, obras
gerais de antropologia e de etnomusicologia podem ser consultadas.
5.2 Pesquisa nos arquivos
No Arquivo Sonoro do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, esto guardadas asgravaes de Michel Giacometti e Ernesto Veiga de Oliveira, algumas delas tambm dos
Pauliteiros e gaiteiros das Terras de Miranda feitas entre 1960 e 1970. Todavia, nem sempre
so indicados o stio, a data e/ou o informante nos dados informticos, porque, no caso do M.
Giacometti, as notas pessoais do autor ainda no esto completamente decodificadas. S
atravs da minha prpria investigao, pude, em alguns casos, reconhecer o stio onde
Giacometti tinha pesquisado.
O Prof. Domingos Morais ofereceu-me gravaes de Ernesto Veiga de Oliveira, de 1961 a
1963, assim como as dele prprio, feitas em 1985 (que, alis, se encontram tambm na
Internet!).
No CMT Sons da Terra em Sendim, conhecido pela sua edio de gaiteiros mirandeses,
possvel consultar vrias gravaes sonoras e udio-visuais de lhaos interpretados por
diversos msicos e as vezes mesmo por grupos de Pauliteiros. Alm disso, este Centro de
Msica Tradicional, pe disposio os CDs mais importantes que foram editados sobre a
msica de Trs-os-Montes.
Todos os jornais, revistas, etc. editados no distrito de Bragana, se encontram no Arquivo doDistrito em Bragana. Todavia, uma pesquisa para artigos particulares torna-se difcil, porque
os jornais e revistas mais antigos no tm ndices.
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5.3 Procedimento nas pesquisas de campo
O meu objectivo era de constatar a mudana na tradio dos Pauliteiros no tempo e no espao,
as diferenas entre antigamente e hoje, assim como entre os grupos actuais de diferentes
aldeias mirandesas.
Interessava-me sobretudo a mudana da funo dos Pauliteiros. Assim comparei as ocasies
tradicionais da dana com as formas expressivas dos Pauliteiros de hoje e o estatuto que tm
os grupos actuais. Em Agosto de 2002, no quadro do espectculo do grupo Galandum
Galundaina e em Agosto de2003, no quadro da feira Famidouro, assim como num casamento,j tinha gravado actuaes dos Pauliteiros de Miranda. A partir de Outubro de 2003,
interessaram-me mais as execues tradicional-funcionais dos Pauliteiros nas festas religiosas
que tm principalmente lugar no fim de Dezembro. Finalmente, tornava-se possvel comparar
a tradio dos Pauliteiros no solstcio de Veroe no solstcio de Inverno, a saberpela gravao
da Festa da Nossa Senhora do Rosrio em S. Martinho no Vero e da Festa do Carocho e da
Velha em Constantim no Inverno.
Como se v na segunda parte da tese, antigamente havia Pauliteiros em quase todas as aldeias
do concelho de Miranda. Por isso, conversei tambm com pessoas vindas de aldeias, onde os
Pauliteiros j se tinham dissolvido. Visitei pessoalmente algumas destas aldeias. Por depender
dos transportes pblicos, das boleias e da bicicleta, e como estas aldeias ficam mais longe de
S. Martinho de Angueira ou tm acesso complicado, no cheguei s aldeias seguintes: Gensio,
guas Vivas, S. Pedro da Silva, Granja, Fonte Ladro, Prado Gato, Picote, Atenor e Teixeira
(ver mapa em I, B, 1.). Nas entrevistas, ou melhor dito, nas conversas com a populao
mirandesa e com danadores e msicos, interessaram-me sobretudo o traje, os ensaios, a
escolha dos danadores, as ocasies para danar, o acompanhamento instrumental, amotivao dos Pauliteiros e o estatuto deles nas aldeias diferentes. Pretendia, mais tarde,
comparar estes aspectos ao longo do tempo e entre os grupos actuais.
Alm disso, quis examinar se se tinha perdido algum repertrio, e at que ponto o repertrio
dos grupos individuais se distinguia. Por isso, estabeleci uma lista sistemtica do repertrio
(mais precisamente, s dos lhaos) constituda por ttulos compilados por fontes literrias e
por conversas com as pessoas. Esta lista serviu-me para saber a quantidade de lhaos
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conhecidos por Pauliteiros antigos e actuais. Como em Agosto de 2003 s tinha gravado as
actuaes dos diversos grupos de Pauliteiros num gravador de cassetes, gravei os ensaios de
alguns Pauliteiros numa cmara de vdeo, para poder analisar a coreografia. Para comparar a
interpretao dos lhaos de diversos gaiteiros, visitei alguns gaiteiros pessoalmente. Pretendia
uma gravao de certos lhaos com todos os gaiteiros que encontrei. Nas conversas com os
gaiteiros, interessava-me, entre outras, a aprendizagem da gaita-de-fole a fim de,
seguidamente, comparar os gaiteiros antigos e actuais. Por isso, gravei tambm as aulas dos
alunos de gaita-de-fole na escola de msica em Miranda do Douro. Difcil era a busca depessoas que ainda se lembravam das letras dos lhaos. A importncia das letras parecia ter
reduzindo-se ao longo do tempo. Apesar disso, consegui gravar as letras de 31 lhaos, o lhao
Caballero mesmo interpretado por pessoas de 7 aldeias diferentes. Escolhi este lhao para
uma comparao que se encontra no anexo B.
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6. Terminologia
adufe: instrumento musical, constitudo por
quatro tbuas, formando quadro, cujos topos
so cobertos de pele retesada e que, contm,
por vezes, guizos no interior.
alforge: espcie de saco comprido, fechado
nas extremidades e aberto no meio, por onde
se dobra, formando duas bolsas, e que se usa
ao ombro ou sobre o dorso das montadas.
anunciar o lhao: fazer saber o lhao que
vai ser danado, geralmente atravs de uma
introduo, tocada na gaita ou na fraita pelo
gaiteiro ou tamborileiro.
alvorada: msica executada pela madrugadapara celebrar um acontecimento festivo.
alqueire: recipiente, geralmente de madeira,
de forma quadrada e com duas asas, que tem
a capacidade de uma medida destas.
baldio: terreno que propriedade de uma
autarquia, ou que no tem dono conhecido, e
cujo usufruto exclusivo dos habitantes de
uma freguesia.
batimento: figuras individuais de bater os
paus em cada volta.
bombeiro: denominao do tocador do
bombo em Miranda
bombo: tambor de grandes dimenses,
tocado em posio vertical, com uma maa,
sobre uma das duas faces de pele, usado em
bandas, fanfarras e que entre os instrumentos
de percusso representa o baixo.
botelha do vinho: garrafa de vinho
caixa: pequeno tambor bimembranofone,
com corda de bordo, percutido na posio
horizontal com duas baquetas.
caixeiro: tocador de caixa.
Capa de Honras: capa particular de
Miranda, antigamente usada como traje de
trabalho, sobretudo pelos pastores, hojeusada pelas pessoas de honra
careto: homem ou rapaz que, em grupo, por
ocasio de certas festividades, especialmente
as do ciclo do Natal, percorre a povoao,
exibindo uma mscara diablica, aterradora,
de carcter ritualista, fantstica e participa
com os mordomos da festa no peditrio para
a Igreja.
castanholas: instrumento de percusso
formado por duas peas de madeira dura ou
marfim, arredondadas e cncavas, ligadas
entre si por uma fita ou por um cordel, que o
tocador prende nos dedos ou no pulso,
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fazendo-as bater uma contra a outra,
produzindo um som caracterstico.
ceia: jantar, em geral festivo ou especial,
mais tardio do que habitual.
chamadas: chamaros rapazes para juntar a
ronda dos solteiros em Constantim
chamamento dos Pauliteiros: princpio de
um lhao composto pelo anunciar do lhaoe improviso do gaiteiro
chouria: Enchido de porco, feito com um
pedao de tripa, cheia de carne e gordura aos
bocadinhos temperada com vrios
condimentos, indo depois ao fumeiro para
secar
conchas: instrumento de conchas
conjunto: grupo de msicos que executa
peas de msica popular ligeira ou erudita,
em geral com uma voz e vrios instrumentos
de acompanhamento.
danas mistas: grupo de danas composto
por ambos os sexos
engua: saia debaixo
entrada: entrar dos rapazes no mundo dosadultos, rito de passagem
ferrinhos: instrumento musical formado por
uma barra fina de ferro ou ao, em forma de
tringulo, e que se percute ou bate com outro
ferro.
flauta (pastoril): instrumento musical de
sopro, sem palheta, com orifcios e chaves,
em forma de tubo (utilizado originalmente
por pastores).
fraita: flauta com 3 orifcios
gaita-de-fole: instrumento de sopro,
composto por vrios tubos sonoros providos
de linguetas de cana (palhetas) na suaextremidade inferior e ligados a um fole ou
odre de pele (depsito flexvel de ar),
munido de uma vlvula ligada a um tubo
insuflador.
gaiteiros: tocador de gaita, em particular de
gaita-de-fole; gaiteiros tambm o termo
utilizado para todo o conjunto composto por
gaita, bombo e caixa ou tamboril (Castelo-
Branco 1997: 144)
guia: termo para uma posio particular dos
Pauliteiros, danador que conduz opeo
guia dianteiro: posio particular na dana
dos Pauliteiros
guia direito:ibid
guia esquerdo: ibidguia traseiro: ibid
guitarra: instrumento musical de madeira
cujo corpo, achatado dos dois lados, tem
forma de um oito imperfeito, com seis
cordas e um brao dividido em meios-tons
por filetes de metal.
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jaleco: colete
jogo de roda:jogo em forma de crculo
juiz:presidente dos mordomos
letras: texto
lhao: dana, figura dosPauliteiros
machorra: animal fmea que no possui a
faculdade de se reproduzir; fmea estril ou
infecundamirands: natural ou habitante do concelho
de Miranda, lngua falada em Miranda,
variante dialectal da lngua asturo-leonesa
mocidade: conjunto das pessoas jovens de
ambos os sexos; os jovens ou moos
moo: pessoa na idade da adolescncia ou
depois de passada a puberdade, quando
comea a entrar na idade adulta e durante
alguns anos.
moda: cano ou dana popular
mordomo: antigamente: chefe do conselho;
hoje: indivduo encarregado de preparar e
dirigir uma festa de igreja.
palheta:pequena lmina de cana, metal ou
de outro material que, posta em vibraopela passagem de ar, funciona como agente
sonoro de certos instrumentos (p.ex. da
gaita-de-fole)
palo: castelhano para pau
palote: castelhano para pauzinho
paloteo: termo castelhano para a dana dos
paulitos
pandeireta: instrumento de percusso, de
pequenas dimenses, composto de um aro de
madeira, guarnecido de pequenos crculos
metlicos que se entrechocam e com o vo
coberto por uma pele esticada; pandeiro
pequenopandeiro: instrumento de percusso,
composto de um aro de madeira, geralmente
guarnecido de pequenas lminas metlicas
ou de guizos e com o vo coberto por uma
membrana muito esticada.
proco: sacerdote a quem foi confiada uma
parquia, sujeita jurisdio do bispo
diocesano
pau:pedao de arbusto ou de rvore,
instrumento dos Pauliteiros
paulito:pequena haste de madeira, de altura
varivel; cada um dos paus pequenos usados
na dana dos pauliteiros
Pauliteiricos:Pauliteiros infantis
Pauliteiro: homem que toma parte na danados paulitos
peo:posio particular dum danador na
dana dos Pauliteiros, dirigido peloguia
peo dianteiro:posio particular dum
danador na dana dos Pauliteiros
peo direito: ibid
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peo esquerdo: ibid
peo traseiro: ibid
peditrio: acto de pedir e de recolher
dinheiro do pblico para fins de
beneficncia, de solidariedade, religiosos ou
outros.
ponteira: tubo meldico da gaita-de-fole,
geralmente de furao cnica, equipado comuma palheta dupla de cana e possuindo 11
buracos (8 meldicos e 3 de afinao).
quarta dos pimentos: quarta-feira antes da
festa da Santa Brbara em Crcio
raia: regio fronteiria
Retornados: os que regressaram a Portugal,
vindos das colnias, aps a descolonizao.
realejo: instrumento musical de sopro
constitudo essencialmente por palhetas
metlicas vibrteis fixas a uma prancheta de
madeira com orifcios.
ronco (bordo, ronca ou ronco): tubo
sonoro da gaita-de-fole, de furao
cilndrica, equipado com uma palheta
simples que produz uma nota pedal: somuniforme e montono, geralmente duas
oitavas abaixo da tnica do tubo meldico e,
que acompanha a melodia deste instrumento.
ronda:bando de pessoas que percorrem de
noite uma povoao, cantando e tocando
saiote:pea de roupa do vesturio interior
feminino em forma de saia, que se veste por
baixo do vestido ou da saia propriamente
dita; saia de baixo.
salpico: enchido grosso confeccionado
principalmente com lombo ou perna de
porco e condimentado com sal, pimento
doce, vinho e alho.sanfona: instrumento musical com cordas de
tripa, que se fazem vibrar pela frico de
uma roda accionada por uma manivela.
A altura do som modificada por teclas que
alteram o comprimento da corda meldica.
Possui vrias cordas meldicas e bordes
que podem tocar em simultneo.
secretrio:mordomo que responsvel da
administrao da festa.
solstcio: cada um dos momentos em que o
sol alcana um dos dois pontos da eclptica
mais afastados do equador, em que ele atinge
a sua maior declinao norte ou sol.
Solstcio de Inverno: marcando o incio do
Inverno no hemisfrio norte; ciclo das festasdo Inverno
Solstcio de Vero: marcando o comeo do
Vero no hemisfrio norte; ciclo das festas
do Vero
tamboril: tambor pequeno usado em festas
populares
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tamborileiro:pessoa que toca tambor e
flauta pastoril (fraita) ao mesmo tempo
tesoureiro: mordomo que responsvel
pelas finanas nas festas religiosas
toque: som produzido por um instrumento
musical; aqui: maneira de tocar as
castanholas
tra(n)smontano: que da provnicaportuguesa de Trs-os-Montes ou dos seus
habitantes
trilho: instrumento agrcola usado na
debulha dos cereais, nas eiras.
tuna: grupo musical, geralmente constitudo
por estudantes que se deslocam de terra em
terra, dando concertos musicais; orquestra de
estudantes.
vale pblico: verbaldio
viola: instrumento musical de cordas,
dedilhado ou ferido com palheta, e que tem a
caixa em forma de oito.
violo: instrumento musical de seis cordas
que se tangem com os dedos, e cuja caixa de
ressonncia em forma de oito, com fundo
chato e abertura circular no tampo, em geralum pouco maior que a viola.
volta:parte repetida dos lhaos
(prpria definio ou do Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea, Academia dasCincias de Lisboa, Vol. I, II, Lisboa: Verbo)
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B Delimitao do assunto de pesquisa1. Delimitao geogrfica
mapa 1: Portugal (reproduzido de: Castelo-Branco 1997: 14)
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A regio de Trs-os-Montes, situada no Nordeste de Portugal, divide-se nos distritos de Vila
Real e Bragana, onde Vila Real tambm capital de Trs-os-Montes. O concelho de
Miranda, cuja sede de administrao est na cidade de Miranda do Douro, faz, junto com os
concelhos de Bragana, Alfndega da F, Carrazeda da Ansies, Freixo de Espada Cinta,
Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Mogadouro, Torre de Moncorvo, Vila Flor, Vimioso e
Vinhais, parte do distrito de Bragana e faz fronteira, a Oeste, com os concelhos de Vimioso,
e, a Oeste e a Sul, com o concelho de Mogadouro, assim como a Leste e a Norte com a
Espanha. O rio Douro forma a fronteira entre Miranda e Espanha. O concelho de Miranda
consiste na vila de Sendim, das aldeias de Barrocal do Douro, Picote, Atenor, Prado Gato,
Vila Ch de Braciosa, Freixiosa, Fonte de Aldeia, Teixeira, Palaoulo, guas Vivas, Duas
Igrejas, Crcio, Fonte Ladro, Vale de Mira, Quinta do Cordeiro, S. Pedro da Silva, Granja,
Malhadas, Gensio, Pvoa, Ifanes, Paradela, Especiosa, Constantim, S. Martinho de Angueira
e Cicouro e da cidade de Miranda do Douro.
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mapa 2: distrito de Bragana (reproduzido de:Atlas de Portugal1998: 21)
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mapa 3: concelho Miranda do Douro
A populao transmontana divide Trs-os-Montes tambm nas regies de Barroso, Lomba,
Serra, Lombada e Terras de Miranda3. A ltima denomina a zona entre os rios Sabor e Douro
e inclui os concelhos de Miranda, do Vimioso, de Mogadouro, Torre de Moncorvo e Freixode Espada Cinta. O planalto mirands compreende os concelhos de Miranda, do Vimioso e
de Mogadouro.
Como pude constatar por fontes literrias e conversas com a populao mais velha de
Miranda, antigamente havia Pauliteiros em todas as Terras de Miranda, sobretudo no planalto
mirands. Contudo, o termo Pauliteiros de Miranda refere-se exclusivamente aos grupos do
concelho de Miranda do Douro.
Uma diviso de Trs-os-Montes, orientando-se pelo clima, a bipartio Terra Fria e Terra
Quente. Enquanto que a Terra Fria designa os planaltos com um clima spero ao longo da
fronteira com Espanha, incluindo os concelhos de Vinhais, Bragana, Vimioso, Miranda do
Douro e Mogadouro, a Terra Quente compreende a parte sul de Trs-os-Montes, portanto, os
arredores de Mirandela e Vila Real, respectivamente, os vales do rio Douro e dos seus
afluentes. Na Terra Fria cultivam-se, entre outros, trigo, centeio, batatas, couve, castanhas e
3 V-se tambm escrito Terras de Miranda.
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vinho, enquanto a Terra Quente, na plantao de azeitoneiros, laranjeiras, amendoeiras, etc.
se parece mais com o Algarve (Dias 1949).
Depois desta excurso a uma possvel diviso geogrfica de Trs-os-Montes, delimito a
minha zona de prospeco da seguinte maneira:
Portugal, Trs-os-Montes, Terra Fria, distrito de Bragana, Terras de Miranda, planalto
mirands, concelho de Miranda do Douro
2. Contexto scio-cultural
2.1 Unidade etnogrfica
Como j foi mencionado, a dana dos paulitos ou danza de palos encontra-se tambm em
Espanha. O Reino de Portugal, antes Condado Portucalense, fazia parte do Reino de Leo,
inclundo o Norte de Portugal e as actuais regies de Len, Galiza e Astrias, at 1128,
quando se deram as primeiras batalhas aspirando independncia.
A partir de 1140, o prncipe de Portugal, Afonso Henriques, autoproclama-se Rei e distingue
o principado de Portugal do reino de Leo e Castela. Todavia, uma diviso oficial entre o
reino de Portugal e Leo apenas se d no tratado de Zamora, em 1143. De 1580 a 1640,
Portugal fica outra vez ligado coroa espanhola (Castelo-Branco 1997: 15, 16) por causa da
falta de um sucessor para o rei portugus. Assim, o rei espanhol Filipe II torna-se ao mesmo
tempo rei Filipe I de Portugal. Quanto administrao, durante este perodo, os dois pases
so independentes.
Alm da diviso dos reinos de Portugal e Leo em 1143 e do estabelecimento das fronteiras
no tratado de Alcaices (1297), manteve-se uma unidade social e cultural entre as Terras de
Miranda e as regies espanholas de Aliste e Sayago (Zamora): um dialecto parente, as
mesmas canes e melodias, a utilizao de instrumentos parecidos e uma raiz comum dos
costumes festivos, como, por exemplo, se mostra na danza de palos (Matelln 1987: 43).
O panorama original da cultura da pennsula ibrica era uma combinao de estruturas
original-hispnicas, hispano-romnicas, brbaras (Celtas, Suevos, Visigodos), Iberos,
Romanos, crists, judaicas, rabes e mesmo francesas (Sasportes 1983: 30). Restos de uma
influncia cultural destes povos ainda hoje se encontram em Portugal e Espanha. Segundo
Jorge Dias, elementos da Europa setentrional (clticos e germnicos) dominavam o Norte e
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elementos da Europa do Sul e do norte de frica (mediterrneos e berberes) dominavam o Sul
de Portugal (Dias 1985: 17, 18).
Um intercmbio extenso, que durante muito tempo se exprimia no contrabando, existe entre
as aldeias portuguesas e espanholas da fronteira, as chamadas aldeias de la raia. As aldeias
de la raia do concelho de Miranda so S. Martinho de Angueira, Cicouro, Constantim, Ifanes
e Paradela.4
2.2 Condicionantes polticas no desenvolvimento de Portugal
Por causa da atitude conservadora da monarquia portuguesa, a revoluo industrial quase no
teve efeito sobre Portugal e a guerra civil depois da inaugurao do regime constitucional
(1822) impediu uma poltica de modernizao. Em 1910 Portugal tornou-se uma repblica e
manteve-se assim at queda do parlamento em 1926. A seguir, foi constitudo o Estado
Novo, o regime ditatorial de Antnio de Oliveira Salazar (1926-1968) e seu sucessor Marcello
Caetano (1968-1974). A poltica do Estado Novo estabeleceu como valores tradicionais
Fado, Ftima e Futebol que utilizava como mecanismos de controlo e educao ideolgica.
A msica e outras formas expressivas foram utilizadas pelo regime para apresentar a sua ideia
da cultura portuguesa.
S atravs da revoluo de 25 de Abril de 1974, puderam finalmente surgir na vida poltica e
social portuguesa a liberdade e a democracia, com a instaurao de um regime democrtico,
pluripartidrio e parlamentar. Neste tempo, o imprio colonial de Portugal tambm terminou
(a saber, desde o sculo XV Portugal possua colnias em Angola, Moambique, Timor,
Guin, S. Tom, Brasil e Macau). Esta data trouxe grandes mudanas sociais e culturais
(Castelo-Branco 1997: 15-17).
2.3 A particularidade de Trs-os-Montes
2.3.1 Comunitarismo agro-pastoril
Como at aos anos 1930 a regio de Trs-os-Montes no tinha praticamente nenhuma
possibilidade de comunicao com o exterior, uma forma de sociedade comunitria podia
manter-se nas aldeias. O comunitarismo agro-pastoril exprimia-se na utilizao comum dos
4
Na minha pesquisa foram sobretudo estas aldeias que me interessaram, porque nelas encontrei mais elementostradicionais do que nas aldeias do Sul do concelho de Miranda.
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baldios, do gado e outro5, acesso livre s propriedades, assim como ajuda mtua nos
trabalhos. Mesmo na organizao das festas religiosas, toda a gente da aldeia participava.
A expresso legislativa e orgnica da comunidade era o Conselho que reunia todos os chefes
da famlia e cujos membros eram eleitos pelos mais experimentados da aldeia (Caufriez
1981: 230, 464).
Observei que poucos elementos do comunitarismo tinham sobrevivido: em todas as aldeias
ainda se encontram as fontes comunitrias, e em Fonte de Aldeia ainda h vales pblicos.
Todavia, os baldios tornaram-se propriedade de organismos administrativos (concelho e Junta
de Freguesia), que os venderam a pessoas individuais. As pessoas que trabalham para toda a
comunidade, como, por exemplo, os pastores comunitrios, hoje, so pagas6.
Foto 1: fonte comunitria em S. Martinho de Angueira,
23.10.2003 (foto: Barbara Alge)
2.3.2 Industrializao
Augusto Santos Silva (1994), que estuda, entre outros, a mudana na cultura popular
portuguesa, escreveu que uma das primeiras mudanas no meio rural que as autoridades
eclesisticas locais constatavam, era a proletarizao, a industrializao e o xodo rural e que
5
Em Constantim Clio Pires mostrou-me onde antigamente houve um ferreiro comunitrio.6 Hoje ainda h pastores comunitrios em Rio de Onor, uma aldeia no Norte do concelho de Bragana.
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neste excesso de industrializao, que se apoderou de todas as foras e actividades do mundo
moderno, repararmos que o prprio lavrador, embora trabalhe no campo, sofreu o influxo da
industrializao na sua mentalidade.
(Silva 1994: 193)
A industrializao tinha tambm efeito sobre os lavradores de Miranda e a maior parte dos
antigos instrumentos agrcolas (arados, trilhos, carro de boi etc.) foram substitudos por
mquinas agrcolas modernas.
2.3.3 As barragens
Tambm a construo das barragens sobre o rio Douro a partir dos anos 1950 trouxe, como
aprendi da populao mirandesa, grandes mudanas: no eram s os estrangeiros trabalhando
na construo a trazer novas influncias, mas, mais tarde, sobretudo, a abertura dos caminhos
de comunicao pela construo das novas pontes.
As barragens do concelho de Miranda situam-se em Picote e em Miranda do Douro.
Foto 2: a barragem em Miranda do Douro, 25.08.2004 (foto: Barbara Alge)
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2.3.4 Soldados e emigrantes
Por um lado, a guerra colonial em Angola, Moambique, Guin, Timor e S. Tom de 1970 a
1974 - na qual participaram tambm muitos Transmontanos, como por exemplo Fortunato
Preto, que me comunicou as suas impresses da guerra na Guin numa conversa em S.
Martinho (fita original DAT 1/3, 22.10.2003, Arquivo Sonoro em Viena) - teve uma grande
influncia na situao actual da populao de Trs-os-Montes e, por outro lado, na emigrao
a partir de 1960. Segundo Anne Caufriez (1981: 200), entre os anos 1960 e 1970, 23% da
populao do distrito de Bragana emigrou. Eram, e so pases de chegada dos emigrantes,
sobretudo, a Frana, a Alemanha, o Canad e Brasil. Como durante muito tempo o estado de
Portugal no deu passaportes, algumas pessoas tinham que emigrar clandestinamente, com
muitas complicaes e sem possibilidade de levar objectos pessoais. Belmina Alves contou-
me a histria da sua emigrao a 4 de Novembro de 2003, em S. Martinho (fita original DAT
2/6, Arquivo Sonoro em Viena).
No folheto do CDMirandun, Mirandela (1995: 17) Manuel Antnio Miguel descreve o que a
emigrao trouxe a Trs-os-Montes:
Ici, ctait une zone pauvre. Les gens ne sortaient jamais dici sauf quand ils partaient
larme. Ensuite certains ont commenc travailler dans la police ou la douane. Dautres
ont commenc aller travailler dans les grandes villes. Au dehors les gens ont pu gagner un
peu dargent, mais ils revenaient toujours ici pour travailler la terre, pour mener la vie de
toujours [...] Lmigration a beaucoup modifi les conditions de vie. Avant il ny avait rien, il
ny avait pas de machines, pas de tracteurs comme maintenant. [...] Avant je me rappelle, il
ny avait pas de camion, pas de voiture, les gens menaient les marchandises sur le dos des
mules dans les foires. Il ny avait pas de routes goudronnes, mais seulement les anciens
chemins.
(Mirandun, Mirandela 1995: 17)
Como aprendi dos mirandeses mais novos, ainda hoje, muitos deles so obrigados a trabalhar
ou estudar nas grandes cidades portuguesas ou no estrangeiro. pergunta Porque que os
Pauliteiros tinham problemas em juntar-se?, foi-me respondido, em Constantim, que muitos
rapazes trabalhavam na Guarda Nacional Republicana (GNR). Factores principais da
emigrao eram e so, segundo a minha opinio, uma insuficincia da possibilidade de
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comunicao por causa da situao isolada de Trs-os-Montes, factores scio-culturais como
a falta de instituies de ensino, o analfabetismo7 e a falta de condies sanitrias8.
Depois da guerra colonial no s os soldados voltaram terra natal, mas tambm os
Transmontanos que durante muito tempo tinham vivido nas colnias. Isto causou um grande
aumento da populao, que resultou no desemprego e, por conseguinte, na emigrao. Para os
chamados retornados, foi fundada uma instituio que dava alojamento e comida, a saber, o
Instituto de Apoio aos Retornados. O Estado portugus investiu muito dinheiro neste instituto
e, segundo Fortunato Preto, que, a 22 de Novembro de 2003, me comunicou informaes
sobre os efeitos da guerra colonial, este facto podia ser uma das razes principais para oatraso no desenvolvimento de Portugal (fita original DAT 1/3, Arquivo Sonoro em Viena).
2.3.5 O Mirands
Trs-os-Montes uma regio que chama a ateno de muitos linguistas por causa de uma
lngua que se manteve: o mirands. Em 1999 tornou-se lngua co-oficial, com ortografia
normalizada9. Segundo a classificao do Jos Leite de Vasconcelos, o mirands antigamente
era um co-dialecto do portugus, como hoje ainda so o guadramils (utilizado em
Guadramil) e o riodonors (utilizado em Rio de Onor) (Vasconcelos 1887-1889: 193).
Segundo a Conveno Ortogrfica da Lngua Mirandesa (1999), o mirands um dialecto do
velho asturo-leons e encontra-se em quase todas as aldeias do concelho de Miranda (excepto
Atenor e Teixeira), assim como em duas aldeias do concelho de Vimioso. Variantes do
mirands so o sendins (utilizado em Sendim) e o mirands de Duas Igrejas (Ferreira 1999:
9, 17). Provavelmente, a sobrevivncia desta lngua resulta da situao isolada da regio, que,
at os anos 1950, ou seja, at construo das barragens, estava mais prxima de Espanha do
que Portugal.
Hoje em dia, o mirands ensinado oficialmente na escola secundria de Miranda do Douro
como disciplina opcional.
7 Ainda hoje a maior parte da populao mais velha no sabe ler e escrever.8 Algumas casas, sobretudo as casas tradicionais mais velhas, no tm casa de banho e a maior parte das casas aquecida a lenha.9
Ferreira, Manuela Barros e Raposo, Domingos (coord.), 1999, Conveno Ortogrfica da Lngua Mirandesa,Cmara Municipal de Miranda do Douro/Centro de Lingustica da Universidade de Lisboa
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Muitas das letras dos lhaos dos Pauliteiros so escritas em mirands, para alm do portugus
e do castelhano.
3. Delimitao etno-musicolgica
3.1 Panorama musical de Portugal
Ernesto Veiga de Oliveira (2000 [1964]: 44) divide Portugal a respeito da sua paisagem e
cultura da seguinte maneira: ao norte do Tejo, por um lado, nas terras do planalto, o leste de
Trs-os-Montes e da Beira onde, por causa da situao isolada, se mantinham formas arcaicaspastoris, por outro lado, nas terras baixas a oeste da barreira serrana central, do Minho ao
Tejo. A sul, no Alentejo continuam as formas pastoris do planalto e mostra uma forte
personalidade prpria. O Algarve parece-se com as regies nrdicas de Portugal (p.ex. com a
TerraQuente do sul de Trs-os-Montes). Na sua diviso, Ernesto Veiga de Oliveira baseia-se
em Orlando Ribeiro, que divide Portugal em atlntico, transmontano e mediterrneo.
Segundo Orlando Ribeiro, o norte atlntico e o sul mediterrneo, assim como litoral e
interior, contrastam. Uma simples diviso em norte e sul, portanto, no possvel, porque
elementos mediterrneos mantm-se at o interior de Trs-os-Montes e elementos atlnticos
at a serra a mais alta do Algarve (Ribeiro 1998: 165).
A diviso geogrfica proposta por Ernesto Veiga de Oliveira reflecte-se tambm nas formas
da msica popular portuguesa, sobre as quais o autor d uma vista geral no livroInstrumentos
musicais populares portugueses (2000 [1964]). Este livro serviu-me como base na parte
seguinte:
Mantm-se, pois, antigas formas pastoris a leste. A, alm das formas vocais arcaicas (velhascantigas cantadas em ocasies religiosas e festivas, no trabalho e na romaria), antigos
instrumentos do ciclo pastoril utilizados no repertrio tradicional especfico tm importncia:
em Trs-os-Montes, a gaita-de-fole, acompanhada pelo bombo e pela caixa, s vezes, tambm
pelo pandeiro, pelas conchas ou pelos ferrinhos. Alm disso, encontra-se na zona mirandesa o
tamborileiro (Veiga de Oliveira 2000 [1964]: 45).
Tradicionalmente no h cordofones em Trs-os-Montes, mas segundo Jos Alberto Sardinha
utiliza-se hoje em dia a guitarra tambm nesta regio (Sardinha 1997: 19, 20). Como aprendi
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pela entrevista com Jos Antnio Fernandes a 11 de Setembro de 2004 em Sendim, j se
cantou fado com acompanhamento de guitarra portuguesa e viola nos anos 1940 (fita original
DV 25/5 e 26/1, Arquivo Sonoro em Viena).
Instrumentos tpicos da Beira Beixa so o pandeiro ou adufe, tocados por mulheres e
acompanhando o canto.
Nas regies de Portugal ocidental h sobretudo cordofones e formas vocais e instrumentais
mais recentes do que no Leste. Os instrumentos principais de Portugal ocidental so a viola,
entre Minho e Douro, o cavaquinho, no Minho, a rabeca, em todo o Oeste, a guitarra,
sobretudo em Coimbra e Lisboa, o violo10, os instrumentos de arco e os instrumentos dastunas.
A gaita-de-fole, que antigamente era um dos instrumentos populares mais importantes em
diversas provncias de Portugal, encontra-se hoje raramente no oeste. Ainda se utiliza na
Estremadura nas festas religiosas e oficiais, a solo ou acompanhada pelo bombo e pela caixa,
mas nunca acompanhando canto e dana.
O Alentejo conhecido pelos coros polifnicos majestosos e graves. Uma outra forma vocal
do Alentejo so as canes coreogrficas e festivas que homens e mulheres cantam no
caminho para e durante o trabalho campestre. s vezes, estas canes so acompanhadas pelo
pandeiro e pelo adufe e, sobretudo a sul de Beja, pela viola. O tamborileiro encontra-se
tambm no Alentejo. Contrariamente a Trs-os-Montes, todavia, ele s toca uma frase
musical ritual curta em algumas festas religiosas.
Alm dos instrumentos tpicos de uma regio definida, vrios instrumentos de percusso so
utilizados em todo o territrio portugus: castanholas para acompanhar a dana, a sarronca,
tambores diversos etc. (Veiga de Oliveira 2000 [1964]).
3.2 Panorama musical de Trs-os-Montes, particularmente, das Terras de
Miranda
10 Com tendncia a divulgar-se em todo o Portugal.
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3.2.1 Formas vocais
romances: cantigas de segada e de malhadas, fiadouros
canes religiosas
canes coreogrficas (s quais pertencem os lhaos dos Pauliteiros)
outras canes (canes de embalar, canes infantis etc)
(diviso segundo Mourinho 1987: 11)
As segadas, as malhadas e os fiadouros j no se cantam por vrias razes, mas elas, segundo
Jos Alberto Sardinha (1997: 21), deram uma forte marca telrica msica de Trs-os-
Montes e sublinharam o seu esprito comunitrio.
3.2.2 Formas instrumentais
Gaita-de-fole:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: aerofone, instrumento de sopro de madeira,
palheta, instrumento de obo.
A gaita-de-fole portuguesa pertence, segundo Ernesto Veiga de Oliveira (2000 [1964]: 410),
ao tipo simples da gaita-de-fole europeia com fole, ponteira de 8 buracos, um bordo e tubo
insuflador.
No meu trabalho a denominaogaita refere-se exclusivamente ao tipo da gaita-de-fole do
noroeste da pennsula ibrica e as suas variantes regionais: gaita galega, gaita asturiana e
gaita-de-fole transmontana
11
.A gaita-de-fole da regio Miranda conhecida como gaita mirandesa ou gaita transmontana e
parece-se morfologicamente com a gaita asturiana e em parte com a gaita galega. Todavia,
distingue-se da gaita galega pelo timbre e pelas escalas no-temperadas das ponteiras que
produzem divergncias quanto aos efeitos, mbito, afinao etc. entre instrumentos
11 O ltimo termo podia denominar a gaita da zona de Aliste, a gaita sanabresa e a gaita mirandesa /transmontana. Portanto, tambm se encontra em outras regies portuguesas, como por exemplo em Penafiel.
Visto da data remota (1830) do documento de Penafiel que encontrei no Museu Municipal de Penafiel, trata-seprovavelmente do antigo termo para a gaita-de-fole.
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individuais. Isto pode ser uma das razes porque e que na tradio da gaita mirandesa nunca
h vrios gaiteiros a tocar juntos. Como me mostrou o gaiteiro Manuel Paulo Martins a 27 de
Outubro de 2003 em Vale de Mira, o som da gaita mirandesa mais forte ou redondo do
que o da gaita galega (fita original DV 4/4, Arquivo Sonoro em Viena) e o gaiteiro Clio
Pires mostrou-me, a 30 de Outubro de 2003, em Constantim, que na gaita mirandesa a pele de
animal est virada para fora (fita original DV 5/2, Arquivo Sonoro em Viena).
As diferenas entre os instrumentos vm do facto que, durante muito tempo, e, em parte,
ainda hoje, as gaitas-de-fole eram construdos artesanalmente.12
Foto 3: jovem gaiteiro de Palaoulo, com gaita-de-fole de Ral Jesus Pires, Festa da Santa Brbara, Palaoulo,
12.09.2004 (foto: Barbara Alge)
12 Em Trs-os-Montes diz-se que um bom gaiteiro tem que saber construir o seu instrumento propriamente.
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Na afinao da gaita13, como o pude observar em vrias gaitas que gravei, o ronco (bordo)
est afinado no tom fundamental do instrumento. No caso da gaita galega, quando h dois
roncos, com a quinta ou tnica do tom fundamental.
No folheto acompanhando o CD Mirandun, Mirandela (1995: 29) aprendemos que o
repertrio da gaita consiste, entre outros, da ronda, tocada um dia antes da festa, da alvorada
( Nr. 18), tocada de manh da festa na aldeia, das passacalles ou passacalhos
acompanhando as procisses ( Nr. 16), de danas diversas (entre outro dos lhaos dos
Pauliteiros) e de canes. Alm disso, a gaita anima festas, acompanha ranchos folclricos,
com a caixa e o bombo acompanha os Pauliteiros e tem importncia na Festa dos rapazes.
14
Hoje em dia, como vi em Constantim, a 28 de Novembro de 2003, a gaita outra vez tocada
na igreja durante a comunho (fita original DV 14/2, Arquivo Sonoro em Viena).
Gaiteiros das Terras de Miranda:
Originalmente, os gaiteiros eram, como o diz tambm Anne Caufriez (1981), pastores que
tocavam este instrumento durante a guarda das ovelhas como passatempo. Alguns sculos
mais tarde, porm, apareceram os gaiteiros que, juntos com o caixeiro e bombeiro, animavam
quase profissionalmente as festas da aldeia, acompanhavam ranchos folclricos e
participavam nas festas religiosas. Como comprova Ernesto Veiga de Oliveira (2000 [1964]:
105, 237), o termo gaiteiro no designa s o tocador da gaita, mas tambm todo o conjunto
constitudo pela gaita, caixa e bombo.
13
A partir de agora utilizo a abreviao gaita para gaita-de-fole.14 Festas para rapazes que parecem rito de passagem.
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Foto 4: Gaiteiros na Festa do Carocho e da Velha, Constantim, 28.12.2004 (foto: Barbara Alge)
Entre os gaiteiros mais conhecidos das Terras de Miranda encontram-se, como fiquei a saber
atravs de fontes literrias, gravaes de outros investigadores e conversas com a populao,
os j falecidos gaiteiros Tiu Pepe de Freixiosa (1850-1924), Manuel Sam Pedro de
Travanca (Mogadouro), Paulino Oliveira de Pvoa (1912-1989), Jos Joo da Igreja de Ifanes
(+1975), Nascimento Raposo de Malhadas (1922-2002), Rui Joo Pires de Malhadas
(+2002), Delfim de Jesus Domingues da Pvoa (1923-1993) e os gaiteiros vivos Manuel
Paulo Martins de Vale de Mira (*1922), Manuel Pascoal de Crcio (*1925), Jos Maria
Fernandes de Urrs (Mogadouro) (*1934), ngelo Arribas de Freixiosa (*1936) e Aureliano
Ribeiro de Constantim (*1937). Aos gaiteiros conhecidos mais novos pertencem Clio Pires
de Constantim (*1976), Henrique Fernandes de Sendim (*1970), Desidrio Afonso de
Especiosa (*1960), Paulo Preto de Sendim (*1965), Ablio Topa de Freixiosa (*1964) e
Paulo Meirinhos, de Fonte de Aldeia (*1972). Menciono todos, porque acompanharam e
acompanham Pauliteiros de diversas aldeias, e porque fiz gravaes e entrevistas com a maior
parte deles.
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Flauta:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: aerofone, instrumento de sopro de madeira,flauta, flauta longitudinal.
A flauta pastoril de Miranda monotubular, cilndrica ou minimamente cnica, e tem 3
buracos. conhecida sob o termofraita e tocada s com uma mo. A pessoa que toca flauta,
ou fraita, e tamboril ao mesmo tempo, o tamborileiro. Este aparece sobretudo na zona
raiana de Miranda.15
Como a gaita, a fraita um instrumento pastoril e serve muitas vezes para a aprendizagem
das melodias da gaita. Estas podem mais tarde ser transpostas ponteira da gaita.
Foto 5: tamborileiro Clio Pires, Constantim 28.12.2004 (foto: Barbara Alge)
15 No dtv-Atlas MusikVol. 2 (1985 [1999: 53]) mencionado que a flauta de uma mo s (em alemo tambm
designada Schwegel), um antigo instrumento militar, aparece sempre junta com um tambor pequeno (em alemokleine Trommel). Portanto, diferentemente da fraita, a Schwegel uma flauta transversal.
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O repertrio da flauta pastoril corresponde ao da gaita, contudo, com variantes meldicas por
causa da maneira de tocar.
Entre os tamborileiros mais conhecidos das Terras de Miranda, encontram-se o j falecido
Virglio Cristal (1912-1998) e Jos Francisco Pires, os dois de Constantim, Francisco
Domingues de Paradela, Jos Joo da Igreja de Ifanes, Antnio Incio Joo de Gensio e os
tamborileiros actuais ngelo Arribas de Freixiosa e Aureliano Ribeiro e Clio Pires, de
Constantim. Como os gaiteiros, interpretavam e interpretam lhaos e acompanham s vezes
os Pauliteiros.
Caixa (de guerra):
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: bimembranofone cilndrico, tambor
percutido.
A caixa um tambor bimembranofone de metal ou madeira, cuja pele se percute com duas
baquetas e se toca horizontalmente. Na membrana inferior h um ou mais bordes, cuja
tenso, como me mostrou Lus Preto de Constantim, no dia 28 de Dezembro de 2003, se poderegular (fita original DV 11/4, Arquivo Sonoro em Viena). Com o bombo, a caixa acompanha
a gaita. Por conversas com a populao, aprendi que os melhores caixeiros da Terras de
Miranda eram, entre outros, o caixeiro de Travanca (segundo Manuel Paulo Martins nascido
aproximadamente em 1914), Paulino da Pvoa e Alfredo Ventura de Duas Igrejas (*1912-
+1987). Um caixeiro actual apreciado Alexandre Meirinhos (*1976) de Fonte de Aldeia,
membro do grupo Galandum Galundaina.
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Foto 6: caixa de Lus Augusto Preto, Constantim, 28.12.2004 (foto: Barbara Alge)
Bombo:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: bimembranofone cilndrico.
O bombo um tambor grande, na sua construo parecido com a caixa, na maior parte das
vezes, de madeira, em parte, tambm de metal, tocado verticalmente e sem cordas vibrantes
ou de bordo. Na maioria das vezes batido com uma maa de madeira (Mirandun,
Mirandela 1995: 46).
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Foto 7: bombeiro Jos Torrado, Constantim, 28.12.2004 (foto: Barbara Alge)
Tamboril:Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: bimembranofone cilndrico.
O tamboril acompanha como j foi mencionado a fraita e menos largo e mais alto do
que a caixa. Ao contrrio da caixa, o tamboril possui cordas vibrantes nas duas membranas e
tocado verticalmente. Como o msico precisa de uma mo para a flauta, tocado com uma
baqueta s.
Nas Terras de Miranda, o termo tamboril utiliza-se tambm, como afirma Ernesto Veiga de
Oliveira (2000 [1964]: 255), para a caixa e assim acompanha danas diversas (entre outras, as
dos Pauliteiros).
Antigamente, a populao das Terras de Miranda danava, em parte, s com o
acompanhamento do tamboril (ibid: 259).
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Pandeiro:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: membranofone, tambor de mo, tambor demoldura.
Como descreve Ernesto Veiga de Oliveira (2000 [1964]: 266), trata-se de um tambor de
moldura de duas membranas que, na Beira Baixa, conhecido sob o termo adufe e
exclusivamente tocado por mulheres. No interior do instrumento h pedrinhas, gros etc. para
variar o som de cada instrumento. Ao contrrio do adufe, cuja forma quadrangular, o
pandeiro pode ter vrias formas. O pandeiro acompanha canto ou ranchos folclricos.
Castanholas:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: idiofone, batido imediatamente, idiofone do
contra-batimento, chapas de contra-batimento, de madeira.
As castanholas so utilizadas nas Terras de Miranda, entre outros, pelos Pauliteiros. As
castanholas de Miranda tm, como se v na fotografia, formas diversas (prismtica,
longitudinal, redonda, etc.) e que de vez em quando so ornamentadas.
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Foto 8: castanholas em casa de Belmiro de Castro Caro, Sendim, 11.09.2004
(foto: Barbara Alge)
Ferrinhos:
Classificao sistemtica de Hornbostel e Sachs: idiofone metlico, batido imediatamente
com uma baqueta metlica.
Os ferrinhos so tringulos metlicos e acompanham, como os pandeiros, canto ou ranchos
folclricos.
3.2.3 Danas
A populao de Trs-os-Montes gosta muito de danar, como pude observar pessoalmente, e
aproveita todas as ocasies: bailes nas festas profanas e religiosas, casamentos etc. Na sua
maioria, os bailes de hoje j no so acompanhados por instrumentos tradicionais (gaita,
caixa, bombo, flauta, tamboril, mais tarde tambm acordeo), mas pelos chamados
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conjuntos, grupos musicais constitudos por guitarra elctrica, baixo elctrico, synthesizer,
canto etc.16
Como, no caso de Miranda, Padre Antnio Maria Mourinho (1984: 395) menciona, distingue-
se entre os termos bailar e danar. O ltimo termo aplica-se exclusivamente aos
Pauliteiros. Por isso a gente distingue entre baile, pois as danas mistas, e a dana,portanto,
a dana dos Pauliteiros.17
As danas mistas da regio de Miranda so divididas por Antnio Maria Mourinho (cit. em
Veiga de Oliveira (2000 [1964]: 110) em 4 categorias:
1) tipo paralelo ou em colunas: Pingacho, Galandum, Bicha, Redondo, Ligas Berdes,
Habas Berdes, Magano, Saia da Carolina
2) danas de roda: Fandango, Ceriboila18
3) tipo passeado: Murinheira, Repasseado
4) danas de pares: Mira-me Miguel
Anne Caufriez (1981: 280), supe que a Murinheira, Carvalhesa, Passeado e Redondo
poderiam ser danas de origem galega e a dana Galandum podia, segundo a sua opinio, vir
das danas aristocrticas dos sculos XVII e XVIII e cantada em mirands. O Pingacho
uma dana que podia ter relao com velhos ritos de fertilidade (ibid.). Na conversa com 3
Senhores em Ifanes, no dia 4 de Novembro de 2003, um deles mencionou que o Pingacho
podia vir dos espanhis (fita original DV 8/5, Arquivo Sonoro em Viena).
Outras danas soJota Mirandesa, assim como as mais recentes Manolo Mio, Elena, A saia
da Carolina, Ze Canedo, Riu piu piu, Mira-me Miguel, Cerigoa, Deolinda e outras
(Mirandun, Mirandela 1995: 55).
16 Todavia, na Festa do Carocho e da Velha em Constantim, o baile da noite do 28.12.2003 ainda foiacompanhado por um conjunto tradicional constitudo por acordeo, viola, pandeireta, ferrinhos, bombo ecanto (fita original DAT 5/2, Arquivo Sonoro em Viena)17 Investigaes filolgicas levaram uma distino clara entre bailes e danas, portanto, sem encontrar umadefinio valida para todos os casos. Mrio Sampaio Ribeiro (cit. em Sasportes 1970: 26) escreve que a danamostra uma estrutura de aco coreogrfica, dramtica, pantommica e sem grande suporte musical, enquanto o
baile, segundo a sua opinio, contem movimentos mais simples e guiado pela msica e no tem significao.18 No CD do Grupo Folclrico Mirands de Duas Igrejas, Ceriboila um repasseado.
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3.3 Classificao da dana dos paulitos
As danas classificam-se por diversos critrios (natureza, significao, forma etc.). Estaclassificao da dana dos paulitos orienta-se no critrio da significao e na distino entre
danses folkloriques, danses populaires e danses popularises, definida por Maurice Louis
(1963 [1984]).
Segundo Maurice Louis [1963 [1984: 42]), danses folkloriques so danas rituais que tm um
fim particular, cujo cenrio codificado e regrado e que, ao longo do tempo, mudaram a sua
forma por adaptao, transformao, fuso e inovao, mas cuja simbologia ainda se mantm
mesmo se for escondida.
As danses populaires foram criadas pelo povo, mas, ao contrrio das danses folkloriques, no
tm significao mgica ou ritual. Alm do facto que danses populaires de regies ou pases
diferentes se parecem, cada localidade tem a sua verso especial. Maurice Louis (1963 [1984:
43]) distingue nas danses populaires entre as que no tm nenhuma significao (danses
populaires rcratives) e as que tm uma simbologia, mas no correspondem a faits
traditionnels.
Como props Tomaz Ribas (1983: 22), as danses folkloriquespodem tambm ser designadas
como danses concrtes, danas que representam qualquer coisa particular, enquanto as
danses abstraites no tm nenhuma significao, como por exemplo as danses populaires
rcratives.
Segundo a descrio de Maurice Louis (1963 [1984: 43]), as danses popularises so danas
populares que nasceram fora do povo que as executa, mas cuja origem conhecida.
Ter em conta as definies mencionadas, a dana dos paulitos uma danse folklorique,porque, como vemos nos captulos seguintes, tem um fim, elementos rituais e, pela sua
insero nas festas religiosas, foi codificada e normativizada. Acessrios do traje, como por
exemplo as flores nos chapus, os lenos, as fitas etc. provam tambm a sua pertena s
danses folkloriques,porque so smbolos com um contedo de significao determinada.
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Para Tomaz Ribas, a dana dos Pauliteiros tambm uma dana folclrica19, que, seguindo a
sua definio, expresso rtmico-gstica do homem primitivo para mostrar sentimentos,
chamar Deuses, prestar culto natureza, s foras do universo, aos Deuses e heris, entrar em
contacto com os mortos, festejar estaes do ano, fenmenos csmicos ou assuntos
familiares, etc. Cada dana folclrica tem uma estrutura ritual predefinida que d dana a
sua significao. Hoje portanto, s se encontram reminiscncias destas danas rituais
arcaicas, cuja origem se perde e que, hoje, so o resultado da transformao e fuso de ritos e
cultos diferentes (Ribas 1983: 64).
Alm disso, Tomaz Ribas (1983: 70) menciona que a igreja catlica teve uma influnciaconsidervel nas danas rituais: tentando lutar contra os ritos pagos dos diferentes povos
locais. Mas no conseguindo extingui-los completamente, cristianizou-as. Pela cristianizao,
os ritos obtiveram nova significao.
A fim de poder mostrar a complexidade da dana dos paulitos, proponho uma classificao
das danas em sociais, guerreiras, rituais e religiosas. que a dana dos paulitos no se deixa
classificar num grupo definido, porque contm elementos rituais, religiosos e guerreiros:
rituais, porque est relacionada com ritos de fertilidade e de passagem, e no perodo dopaganismo foi danada em honra de vrios Deuses (Cravo 2000: 5, 6); religiosos, porque ao
longo do tempo foi dedicada a Santos do cristianismo; guerreiros por causa da sua
semelhana com a dana de espadas, mourisca e pyrrhica e por causa de figuras como,
por exemplo, o Salto ao Castelo.
Tomaz Ribas (1983: 79), na sua definio da dana do