consideraÇÕes sobre a importÂncia da patologia … · citogenético (cariótipo) nos casos de...
TRANSCRIPT
1
CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DA PATOLOGIA PEDIÁTRICA
DR BENJAMIN HECK
“To practice pathology without books is to sail uncharted seas; to practice pathology without
performing autopsies is not to go to sea at all”.
Sir William Osler.
Os avanços em obstetrícia e neonatologia modificaram a epidemiologia
da mortalidade perinatal. Técnicas não-invasivas para avaliação fetal e o
aumento do uso da ultra-sonografia no diagnóstico pré-natal de doenças fetais
acentuaram a necessidade de exames anátomo-patológico e postmortem
detalhados. A acurácia das técnicas corroborando para diagnósticos pré-natais
cada vez mais apurados dos defeitos congênitos, enfatizaram a necessidade da
verificação de achados dismórficos e diagnósticos genéticos durante o exame
anátomo-patológico.
A determinação da idade gestacional, o número de fetos, a localização da
placenta, defeitos congênitos e a viabilidade e vitalidade fetais são as principais
razões para a implementação dos exames de ultrassonografia fetal na prática
obstétrica. Ao mesmo tempo, a demanda de controle de qualidade do exame
ultrassonográfico teve de ser melhorado. Assim, a participação do patologista
junto à equipe de pré-natalista e neonatologista engloba a avaliação de perdas
2
fetais precoces (“restos ovulares”) e óbito fetal, o exame macro e microscópico
da placenta e a autópsia perinatal. A documentação dos achados morfológicos
através do procedimento diagnóstico da autópsia representa o controle de
qualidade dos ultrassonografistas no campo da obstetrícia. A realização do
exame postmortem do produto de abortamento, natimorto e crianças neomortos
é, sem dúvida, o único método de controle de qualidade completo, e pode ser
considerado “padrão ouro”. Estudos controlados mostraram que a autópsia
realizada por patologista experiente e consciente das condições clínicas
proporciona um adequado controle de qualidade da atividade ultrasonográfica
(ISAKSEN 2000).
As causas de óbito fetal são complexas. Necessitam de exames macro e
microscópico detalhados associados aos achados histopatológicos da placenta;
além de, correlacioná-los com os antecedentes maternos, história familial e a
evolução clínica durante o pré-natal. Freqüentemente, o patologista é solicitado
para avaliar fetos menores, obrigando o estabelecimento de técnicas
apropriadas. A dissecação de órgãos fetais com o auxílio de estereomicroscópio
tornou-se rotina durante a avaliação do patologista. O exame postmortem de
fetos do final do primeiro trimestre e início do segundo trimestre está evoluindo
para uma especialidade da patologia e representa um desafio contínuo através
do exame de fetos cada vez menores (embriopatologia).
Recentemente, parecer do Conselho Regional de Medicina de São Paulo
-CREMESP considerou importante a avaliação anátomo-patológica do material
3
obtido como, "restos ovulares"; pois um percentual relevante pode apresentar
afecções que mudariam a conduta subseqüente.
Situações específicas exigem além do exame anátomo-patológico do feto,
a realização de exame radiológico sobretudo nos casos de suspeita de displasia
óssea e malformações músculo-esqueléticas.
A autópsia auxilia na identificação de doenças específicas ou iatrogenias
e permite modificação na conduta de futuras gestações. Além do mais, nos
casos de defeitos congênitos e doenças hereditárias é importante confirma-las
tanto quanto descartá-las.
Toda autópsia perinatal possui um valor prognóstico na determinação de
riscos nas futuras gestações. No entanto, ela pode não apresentar resultados
satisfatórios se realizada de maneira inadequada. Os melhores resultados são
obtidos quando a autópsia perinatal é realizada em centros de referência, com a
presença do patologista pediátrico (VUJANIC 1996).
Portanto, as patologias fetal e perinatal (Figura1) têm fundamental
importância na vigilância da mortalidade perinatal, na avaliação da causa de
morte, no diagnóstico de anomalias congênitas, no aconselhamento genético
com informações relacionadas ao risco em futuras gestações, além de oferecer
um controle de qualidade do diagnóstico pré-natal de defeitos congênitos
através do exame ultra-sonográfico.
4
FIGURA 1: Quadro esquemático das áreas de atuação da patologia fetal e perinatal.
1. AVALIAÇÃO DE PERDAS FETAIS PRECOCES
A grande maioria das perdas fetais precoces ou abortamentos ocorre durante
o primeiro trimestre gestacional. Suas causas nem sempre são elucidadas,
sendo dificilmente identificáveis. Entre as causas de perdas fetais no primeiro
5
trimestre, a mais freqüente é de origem genética, correspondendo, sobretudo a
alterações cromossômicas.
O abortamento espontâneo é considerado um processo patológico freqüente,
ocorrendo em 15% das gestações clinicamente reconhecidas (WABURTON e
FRASER 1964). Incidências superiores foram identificadas por BIERMAN et al
(1965), 24% e ERHARDT (1963), 29%. Outro estudo postulou que a taxa de
perda é da ordem de 78%, considerando que grande parte ocorre antes da
primeira falha menstrual (ROBERT e LOWE 1975). EDMONDS et al (1982)
verificou incidência de 62% de abortos precoces ocorrendo antes da 12ª semana
gestacional, sendo cerca de 90% de maneira subclínica, i.e., sem o
conhecimento da mulher.
Recentemente, em parecer do CREMESP (Consulta 30.077/04 homologada
em 11/05/2004) “A Câmara Técnica de Saúde da Mulher” considerou importante
a avaliação anátomo-patológico dos fragmentos de placenta obtidos na
curetagem. O estudo anátomo-patológico constitui um documento fundamental
que endossa a necessidade do ato médico na eventualidade de complicações
referentes à curetagem.
Os achados histopatológicos em “restos ovulares” podem, em alguns casos,
sugerir alterações da morfologia vilositária de provável origem genética. É
importante notar que se deve correlacionar esses achados com os dados
clínicos e a história familial, possibilitando por vezes identificar possível doenças
genéticas.
6
Os fatores genéticos são as causas mais comuns de abortos
espontâneos. Cerca de 50% a 80% dos abortos do primeiro trimestre
apresentam alterações cromossômicas. Mas também notamos causas distintas
para estes abortamentos.
As doenças gênicas são praticamente inexploradas como causa de
abortos precoces. Entretanto, são as que mais contribuem como causa de
defeitos congênitos em recém-nascidos. Muitas causas de aborto precoce
classificadas como “não-genéticas”, mas na realidade, são a conseqüência de
mutações em genes específicos; como, o que ocorre com o Fator V de Leiden e
outros genes associados a tromboembolismo.
Cerca de 25% dos embriões morfologicamente normais apresentam
alterações cromossômicas (aneuploidia e poliploidia). Estas alterações são mais
freqüentes em embriões morfologicamente anormais, atingindo entre 50% a 75%
dos casos, através de estudos de FISH (MUNNÉ et al. 1995).
Uma revisão de seis estudos para avaliar a freqüência relativa das alterações
cromossômicas encontradas em abortos espontâneas, utilizando técnica de
bandamento cromossômico, mostrou uma incidência de 43,5% de alterações
cromossômicas; correspondendo a 1229 casos de um total de 2822 casos
estudados (CAVALCANTI 1986) (Figura 2). O estudo brasileiro de CAVALCANTI
(1986) mostrou incidência de 44,4% de alterações cromossômicas, além de
evidenciar correlações entre os achados citogenéticos e histopatológicos,
7
ressaltando “a importância do estudo conjunto para orientação do diagnóstico
etiológico do abortamento espontâneo”.
0
5
10
15
20
25
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 45X 3n 4n DT AE M
FREQ
ÜENC
IA R
ELAT
IVA
TIPO DE ALTERAÇÕES CROMOSSÔMICAS
Fonte: Baseado em CAVALCANTI (1986).
FIGURA 2. Freqüência relativa das alterações cromossômicas encontradas em abortos espontâneos. Resultados de 6 trabalhos utilizando técnica de bandamento cromossômico [KAJII et al (1973), McCONNELL e CARR (1975), LAURISTEN (1976), CREASY et al (1976), KAJII et al (1980) e HASSOLD et al (1980)] (No. Trissomias autossômicas, 45X Monossomia X, 3n Triploidia, 4n Tetraploidia, DT Dupla trissomia, AE Alterações estruturais, M Mosaicismo).
As trissomias autossômicas compõem aproximadamente 50% das
alterações citogenéticas observadas em abortos espontâneos. Trissomias de
todos os cromossomos foram observadas. As trissomias mais comuns são as
dos cromossomos 16, 22, 21, 15, e 14 (em ordem decrescente). A trissomia do
8
cromossomo 16 é a causa mais comum de alteração citogenética em abortos. A
maioria das trissomias revela correlações com a idade materna devido ao erro
na meiose I, considerado a explicação citogenética mais comum para a
trissomia. Mosaicos diploide/triploide são encontrados em 30% dos blastocistos.
As tetraploidias são pouco comuns e raramente evoluem além da 2a-3a semana
de vida embrionária. A monossomia do cromossomo X engloba 15-20% das
alterações cromossômicas. Quando sobrevivem, os fetos apresentam
características da síndrome de Turner que incluem higroma cístico, edema
generalizado e defeitos cardíacos. Polissomias dos cromossomos sexuais são
pouco mais freqüentes (10%) em abortos do que em nascidos-vivos.
Técnicas modernas como CGH (“comparative genomic hybridization”) e
análise por “microarray” também identificaram alterações que não foram
detectadas nos métodos citogenéticos convencionais. SCHAEFFER et al (2004)
através da técnica de ensaios por CGH em 41 abortos previamente estudados
por análise de cariótipo evidenciaram alterações não idenificadas em 4 dos 41
casos.
No segundo trimestre, as alterações cromossômicas são menos
freqüentes. Estas alterações são semelhantes àquelas observadas em nascidos
vivos: trissomias 13, 18 e 21; monossomia X e polissomias dos cromossomos
sexuais. A incidência de alterações cromossômicas é estimada em cerca de
15%.
9
Em perdas fetais do terceiro trimestre (natimorto), a freqüência de
alterações cromossômicas é de 5% (KULESHOV 1976). Esta incidência é menor
do que aquela observada em abortos precoces, embora seja maior do que a
observada em nascidos-vivos, de 0,6%.
As aneuploidias podem ser recorrentes? Em abortos do primeiro
trimestre, a recorrência de aneuploidia ocorre mais freqüentemente do que o
esperado. Não há consenso sobre o assunto. Para alguns autores, a recorrência
de aneuploidia é uma explicação a ser considerada nos casos de até 4 abortos
repetidos (SIMPSON 2007). O estudo de BIANCO et al (2006) revela aumento
progressivo da incidência de aneuploidia com o aumento do número de aborto
espontâneos anteriores. Este autor comparou a taxa de aneuploidia com o
desfecho das gestações anteriores em 64.939 mulheres submetidas a exame
genético pré-natal (amniocentese e biópsia de vilos coriônicos). As taxas de
aneuploidia foram: 1,39% nos casos sem abortos anteriores; 1,67% com um
aborto anterior; 1,84% com dois abortos anteriores e 2,18% com três abortos
anteriores.
Diante desses fatos, alguns autores preconizam a realização do exame
citogenético (cariótipo) nos casos de abortos de repetição, considerado o único
procedimento diagnóstico, até o momento. Alterações cromossômicas são
aventadas como causas de abortos recorrentes devido às anomalias estruturais,
como, translocações recíprocas e Robertsonianas, assim como em mosaicismo
de alterações numéricas. Estes casos podem ocorrer em até 10,8% das
10
mulheres com abortos recorrentes, embora a maioria dos estudos identificam
incidência entre 3-5%. (CRAP et al 2004).
O exame histológico através da avaliação das vilosidades placentária
permite avaliar alterações morfologicas compatíveis com cromossomopatias. Os
achados histopatológicos identificáveis em conceptos aneuplóides consistem de
restrição do crescimento intra-uterino do feto e de alterações placentárias; tal
como placenta com espessura diminuída. Verificam-se ainda como principais
manifestações de alterações cromossômicas: aumento do volume das
vilosidades, edema intravilositário, inclusões trofoblásticas ou invaginações,
contornos irregulares das vilosidades e citotrofoblastos intravilositários (Figura
3). Na maioria dos casos, a realização do cariótipo é necessária para o
diagnóstico. A avaliação anátomo-patológica das perdas fetais precoces é
fundamental nos casos em que não foi realizado o exame de cariótipo por se
tratar de um aborto retido ou por haver contaminação do tecido fetal.
11
FIGURA 3. Fotomicrografias de alterações vilositárias encontradas nas cromossomopatias: (A)
Irregularidades dos cointornos vilositários, (B) calcificação da membrana basal trofoblástica em
um caso de monossomia X, (C) citotrofoblasto intravilositário e (D) citotrofoblasto “gigantocelular”
em caso de triploidia em mosaico.
12
2. RELEVÂNCIAS NA PATOLOGIA FETO-PLACENTÁRIA
ALTSHULER (1996) aponta de maneira pertinente, que embora a literatura
científica sobre patologia placentária nos últimos 25 anos seja ampla, clínicos e
patologistas são pouco atentos no papel dessa durante a prática clínica diária.
Atualmente, o conhecimento em patologia placentária é crescente, assim os
clínicos necessitam saber o significado das alterações placentárias
relacionando-as com a evolução do feto e do recém-nascido. Desta forma, o
patologista precisa adquirir maior conhecimento em perinatologia e melhor
compreensão das lesões placentárias e suas patogenias.
Durante o exame de autópsia pediátrica, a avaliação da placenta é
imprenscindível. Por exemplo, no caso descrito abaixo, o recém-nascido pré-
termo apresenta gastrosquise e genitália ambígua caracterizando quadro clínico
do Complexo de “Limb-Body Wall” por ação de mecanismos disruptivos
causados por bandas amnióticas (Figura 4). A partir do exame anátomo-
patológico da placenta foi possível demonstrar e determinar a causa dos
múltiplos defeitos congênitos.
13
BANDAS AMNIÓTICAS
A B
FIGURA 4. (A) Recém-nascido pré-termo 29a semana gestacional com gastrosquise e
ambigiudade genital. (B) Face fetal da placenta evidenciando três bandas amnióticas.
O exame anátomo-patológico da placenta apresenta, em sua maioria,
lesões morfológicas relevantes, sugerindo e/ou confirmando doenças maternas
ou fetais. As principais doenças identificáveis consistem nas alterações do
desenvolvimento vilositário que sugerem etiologia genética, nas infecções
congênitas estabelecendo sua via de transmissão (ascendente ou
hematogênica) e seu agente etiológico, e nas doenças maternas como a doença
hipertensiva específica da gravidez - DHEG e diabetes, além das doenças
14
imunológicas e neoplásicas (Figura 5 e 6). Ademais, torna-se cada vez mais
freqüente o estudo da placenta em casos de óbitos fetais inexplicados sujeitos à
ação judicial.
PLACENTA ABRUPTIO - DPP
FIGURA 5. (A) Corte macroscópico de placenta revelnado área vinhosa caracterizando
corangioma gigante. (B) Fotomicrografia evidenciando proliferação de vasos caracterizando
corangioma. (C) Placenta Abruptio presente no descolamento prematuro da placenta. (D) Nó
verdadeiro de cordão umbilical
Alterações na placenta ou cordão umbilical contribuem para 60% das
causas de morte nos casos de natimortos, seguidas por defeitos congênitos.
15
Das lesões placentárias encontradas como causa de óbito intra-uterino
verificam-se 37,8% por lesão da interface útero-placentária, 22,5% por
dismaturidade placentária, 22,5% por lesão do cordão umbilical, 14,1% por
inflamação placentária e 3,1% por outras causas (HORN et al 2004).
FIGURA 6. (A) Corioamnionite em infecção ascendente. (B) Vilosite proliferativa em infecção
hematogênica. (C) Citotrofoblastos “espumosos” na doença de acúmulo de Gaucher. (D)
Hemoglobinopatia materna por alfa talassemia.
Estas considerações na área de patologia feto-placentária demonstram o
papel crescente desta especialidade desde a década de 70, caracterizando a
16
placenta como órgão essencial a ser avaliado pelo patologista. A placenta
pode ser comparada ao “diário de bordo” ou a “caixa preta” da gestação,
conferindo informações valiosas para o prognóstico do “paciente”, seja
gestante, puerpera, feto ou recém-nascido. Muitos desafios ainda existem,
sobretudo na interpretação das lesões placentárias nos casos de paralisia
cerebral, deficiência mental, distúrbios do aprendizado e na área de
reprodução assistida.
17
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A AUTÓPSIA PEDIÁTRICA
Das 130 milhões crianças que nascem todos os anos, cerca de quatro
milhões morrem nas quatro primeiras semanas de vida, pertencendo ao
período neonatal. 3,3 milhões de crianças são natimortos e morrem intra-
útero nos três últimos meses de gestação; a maioria (99%) em países em
desenvolvimento. As principais causas diretas de óbitos correspondem a
infecções graves, tétano, diarréia, asfixia, pretermo e defeitos congênitos.
Estima-se que os defeitos congênitos contribuam em 7% do total das mortes
neonatais.
Segundo fonte do Programa de Aprimoramento das Informações de
Mortalidade no Município de São Paulo (PRO-AIM) em 2001, os defeitos
congênitos são a quinta causa de óbito. O diagnóstico precoce permite
melhorar a conduta médica para os portadores repercutindo em menores
taxas de morbi-mortalidade. Em 2004 foram registradas 2.465 mortes de
crianças até 1 ano, destes, 480 (19,47%) foram por anomalia cromossômica.
A participação do médico geneticista é essencial durante a autópsia de
crianças com anomalias múltiplas. Entretanto, existe uma demanda reprimida
dentro do quadro nacional de consultas com especialistas em genética
médica por carência de serviços assistenciais nesta área, pois não existe
uma configuração em rede dos serviços de genética clínica como preconiza o
18
Sistema Único de Saúde brasileiro (HOROVITZ et al. 2005, 2006). Ademais,
esses autores ressaltam que há poucos serviços capacitados em patologia
fetal e neonatal, sendo escassos os procedimentos de autópsias, dificultando
sobremaneira a orientação das famílias e a prevenção de casos futuros. A
realização cuidadosa do exame de autópsia em natimortos e recém-nascidos
com suspeita de doenças genéticas por profissional capacitado como o
patologista pediátrico permite obter informações essenciais para a família,
para o médico responsável e para as instituições de saúde pública. Vários
estudos demonstraram que em cerca de 20% dos óbitos perinatais, a
autópsia foi o único meio de estabelecer a causa da morte, assim como em
20% de casos adicionais, os achados encontrados durante a autópsia
influenciaram no aconselhamento genético (CRAFT e BRAZY 1986, MEIER
et al. 1986).
A importância de realizar a autópsia é freqüentemente subestimada
cientificamente, além de ser considerada de pouca contribuição aos cuidados
com o paciente (HUSAIN e O’CONNOR 1991, CHAMBERS 1992).
BECKWITH (1980) determina a autópsia como um dos fundamentos da
medicina moderna. Segundo o autor, as contribuições para o conhecimento
científico, educação, controle de qualidade e análise epidemiológica à partir
das informações obtidas em autópsia já estão bem estabelecidas. Entretanto,
há uma diminuição acentuada da sua realização em hospitais norte-
americanos, sobretudo na faixa etária adulta. Na faixa etária pediátrica, a
freqüência de autópsia corresponde a cerca de 60% (Figura 7). É muito
19
importante para as famílias obterem respostas definitivas após a morte de
um feto, recém-nascido ou criança por várias razões. Inicialmente, há
considerações genéticas que necessitam de informações detalhadas e
corretas para permitir adequado aconselhamento e melhor planejamento
reprodutivo futuro.
Década 80:•Maniscalco e Clarke, AJDC, 1982 89•Craft et al., AJDC, 1986 63•Meier et al., Obstet. Gynecol., 1986 81
Década 90•Cartlidge et al., BMJ, 1995 57•Dhar et al., J. Pediatr., 1998 62•Barr et al., J.Pediatr.Child.Health, 1999 40•Kumar et al., Arch.Pediatr.Adolesc.Med., 2000 61
A AUTÓPSIA PEDIÁTRICAEstudos %
Fonte: Baseado em GORDIJN (2002).
FIGURA 7. Incidência de autópsias na faixa etária pediátrica nos anos 80s e 90s.
20
A perda de um filho provoca importante impacto emocional. Como
ressalta a antropóloga norte-americana Sukie Miller: “Quando seu marido
morre, você fica viúva. Quando sua esposa morre, viúvo. Os filhos que
perdem os pais são chamados de órfãos. Mas não temos um nome para o
pai ou a mãe que perde um filho" (MILLER e OBER 2002). As respostas
obtidas durante a autópsia minimizam a falsa apreensão de sentimento de
culpa que pode surgir por partes dos pais, assim influenciando o processo de
luto. Finalmente, a autópsia permite avaliar conduta clínica quando
questionada.
Vários estudos comparam os achados ultrasonográficos com os obtidos
ao exame de autópsia. ISAKSEN et al (1998, 1999, 2000) analisaram 408
casos em um período de dez anos e verificaram concordância absoluta entre
os achados em 75% dos casos (Figura 8). A concordância absoluta entre os
achados varia significativamente (p<0,001) quando comparados diferentes
sistemas e órgãos, correspondendo a 89% nas anomalias de sistema
nervosos central, 73% nas cardiopatias congênitas e 87% nos defeitos
congênitos do trato urinário.
21
•Concordânica Absoluta 75%
de AUTÓPSIA não identificados em USG 15%
•Achados Menores
no USG não confirmados na AUTÓPSIA 2%
de AUTÓPSIA não identificados em USG 3%
•Achados Maiores
no USG não confirmados na AUTÓPSIA 2%
•Nenhum achado de AUTÓPSIA encontrado no USG 3%
Categorias Freqüência relativa
FIGURA 8. Freqüências relativas da correlação entre ultra-som e achados de autópsias em diferentes categorias conforme definiu ISAKSEN 2000 (USG ultra-som).
Outro estudo semelhante realizado por LAUSSEL-RIERA (2000) verificou
em um período de 3,5 anos um total de 300 autópsias de fetos e comparou
com o diagnóstico pré-natal. O resultado da autópsia modificou o diagnóstico
pré-natal em 20,3% dos casos, acrescentou informações necessárias ao
diagnóstico definitivo em 41% dos casos e concordou com o diagnóstico pré-
natal em 38,7%.
22
Como verificado, a autópsia adiciona informações necessárias ao
diagnóstico definitivo. Esses achados adicionais não modificam
necessariamente o diagnóstico pré-natal, embora influenciam na conduta do
aconselhamento genético em 20 a 40% dos casos, alterando inclusive o risco
de recorrência de uma determinada condição genética (CRAFT e BRAZY
1986; FAYE-PETERSEN 1999; LAUSSEL-RIERA et al. 2000; BOYD et al.
2004 e PIERCECCHI-MARTI et al. 2004) (Figura 9).
GORDIJN et al (2002) à partir de uma revisão de literatura de 27 artigos
científicos determinou que a autópsia altera o diagnóstico ou adiciona
informações em 22% a 76% dos casos. Esta variação se deve a diversos
fatores como protocolos de autópsia e experiência do patologista, entre
outras.
Em estudos clássicos sobre a qualidade das autópsias no serviço de
saúde do País de Gales, VUJANIC et al (1995, 1998) demonstraram que os
critérios mínimos obtidos nas autópsias realizadas por patologistas
pediátricos, foram documentados adequadamente em 93% dos casos,
enquanto que, quando realizadas por patologista geral, o índice é de 54%.
23
Estudos %
•CRAFT e BRAZY, 1986 20
•FAYE-PETERSEN, 1999 26
•LAUSSEL-RIERA et al, 2000 25-40
•BOYD et al, 2004 14
•PIERCECCHI-MARTI et al, 2004 51
FIGURA 9. Freqüências relativas dos casos nos quais a autópsia acrescentou informações necessárias ao aconselhamento genético e alterou o risco de recorrência.
No Brasil, como ressaltamos anteriormente, há poucos serviços
capacitados em patologia fetal e neonatal (HOROVITZ et al. 2005, 2006).
Estes serviços se encontram junto aos hospitais universitários em sua grande
maioria. Em levantamento realizado no serviço de patologia do Hospital das
Clínicas de Ribeirão Preto (PERES 2006), cerca de 2000 autópsias foram
analisadas. As três principais causas de óbitos foram causas perinatais em
51% (prematuridade e placentae abruptio), defeitos congênitos 24,4% e
infecções 11,9%. Em outro estudo nacional, CERNACH et al (2004) avaliou
24
75 óbitos perinatais aplicando um protocolo multidisciplinar em conjunto com
geneticista clínico, facilitando o diagnóstico em 66,7% dos casos.
Deve-se ressaltar que segundo Resolução CFM no. 1.601 de 09/08/2000
(D.O.U. de 18/08/2000) e Consulta CREMESP no. 22.770/94, aprovada em
14/02/1995) não são elegíveis para o exame anátomo-patológico os
conceptos cuja gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas; peso
fetal igual ou superior a 500g; e/ou estatura igual ou superior a 25 cm. Nestes
casos, o concepto não deve ser tratado como peça anatômica, e sim como
cadáver, recomendando-se ao médico que forneça o atestado de óbito para
devido registro e sepultamento. A investigação anátomo-patológica deve-se
proceder ao exame de autópsia em hospitais habilitados ou nos Serviços de
Verificação de Óbito (SVO) e Instituto Médico-Legal (IML) do município de
origem.
Diferentes categorias de correlações estabelecidas por LAUSSEL-RIERA
et al. (2000) podem ser exemplificadas através de casos clínicos (Figuras 10-
13). No caso 01, a ectrodactilia e a micrognatia foram relatadas no exame
ultrassonográfico e confirmados durante a autópsia, caratcerizando
concordância completa entre ultra-som e achados postmortem.
No caso 02, o encurtamento do membros durante o exame
ultrassonográfico foi confirmado e os achados de autópsia, sobretudo a
realização de radiografia foi imprenscindível ao diagnóstico de displasia
óssea letal.
25
No caso 03, a agenesia renal bilateral sugerida no exame de imagem não
foi confirmada durante a autópsia, considerando que o rim esquerdo estava
tópico e o rim direito pélvico. Ademais, a regressão mülleriana com a
hipótese diagnóstica de adisplasia genito-urinária orientou o diagnóstico para
possível associação de MURCS que foi confirmado com a evidência de
fusão vertebral no raio X da coluna espinhal. No caso 04, os múltiplos
pterígios foram identificados somente durante a autópsia, implicando no
diagnóstico, aconselhamento genético e risco de recorrência.
FIGURA 10. Natimorto 34a semana gestacional com ectrodactilia e micrognatia: (A) e (B) ultra-som da face com micrognatia acentuada, (C) fotografia da face com micrognatia evidente, (D) raio X de crânio perfil evidenciando a hipoplasia do ramo mandibular, (E) fotografia de frente evidenciando ectrodactilia de membros superiores e monodactilia de membros inferiores, (F) ultra-som mão direita, (G) ultra-som mão esquerda e (H) ultra-som membros inferiores.
26
FIGURA 11. (A) Feto com displasia óssea letal. (B) raio X corpo inteiro com redução dos ossos longos. (C) fotomicrografia mostrando traves condro-ósseas irregulares.
27
CASO 03: Discordância com diagnóstico prenatal
FIGURA 12. (A) Feto macerado 24a semanas gestacional cujo o diagnóstico do ultra-som apontava ascite e lojas renais vazias. (B) cavidade abdominal com ascite, rim direito ausente (1) e rim esquerdo presente (2) e presença dos ovários com ausência do útero (3). (C) rim pélvico (*). (D) raio X da coluna cervical com fusão de vértebras cervicais.
28
CASO 04: Discordância com diagnóstico prenatal
A
B
C
D
FIGURA 13. (A) e (B) Feto macerado com pterígio múltiplo, forma letal. (C) pterígeo poplíteo. (D) pterígeo cubital.
29
O futuro da patologia e em particular da autópsia perinatais dependerá
da habilidade do profissional em aceitar os desafios crescentes proporcionados
pela ultrassonografia e pela medicina fetal(figura 14). A cooperação destas
especialidades permitirá desenvolver o conhecimento necessário para a
aplicação adequada das diversas tecnologias disponíveis.
1973
FIGURA 14. Quadro esquemático mostrando os desafios da Embriopatologia diante dos avanços
tecnológicos da Medicina Fetal.
30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Altshuler G. Role of the palcenta in perinatal pathology. Ped Path Lab Med.
1996; 16: 207-233.
Barr P e Hunt R. An evaluation of the autopsy following death in a level IV
neonatal intensive care unit. J Pediatr Child Health. 1999; 35: 185-189.
Beckwith JB. The value of pediatric postmortem examination. Ped Clin North
Am 1980; 36: 29-35.
Bianco K, Caughey AB, SchafferBL et al. History of miscarriage and increased
incidence of fetal aneuploidy in subsequent pregnancy. Obstet Gynecol 2006;
107:1098-102.
Bierman JM, Siegel E, French FE, Simonian, K. Analysis of the outcome of all
pregancies in a community. Am J Obstet Gynecol 1965; 91:37-45.
Boyd PA, Tondi F, Hicks NR e Chamberlain PF. Autopsy after termination of
pregnancy for fetal anomaly: retrospective cohort study. BMJ. 2004; 328: 137.
Cartlidge PH, Dawson AT, Stewart JH e Vujanic GM. Value and quality of
perinatal and infant postmortem examinations: cohort analysis of 400
consecutive deaths. BMJ. 1995; 310: 155-158.
31
Cavalcanti DP. Estudo cromossômico em abortos espontâneos. Ribeirão
Preto; 1986. [Dissertação de Mestrado – Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto].
Cernach MCSP, Particio FRS, Galera MF et al. Evaluation of a protocol for
postmortem examination of stillbirths and neonatal deaths with congenital
anomalies. Ped. Dev. Pathol. 2004; 7: 335-341.
Chambers HM. The perinatal autopsy: a contemporary approach. Pathology
1992; 24: 4-55.
Craft H e Brazy JE. Autopsy. High yield in neonatal population. Am J Dis Child
1986; 12: 1260-2.
Crap HJA, Feldman B, Oelsner G et al. Parental karyotype and subsequent live
births in recurrent miscarriage. Fertil Steril 2004; 81:1296-1310.
Dhar V, Perlman M, Vilela MI et al. Autopsy in a neonatal intensive care unit:
utilisation patterns and associations of clinicopathological discordances. J Pediatr. 1998; 132: 75-79.
Edmonds DK, Lindsay KS, Miller JF, Williamson E, Wood PJ. Early embryonic
mortality in women. Fertil Steril 1982; 38:447-53.
Erhardt CL. Pregnancy losses in New York city. Am J Publ Health. 1960;
53:1337-1352.
Faye-Petersen OM, Guinn DA e Wenstrom KD. Value of perinatal autopsy. Obstet Gynecol. 1999; 94: 915-20.
32
Gordijn SJ, Erwich JJHM, Khong TY. Value of the perinatal autopsy: Critique.
Ped Dev. Pathol. 2002; 5: 480-488.
Horn LC, Lagner A, Stiehl P et al. Identification of the causes of intrauterine
death during 310 consecutive autopsies. Eur J Obstet Gynecol. 2004; 113: 134-
138.
Horovitz DD, Cardoso MH, Llerena JC, Mattos RA. Birth defects and health care:
proposals for public policies in clinical genetics. Cad Saude Publica 2006;
21:2599-2609.
Horovitz DD, Llerena JC, Mattos RA. Birth defects and health strategies in Brazil:
an overview. Cad Saude Publica 2005; 21:1055-64
Husain NA e O’Connor GT. The perinatal autopsy: a neglected source of
Discovery. IARC Sci Publ 1991; 112: 151-162.
Kuleshov NP. Chromosome anomalies of infants dying during the perinatal and
premature newborn. Hum Genet 1976; 31:151-60.
Isaksen CV, Eik-Nes SH, Blaas HG e Torp SH. Comparison of prenatal
ultrasound and postmortem findings in fetuses and infants with nervous system
anomalies. Ultrasound Obstet Gynecol 1998; 11: 246-53.
Isaksen CV, Eik-Nes SH, Blaas HG et al. Comparison of prenatal ultrasound and
postmortem findings in fetuses and infants with congenital heart defects.
Ultrasound Obstet Gynecol 1999; 13: 117-26.
Isaksen CV. Prenatal ultrasound and postmortem findings: a ten year correlative study of fetuses and infants with developmental anomalies.
33
Norway; 2000. [Dissertations at the Faculty of Medicine, Norwegian University of
Science and Technology].
Miller S e Ober D. Finding hope when a child dies: what other cultures can teach us. New York: Fireside; 2002.
Kumar P, Angst DB, Taxy J et al. Neonatal autospies: a 10 year experience.
Arch Pediatr Adolesc Med. 2000; 154: 38-42.
Laussel-Riera A, Devisme L, Manouvrier-Hanu S et al. Interêt de l’examen
foetopathologique dans le cadre des interruptions médicales de grossesse:
comparaison entre le diagnostic prénatal et les résultats de l’autopsie de 300
foetus. Ann. Pathol. 2000; 20: 549-557.
Maniscalco WM e Clarke TA. Factors influencing neonatal autospy rate. Am J Dis Child. 1982; 136: 781.
Meier PR, Manchester DK, Shikes RH et al. Perinatal autopsy: its clinical value.
Obstet Gynecol 1986; 67: 349-51.
Munné S, Alikani M, Tomkin G et al. Embryo morphology, developmental rates,
and maternal age are correlated with chromosome abnormalities. Fértil Steril 1995; 64:382-91.
Peres LC. Review of pediatric autopsies performed at a University Hospital in
Ribeirão Preto, Brazil. Arch Pathol. Lab. Med. 2006; 130: 62-68.
Piercecchi-Marti MD, Liprandi A, Sigaudy S, Fredouille C et al. Value of fetal
autospy after medical termination of pregancy. Forensic Sci Int. 2004; 144: 7-
10.
34
Robert CJ e Lowe CR. Where have all the conception gone? Lancet 1975;
1:498-499.
Schaeffer AJ, Chung J, Heretis K et al. Comparative genomic hybridization-array
analysis enhances the detection of aneuploidies and submicroscopic imbalances
in spontaneous miscarriage. Am J Hum Genet 2004; 74:1168-74.
Simpson JL – Genetics of spontaneous abortions. In Carp JAH. Recurrent pregnancy loss. London: Informa heakthcare; 2007. pp23-34.
Vujanic GM, Cartlidge PHT, Stewart JH e Dawson AJ. Perinatal and infant
postmortem examinations: how well are we doing? J Clin Pathol. 1995; 48: 998-
1001.
Vujanic GM, Cartlidge PHT, Stewart JH e Dawson AJ. Improving the quality of
perinatal and infant necropsy examinations: A follow-up study. J Clin Pathol. 1998; 51: 850-853.
Waburton D e Fraser C. Spontaneous abortion risks in man: data from
reproductive histories collected in a medical genetics unit. Am J Hum Genet 1964; 16:1-25.