consciência fonológica e aprendizagem da leitura: mais uma

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1. INTRODUÇÃO A capacidade para analisar as palavras em unidades sonoras mais pequenas é uma compe- tência crítica para a aprendizagem da leitura. A relevância deste tipo de capacidades para a aprendizagem da leitura e escrita é fundamen- tada, por exemplo, através de estudos correlacio- nais que encontram relações sistemáticas entre medidas de consciência fonológica antes da en- trada para a escola e as performances das crian- ças em testes de leitura depois da entrada para a escola (Yopp, 1988; Calfee, 1977; Mann, 1984; Lundberg, Olofsson & Wall, 1980, citados por Bryant & Goswami, 1990). Neste sentido, a aprendizagem da linguagem escrita parece requerer capacidades explícitas de análise da fala, nomeadamente ser capaz de per- ceber que as palavras orais são constituídas por uma sucessão de componentes fonéticos, os quais são as unidades representadas pelo código alfabético. No entanto, a reflexão consciente sobre os segmentos fonéticos é extremamente difícil para as crianças, na medida em que os fonemas no discurso não são percepcionados isoladamente, mas no contexto do fonema imediatamente pre- cedente e consequente. Por outras palavras, a in- formação necessária para identificar um fonema particular geralmente sobrepõe-se com a de um outro fonema (Liberman, Cooper, Sankweiller & Studdert-Kennedy, 1967, citado por Tumner & Rohl, 1991), o que faz com que a capacidade de análise fonémica, na medida em que implica a consciência de entidades que são intrinsecamen- te abstractas, seja uma competência altamente complexa. A capacidade para lidar com os com- ponentes fonéticos das palavras surge à medida que as crianças aprendem as correspondências grafo-fonéticas. Apesar de existirem muitos da- dos empíricos que confirmam a existência de uma conexão causal entre a sensibilidade aos segmentos fonéticos das palavras e o sucesso da aprendizagem da leitura e escrita existe uma am- pla controvérsia sobre o sentido dessa relação causal. Será que a consciência fonológica enquanto uma capacidade de representação consciente das unidades fonéticas decorre da aprendizagem da 283 Análise Psicológica (1997), 2 (XV): 283-303 Consciência fonológica e aprendizagem da leitura: Mais uma versão da velha questão da galinha e do ovo ANA CRISTINA SILVA (*) (*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Uni- dade de Investigação em Psicologia Cognitiva do De- senvolvimento e da Educação.

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1. INTRODUÇÃO

A capacidade para analisar as palavras emunidades sonoras mais pequenas é uma compe-tência crítica para a aprendizagem da leitura.

A relevância deste tipo de capacidades para aaprendizagem da leitura e escrita é fundamen-tada, por exemplo, através de estudos correlacio-nais que encontram relações sistemáticas entremedidas de consciência fonológica antes da en-trada para a escola e as performances das crian-ças em testes de leitura depois da entrada para aescola (Yopp, 1988; Calfee, 1977; Mann, 1984;Lundberg, Olofsson & Wall, 1980, citados porBryant & Goswami, 1990).

Neste sentido, a aprendizagem da linguagemescrita parece requerer capacidades explícitas deanálise da fala, nomeadamente ser capaz de per-ceber que as palavras orais são constituídas poruma sucessão de componentes fonéticos, osquais são as unidades representadas pelo códigoalfabético.

No entanto, a reflexão consciente sobre ossegmentos fonéticos é extremamente difícil paraas crianças, na medida em que os fonemas nodiscurso não são percepcionados isoladamente,mas no contexto do fonema imediatamente pre-cedente e consequente. Por outras palavras, a in-formação necessária para identificar um fonemaparticular geralmente sobrepõe-se com a de umoutro fonema (Liberman, Cooper, Sankweiller &Studdert-Kennedy, 1967, citado por Tumner &Rohl, 1991), o que faz com que a capacidade deanálise fonémica, na medida em que implica aconsciência de entidades que são intrinsecamen-te abstractas, seja uma competência altamentecomplexa. A capacidade para lidar com os com-ponentes fonéticos das palavras surge à medidaque as crianças aprendem as correspondênciasgrafo-fonéticas. Apesar de existirem muitos da-dos empíricos que confirmam a existência deuma conexão causal entre a sensibilidade aossegmentos fonéticos das palavras e o sucesso daaprendizagem da leitura e escrita existe uma am-pla controvérsia sobre o sentido dessa relaçãocausal.

Será que a consciência fonológica enquantouma capacidade de representação consciente dasunidades fonéticas decorre da aprendizagem da

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Análise Psicológica (1997), 2 (XV): 283-303

Consciência fonológica e aprendizagemda leitura: Mais uma versão da velhaquestão da galinha e do ovo

ANA CRISTINA SILVA (*)

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Uni-dade de Investigação em Psicologia Cognitiva do De-senvolvimento e da Educação.

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leitura? Ou, pelo contrário, será que o desenvol-vimento da consciência fonológica (nas suasvárias dimensões, incluindo não só a consciênciados fonemas, mas também das sílabas e dasunidades intra-silábicas), constitui uma basefundamental para que as crianças aprendam a ler.Ou, por outro lado, será que esta questão –consciência fonológica causa ou consequênciada aprendizagem da leitura – é uma falsa dicoto-mia?

Vamos analisar detalhadamente a fundamen-tação destas duas posições.

1.1. A consciência fonológica enquanto efeitoda aprendizagem da leitura

Esta posição é defendida pelo chamado grupode Bruxelas (Content, Morais, Alegria et al.,1987), que assume que a capacidade de explici-tação consciente das unidades da fala decorregeralmente da aprendizagem da leitura. Estesautores consideram que a capacidade para pensare lidar com as unidades fonéticas não se desen-volve espontaneamente, mas requer algum tipode treino que induza os sujeitos a centrarem-senas unidades segmentais da fala. Este tipo detreino, acontece para a maior parte das pessoas,aquando da aprendizagem da leitura e escritanum sistema de escrita alfabético. Estes autoresnão excluem, no entanto, a hipótese da consciên-cia segmental se desenvolver, através de progra-mas de treino específico que incidam sobre pis-tas articulatórias, mas consideram que o princi-pal factor de desenvolvimento da consciência fo-nética é para a maior parte das pessoas a apren-dizagem do código alfabético.

Este ponto de vista é confirmado de algummodo quando se comparam os desempenhos emtarefas de natureza fonética de sujeitos analfabe-tos e sujeitos alfabetizados; de sujeitos alfabeti-zados num sistema de escrita ideográfico e sujei-tos alfabetizados num código alfabético ou aindaquando se comparam as performances das crian-ças neste tipo de tarefas antes e após a aprendi-zagem da leitura. Analisemos alguns destes estu-dos.

Dados relativos a analfabetosEm 1979, Morais, Alegria, Cary e Bertelson

efectuaram um estudo onde foram comparar odesempenho de 30 adultos analfabetos com o de-

sempenho de 30 adultos alfabetizados em adul-tos em tarefas de natureza fonológica. As tarefasenvolviam a adição e subtracção de fonemas depalavras podendo originar palavras ou não-pala-vras. As diferenças registadas nas taxas de su-cesso entre os dois grupos (19% para o 1.º grupoe 72% para o 2.º grupo), sugerem que a expe-riência da aprendizagem da leitura parece funda-mental para a consciência fonética.

Esta perspectiva é confirmada num outro es-tudo (Morais, Cluytens, Alegria & Content, cita-do por Goswami & Bryant, 1990), onde os auto-res foram comparar novamente o desempenho deum grupo de sujeitos analfabetos e um grupo desujeitos alfabetizados em adultos em tarefas fo-nológicas que implicavam a manipulação de fo-nemas e sílabas.

A análise do desempenho dos dois grupos nasprovas de supressão do fonema inicial de umanão-palavra e supressão de uma sílaba inicialigualmente de uma não-palavra, permite verifi-car que os analfabetos têm sempre piores resul-tados, mas essa desvantagem foi particularmenteacentuada na prova do fonema.

Também numa tarefa que envolvia a selecçãode duas palavras que rimavam num grupo decinco, os sujeitos analfabetos tiveram resultados20% piores do que o outro grupo.

Estes dados sugerem que os analfabetos sãocapazes de ter algum sucesso em tarefas que en-volvem unidades maiores do que os fonemas,mas têm resultados muito maus em tarefas demanipulação fonética. Consequentemente, pare-ce lógico concluir de que a aprendizagem do có-digo alfabético tem uma influência determinantepara o desenvolvimento da consciência fonética.

Dados relativos a grupos de sujeitos ensina-dos em escritas ideográficas

Os resultados obtidos nos estudos com anal-fabetos parecem ser confirmados num estudo deRead, Zhang, Nie & Ding (1986, citado porGowami et al., 1990). Estes autores foram com-parar os resultados em provas de adição e sub-tracção de fonemas de palavras de dois gruposde sujeitos chineses. Os sujeitos do primeiro gru-po conheciam apenas a escrita ideográfica tradi-cional chinesa mas os sujeitos do segundo gruposabiam também ler num sistema de escrita alfa-bética (o pinyin). A taxa de sucesso dos sujeitosdo primeiro grupo foi de 21%, significativa-

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mente inferior à taxa de sucesso de 83% do se-gundo grupo.

Mais uma vez, a instrução num código alfa-bético parece ter um efeito determinante para odesenvolvimento da representação das unidadesfonéticas.

Estudos longitudinais: Dados relativos ao«antes e depois» da aprendizagem da leitura

Uma outra linha de argumentação a favor daimportância da aprendizagem da leitura e escritapara o desenvolvimento da consciência fonéticadecorre de estudos que evidenciam que as crian-ças à entrada para a escola apresentam resultadosmuito maus em tarefas fonológicas, particular-mente aquelas que envolvem manipulação de fo-nemas, e que esses resultados vão progressiva-mente melhorando à medida que as criançasvão dominando o código alfabético.

Por exemplo, uma investigação de Morais etal. (1979, citado por Alves Martins, 1994) evi-dencia que as crianças ao longo do primeiro anode escolaridade vão sucessivamente melhorandoos seus resultados em tarefas de manipulaçãofonética. Neste estudo, as crianças foram avalia-das em provas de supressão e adição de um fo-nema no início de uma palavra no princípio,meio e no fim do ano, obtendo taxas de sucessode 16% e 26% no primeiro momento de avalia-ção, 34% e 64% no segundo e 74% e 79% no úl-timo momento avaliativo, respectivamente emrelação a cada uma das tarefas.

Um outro estudo de Perfetti et al. (1987; ci-tado por Tunmer & Rohl, 1991), dá conta de queas crianças que apresentavam níveis de leituramais avançados no início do ano eram aquelasque tinham melhores resultados em três tarefasfonológicas: síntese fonémica, contagem de fo-nemas e supressão de fonemas.

Este ponto de vista é ainda confirmado numtrabalho de Bruce (1964, citado por Goswami etal., 1990), efectuado com crianças entre os cincoe os nove anos de idade. Este autor testou crian-ças destas várias faixas etárias em tarefas de su-pressão de fonemas do início, meio ou fim da pa-lavra. Os resultados foram muito baixos aoscinco, seis anos e mesmo sete anos, apresen-tando-se significativamente melhores a partirdos oito anos. Portanto, estes dados sugeremmais uma vez que as crianças de idade pré-es-colar «tropeçam» e muito quando têm de proce-

der a julgamentos fonológicos que requeremuma consciência explícita dos fonemas. Por ou-tro lado, também mais uma vez parece evidenteque este tipo de tarefas cognitivamente comple-xas, requer um domínio quase completo do códi-go alfabético.

A influência do código alfabético na cons-ciência fonológica é visível ainda pelo facto dasimagens ortográficas disponíveis nas criançasque já sabem ler contaminarem o seu desem-penho em tarefas de contagem de fonemas (EhrieWilce, 1980; Tunmer e Nesdale, 1985, citadospor Tunmer et al., 1991).

1.2. A consciência fonológica enquanto per-cursor da aprendizagem da leitura

Vários autores (Bradley et al., 1986, 1990,1991; Lundberg, 1991; Mann, 1991), assumemque consciência fonológica é um importantepreditor do sucesso das crianças na aprendiza-gem da leitura e escrita. Por outras palavras, es-tes vários autores defendem que existe uma cla-ra e inequívoca relação entre a sensibilidadedas crianças aos componentes sonoros das pala-vras e o seu progresso na aprendizagem da lei-tura. Mais concretamente, eles afirmam que aconsciência de componentes sonoros maisamplos como as rimas e aliterações (as alitera-ções remetem para a capacidade de categorizarpalavras que partilham a consoante inicial, im-plicando consequentemente a capacidade paradetectar o ataque das palavras), permite prever osucesso na leitura. Para estes autores, muitascrianças de idade pré-escolar desenvolvem maisou menos espontaneamente a capacidade paramanipular rimas. É bastante frequente que mes-mo aos 4 anos as crianças sejam capazes de per-ceber que «cão» rima com «pão» mas não com«mar». Este tipo de competências relacionadascom a categorização de palavras com base empadrões sonoros comuns e consequentementecom a capacidade de efectuar juízos fonológicoscom base na divisão ataque/rima das sílabas de-sempenhará um papel importante na aprendiza-gem da leitura, na medida em que as criançasusarão este tipo de conhecimentos para efectuarprocedimentos de descodificação por analogia,uma vez que as palavras que partilham sons emcomum geralmente compartilham igualmente desequências gráficas idênticas. Para além deste

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efeito directo da consciência das rimas na leitura,Bryant et al. (1990), apoiam a ideia de que estetipo de competência desempenha um papel im-portante no desenvolvimento de formas mais ela-boradas de consciência fonológica, nomeada-mente na crescente sensibilidade aos fonemas.

Apesar de considerarem que estas dimensõesda consciência fonológica funcionam comoimportantes pré-requisitos para a aprendizagemda leitura, Bryant et al. (1990), defendem igual-mente que as crianças frequentemente só têmacesso consciente à estrutura fonética das pala-vras como resultado da aprendizagem da leitura.Será através da aprendizagem das correspondên-cias grafo-fonéticas que as crianças tomam ex-plicitamente consciência de que as palavraspodem ser divididas em sons representados pelasletras.

Portanto, resumindo, do ponto de vista destaperspectiva, as competências fonológicas aonível da sensibilidade a rimas e sensibilidade aunidades intra-silábicas apresentam uma cone-xão causal com o sucesso na aprendizagem daleitura e da escrita. A capacidade para lidar comos componentes fonéticos das palavras surge àmedida que as crianças aprendem as correspon-dências grafo-fonéticas.

Estas ideias são apoiadas essencialmentequando olhamos para os dados obtidos em estu-dos de carácter longitudinal onde se analisa a re-lação entre as competências fonológicas dascrianças antes da sua entrada para a escola e osseus posteriores resultados em leitura e ortogra-fia, e para os trabalhos onde se procede a treinosde natureza fonológica e se avalia o seu efeito nosucesso da aprendizagem da leitura.

Dados relativos a estudos longitudinaisUm estudo de Lundberg, Olofsson e Wall

(1980, citado por Goswami et al., 1990) encon-trou uma consistente relação entre os resultadosde crianças de idade pré-escolar em provas deanálise e síntese silábica e fonética e as pontua-ções das crianças num teste de leitura no final doprimeiro ano de escolaridade.

Bryant e Bradley (1983) efectuaram um es-tudo longitudinal com 400 crianças de 4 e 5 anos(no início do projecto), onde apresentaram aessas crianças provas de rima e aliteração. Nes-sas provas, o experimentador lia às criançasquatro palavras, três das quais rimavam ou co-

meçavam pelo mesmo fonema e uma não,devendo a criança excluir aquela que não par-tilhava sons com as outras. Três anos depois, ascrianças foram submetidas a testes estandardiza-dos de leitura, ortografia e aritmética. Os autoresverificaram a existência de uma significativacorrelação entre a sensibilidade inicial das crian-ças às rimas e aliterações e os resultados dascrianças nessas provas de leitura e ortografia. Assuas pontuações nas provas de rimas permitiaprever especificamente o seu sucesso na leitura eescrita mas não o seu nível da prova de aritmé-tica.

Num outro estudo longitudinal (Bryant et al.,1990), seguiram 64 crianças desde os três anos emeio até aos seis anos e meio. No início do pro-jecto foram passadas às crianças provas de rimae aliteração, quando as crianças tinham cincoanos foram submetidas a provas de contagem defonemas e de supressão do fonema inicial e, nofinal do projecto, as crianças foram avaliadas emtestes de leitura escrita e aritmética. Mais umavez os resultados na prova de rimas foram con-sistentes com os progressos das crianças na pro-va de leitura. As medidas fonémicas permitiramigualmente prever o desempenho das crianças naleitura, mas não tão bem como as provas de ri-ma. Por outro lado, os resultados obtidos nasprovas de rima e de detecção de fonemas esta-vam significativamente correlacionados. Paraos autores, estes resultados confirmam a existên-cia de uma consistente e específica relação entreas competências fonológicas e a leitura. Poroutro lado, estes dados permitem, segundo eles,defender que a consciência das rimas e alitera-ções contribuem para a leitura de, pelo menos,duas maneiras. Uma delas tem a ver com o factodas rimas serem percursores no desenvolvimentoda detecção de fonemas que, por sua vez, facilitaa aprendizagem das correspondências grafo-fo-néticas. A outra tem a ver com um efeito directodas rimas na leitura na medida que a consciênciadas rimas permite às crianças categorizar aspalavras com base em padrões de ortografia co-muns.

Dados relativos a estudos que envolvemprogramas de treino da consciência fonológica

Este tipo de trabalhos permite genericamentedemonstrar a hipótese de que se treinarmos ascrianças, no sentido de aumentar a sua sensibili-

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dade aos sons constituintes das palavras, issotem consequências positivas na aprendizagem daleitura e escrita. A comprovação desta hipótesedar-nos-á uma linha importante de acção peda-gógica no sentido da prevenção das dificuldadesde aprendizagem da leitura e escrita. Outra ques-tão importante tem a ver com o tipo de treino e otipo de unidades sonoras em relação às quais sepretende desenvolver a consciência, o que noslevanta uma série de questões. Será que as crian-ças antes da aprendizagem da leitura beneficiamde treinos onde se promove a consciência foné-tica? Será que é possível promover a consciênciadas unidades fonéticas antes da aprendizagem daleitura? Qual o tipo de tarefas, e em que sequên-cia, mais adequadas para promover a consciênciafonética?

Será que as crianças beneficiam de treinos queapenas incidem sobre a categorização de pala-vras com base na análise de unidades intra-silá-bicas? Será que estes diferentes tipos de treinostêm efeitos diferentes na aprendizagem da leitu-ra?

Vamos de seguida apresentar alguns dadosque permitirão responder a algumas destas ques-tões, mas não a todas, até porque não existemmuitos estudos relacionados com o treino decompetências metafonológicas.

Lundberg (1991), descreve um estudo (Olofs-son & Lundberg, 1988), onde evidencia a possi-bilidade de treinar a consciência fonética previa-mente à entrada para a escola.

Essa investigação envolvia uma grande amos-tra (400 crianças) que foram objecto de treinodurante um período de oito meses. As criançasforam avaliadas através de uma bateria de provasfonológicas e divididas em dois grupos, umgrupo experimental submetido a um programa detreino e um grupo de controlo sem qualquer pro-grama. O programa incluía uma série de jogosmetalinguísticos cuidadosamente ordenados. Otreino começava com jogos fáceis de audição ede rimas e, passadas algumas semanas, eramapresentados exercícios de segmentação de fra-ses em palavras. Depois, no segundo mês, eramintroduzidos jogos que envolviam a manipulaçãosilábica e, por último, eram trabalhadas as unida-des fonéticas, começando-se com jogos envol-vendo o fonema inicial e só posteriormente pro-cedendo à segmentação de pequenas palavras.Os resultados evidenciam a superioridade do

grupo experimental no pós-teste na bateria deprovas fonológicas. A análise detalhada do im-pacto do programa em função dos vários tipos deprovas fonológicas permitiu evidenciar que otreino não influi grandemente em relação às ri-mas e ao conceito de palavra (não havia diferen-ças significativas em relação ao grupo experi-mental de controle no factor rimas e palavra,provavelmente por causas de um efeito de«tecto», uma vez que os resultados a este nível jáeram muito bons no pré-teste), no entanto, o pro-grama tinha efeitos importantíssimos na cons-ciência fonética.

O treino teve igualmente resultados óptimosao nível da leitura e ortografia. As crianças fo-ram avaliadas em provas de leitura e ortografiaquatro vezes com intervalos de sete meses, veri-ficando-se uma consistente superioridade dascrianças do grupo experimental ao longo dosdois primeiros anos de escolaridade.

Este estudo sugere que a consciência fonémi-ca pode ser treinada fora de um contexto formalde aprendizagem da leitura, com consequênciaspositivas na aprendizagem da leitura.

O primeiro estudo longitudinal já referido deBryan et al. (1983), inclui também uma compo-nente de treino. Das 400 crianças seguidas foramseleccionadas 65 que tinham resultados nas pro-vas de rima e aliteração. Essas crianças foramdivididas em 4 grupos: o primeiro foi ensonado acategorizar palavras com base em rimas; osegundo para além da classificação de sons foitreinado a associar letras a sons e dois gruposfuncionaram como um grupo de controlo. Osautores verificaram que ambos os grupos experi-mentais obtiveram melhores resultados na apren-dizagem da leitura e escrita, quando foram ava-liados três anos depois, no entanto, só o 2.º gru-po experimental obteve pontuações significativa-mente superiores aos grupos de controlo, o quesugere que o treino de rimas tem consequênciasnos desempenhos da leitura quando em paralelosão trabalhadas as relações entre os fonemas e asletras.

1.3. Algumas conclusões sobre a relação entrea consciência fonológica e aprendizagemda leitura

A conclusão mais importante deste conjuntode trabalhos e destas duas perspectivas é que

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provavelmente ambas têm razão até certo ponto,e que sobretudo este corpo de investigação nosdá orientação preciosas para a prevenção dasdificuldades de aprendizagem da leitura e escri-ta.

De facto uma análise detalhada destes doispontos de vista permite concluir que a maior par-te dos investigadores concordam que a relaçãoentre a consciência fonológica e a aprendizagemda leitura é uma relação recíproca na sua natu-reza e que alguns pontos aparecem hoje comoinequívocos nomeadamente:

- A consciência explícita das unidades foné-ticas é potenciada pela aprendizagem deum sistema de escrita alfabético.

- Consciência fonológica nas suas váriasdimensões nomeadamente a consciência si-lábica, a consciência fonémica e a consciên-cia das unidades intra-silábicas constituium bom preditor do sucesso das crianças naaprendizagem da leitura e escrita, e o treinodeste tipo de competências facilita a apren-dizagem da leitura.

- A consciência das sílabas e das unidades in-tra-silábicas podem desenvolver-se mais oumenos espontaneamente em crianças emidade pré-escolar, o mesmo não aconteceem relação à consciência fonémica. No en-tanto, a consciência fonémica pode ser pro-movida através de programas de treino pre-viamente à instrução formal da aprendiza-gem da leitura.

Resumindo este problema ainda hoje algopolémico – consciência fonológica e aprendiza-gem da leitura; causa ou consequências? – pare-ce desembocar na existência, de uma mais queprovável causalidade recíproca (Perfetti, 1989;Tumner & Hoover, 1992). Ou seja algumas habi-lidades fonológicas mais elementares ajudam oleitor principiante a iniciar-se no sistema alfabé-tico, e competências fonológicas mais explícitasdesenvolvem-se a partir da aprendizagem daleitura.

Mais concretamente algumas competênciasfonológicas como a capacidade para dividir assílabas em ataque e rima permitirá às criançastirar vantagem de certo tipo de regularidades or-tográficas como aquelas que acontecem em gru-pos de palavras que se iniciam por uma mesmaconsoante familiar ou grupos de palavras que

partilham da rima (ex. mão, pão, cão). Por outrolado, capacidades de segmentação fonética faci-litam, sem qualquer margem de dúvida, a apren-dizagem das correspondências grafo-fonéticas.

Outro tipo de competências fonológicas sub-jacentes a tarefas de supressão de fonemas (sercapaz de perceber que se se tirar o fonema /r/ dapalavra frio fica fio) ou de inversão fonética (sercapaz de perceber que se se inverter por com-pleto a ordem dos fonemas da palavra «luar»obtemos a palavra «Raul»), são capacidades alta-mente complexas, que exigem grande capacida-de de memória verbal, implicam muitas vezes orecurso a imagens ortográficas e só são desen-volvidas através da aprendizagem da leitura.

Por conseguinte, as evidências que existemsugerem que é necessário alguma competênciasfonémicas rudimentares para que a criança con-siga aprender o código alfabético, o que nãoexclui que esse tipo de competências não possaser melhorada e desenvolvida através da aprendi-zagem da leitura.

1.4. Consciência fonológica e conhecimentosde letras

Conhecimento do nome de letras que as crian-ças aprendem informalmente ou através do en-sino formal, à primeira vista parece que poderáajudar as crianças a descobrir as correspondên-cias grafema-fonema, na medida que o nome dasletras incluem o fonema que representam. No en-tanto, o nome das letras constituem apenas ana-logias não muito precisas dos fonemas que re-presentam nas palavras faladas. Para que ascrianças se apercebam que a letra «p» é da pala-vra pai, terão que ser capaz de segmentar a pala-vra para fazerem a ligação entre a letra «p» e ofonema /p/. Portanto, estes dois tipos de conhe-cimentos, nome das letras e capacidade desegmentação provavelmente funcionam em in-teracção, uma vez que os dados que existemapontam que as crianças só beneficiam doconhecimento dos nomes das letras quando sãocapazes de segmentar as palavras orais.

Esta hipótese é fundamentada por um estudode Share, Jorm, Maclean e Mattews (1984,citado por Tumner, 1992), que demonstraramque o conhecimento das letras e as capacidadesde segmentação fonética, avaliados à entrada pa-ra a escola, eram de 39 medidas, os melhores

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preditores do desempenho da leitura após doisanos de escolaridade. No entanto através deuma análise de regressão, os autores concluíramque o conhecimento das letras só por si poucocontribuía para a variância nos resultado da lei-tura, depois de retirada a variância devida às ca-pacidades de segmentação fonémica.

Também num estudo de Tumner & Nesdale(1988), foi demonstrado que os conhecimentosfonológicas e de letras tem um efeito interactivopositivo nas capacidades de descodificação gra-fo-fonéticas. Neste trabalho os autores, avalia-ram 101 crianças do primeiro ano de escolari-dade em provas de leitura de pseudopalavras,consciência fonológica e conhecimentos deletras. Os autores verificaram que eram as crian-ças que simultaneamente conheciam mais letrase tiveram melhores resultados nas provas fono-lógicas, que tinham melhores pontuações no tes-te de descodificação de pseudopalavras. Ascrianças que conheciam bastantes letras masque não dispunham de competências fonológicastiveram resultados na prova de leitura significa-tivamente piores, o que confirma a importânciada consciência fonológica para que as criançasbeneficiem do conhecimento do nome das letras.

2. OUTRA DIMENSÃO DO CONHECIMENTOMETALINGUÍSTICO: AS REPRESENTAÇÕES

INFANTIS SOBRE A ESCRITA

2.1. Conceptualizações infantis e aprendiza-gem da leitura

O desenvolvimento da consciência dos sonsque compõem a fala é, um componente impor-tante para o sucesso na aprendizagem da leitura,no entanto outra dimensão fundamental paraesse processo tem a ver com o modo como ascrianças pensam sobre a linguagem escrita.

Previamente à entrada para a escola as crian-ças constróem hipóteses sobre o que a escritarepresenta. Essas hipótese correspondem a dife-rentes momentos evolutivos em termos das con-cepções que as crianças dispõem sobre a lingua-gem escrita, as quais podem estar mais ou menospróximas do princípio alfabético.

No momento da entrada para a escola ascrianças encontram-se em diferentes momentos

desse percurso evolutivo; algumas crianças aindanão relacionam o escrito com o oral, outras pro-curam já ajustar as suas produções ao oral, maisconcretamente à sequência silábica, outras ainda,começaram já a tentar proceder a uma fonetiza-ção da escrita procurando seleccionar as letrasque melhor correspondem aos sons das palavras.

Vários estudos procuram relacionar os conhe-cimentos precoces das crianças sobre a lingua-gem escrita e o seu sucesso na aprendizagem daleitura, demonstrando que o nível conceptual dascrianças é um bom preditor do sucesso em lei-tura.

Um estudo de Ferreiro (1988, citado por Al-ves Martins, 1994), evidencia que a passageminstitucional de classe no primeiro ano de esco-laridade está correlacionada com as conceptua-lizações infantis ao nível da escrita: as criançasque produzem escritos pré-silábicos têm dez ve-zes mais probabilidades de não transitarem deano do que os seus colegas que produzem es-critos silábicos, silábico-alfabéticos ou alfabé-ticos.

Também Margarido (1989, citada por AlvesMartins, 1994), demonstrou que 45% da variân-cia nos desempenhos em leitura no final do pri-meiro ano de escolaridade era devida às con-ceptualizações infantis sobre a escrita.

Estes dados sugerem claramente que as con-ceptualizações infantis sobre a escrita à entradapara a escola, vão interagir com aquilo que lhes étransmitido na escola, vão influenciando o modocomo os conteúdos ensinados vão ser assimila-dos pelas crianças.

Queríamos ainda referir uma investigação deAlves Martins (1994), que ao estudar a relaçãoentre os resultados num teste de leitura silen-ciosa no final do primeiro ano de escolaridade eo nível de desenvolvimento metalinguístico dascrianças medido através de várias variáveis de-monstrou que as variáveis mais fortemente cor-relacionadas com os resultados em leitura erampor ordem de significância, o conhecimento dasletras, o nível de conceptualizações sobre a lin-guagem escrita e a capacidade da síntese fonémi-ca.

Este trabalho tem um enorme mérito de rela-cionar o resultado de duas linhas de investigaçãoque raramente se cruzam: os estudos relativos àsconceptualizações infantis sobre a escrita e asinvestigações que incidem sobre a importância

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da consciência fonológica sobre a aprendizagemda leitura. Assim esta investigação atende noâmbito dos conhecimentos metalinguísticos dascrianças à entrada para a escola não só a avalia-ção de competências fonológicas mas também aavaliação dos conhecimentos das crianças rela-tivamente às relações entre a linguagem escrita eoral.

2.2. Conceptualizações infantis e consciênciafonológica: que tipo de relações possí-veis?

Os trabalhos no âmbito da análise das con-ceptualizações infantis sobre a escrita temsubjacente uma visão construtivista inerente aodesenvolvimento dos conhecimentos sobre alinguagem escrita.

Para Ferreiro (1995), as descobertas relativa-mente às várias hipóteses conceptuais que ascrianças constróem sobre a linguagem escritaconfirmam os princípios gerais da teoria constru-tivista piagetiana, os quais tem a seguinte espe-cificação no que respeita ao modo como ascrianças se apropriam da linguagem escrita:

Assim deste ponto de vista considera-se queas crianças são sujeitos activos, construindo osseus conhecimentos progressivamente ao tenta-rem assimilar a informação proporcionada pelomeio. Nesse processo de apropriação as criançaselaboram hipóteses sobre as propriedades dosistema de representação escrita as quais orien-tam as suas produções escritas e interpretaçõesque fazem das marcas gráficas antes de saberemler. Esses esquemas conceptuais ao serem con-frontados com novas informações, são frequen-temente reelaborados pelas crianças de modo aintegrar novos dados assimiláveis ou de modo amanter a consistência interna das conceptualiza-ções construídas.

São estas características do funcionamento in-fantil que permitiram à criança evoluir de hipó-teses conceptuais onde a escrita ainda não éorientada por critérios linguísticos, para hipó-teses onde se estabelecem relações sistemáticasentre o oral e o escrito. Primeiro segundo regrasmeramente quantitativas (uma letra aleatória//uma sílaba), depois com tentativas de fonetiza-ção da escrita, numa primeira fase ainda segundoa regulação silábica posteriormente procedendoanálises que vão para além da sílaba e que con-

duzem aos escritos alfabético-silábico e alfabé-tico.

Os autores que estudam a problemática daconsciência fonológica não reflectem geralmentesobre este tipo de questões relativas ao processode apropriação da linguagem escrita, consideran-do apenas que as competências fonológicasconstituem uma capacidade importante para queo processo ensino/aprendizagem em contextoformal de instrução da leitura, surta efeito. Im-plicitamente esta posição engloba a ideia de queo acesso ao princípio alfabético e às condutas dedescodificação é o resultado da aprendizagem doalfabeto e das correspondências grafo-fonéticas,onde o sucesso dessa aprendizagem é mediadopelas competências fonológicas.

Os trabalhos sobre a consciência fonológicanão têm geralmente em conta os dados das in-vestigações no âmbito das conceptualizaçõesinfantis sobre a linguagem escrita (e vice-versa,aliás).

E no entanto, os trabalhos sobre as conceptua-lizações infantis sobre a escrita demonstram quepreviamente à entrada para a escola, as criançasjá pensaram sobre a escrita que podem encontrarno seu meio ambiente e têm ideias próprias sobreas propriedades da escrita e sobre o que ela re-presenta, construindo uma série de hipótesesgeneticamente ordenadas que podem estar maisou menos próximas da realidade alfabética.

Este facto, (e quando atendemos ao conjuntode dados disponíveis por estas duas correntes deinvestigação), permite-nos levantar problemáti-cas de vária ordem, nomeadamente questões re-lativas aos mecanismos subjacentes à construçãode hipóteses conceptuais mais evoluídas porparte das crianças as quais já reflectem umarelação mais sistemática entre a linguagem oral eescrita e questões relativas ao papel da consciên-cia fonológica relativamente à construção das hi-póteses conceptuais características de cada umdos momentos evolutivos identificados.

O primeiro problema obriga-nos a questionar-nos sobre os quais os aspectos e propriedades dalinguagem escrita a criança consegue descobrirsozinha através da exploração do material grá-fico e quais as características cuja compreensãoeventualmente implicam algum tipo de instruçãoexplicita (de modo formal ou informal).

Ferreiro (1988), no entanto, nunca equacionaesta última hipótese de modo explicito, defen-

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dendo que o percurso evolutivo das crianças éexclusivamente determinado pela existência deconflitos cognitivos que induzem as crianças areelaborar os seus esquemas conceptuais em re-lação à linguagem escrita, quando se deparamcom novas informações não directamente assimi-láveis.

Este processo provavelmente poderá assegu-rar só por si a diferenciação entre as marcas icó-nicas e não icónicas, o estabelecimento dos cri-térios de quantidade mínimo de letras e variaçãointra-figural «como condições formais de legibi-lidade», a análise de relação entre as partes dapalavra e o seu todo como via de chegar a umaregulação quantitativa do número de letras porpalavra e à construção da hipótese silábica.

A passagem para uma regulação qualitativa dahipótese silábica (que envolve já uma escolhaadequada das letras a utilizar em função dos sonsda palavra), e o surgimento de escritos alfabé-tico-silábicos e alfabéticos que tem subjacenteuma análise do oral que vai para além das síla-bas, são esquemas conceptuais cuja construçãonos parece envolver outro tipo de mecanismosimplicando algum tipo de aprendizagem.

Esta ideia torna-se plausível quando os dadosrelativos ao estudo da consciência fonológicaevidenciam as dificuldades das crianças em re-presentar as unidades fonéticas das palavras an-tes de serem instruídas em relação às correspon-dências grafo-fonéticas. E, igualmente quandoatendemos ao estudo que evidenciam que a cons-ciência fonémica e o conhecimento do nome dasletras actuam de maneira complementar na com-preensão do princípio alfabético (Byrne, 1992).

Este ponto de vista não invalida que o conflitocognitivo não funcione como mecanismo coor-denador da assimilação dessas informaçõesvinculando através de alguma forma de instru-ção.

A outra questão tem a ver com as competên-cias de análise do oral que as crianças têm quedispor para construir hipóteses conceptualmentemais evoluídas.

Em relação à transição dos escritos pré-silá-bicos para os escritos silábicos, Ferreiro (1988),coloca duas hipóteses não necessariamente in-compatíveis. A primeira seria a possibilidade dascrianças desenvolverem capacidades de decom-posição silábica a partir da análise oral, capaci-dades essas que a determinado momento da evo-

lução conceptual seriam aplicadas à escrita. Estahipótese ganha bastante plausibilidade a partirdos dados que evidenciam que a consciência dassílabas pode desenvolver-se independentementeda aprendizagem da leitura e que as crianças deidade pré-escolar já conseguem ter sucesso emtarefas que envolvem a manipulação silábica(Liberman et al., 1974). A segunda hipótese co-locada pela autora considera que seriam os pro-blemas cognitivos colocados pela compreensãoda escrita (mais concretamente o de relacionar atotalidade com a parte dos escritos), que indu-ziriam ao aparecimento da silabação, como viade estabelecer uma relação sistemática entre aspartes da palavra emitida e partes da palavra es-crita, iniciando-se assim a compreensão da rela-ção entre a cadeia oral e escrita.

Por outras palavras, a primeira hipótese apon-taria para a ideia da necessidade das criançasdisporem de algumas capacidades de análisesilábica antes de conseguirem regular os seus es-critos pela hipóteses silábica, deixando em aber-to como esses conhecimentos linguísticos seriamaplicados à compreensão da escrita. A segundahipótese concebe o desenvolvimento das compe-tências de análise silábica como o resultado deproblemas cognitivos colocados pela compre-ensão da escrita, deixando em aberto a possibili-dade de esse tipo de competências se desenvol-ver em paralelo através da análise oral.

Se Ferreiro reflecte sobre a problemática decomo as crianças começam a relacionar a cadeiaoral com a cadeia escrita aquando da construçãoda hipótese silábica, deixa de equacionar este ti-po de questões em relação à transição para os es-critos alfabético-silábicos e alfabéticos. A autoracentra a sua explicação desta evolução em trêstipos de conflitos cognitivos que terão uma in-fluência decisiva na desequilibração da hipótesesilábica.

O primeiro conflito é entre a quantidade míni-ma de letras e o facto de que através da hipótesesilábica as crianças serem induzidas a escreverpalavras monossilábicas apenas com uma letra.

O segundo conflito relaciona-se com a neces-sidade de utilizarem letras variadas nos seus es-critos e com o facto de quando as crianças come-çam a fonetizar a escrita (seleccionando as letrasa utilizar em função da sua adequação aos sonsexistentes na palavra), muitas vezes apenas dis-porem de um repertório limitado de letras, o que

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conduz a uma repetição das mesmas letras namesma palavra (nomeadamente de vogais).

O terceiro conflito tem a ver com as diferen-ças que as crianças encontram entre as suas pro-duções reguladas pela hipótese silábica e escritadas pessoas alfabetizadas.

Para a autora são estes conflitos que induzema criança a proceder a uma análise que vá paraalém da sílaba, a qual conduz ao surgimento dosescritos albabético-silábicos e posteriormente oacesso à hipótese alfabética.

Este tipo de argumentação leva-nos a colocarvários problemas, nomeadamente:

Uma vez que as crianças pré-escolares têmgrande dificuldade em segmentar e em identi-ficar as unidades fonéticas da fala será que aresolução deste tipo de conflitos requer que ascrianças tenham desenvolvido competências deanálise do oral ao nível da segmentação fonémi-ca.

Ou será que estes problemas cognitivos que acriança enfrenta promovem só por si o desenvol-vimento deste tipo e competências fonológicasmais elaboradas, até por que este nível conce-ptual implica já o conhecimento de algumas le-tras e a reflexão sobre a sua adequação aosequivalentes sonoros das palavras.

Por outras palavras, estas questões reflectemao nível produções alfabético-silábicas a mesmaproblemática que Ferreiro, equaciona para odesenvolvimento da hipótese silábica. A pri-meira hipótese que apontámos concebe a possi-bilidade de que a evolução para produções es-critas que ultrapassam a análise da sílaba reque-rem que a criança disponha de algumas compe-tências fonémicas, deixando em aberto como éque as crianças aplicariam essas capacidades àstentativas de correspondência grafo-fonéticas(ou seja por exemplo, como é que essas capaci-dades poderão potenciar mais ou menos este«salto», em função da quantidade de letras queas crianças conhecem?).

A segunda hipótese prevê o desenvolvimentoda capacidades de análise fonémica à medidaque a criança faz algumas tentativas de escritaque permitam resolver os problemas cognitivosanteriormente referidos. Neste caso a reflexãopor parte da criança sobre a relação entre as le-tras seleccionadas e as partes sonoras das pala-vras que lhe correspondem potência a consciên-cia fonémica, efeito potenciador que será tanto

maior quanto maior o número de letras que acriança conhece. Esta hipótese não invalida, noentanto, que essas competências se possam de-senvolver em paralelo através da reflexão sobreo oral.

E mais uma vez, estes dois percursos possí-veis poderão não ser necessariamente incompa-tíveis.

Outra questão a colocar e que remete para aprimeira ordem de problemas que colocamos é oseguinte: atendendo a que este tipo de capacida-des de análise fonémica parecem decorrer daaprendizagem da leitura e da instrução relativaàs correspondências grafo-fonéticas, será queeste tipo de conflitos ocorrem para a maior partedas crianças apenas num contexto explicito deinstrução alfabética?

Estas várias questões e hipóteses (que care-cem de resposta no quadro actual de investiga-ção), apontam-nos pistas para a investigação nosentido de procedermos à análise de como seprocessa a interacção entre as competências fo-nológicas (nos seus vários níveis), e a construçãode hipótese por parte das crianças sobre as leissubjacentes à codificação na linguagem escrita.

Mais concretamente interessa-nos analisar seas competências fonológicas (e a que nível) po-derão ser desenvolvidas através de restruturaçãoinduzidas a partir de hipótese infantis sobre aescrita. Mas igualmente, precisar como ou secompetências fonológicas (de diferentes níveis),desenvolvidas através de programas de treinoirão ser utilizadas/integradas por parte das crian-ças nos seus processos de apropriação conceptu-al sobre o que escrita representa.

Estamos neste momento, ainda a recolherdados que nos permitam de um modo integradoobter respostas para estas questões, mas pode-mos já apresentar resultados de duas experiên-cias.

3. O ESTUDO

As duas experiências que vamos apresentarfazem parte de um projecto mais amplo que visaanalisar a interacção entre o desenvolvimento decompetências fonológicas (nos seus diversosníveis), e o modo como as crianças vão cons-truindo hipóteses sobre as leis inerentes a codifi-cação no sistema alfabético.

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No caso específico das investigações em cau-sa centramo-nos na problemática equacionadapor Ferreiro (1988), a propósito da transição deproduções infantis ainda não determinadas porcritérios linguísticos para produções já reguladaspela hipótese silábica (ainda que numa perspecti-va meramente quantitativa: uma letra/uma síla-ba).

Mais concretamente interessava-nos ir ver,por um lado se a evolução para um nível conce-ptual silábico teria repercussões nas capacidadesinfantis de análise das palavras nos seus se-gmentos orais, mas por outro lado queríamosigualmente observar se um programa de treinoincidindo especificamente sobre a consciência dasílaba teria repercussões nas representações in-fantis sobre a escrita.

3.1. Experiência 1

3.1.1. A Amostra

Trabalhámos com 20 crianças de 5/6 anos de2 jardins de infância. As crianças provinham deum meio sócio-cultural homogéneo (médio-alto),tal como eram equivalentes as abordagens peda-gógicas dos colégios em termos das actividadesdesenvolvidas no âmbito de uma pré-primária,privilegiando nomeadamente tarefas relaciona-das com a motricidade fina e a coordenação vi-suo-espacial.

3.1.2. Objectivos e hipóteses

Esta experiência tem no essencial dois objecti-vos:

a) Avaliar se a evolução conceptual de um ní-vel de escrita pré-silábica para a hipótesesilábica comporta progressos nas compe-tências fonológicas.

b) Precisar em que tipo de tarefas é que se re-gistam esses progressos.

Estes objectivos foram operacionalizados nasseguintes hipóteses:

a) A evolução das hipóteses conceptuais in-fantis de um nível pré-silábico para umnível silábico aumenta as competências fo-nológicas.

b) Os progressos ao nível das competênciasfonológicas vão incidir em todo o tipo detarefas que envolvem a manipulação dasunidades silábicas, mas não em tarefas querequerem a manipulação de unidades foné-ticas.

3.1.3. Procedimento

FASE I – PRÉ-TESTE

A primeira fase deste trabalho incluiu apassagem de quatro instrumentos de maneira aseleccionarmos apenas crianças cujas produçõesescritas não fossem determinadas por critérioslinguísticos e ao mesmo tempo que garantissema homogeneidade das crianças em relação àscompetências fonológicas disponíveis a partida,número de letras conhecidas e capacidades inte-lectuais.

As provas utilizadas foram as seguintes:

Avaliação das conceptualizações infantissobre a escrita

De modo a analisarmos as conceptualizaçõesinfantis sobre a escrita utilizámos uma entrevistaclínica de tipo piagetiano, onde solicitámos àscrianças que escrevessem um determinado nú-mero de palavras do modo como quisessem,sendo-lhes igualmente pedido que lessem o quetinham escrito.

O número de palavras propostas foi anormal-mente elevado em relação ao que é habitual: fo-ram ditadas setenta palavras dividas por cincosessões. O elevado número de palavras ditadasdeveu-se à nossa preocupação em que esta provativesse uma extensão sensivelmente equivalenteà bateria de provas fonológicas, para que o efei-to de treino, que sempre resulta de uma situaçãode avaliação, fosse equiparável neste dois domí-nios de competência.

A listagem de palavras a ditar foram divididasem cinco grupos em função de alguns critériosque passamos a explicitar:

Grupo I – palavras de tamanho igual e quereenviam para referentes de tamanho diferente(ex., urso/rato)

Grupo II – palavras de tamanho diferentes e

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reenviam para referentes semelhantes (ex., rapo-sa/cão)

Grupo III – palavras da mesma família (ex.,lua/luar)

Grupo IV – ditado de uma palavra e do res-pectivo plural (ex., gato/gatos)

Grupo V – Ditado de um grupo de palavrascom repetição de uma delas (ex., asa... mala...fato... asa).

Esta prova era a primeira a ser passada por sero critério de selecção fundamental para a nossainvestigação.

A partir da análise do conjunto de escritosproduzidos e do seu comportamento durante aentrevista, seleccionámos crianças cujas produ-ções escritas foram consideradas pré-silábicas.Assim seleccionámos crianças que enquanto es-creviam não tentavam relacionar a linguagem es-crita com a linguagem oral, não produziam ver-balizações durante a tarefa e a sua leitura daspalavras era global. Nas suas produções estascrianças consideravam que as palavras têm de terum número mínimo de letras e variavam a posi-ção das letras na escrita de palavras diferentes.

Avaliação das competências fonológicasNo sentido de avaliar a consciência fonoló-

gica foram construídas uma bateria de provas fo-nológicas que incluem seis subtestes, que dife-rem em função da unidade linguística a mani-pular (sílaba ou fonema), e das exigências cogni-tivas subjacentes à tarefa (do mero reconheci-mento de semelhanças fonológicas, passandopor competências de segmentação e manipulaçãodeliberada de segmentos orais).

Assim esta bateria procurou incluir algumadas várias tarefas utilizadas nos vários estudosque incidem sobre a avaliação da consciência fo-nológica, nomeadamente:

a) Tarefas de classificação onde as criançasdeveriam categorizar duas palavras/alvoem quatro, segundo um critério de sílabainicial idêntica ou fonema inicial idêntico.Ambas as provas têm 14 itens sendo cadaresposta correcta pontuada com um ponto.

b) Tarefas de segmentação onde era solicitadaàs crianças que pronunciassem isolada-mente as sílabas ou os fones das palavras.Também neste caso cada uma das provas(análise silábica e análise segmental), tem

14 itens, e cada resposta correcta é classi-ficada com um ponto. No caso da prova deanálise segmental, dez dos itens são cons-tituídos por palavras monossilábicas e ape-nas 4 itens incluem palavras bissilábicas,de modo a facilitar a tarefa.

c) Tarefas de manipulação, onde era pedido àscrianças que eliminassem uma sílaba ou umfone de uma palavra, originando sempreuma não-palavra. A prova de supressão dasílaba inicial tem 14 itens, mas a prova desupressão do fonema inicial tem 24 itens.Nesta prova os itens estão agrupados dois adois, ou seja existem sempre dois itensque começam pelo mesmo fonema, umadas palavras é monossilábica e onde o fo-nema inicial corresponde ao ataque da síla-ba, sendo mais fácil de realçar, e a outra ébissilábica. Mais uma vez, em ambas asprovas cada resposta correcta é pontuadacom um ponto.

Todas as provas foram aplicadas usando umsuporte figurativo para as palavras de modo adiminuir as exigências da tarefa em termos derequisitos mnésicos.

Conhecimento do número de LetrasPara avaliar o conhecimento do nome das le-

tras, foram apresentados a cada criança 23 car-tões com as letras do alfabeto em letra de im-prensa numa ordem aleatória. As crianças eramquestionadas no sentido de avaliar se conheciamcada uma das letras e de as nomearem.

Posteriormente era contabilizado o número deletras conhecido por cada criança.

Avaliação do nível intelectualFoi aplicado individualmente a cada criança,

as Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, se-guindo o procedimento estandardizado. Este tes-te foi seleccionado por poder ser passado emcrianças desta faixa etária e pela sua rápida e fá-cil aplicação.

FASE II – SITUAÇÃO EXPERIMENTAL

Nesta fase as crianças foram divididas emdois grupos (10 crianças no grupo experimentale 10 no grupo de controle), tendo a preocupação

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dos grupos serem homogéneos ao nível das com-petências fonológicas, número de letras conhe-cidas e nível intelectual.

As crianças do grupo experimental foramsubmetidas a um programa de treino que tinhacomo objectivo que as crianças reflectissem so-bre as suas hipóteses conceptuais em relação àescrita e passassem de um modo sistemático arelacionar a linguagem escrita com a linguagemoral a partir de um critério silábico. Esse progra-ma incluía oito sessões onde as crianças eramconvidadas a escrever um conjunto de oito pala-vras bissilábicas e trissilábicas relacionadas comum mesmo tema (ex.: os animais, os brinque-dos).

O procedimento utilizado para induzir umarestruturação conceptual em relação às represen-tações infantis sobre a escrita foi o seguinte:

Era dito às crianças para escreverem cada pa-lavra como quisessem e soubessem e seguida-mente à escrita da palavra, as crianças eram con-frontadas com um escrito de um hipotético me-nino que utilizava algumas das letras que elaspróprias tinham utilizado, mas apenas as neces-sárias para corresponder ao critério uma sílaba//uma letra.

Por exemplo, supondo que a criança tinha es-crito a palavra «urso» deste modo «OTIUA»,era-lhe afirmado o seguinte «um outro meninode uma outra escola esteve comigo também a es-crever e escreveu a mesma palavra desta maneira“OT”. Agora lê o que tu escreveste, mostra-mecom o dedo....Agora lê o que o outro menino es-creveu, mostra-me com o dedo... Como é queachas que fica melhor? Porquê?»

Para além desta metodologia que deixava deser utilizada a partir do momento em que acriança passava a escrever e a ler uma letra/umasílaba com um carácter sistemático (o que acon-tecia em média a partir da segunda sessão), apartir da segunda sessão pedia-se igualmente àcriança para antecipar o número de letras que iriaprecisar antes de escrever cada palavra. Paraalém disto, depois da criança ler e escrever a pa-lavra, era-lhe solicitado para ler o que estava es-crito em cada letra (... «e agora o que está escritosó aqui... e aqui..» apontando respectivamentepara cada letra da produção infantil).

As crianças do grupo de controlo, ao longo deoito sessões, faziam desenhos com o experimen-tador.

FASE III – PÓS-TESTE

Passado cerca de duas semanas com o objecti-vo de avaliar o efeito do treino nas conceptuali-zações infantis sobre a escrita, as crianças foramde novo submetidas à prova de Ditado utilizadano pré-teste.

Por outro lado, e no sentido de observar se es-te treino conceptual teve consequências nas ca-pacidades infantis de análise do oral, foi passadonovamente às crianças a bateria de provas fono-lógicas.

3.1.4. Análise dos resultados

Evolução conceptual dos sujeitosA metodologia de treino utilizada revelou-se

eficaz no sentido de induzir restruturações con-ceptuais nas representações infantis sobre a es-crita.

As crianças do grupo experimental ao nível dopós-teste passaram sistematicamente a apresentarproduções escritas do tipo silábico, ou sejaefectuavam escritos regulados pelo critério umaletra/uma sílaba (em média 98% dos seus es-critos tinham estas características), liam de ummodo silabado e eram capazes de segmentar apalavra nas suas sílabas quando lhes era solici-tado para lerem parte de uma palavra.

As crianças do grupo de controlo registaramtambém alguns progressos conceptuais mas bemmenos significativos. No caso destas criançasgrande parte das suas produções continuaram anão ser orientadas por critérios linguísticos (emmédia 77% das suas produções), preocupando-seno decorrer dos seus escritos com as questões daquantidade mínima de letras e variação intra-fi-gural e a ler as palavras de uma forma global.

No entanto, em algumas das suas produçõesfoi possível detectar já uma regulação de tipo si-lábico (em média 23% das produções infantis,variando entre 2% num sujeito a 47% das produ-ções num outro sujeito, como casos mais extre-mos). A própria extensão das provas de escritado pré e pós-teste, que necessariamente obrigouas crianças a reflectir sobre a escrita, poderá ex-plicar este facto.

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Progressos ao nível das Competências Fo-nológicas

Através da comparação das médias do soma-tório das pontuações nas várias provas obtidasno pré e pós-teste, no grupo experimental e decontrolo, é possível obter um indicador do efeitodo treino conceptual nas competências fonoló-gicas infantis. Assim a média das pontuaçõesglobais nas provas fonológicas aumentou de34.0 para 49.0 no grupo experimental, enquantono grupo de controlo subiu apenas 29.6 para37.5.

Uma avaliação mais definitiva deste efeito, foiefectuada através do modelo linear de Ward eJennings (1983), desenvolvida por Ramalho(1996), o qual permite analisar a especificidadedas consequências do treino, a partir da compa-ração dos resultados emparelhados nas provasfonológicas no pré e pós-teste para o mesmogrupo de sujeitos.

Esta análise estatística confirma a existênciade diferenças significativas nos valores da mu-dança (f=8.3703 para o nível de significância de0.01), a favor das crianças do grupo experimen-tal.

Este modelo foi igualmente aplicado na aná-lise dos desempenhos dos sujeitos do grupo ex-perimental e de controlo no pré e pós-teste, emrelação a cada uma das provas, permitindo ava-liar a especificidade do efeito do treino con-ceptual no que respeita aos vários tipos de tare-fas fonológicas.

Assim no que respeita às provas silábicas ve-rificámos uma diferença significativa nos valoresdas pontuações a favor das crianças do grupo ex-perimental nas provas de supressão de sílaba ini-cial e análise silábica (respectivamente f=5.1963,ao nível de significância de 0.05 e f=5.221, nomesmo nível de significância).

A comparação das médias obtidas pelo grupoexperimental e de controlo no pré e pós-teste,confirma uma evolução das pontuações médiasde 4.0 para 12.7 para o grupo experimental eapenas de 2.0 para 6.6 para o grupo de controlona prova de supressão da sílaba inicial. A mesmacomparação para a prova de análise silábica su-gere um aumento da pontuação média de 11.3para 13.6 para o grupo experimental entre o pré epós-teste, enquanto que para o grupo de controloo aumento foi de 11.4 para 11.8.

Na prova de classificação da sílaba inicial,

não houve diferenças significativas no registoevolutivo dos sujeitos do grupo experimental ede controlo entre o pré e pós-teste. Estes resulta-dos poderão ser explicados por um efeito de«tecto», na medida que ambos os grupos obti-veram pontuações muito elevadas, tanto no précomo no pós-teste.

Em relação às provas fonémicas, só na provade classificação do fonema inicial se registaramdiferenças significativas no desempenho dossujeitos entre o pré e o pós-teste, a favor dossujeitos do grupo experimental (f=9.009, nonível de significância de 0.01). Este facto é con-firmado por se verificar um aumento das pon-tuações médias de 5.7 para 8.2 no grupo expe-rimental entre o pré e pós-teste, enquanto para ogrupo de controlo a evolução foi de 5.2 para 5.3.

Nas outras duas provas, supressão do fonemainicial e análise segmental, não se verificaramdiferenças significativas, tendo os resultados si-do extremamente baixos (pontuações médias naordem dos zero e um valor), quer no pré quer nopós-teste.

3.1.5. Discussão dos resultados

O conjunto de resultados apresentados suge-rem em primeiro lugar que a transição de níveisconceptuais não determinados por critérios lin-guísticos para níveis conceptuais silábicos, me-lhoram genericamente as competências fonoló-gicas infantis, tendo sobretudo efeitos positivosna capacidade das crianças em manipular cogni-tivamente unidades silábicas.

O tipo de treino proposto neste caso às crian-ças induzindo-as a relacionar a linguagem escritacom a linguagem oral (através da leitura de es-critos já determinado pela hipótese silábica), areflectir sobre a linguagem oral (para poderemantecipar o número de letras a utilizar), e a isolarcada um dos segmentos silábicos das palavras(pela leitura do que estaria representado em cadaletra), conduziu a uma restruturação da suasrepresentações sobre a escrita e à elaboração deuma nova regra para a regulação dos seus escri-tos: a cada sílaba da palavra emitida correspondeuma letra. A compreensão e utilização desta re-gra nas suas produções escritas tem inerenteuma exercitação continuada na decomposição emanipulação das unidades silábicas, na medidaque a hipótese silábica joga com a necessidade

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de se proceder sistematicamente a correspondên-cias entre as partes das palavras emitidas e aspartes da palavra escrita. Daí não ser surpre-endente que as crianças que foram submetidas aeste treino melhorassem significativamente nasprovas fonológicas e em particular aquelas querequeriam manipulações cognitivas mais sofis-ticadas das unidades silábicas como é o caso daprova de supressão da sílaba inicial.

Voltando à problemática que Ferreiro equacio-na relativamente ao sentido das interacções sobreos conhecimentos gerais sobre a linguagem e acompreensão da escrita na evolução para os es-critos silábicos, ela coloca duas hipóteses pos-síveis, como referimos anteriormente. Mais con-cretamente ela afirma «... que de acordo com aprimeira hipótese, é o desenvolvimento no níveloral que conduziria a criança a uma silabaçãoprogressiva, que encontraria, em dado momento,um ponto de aplicação na escrita, conforme asegunda hipótese, seriam duas vias independen-tes sobre a sílaba que depois se combinariam,mas aparição da silabação seria uma respostaacarretados pela compreensão da escrita, e nãosimplesmente uma habilidade obtida noutroscontextos» (1988, op. cit.).

Os resultados obtidos no nosso estudo não nospermitem optar definitivamente por nenhumadestas hipóteses mas permitem-nos levantar al-gumas pistas. Assim os dados que obtivemosevidenciam que as crianças ao nível do pré-teste dispunham de algumas competências deanálise silábica evidenciados pela elevada taxade sucesso que obtiveram nas provas de análisesilábica (80% para o Grupo Experimental e 84%para o Grupo de controlo), e classificação dasílaba inicial (89% para o Grupo Experimental e86% para o Grupo de controlo), o que sugere quecapacidades como a de segmentação silábica, ede categorização com base em sílabas comuns,se desenvolvem no nível oral.

Mas por outro lado, a resolução de certos pro-blemas cognitivos colocados pela escrita,nomeadamente o da relação entre a totalidade eas partes da palavra, torna as crianças capazesduma manipulação mais hábil das unidade silá-bicas. Esta hipótese é fundamentada quandoanalisamos as taxas de sucesso no pré e pós-testedo grupo experimental na tarefa de supressão dasílaba inicial (respectivamente, 28.5% e 90.7%),e as comparamos com as taxas de sucesso obti-

das pelo grupo de controle nos mesmos momen-tos (respectivamente 20% e 47%).

Este efeito da reflexão sobre a escrita na ca-pacidade de manipulação das unidades silábicasé confirmado quando olhamos para os dados deum estudo de Rosner e Simon (1971, citado porAlves Martins, 1994), o qual evidencia que natarefa de supressão da sílaba inicial a taxa de su-cesso das crianças de seis anos é de 50%.

Consideramos esta tarefa mais emblemáticaem relação aos progressos das crianças na mani-pulação das unidades silábicas, porque se tratade uma tarefa mais difícil do ponto de vista dasoperações cognitivos necessárias ao seu desem-penho bem sucedido do que, por exemplo, a tare-fa de segmentação silábica, sendo por outro ladoa prova onde a evolução dos desempenhos émais acentuada.

A transição para representações silábicas daescrita não teve, como seria de esperar, qualquerefeito no desempenho das crianças nas tarefas desegmentação fonética e supressão do fonema ini-cial. Os dados que existem sugerem que estas ta-refas apresentam taxas de sucesso muito baixasem crianças de idade pré-escolar (Liberman, etal., 1974; Fox & Routh, 1975; Yop, 1988), odesempenho adequado nestes dois tipo de tarefasparece ser uma consequência da aprendizagemda leitura (Wagner & Torgesen, 1987; Perfetti,1987; citados por Tumner et al., 1991).

No entanto, foi possível observar uma consis-tente melhoria dos desempenhos das crianças dogrupo experimental na tarefa de classificação dofonema inicial (estas crianças evoluíram de umataxa de sucesso de 40% para 58% do pré para opós-teste, enquanto as crianças do grupo de con-trolo apresentaram uma taxa de sucesso de 37%nos dois momentos avaliativos).

Este tipo de tarefas que requerem a categori-zação de palavras com base num fonema inicialcomum, não exigem que a criança seja capaz deproceder a uma representação isolada das váriasunidades fonéticas constituintes das palavras,nem qualquer manipulação cognitiva das mes-mas, sendo por isso mais simples que as ante-riormente referidas. A maior facilidade desta ta-refa em particular decorre ainda do facto dofonema inicial das palavras coincidir com o ata-que da primeira sílaba, e existem evidenciasempíricas que sugerem que em tarefas de com-paração, as crianças obtêm melhores resultados

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na detecção de fonemas comuns quando estescorrespondem ao ataque da palavra (Treiman &Zukowsky 1991).

Os dados obtidos por nós, sugerem que areflexão sobre a linguagem oral implicita a cons-trução da hipótese silábica terá tido consequên-cias na capacidade das crianças para isolar fone-mas desde que estes formem o ataque da palavra,ou seja, terá tido algum efeito na sensibilidadeinfantil a divisão ataque/rima de uma sílaba co-mo meio de avaliar que, por exemplo, a palavramala e mota partilham um som inicial comum.

3.2. Experiência II

3.2.1 A Amostra

Mais uma vez trabalhamos com 20 criançasde 5/6 anos que frequentavam os mesmos jardinsde infância da população utilizada na experiênciaanterior, do mesmo nível sócio-cultural.

3.2.2. Objectivos e hipóteses

Um outro contributo para o esclarecimento daproblemática enunciada por Ferreiro passa poravaliar que impacto terá um treino fonológicocentrado nas unidades silábicas nas represen-tações infantis sobre a escrita, em crianças cujosescritos não são determinados por critérios lin-guísticos. Esta questão é o objecto de estudo des-ta segunda experiência que apresentamos. Estaexperiência tem no essencial os seguintes objecti-vos:

a) Avaliar se um treino fonológico centradonas unidades silábica comporta progressosna representações infantis sobre a escrita.

b) Avaliar que consequências tem um treinofonológico centrados nas unidades silábicasnas competências fonológicas infantis.

Estes objectivos foram operacionalizados nasseguintes hipóteses:

a) Os progressos fonológicos na manipulaçãode unidades silábicas permite às criançascujos escritos não são determinados porcritérios linguísticos evoluir para um nívelconceptual silábico.

b) Um treino fonológico centrado nas unida-

des silábicas, permite às crianças melhoraro seu desempenho em tarefas que implicama consciência da sílaba, mas não em tarefasque implicam a consciência de fonemas.

3.2.3. Procedimento

FASE I – PRÉ-TESTE

Nesta fase utilizamos os mesmos instrumentosreferidos para a experiência anterior. Assim co-meçamos por efectuar a prova de ditado demodo a seleccionar crianças que estavam aindanuma fase de escritas pré-silábicas. Seguida-mente essas crianças foram avaliadas com amesma bateria de provas fonológicas anterior-mente utilizada, foram avaliadas em relação aonúmero de letras conhecidas, e foi-lhes passadoas Matrizes Progressivas Coloridas de Raven.

FASE II – SITUAÇÃO EXPERIMENTAL

Nesta fase as crianças foram igualmente di-vididas pelo grupo experimental e grupo de con-trolo (com dez crianças cada), tendo mais umavez a preocupação dos grupos serem homogé-neos ao nível das competências fonológicas, nú-mero de letras conhecidas e nível intelectual.

As crianças do grupo experimental foramsubmetidas a um programa de treino com 8 ses-sões, que tinha como objectivo promover as ca-pacidades de análise e manipulação de unidadessilábicas.

Este treino incluía tarefas de análise silábicaem relação a palavras que variavam entre umasílaba a quatro sílabas. Neste tipo de tarefa ascrianças deveriam contar os «bocadinhos» daspalavras colocando um «pino» por cada sílaba.Sempre que a crianças não era bem sucedida era-lhe fornecido feed-back com modelação.

Outro tipo de tarefas trabalhadas eram tarefasde categorização de palavras em função da sílabainicial comum. Neste caso as crianças deveriamseleccionar entre uma série de quatro palavrasapresentadas com suporte figurativo, duas quepartilhavam a mesma sílaba inicial. Se as crian-ças não tinham sucesso eram induzidas a pro-nunciar devagarinho a primeira sílaba de cada

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palavra para descobrirem as palavras que tinhamas sílabas em comum.

Por último, as crianças foram igualmente tra-balhadas em relação a tarefas de supressão dasílaba inicial. Neste caso era apresentada àscrianças num cartão uma palavra onde retirada aprimeira sílaba dava origem a uma outra palavra(limão – li=mão). A tarefa da crianças consistiaem descobrir entre três palavras (apresentadasigualmente com um suporte figurativo), aquelaque resultava da supressão da sílaba inicial daprimeira palavra. No caso das crianças nãoserem capazes, o experimentar dizia a primeirasílaba da palavra, devendo a criança dizer oresto e deste modo descobrir a palavra corres-pondente. Esta tarefa foi posteriormente traba-lhada, sem qualquer suporte visual, devendo acriança apenas descobrir a palavra que ficavadepois de retirada a sílaba inicial.

As crianças do grupo de controlo ao longo deoito sessões, brincavam com o experimentador,usando os mesmos cartões em jogos de agrupa-mento segundo critérios conceptuais.

FASE III – PÓS-TESTE

Passado duas semanas as crianças foram denovo avaliadas em relação às suas conceptualiza-ções sobre a escrita e em relação às suas compe-tências fonológicas através dos mesmos instru-mentos que tinham sido utilizados no pré-teste.

3.2.4. Análise dos resultados

Progressos ao nível das competências fo-nológicas

Este programa de treino teve efeitos significa-tivos no nível global das pontuações obtidaspelos sujeitos do grupo experimental no pós--teste. Assim, através da comparação das médiasdo somatório das pontuações obtida na bateria deprova entre o pré e o pós-teste verificamos quese registou um aumento de 30.7 para 66.5 nogrupo experimental enquanto no grupo de con-trolo esse aumento foi de 28.5 para 44.4.

A aplicação do modelo de linear de Ward eJennings (1983), confirma a significância destadiferença (f=8.3703, para o nível de significânciade 0.01), a favor dos sujeitos do grupo experi-mental.

Mais uma vez aplicamos igualmente estemodelo na análise estatística na avaliação dasperformances dos sujeitos do grupo experimentale de controlo, no pré e pós-teste em relação aosvários tipos de tarefas fonológicas, de maneira aavaliar a especificidade do efeito do treino.

Em relação às tarefas silábicas encontramosuma diferença significativa nos valores da mu-dança nas tarefas de supressão da sílaba inicial(f=11.132, no nível de significância de 0.03), ena tarefa de classificação da sílaba inicial(f=10.14 no nível de significância de 0.05), afavor dos sujeitos do grupo experimental. Esteefeito é facilmente confirmado quando olhamospara os valores médios obtidos no pré e pós-testepelo grupo experimental e de controlo nestasprovas. Assim na prova de classificação dasílaba inicial pudemos observar uma evoluçãodas pontuações médias de 7.5 para 13.5 no grupoexperimental, enquanto para o grupo de controlose registou um aumento de 8.5 para 11.1. Na pro-va de supressão da sílaba inicial registamos nogrupo experimental um aumento das pontuaçõesmédias de 1.7 para 10.8 entre o pré e o pós-teste,enquanto para o grupo de controle o acréscimofoi de 2.7 para 6.6.

Na prova de análise silábica não se encontra-ram diferenças significativas no padrão evolu-tivo entre os dois grupos, o que poderá ser expli-cado por um efeito de «tecto» na medida queambos os grupos obtiveram pontuações elevadasquer no pré, quer no pós-teste.

No que respeita às provas fonémicas obser-vámos diferenças significativas nos padrões demudança do grupo experimental e de controloem todas as provas. Assim em relação a prova desupressão do fonema inicial essa diferença éconfirmada por um valor de f=8.501, no nível designificância de 0.01. A da média das pontua-ções aumentou de 3.1 para 15.2 no grupo expe-rimental entre o pré e o pós-teste e apenas de 0.7para 5.1 no grupo de controlo. Também na provade classificação do fonema inicial se registouuma diferença significativa (f=6.9112), a favordo grupo experimental, no mesmo nível de signi-ficância. Neste caso a média das pontuaçõesaumentou de 6.0 para 10.5 entre o pré e o pós-teste para o grupo experimental, e de 4.9 para7.3, no grupo de controlo. Igualmente na provade análise segmental se verificou uma evoluçãosignificativa a favor das crianças do grupo expe-

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rimental (f=8.720, no nível de significância de0.01). Esta diferença não corresponde, no en-tanto, a uma evolução significativa na evoluçãodos desempenhos na medida em que as médiasno pós-teste no grupo experimental continuam aser muito baixas (do pré para o pós-teste o Gru-po Experimental registou uma evolução de 1.3para 2.9 numa prova cujo valor máximo seria14). Os dados acima apresentados são explicá-veis pelo facto de ter havido uma diminuição nodesempenho dos sujeitos do grupo de controlodo pré para o pós-teste (no pré-teste o Grupo decontrolo obteve uma pontuação média de 2.6 eno pós-teste de 1.8).

Evolução Conceptual dos sujeitosEste treino fonológico centrado nas unidades

silábicas teve repercussões significativas nasrepresentações infantis sobre a escrita. Todas ascrianças do grupo experimental apresentavam nopós-teste escritos silábicos, procedendo sistema-ticamente a tentativas de correspondência entre ooral e o escrito. Este facto é fundamentado nãoapenas através das suas produções gráficas (ondepor sistema aparecia uma letra para uma sílaba),mas igualmente pelo comportamento das crian-ças enquanto escreviam. Quase todas as criançasantes de escreverem as palavras, pronunciavam-nas, antecipando ao mesmo tempo que contavamos «bocadinhos» das palavras, o número de le-tras a escrever, e procediam a uma leitura silábi-ca dos seus escritos.

Em relação às crianças do grupo de controlo,a maior partes das suas produções continuavamcentradas no critério de quantidade mínima deletras e variação intrafigural, não se registandouma correspondência sistemática entre o oral e oescrito. Essa correspondência apenas apareciaesporadicamente ao nível da leitura, quando emalguns dos escritos, o número de grafemas utili-zados enquadrava no número de sílabas dapalavras. No entanto, é de assinalar que um dossujeitos do grupo de controlo passou a efectuarsistematicamente escritos silábicos.

3.2.5. Discussão dos resultados

Em primeiro lugar, e em relação ao efeito deum treino fonológico centrado nas unidades silá-bicas, é de salientar que este treino melhorou osdesempenhos das crianças nas tarefas silábicas

mas igualmente em algumas das tarefas emenvolviam unidades fonéticas, pondo em causauma das nossas hipóteses iniciais.

Assim e como seria de esperar as crianças dogrupo experimental, tiveram taxas de sucessomuito elevadas em todas as tarefas silábicas nopós-teste (96% na tarefa de classificação da síla-ba Inicial; 97% na análise silábica e 77% na su-pressão da sílaba inicial, enquanto no pré-teste astaxas de sucesso eram respectivamente 53.5%,79% e 12%). O efeito deste treino nos resultadosdos subtestes silábicos é particularmente eviden-te na tarefa de supressão inicial uma vez o pa-drão evolutivo é mais saliente e que os desem-penhos de partida eram mais baixos. Este efeitoé igualmente realçado pelo facto de as criançasdo grupo de controlo apresentarem taxas de su-cesso que se podem considerar elevadas nas tare-fas de classificação da sílaba inicial e análise si-lábica (respectivamente 79% e 89% no pós-testepartindo de taxas de sucesso de 63.5 e de 62.5),mas não tanto na tarefa de supressão do sílabainicial (47% partindo de uma taxa de sucesso de20%). Como já foi referido estas taxas de suces-so correspondem a padrões evolutivos estatisti-camente significativos a favor do grupo experi-mental em relação às tarefas de classificação dasílaba inicial e supressão da sílaba inicial.

Curiosamente, no final do treino, as criançasdo grupo experimental apresentavam taxas desucesso razoáveis em dois dos subtestes fonémi-cos (75% na classificação do fonema inicial e63% na supressão do fonema inicial), sobretudose atendermos às taxas de sucesso iniciais(respectivamente de 42.8% e 12.1%), e se ascompararmos com as taxas de sucesso do grupode controlo (respectivamente de 42% e 21%,partindo de uma base de sucesso de 35% e 9%).

Estes resultados tem igualmente que serequacionados em função do nível de dificuldadeda tarefa. Assim a tarefa de classificação dofonema inicial é uma tarefa que requer que acriança seja capaz de segmentar o fonema inicialdas palavras e avaliar aquelas que o primeirofonema é idêntico, mas é uma tarefa que não exi-ge uma representação isolada das várias unida-des fonéticas constituintes das palavras. Treiman(1992), concebe este tipo de tarefas como umaforma de avaliar a capacidade das crianças deanalisar as sílabas no seu ataque e rima, enqua-drando esta capacidade como uma forma inter-

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média de consciência fonológica entre capaci-dade de segmentação silábica e fonética. Por ou-tro lado, Sawyer (1991) considera que as capa-cidades de segmentação fonética são precedidaspor fases intermédias onde as crianças começampor ser capaz de isolar os fonemas iniciais oufinais das palavras.

Em relação a tarefa de supressão do fonemainicial, esta é concebida como uma tarefa parti-cularmente difícil do ponto de vista cognitivo,porque exige uma grande sobrecarga de memó-ria. Um trabalho de Rosner e Simon (1971, ci-tado por Gombert), evidencia que o grau de difi-culdade da tarefa varia em função da posição dofonema a subtrair (a supressão do fonema inicialteria um nível de dificuldade intermédio, maisdifícil que a supressão dum fonema final, masmais fácil do que a subtracção de um fonemaintermédio), apresentado para as crianças dasidades da nossa amostra uma taxa de sucesso de7% em relação a supressão do fonema inicial.Treiman (1992) refere, no entanto, que a perfor-mance neste tipo de tarefa poderá ser facilitadaatravés da divisão ataque/rima, apresentandodados que sugerem que as crianças de idade pré-escolar poderão aprender a suprimir o fonemainicial desde que este coincida com o ataque dapalavra.

Resumindo os dados, que apresentamos suge-rem que um programa de treino centrado nasunidades silábicas parece favorecer o desem-penho em algumas tarefas de natureza fonética,cujo acesso pode ser obtido através da consciên-cia de unidades intra-silábicas.

Do ponto de vista teórico estes resultadosparecem confirmar a perspectiva de Treiman,que defende que a capacidade de segmentar aspalavras em fonemas é antecedida pela capaci-dade de analisar as sílabas em ataque e rima, evi-denciando que um programa de treino silábicodesenvolve a sensibilidade infantil em relação àsunidades intra-silábicas.

Este programa não teve, no entanto, grandesconsequências ao nível da consciência fonética,(no sentido de se ser capaz de segmentar e repre-sentar isoladamente as unidades fonéticas deuma palavra), na medida que os resultados daprova de análise segmental, continuaram a sermuito baixos no pós-teste.

Outro aspecto a salientar neste estudo, é oefeito que este treino parece ter tido nas repre-

sentações infantis sobre a escrita. De facto, osresultados apontam que a crescente capacidadeinfantil para manipular deliberadamente as uni-dades silábicas, enquanto consequência do trei-no, foi aplicada pelas crianças no modo comopassaram a conceber a linguagem escrita, indu-zindo-as a construção da hipótese silábica.

No contexto destes dados parece-nos impor-tante reflectir sobre quais os aspectos do treinoterão sido mais pertinentes para este progressoconceptual. De algum modo parece-nos plausívelafirmar que o aumento do controle conscientesobre as unidades silábicas, terá sobretudo de-corrido do treino relativo a tarefa da supressãoda sílaba inicial. Esta tarefa obriga a que numprimeiro tempo a uma analise da palavra apre-sentada de modo a extrair a sílaba e num se-gundo tempo, um trabalho de síntese para re-constituir as sílabas restantes. Gombert (1990),considera aliás, que o subteste mais fiável paradeterminar a capacidade infantil de manipulaçãometafonológica da unidade silábica é exacta-mente a tarefa da supressão da sílaba inicial. Acapacidade para manipular deliberadamente asunidades silábicas como uma consequênciasobretudo no treino desta tarefa, parece ser umaconclusão aceitável se pensarmos, por outrolado, que as taxas de sucesso nas outras tarefassilábicas já eram relativamente elevadas no pré-teste (por ex., na tarefa de análise silábica apre-sentava índices de sucesso de 79.2 no Grupo Ex-perimental e 62% no Grupo de Controlo).

Parece-nos que esta capacidade crescente demanobrar cognitivamente as unidades silábicas,e não apenas a sensibilidades aos componentessilábicos das palavras, é a dimensão fonológicapertinente para que a criança comece a estabe-lecer relações sistemáticas entre a linguagemoral e escrita. Este ponto de vista parece de al-gum modo confirmado quando verificamos queo treino conceptual da experiência anterior, teveum efeito dramático nos resultados obtidos nestatarefa elas crianças do grupo experimental ao ní-vel do pós-teste.

4. CONCLUSÕES

A conjugação dos resultados das duas expe-riências aqui descritas sugerem que as duas hipó-teses colocadas por Ferreiro (1988), a propósito

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do sentido das interacções dos conhecimentosgerais linguisticos e a compreensão da lingua-gem escrita, na transição para a construção da hi-pótese silábica, são igualmente viáveis.

Os dados apresentados confirmam que a tran-sição de uma representação pré-silábica da escri-ta para uma representação silábica comportaefeitos significativos na capacidade de manipu-lação metafonológica das unidades silábicas.Mas por outro lado, um treino silábico centradosobre o oral e onde a partir desse treino, a crian-ça passa a ser capaz não apenas de decompor aspalavras nas suas sílabas mas de manipularcognitivamente essas unidades, tem efeitos namaneira como a criança passa a conceber o sis-tema de representação escrita. Estes resultadoscomportam então a ideia que os processo detomada de consciência em relação a linguagemneste caso especificamente em relação às unida-des silábicas, podem ser potenciados por duasvias paralelas uma baseada na reflexão sobre asproduções escritas, outra baseada na reflexão so-bre o oral que se assistem mutuamente.

Esta conclusão é, no entanto, ainda abusivaem relação ao sentido da interacção entre aconsciência fonémica e a evolução para hipóte-ses conceptuais alfabético-silábica ou alfabética,daí a pertinência da aplicação deste paradigmade investigação em relação aos níveis evolutivosseguintes.

Mais ainda parece-nos que a realização destetipo de investigação, poderá contribuir para oesclarecimento da polémica «consciência fonoló-gica causa ou consequência da aprendizagem daleitura». Ou pelo menos para reequacionar o mo-do como esta polémica é colocada. Provavel-mente mais importante do que tentar responder aesta questão genérica, é passarmos efectuar in-vestigações mais finas, que atendam às diferen-tes formas de consciência fonológica, e as con-sigam relacionar com as várias fases de apropria-ção da linguagem escrita ou com as várias fasese formas de leitura.

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RESUMO

Este artigo procura analisar a relação entre o desen-volvimento das competências fonológicas e a evoluçãodas conceptualizações infantis sobre a escrita emcrianças pré-silábicas, através de dois estudos em-píricos. No primeiro procurou-se proceder a um treinono sentido de induzir uma restruturação das repre-sentações das crianças sobre a escrita. O treino reve-lou-se eficaz no sentido de fazer evoluir as criançaspara um nível conceptual silábico. Por outro ladoverificou-se nas crianças submetidas a este programa

uma evolução das suas competências de análise dooral sobretudo ao nível da manipulação de unidadessilábicas. No segundo estudo procedeu-se a um pro-grama de treino fonológico com incidência nas unida-des silábicas. Este treino permitiu uma evolução signi-ficativa das crianças ao nível das suas competênciasfonológicas, e teve igualmente reflexos nas representa-ções infantis sobre a escrita na medida que as pro-duções das crianças passaram a ser reguladas pelahipótese silábica.

Palavras-chave: Consciência fonológica, Concep-tualizações infantis sobre a escrita, Aprendizagem daleitura.

ABSTRACT

This article tries to analyse the relationship betweenthe development of phonological competence and theevolution of children´s conceptions about written lan-guage, in pré-syllabic children through two empiricalstudies. In the first one we used a training programmewith the purpose of producing changes in the waychildren represent written language. The trainningwas efficient since all the children progressed to alevel that represents written language related to thesyllabic hypothesis. Also the children that were sub-mitted to this programme made progress in their pho-nological skills, most of all in their abilities to mani-pulate syllabic units. The second research is centeredin a phonological training programme focused in thesyllabic units. Through this training programme thechildren made significant progress in their phonologi-cal skills, but this programme had also implications inthe way children represent written language, sincetheir written productions became regulated by thesyllabic hypothesis.

Key words: Phonological Awareness, Conceptionsabout written language, Reading acquisition.

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