confissÕes de inverno · 2017-01-09 · em casa mais de cento e cinquenta convidados e ignorar...

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CONFISSÕES DE INVERNO

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CONFISSÕES DE INVERNO

BRENDAN KIELY

CONFISSÕES DE INVERNO

Tradução deANA LOURENÇO

Para Jessie,que perguntou:

«E se...?»

A questão não é no que devo acreditar,mas o que devo fazer?

— SØREN KIERKEGAARD

CAPÍTULO UM

Para lhes contar o que de facto aconteceu, o que não sabem e oque os jornalistas não disseram, tenho de começar pela festa de Na-tal da minha mãe. Duas noites antes, como se o universo fosse umdos coprodutores do seu grande espetáculo, um nevão cobriu o nossorecanto do Connecticut. A minha mãe ficou extasiada. Velas elétri-cas nas janelas, grinaldas nas portas, montinhos de neve fotogénicosjunto às paredes da casa, tudo estava «simplesmente maravilhoso»,como diriam as amigas dela. O espírito natalício invadiria todos, oupelo menos assim iria parecer. Era a minha mãe e com ela se impu-nha a sobrevivência do mais animado, pelo que estávamos todosprontos para emborcar a sua panaceia festiva. Esperávamos receberem casa mais de cento e cinquenta convidados e ignorar que, embo-ra os convites tivessem sido enviados no fim de outubro, com osnomes dos meus pais impressos em relevo, o Velho Donovan se en-contrava na Europa, onde passara a maior parte do ano e onde pla-neava ficar de vez.

Nunca me tinham deixado entrar no escritório do Velho Do-novan, mas, precisamente porque ele já não estava em casa, eu apo-derara-me há pouco do espaço e passava o tempo a ver os seus li-vros e as recordações de todos os recantos do mundo, na esperançade preencher o vazio que se abria dentro de mim. Se não tivesse deir à festa, teria passado a noite inteira no escritório a ler Frankensteinpara a aula do senhor Weinstein, mas havia a festa e a minha mãe es-tava lá em cima a arranjar-se, portanto disse a mim mesmo: «Que selixe.» Se queria sobreviver, precisava de um empurrãozinho.

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Tranquei a porta do escritório e sentei-me na cadeira giratóriaatrás da secretária. Só as grinaldas de luzes brancas nos arbustos dojardim iluminavam a assoalhada. Fiquei algum tempo sentado na pe-numbra, a ouvir os passos apressados das pessoas do catering. Depois,acendi o pequeno candeeiro de leitura, apenas para poder ver o queia fazer. Havia semanas que ninguém passava as folhas do calendá-rio, e eu também não o fiz, mas arrastei-o pelo tampo da secretária evirei-o ao contrário. A superfície metálica do porta-calendários bri-lhou à luz do candeeiro. Tirei dois comprimidos de Adderall do fras-co e pu-los em cima do calendário. Com uma das canetas pesadas doVelho Donovan reduzi os comprimidos a pó, dividi-o em monti-nhos, desmontei a caneta e snifei uma linha com o tubo vazio.

Um amontoado de pensamentos e lembranças explodiu-me nacabeça e imaginei que o Velho Donovan se materializava ali no escu-ro como uma aparição: a pálida cabeça calva, os olhos fixos fiscaliza-dores. Ele inclinou-se na minha direção e resmungou um dos seusdiscursos: «Filho, podes escolher quem queres ser. Aquele que cons-trói a realidade para os outros ou o que deixa que os outros a cons-truam.» O Velho Donovan era um desses homens que aparece nosjornais, um daqueles que se reúnem em Davos, Pequim ou Bom-baim e que mudam a economia mundial com um aperto de mão.«Pensa globalmente e atua localmente», teria gostado de lhe dizer,mas ele nunca estava em casa para se ocupar da parte local. Alémdisso, quando lhe tinha eu dito alguma coisa? Quando me tinha per-guntado ele alguma coisa?

Snifei outra linha. O fantasma do Velho Donovan deixou-secair numa poltrona e uma recordação materializou-se no escritório.Ele estava a ler um exemplar do Barron’s. Deixara as meias dentrodos sapatos ao seu lado no chão, e tinha os pés descalços apoiadosnuma otomana, como passas brancas, murchas e translúcidas, a se-carem diante da lareira. Transpirava e coçava a coroa de cabelo raloacima das orelhas. Ao seu lado, sobre a mesa, vários jornais dobra-dos empilhavam-se atrás de um cinzeiro cheio de beatas que se er-guiam como lápides. Sobre um dos braços da poltrona repousava

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um copo. Embora estivesse quase cheio, o Velho Donovan encos-tou o narigão à borda e esvaziou-o. Como sempre, o último gole fi-cou-lhe preso na garganta e ele pigarreou para limpá-la. «Filho, terássorte se chegares a ser uma maldita nota de rodapé na História.A maioria das pessoas leva uma vida sem importância e sem sentido.Estou a tentar ajudar-te.»

Concentrei-me até não ter mais do que uma voz na cabeça. Su-ponho que era a minha; pelo menos pareceu-me familiar.

— Estou no escritório — disse finalmente para o vazio à mi-nha volta. — Estou aqui.

Mas éramos só eu e o silêncio e, naquele nada, senti medo. As pes-soas aterravam-me e até de mim tinha medo. Os meus temores opri-miam-me e envolviam-me como algo próximo e a respirar. Sem as mi-nhas pequenas ajudas químicas não sei como conseguiria manter-mecentrado e superar esses medos. Snifei o que restava dos comprimidos,limpei a secretária e saí do escritório, sentindo-me finalmente prontopara enfrentar a noite.

Havia grinaldas de folhas frescas entrelaçadas nos balaústres dagrande escadaria principal, desde o vestíbulo até ao primeiro andar.Em todas as assoalhadas, o pessoal do serviço de catering ocupava-seafanosamente dos últimos pormenores. Dois empregados de smokingrevolviam a neve falsa em volta da base da árvore de Natal, na salade estar. Na biblioteca, um barman dispunha filas de copos sobre umbar improvisado, montado em frente à porta da cozinha. A empresanunca mandava duas vezes as mesmas pessoas para os eventos daminha mãe, mas todos sabiam tratar da produção. Durante toda afesta, o grupo silencioso aparecia sempre que era necessário, paravoltar em seguida a desaparecer no cenário. Quando os convidadoschegassem, eu receberia o meu sinal para entrar em cena, mas, porenquanto, ninguém pareceu dar por mim.

Na cozinha, encontrei Elena a falar com vários empregados.Olhava com crispação para o caos que tinham causado mas, quandome viu, veio ao meu encontro. Tinha a mesma camisa branca queusava sempre nas festas da minha mãe e apanhara o cabelo. Quandome inclinei para abraçá-la, pensei que ia achatar-lhe os delicados fo-lhos que caíam em cascata sobre a faixa de botões.

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— Vais divertir-te esta noite? — perguntou em espanhol.— Não.Elena endireitou-me o colarinho.— Tens de cuidar melhor de ti.— Mas tu estás aqui.— Ah, m’ijo, por favor! — resmungou ela.Elena nunca me tratava assim diante dos meus pais, claro, e

também não falávamos espanhol na presença deles. Eu praticava oidioma com ela quando ficávamos sozinhos em casa e, ao fim detanto tempo, já era quase fluente.

Elena beijou as pontas dos dedos e encostou-as ao meu rosto.As suas bochechas faziam-na semicerrar os olhos quando sorria.

— Por favor, não faças disparates.— Olha para mim — pedi, indicando o casaco e a gravata que

a minha mãe quisera que eu usasse. — Estou pronto para represen-tar o meu papel.

Agarrei-lhe na mão enquanto ela vigiava os funcionários da em-presa de catering, que manuseavam o forno duplo na parede.

— Não podemos esconder-nos no teu apartamento? — per-guntei. — Ela nem irá reparar que saímos. Vê quanta gente contra-tou! Não vai precisar de nós.

Elena fitou-me.— Estás bem? Que se passa com os teus olhos?— Nada.De certeza que os meus olhos estavam vermelhos, mas ela limi-

tou-se a abanar a cabeça, como sempre, e não fez mais perguntas.Abraçou-me, recuou um passo e pôs-me as mãos no rosto.

— Por favor. Ajuda também. Pela tua mãe. Faz isso por ela.Deu-me um beijo na bochecha e abraçou-me de novo, emba-

lando-me como fazia tantas vezes.Eu teria prolongado o abraço se um empregado não tivesse

tombado uma tigela da bancada. Caiu no chão com estrondo e os es-tilhaços espalharam-se pela cozinha. Elena virou-se depressa:

— Ay, Dios mío! — exclamou, lançando um olhar furioso aohomem. — Nunca têm cuidado — resmungou, indo à despensabuscar uma vassoura.

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Sentindo o peso do dever, fui procurar a minha mãe. Ouvi avoz dela na sala de estar.

— Não há fumé blanc? — perguntava ela.Quando a ouvia assim agitada, não conseguia evitar a associa-

ção com o trinado dos golfinhos.— Não há fumé blanc? — repetiu.Falava com um fantasma que só ela via. O decote do seu vesti-

do de noite vermelho-escuro deixava-lhe as costas quase nuas.— Chardonnay e fumé blanc. «Y» fumé blanc, disse eu à Elena. Y, Y,

Y. Isto não é um jantar de beneficência, é uma festa de Natal. Poderescolher faz parte da elegância.

A minha mãe encontrava sempre uma ponta solta capaz de re-duzir um tapete valioso a um andrajo. Havia mais vinho do quequalquer pessoa conseguiria beber e, se a festa fosse como as ante-riores, até os empregados acabariam a beber das garrafas abertas eao fim da noite voltariam a cambalear para as suas carrinhas.

— A Elena encomendou — disse eu. — Acabei de ver o bar-man a pôr algumas garrafas a arrefecer.

— Que estás a fazer aí escondido atrás dos móveis? — pergun-tou a minha mãe. — Pensei que esta noite ias ajudar-me.

— Quem está a esconder-se? Estou aqui. Só acho que não pre-cisas de culpá-la sempre de tudo.

— Claro, o advogado da Santa Elena.A minha mãe inspirou pausadamente pelo nariz, contando; a

«respiração da tartaruga», como lhe chamava quando fazia os seusexercícios de ioga, tai chi, pilates, alongamento espiritual ou o que es-tivesse na moda nesse momento.

— Muito bem — disse por fim, num tom mais animado. —Vamos pôr um sorriso nesse rosto. É dia de festa. Vais conhecergente nova.

— Estou a sorrir.— Descontrai-te — disse, apoiando a mão na anca. — Tenta

parecer-te um pouco com o teu pai, não tão mal-humorado. Aquisomos todos amigos, Aidan.

Não me lembrava do Velho Donovan a sorrir como um políti-co em campanha ao cumprimentar os convidados no ano anterior.

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— Não sou o meu pai — ripostei.— Não, não és — disse ela em voz baixa. — Mas podes fingir

que és — acrescentou. Olhou pela janela para o jardim e suspirou.— Por favor.

Eu queria muito fazê-lo, por ela.As chamas das velas tremeluziam no parapeito das janelas e nas

mesinhas de canto. A lenha crepitava e faiscava na lareira. As pare-des e os móveis refletiam o brilho alaranjado do fogo. Quando a mi-nha mãe se virou para mim novamente, fiz o que esperava que eufizesse.

— Feliz Natal.— Vês? Assim é melhor. É isso que todos querem ver.— Então vamos divertir-nos!Ela esboçou um sorriso triunfante.Quando a campainha tocou, a minha mãe alisou o vestido na cin-

tura e pestanejou repetidamente. Estava na hora. Um dos empregadoscontratados endireitou o laço e abriu a porta. Eu tinha as mãos nosbolsos das calças e ocorreu-me que seria melhor tirá-las de lá. Mas eraapenas Cindy, uma das melhores amigas da minha mãe, que a recebeuno vestíbulo como se tivesse voltado aos palcos e não tivessem passadovinte anos. As duas dirigiram-se de imediato para a zona do bar. Já comas bebidas, Cindy ergueu o copo.

— À Gwen e a mais uma das suas incríveis festas de Natal!O Jack e aquela vadia belga podem ir para o inferno!

Embora tenham ambas crescido em Nova Iorque, a minha mãee Cindy só se conheceram depois de já terem sido entronizadas pelasmais elevadas cortes da boa sociedade do Connecticut. Cindy eraainda mais baixa do que a minha mãe, mas tinha um sorriso enormeque lhe ocupava toda a cara. De vez em quando, eu via a família delana Igreja do Preciosíssimo Sangue de Cristo. O filho de Cindy,James, andava dois anos atrás de mim na Country Day Academy.A única maneira de me recordar das amizades da minha mãe era re-lacioná-las com os seus vários círculos sociais. Quando esses círculosse sobrepunham o suficiente, eu também conseguia memorizar osseus rostos e os necessários dados biográficos. Era como as estatísti-cas nas costas de um cromo de basebol, mas, em vez de médias de

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lançamentos e afins, as categorias eram Fortuna Pessoal, InteressesFilantrópicos ou Número de Presenças nas Festas dos Donovan —e, no caso de Cindy, eram «todas».

Pouco depois a campainha tocou outra vez. Abri a porta, disseolá e cumprimentei rapidamente convidado após convidado. Pesta-nejava o máximo que podia, para não sentir os olhos como doisovos a estrelar na cara. Os convidados devolviam a saudação com osseus sorrisos de néon e continuavam a andar.

— Olá — dizia eu a cada recém-chegado. — Olá.Acompanhava os convidados, sorria toscamente e, aos poucos,

fui-me desligando e caí uma vez mais num grande vazio, onde mesurpreendi a pensar na edição de bolso de Frankenstein que me espe-rava no andar de cima, no braço da poltrona, e no monstro que des-pertava sobre a mesa com os seus olhos ictéricos.

A festa encheu-se rapidamente e deslocar-me de um lado parao outro implicava esbarrar nas pessoas ao passar por elas. Os convi-dados bebiam de um trago os seus copos para não os entornar. Vol-tavam-se para mim e perguntavam-me pela escola, com as suas vo-zes «ma-ra-vi-lho-sas».

— Boas notas a tudo — respondia-lhes eu aos gritos. — ParaYale. Sim, sem dúvida, para Yale.

Para desempenhar bem o meu papel, quase imitei um daquelesestranhos sotaques que alguns americanos adotam quando queremparecer vagamente britânicos, embora na realidade sejam do UpperEast Side. Em vez disso, limitei-me a deslizar de aposento em apo-sento, encontrando a estratégia perfeita para desaparecer entre asgargalhadas transpiradas e agressivas dos nossos convidados.

Enquanto passava por um grupo de gente reunida junto ao pia-no, com a ideia de proceder à retirada para o escritório, Mike Ko-wolski, um antigo colega do Velho Donovan, viu-me e levantou umamão para me saudar. Depois começou a avançar pelo vestíbulo, ba-lançando o peso da barriga sobre as pernas. Atrás dele vinha Mark, ofilho. Se Mark não tivesse o maxilar forte e quadrado do pai, seria di-fícil acreditar que os dois eram parentes. Ele costumava passear-sepela Country Day Academy com uma segurança fria distante que eu

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sempre julgara ser tédio. Encontrámo-nos ao fundo da escada e Mikedeu-me uma palmada forte no ombro.

— Olha só para ti, a trabalhar na festa como um autêntico ad-vogado. Meu Deus, Aidan, há quanto tempo! Estás da minha altura!E desde quando o teu pai te deixa andar por aí com esse cabelo? Umhomem nunca deve esconder os olhos. — Brandiu um dedo dianteda minha cara. — Esta noite vais apresentar o Mark a algumas pes-soas, não vais? Não podemos deixar que agarres todas as oportuni-dades de estágio antes aqui do teu amigo.

— Como vai isso, Donovan? — perguntou Mark.Éramos os dois alunos do segundo ano na Country Day Aca-

demy, mas da última vez que Mark me cumprimentara fora na provaobrigatória de natação, no início do ano. Considerar-nos amigos pa-recia uma piada. Ele já era capitão adjunto da equipa e tinha de cum-primentar-nos a todos, um por um, antes que nos metêssemos naágua para demonstrar que éramos capazes de nadar até à outra pontada piscina e voltar sem nos afogarmos. Eu pensava nele como o Ho-mem Bronzeado, porque a sua pele conservava durante todo o anoum tom naturalmente ambarino. Possuía cabelo muito encaracoladoque parecia nunca cortar. Tínhamos andado juntos na catequese,mas nos últimos anos do secundário só falávamos quando as nossasfamílias se encontravam para jantar. E o último desses jantares foravários anos antes, quando o meu pai ainda não saíra da firma para seestabelecer por conta própria.

— O Mark tem mesmo de falar com alguns desses tipos —disse Mike. — Não há volta a dar. Isto não é uma festa, antes umafeira de empregos, certo? — acrescentou, olhando para o filho.

— Eu sei, pai.— Tudo está na forma de encarar as coisas, rapazes. Tornem

isto uma oportunidade — disse Mike, espetando o indicador no meupeito.

Mark olhava alternadamente para mim e para o pai.— Bom, então talvez o Aidan deva fazer-me circular.Mike segurou o filho pelo braço.— Carpe diem — disse Mark. — Já percebi. Mas posso só con-

versar com o Aidan por enquanto, certo?

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— Vou dar uma volta com ele — anunciei, querendo parecer omais desenvolto possível.

Mark tentou soltar-se do pai, mas Mike não o largou. Inclinou--se na nossa direção.

— Têm de estar centrados, rapazes. Isto não é um jogo. Cen-trados, sempre centrados. Quando veem uma coisa que querem, de-vem ir atrás dela e agarrá-la, bolas! — Olhou-nos com um sorriso epuxou-me para si, de modo que ficámos os três muito juntos. O seuhálito cheirava levemente a camarão. — De acordo?

— De acordo — respondi.Mark lançou-me um sorriso de agradecimento e o pai empur-

rou-o na direção dos homens reunidos perto da lareira da sala. Em-bora os homens se tivessem afastado para eles caberem, Mark olhoupara mim através do espaço entre as várias cabeças. Os seus olhos,de um azul-claro surpreendente, aterraram sobre mim e já não sedesviaram. «Tira-me daqui», parecia dizer. Eu não estava habituadoa que me pedissem ajuda. Mas, ao fim de pouco tempo, Mark estava ainterpretar o papel que costumava caber-me nas festas da minhamãe — apresentar o currículo —, pelo que parti do princípio de queestava para lá de toda a salvação.

«Vai tirar essa máscara», tive vontade de dizer a Mike. Tambémera o que eu queria dizer a muitos dos meus colegas da Country DayAcademy. Tirem essas máscaras de plástico que entram como esca-vadoras nos salões com os seus malditos sorrisos.

De vez em quando saía com pessoal da minha idade; por vezes,o clube de debate ou o de xadrez organizava um jantar em casa dealguém. Ou então também podia haver um jogo de hóquei ou de fu-tebol americano, e eu via-o sentado na bancada com os outros. Masficava sempre calado e ouvia-os conversar entre eles como se a segu-rança e a confiança lhes pertencessem por nascimento. Nunca di-ziam «não sei» ou «tenho medo» e todos agiam como se as máscarasque usavam fossem as suas caras verdadeiras, como se acreditassemque podiam confiar durante o resto das suas vidas nessa segurança eacreditassem mesmo que nunca precisariam de ninguém. Como eraaquele poema de John Donne que tínhamos lido uma vez na aula dosenhor Weinstein? «Nenhum homem é uma ilha»? No nosso caso

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não se aplicava; nós éramos um raio de um arquipélago social que sefazia chamar comunidade. Porque tinha eu a impressão de que era oúnico que vivia num pesadelo?

Mas o pior é que eu sabia que aquelas pessoas sentiam medo. Ti-nha-o visto fugazmente em todos os rostos, naquele mesmo outono,na Country Day Academy, quando numa límpida manhã de terça-feirapassámos a ter medo de aviões e da palavra jihad. Desde aquele dia, omedo transformara-se no nosso modo de vida. Crianças e adultos porigual. Ouvi uma vez os orientadores a falar do assunto:

— Não quero confessar a estes miúdos que também tenho medo!Então, porque me sentia como se fosse o único à procura de

algum tipo de estabilidade, de normalidade, de alguém capaz de con-ter a maré de imbecilidades que as pessoas largavam e dizer-me queno fim tudo correria bem?

Dei a volta pelo corredor lateral até à biblioteca, deixandoMark sozinho, e sentei-me ao pé da pequena escada junto ao bar im-provisado. «Tirem as máscaras», tive vontade de dizer aos convida-dos da minha mãe, que não eram muito melhores que os alunos daCountry Day Academy. A minha mãe decretara que a festa de Nataldaquele ano seria a maior e mais extravagante de todas. «Precisamosdisso», dissera. «Todos nós.» E os seus convidados pareciam concor-dar. Como nos filmes que eu tinha visto sobre o Dia dos Mortos noMéxico ou o Carnaval, todos os convidados tinham a cara pintada,quer com maquilhagem ou com o rubor do álcool.

Ao fim de algum tempo, a minha mãe encontrou-me. Admi-rou-me que tivesse conseguido localizar-me numa sala tão cheia degente, mas ela era uma mulher determinada. Quando passou peloshomens que faziam fila diante do bar, percebi que trazia consigoduas colegas minhas da Country Day Academy. Pelo sorriso radianteque exibia, era evidente que convidara aquelas duas em particular,embora não me tivesse contado.

Corrigi imediatamente a minha postura. Qualquer idiota que vi-vesse e respirasse conhecia Josie Fenton e Sophie Harrington. Mui-tos de nós na Country Day Academy considerávamo-las celebrida-des, como se a vida fosse glamorosa para quem andasse da forma

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certa. Durante uma breve temporada no outono anterior, Josie anda-ra com um rapaz do último ano, mas acabara tudo ao fim de ummês. Eu estava habituado a olhar para Josie e a conversar com elacom o olhar.

Ela sentava-se à minha frente na aula de Inglês Superior e euimaginava que lhe acariciava o cabelo castanho comprido. Quandoescrevia, inclinava a cabeça e todo o cabelo lhe caía para um lado,deixando a descoberto a curva suave e fresca do pescoço, que na mi-nha opinião devia ser o melhor sítio para beijar uma rapariga. JáSophie tinha uma reputação diferente, e demasiados rapazes gosta-vam de se gabar a esse respeito. Como os rapazes passavam a vida aolhar para ela, Sophie adquirira confiança suficiente para lhes fazerfrente e fitava-os com os seus olhos escuros e um sorriso desdenho-so nos lábios finos, que a fazia parecer mais velha do que nós, oupelo menos mais cínica.

Evidentemente, a minha mãe vivia no mundo das ilusões eacreditava que as raparigas falavam comigo na escola, porque eramfilhas de amigas dela. Enquanto as arrastava na minha direção tinhaestampado no rosto um daqueles sorrisos que eu não devia contrariar.

— Vê se és um bom anfitrião — disse antes de se retirar. —Também tens convidados esta noite.

Josie e Sophie ficaram ao meu lado, olhando em volta como seprocurassem alguém. Com os seus sapatos de salto e as suas saiasjustas, pareciam-se com as adultas ali presentes. Levantei-me e se-quei as palmas das mãos nas calças.

— Não sabia que vinham — observei, e percebi logo que perderao momento oportuno para dizer algo espirituoso ou encantador.

— Foi uma decisão de última hora — respondeu Sophie.O sinal isolado na sua face pálida iluminava-lhe o rosto quando

ela sorria.— Espero que a festa não tenha estragado os teus planos.— Não. Tanto faz — respondeu ela.Josie esboçou um sorriso rápido. Usava brincos de prata com

contas azuis que combinavam com os seus olhos.

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— Espero que não as tenham subornado para virem.— Vá lá — disse Josie, revirando os olhos. Parecia cansada. —

Toda a gente sabe que a tua mãe dá umas festas fantásticas. Nin-guém recusa um convite, certo? — Olhou na direção do bar. —Olha só para aquele álcool todo.

Mesmo que não estivesse a ser sincera, gostei do comentário.— Posso oferecer-lhes uma bebida? — perguntei.Ela continuava a olhar para qualquer coisa no vestíbulo e não

respondeu. Sophie olhou para ela.— Talvez duas Coca-Colas Zero?— Não, referia-me a uma bebida a sério.— O quê? — Josie virou-se rapidamente. — A sério?— É uma festa, não é?— Seria fixe — disse Sophie. — A minha mãe há de estar bê-

beda, de qualquer maneira.— A minha provavelmente encorajaria isso — observei —, em

especial se me visse com vocês as duas toda a noite. — Elas entreo-lharam-se de lábios franzidos, e apressei-me a acrescentar: — E oMark está cá.

— O Mark Kowolski? — perguntou Josie.— Vejam se conseguem livrá-lo do pai. Ele estava a obrigar o

Mark a conversar com uns tipos na sala da última vez que o vi.— Oooh, um resgate! — exclamou Sophie. — Nós tratamos

disso. Onde te encontramos com as bebidas?Expliquei-lhes como chegar ao escritório do Velho Donovan,

do outro lado do vestíbulo. Elas afastaram-se de braço dado comose fossem uma só pessoa, abrindo caminho pela multidão na biblio-teca. Moviam-se como se dançassem e, como estavam ali na minhacasa, pensei que talvez pudesse juntar-me a elas.

Convenci o barman a dar-me duas garrafas de água tónica fe-chadas e alguns copos de vinho e atravessei a festa o mais depressapossível. Quando cheguei ao escritório do Velho Donovan, estavamlá todos. Josie e Sophie caminhavam ao longo de uma das paredescobertas de livros. Não estavam de sobrolho franzido. Não pararam

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de falar quando me aproximei. Na verdade, fiquei admirado: as duaspareciam estar a divertir-se. Mark encontrava-se junto ao globo ter-restre gigante entre duas poltronas de couro.

— O teu pai gosta de ler, hein? — comentou Josie. — Tem es-te escritório e a biblioteca?

— O que é um pai? — retorqui enquanto punha as garrafas emcima da secretária. Sophie virou-se e lançou-me um olhar solidário.Josie assentiu.

— O que é? O chefe — respondeu Mark. — «Resultados!»O meu pai é assim. «Resultados, resultados, resultados!»

— Talvez um dia lhe dê uma travadinha — disse Josie. — Foio que aconteceu ao meu. Agora é um pai ayurveda-vinyasa.

— Talvez — disse Mark.— Bem, se o Velho Donovan cá estivesse, não podíamos usar

o seu escritório — continuei. — Olhem só para isto. — Abri o fe-cho do globo, levantei a metade superior da esfera e revelei o barque havia lá dentro. — Vodca tónica? — perguntei, tirando a garrafado seu lugar. — Podemos brindar aos nossos pais: aos que partirame aos que queremos que tivessem partido.

— Sim! — aplaudiu Josie.— Pessoal — interrompeu Mark —, pensem bem. Vamos ser

apanhados a beber. Vão cheirar-nos a bebida no hálito. Da última vezque fui apanhado, o meu pai quase me estrangulou. Fiquei acorrenta-do em casa um mês. Ninguém tem mais nada? — perguntou. Deu-meuma cotovelada. — Deves ter outra coisa, meu. Erva? Podíamos fu-mar um charro. Nunca sou apanhado quando fumo charros.

Sorri. Também teria muito gosto em distribuir uns comprimidos.— Mas comecemos com uma bebida — propus. — Não vão

apanhar-nos. Eu nunca sou apanhado.Sentaram-se ao lado do globo e eu comecei a preparar as bebi-

das. Era bom ter alguma coisa para fazer, algo que me mantivesseem movimento, porque o meu coração galopava como se tivessesnifado outro risco. Não sabia o que dizer a Josie, a Sophie ou aMark. Conversar exigia espontaneidade, e a espontaneidade punha-me

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nervoso. Não queria dizer nenhuma estupidez, ou algo de que mearrependesse depois.

— Bebam um gole — disse, entregando-lhes os copos.— Belvedere, não é? — perguntou Josie, depois de provar. —

Suave.— Pensei que só gostasses da Ketel One. — Sophie riu-se e be-

beu um gole. — Lembras-te daquela vodca em casa do Dustin? MeuDeus, estávamos tão mal!

Ergui o meu copo pela base, e não pelo pé, como tinha vistoalguns adultos fazerem na festa.

— Saúde, acho!Brindámos e rimos do resto dos convidados, que já começa-

vam a ficar bêbedos. Tentei não sorrir em demasia, mas não conse-gui evitar. Não gostava de sorrir. Gostava do meu rosto quando ou-via música ou fumava um cigarro — observara-me no espelho afazer as duas coisas e podia conviver com aquilo —, mas, quandosorria, parecia alguém muito perturbado.

Surpreendi-me de cada vez que os fiz rir e esperei não ficar semcoisas para dizer. Já tinha bebido mais da metade da minha vodcaquando percebi que os copos deles ainda estavam quase cheios. Es-pecialmente o do Mark, que fora pousado na secretária do VelhoDonovan. Houve uma pausa na conversa. Sophie olhou para os pés.Josie levantou-se e foi até à janela que dava para o jardim e para acerca ao longo da propriedade dos Fielding.

— Que estamos a fazer nesta festa de velhos? — perguntouMark. Sophie revirou os olhos, concordando. — Quero dizer, nãome leves a mal, Donovan, mas esta festa seria muito mais fixe se nãoestivéssemos a três metros dos nossos pais.

— Não me importo — retorqui. — Eis como aguento estasfestas. — Tirei o frasco de Adderall do bolso interior do casaco eabanei-o. — Já estou a viajar.

Sophie semicerrou os olhos.— Tomas esses comprimidos como se fossem vitaminas? —

perguntou ela.