conectados e vigiados, autoritarismo e liberdade 2014
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Conectados e vigiados, autoritarismo e liberdade 2014TRANSCRIPT
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Conectados e vigiados
Entre o autoritarismo e a liberdade na Internet
Joo Miguel Pedroso Marques
Dissertao orientada pela Professora Doutora Teresa R. Cadete
Mestrado em Cultura e Comunicao
2014
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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Conectados e vigiados
Entre o autoritarismo e a liberdade na Internet
Joo Miguel Pedroso Marques
Dissertao orientada pela Professora Doutora Teresa R. Cadete
Mestrado em Cultura e Comunicao
2014
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Resumo
Apesar do impacto econmico da crise, continuam a faltar mudanas necessrias
a um sistema social cada vez mais desigual. O sistema est baseado numa forte
componente cultural, a mesma que ajudou a formar o capitalismo moderno, e justifica a
manuteno do statu quo. No entanto, com a crise e a melhoria no acesso informao,
surgiram vrios movimentos sociais com um impacto forte no espao pblico. A partir
da Internet, que se perfila como um meio importante para o rejuvenescimento do espao
pblico, aqueles movimentos tm tentado passar a sua mensagem de mudana.
Contudo, a Internet tambm tem servido para a implementao de medidas autoritrias
que visam apenas reforar o poder dos Estados. O dilema do futuro ser o da escolha
entre a segurana e a estabilidade de um sistema desigual ou a luta pela liberdade de
renovar esse sistema para fazer face aos desafios do futuro
Abstract
Despite the impact of the economic crisis, we still lack the necessary changes to a
increasingly unequal social system. The system is based on a strong cultural
component, the same one that helped to form modern capitalism, and justifies the statu
quo. However, with the crisis and improving access to information, various social
movements emerged with a strong impact on public sphere. From the Internet, which is
outlined as an important means for the rejuvenation of the public sphere, those
movements have tried to pass his message of change. However, the Internet also has
served for the implementation of authoritarian measures that aim only to strengthen the
Nation states power. The futures dilema will be the choice between security and
stability of an unequal system or the freedom of struggle to renew this system to meet
the challenges of the future
Palavras-chave
Democracia, espao pblico, movimentos sociais, Internet, sociedade em rede
Key words
Democracy, public sphere, social movements, Internet, network society
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Agradecimentos
Desejo agradecer aos meus pais e irmo pelo apoio que me concederam a todos os
nveis. Aos amigos que ficam e que provam que o lugar do indivduo em sociedade,
partilhando experincias e memrias. Por ltimo, deseja agradecer minha orientadora,
a Professora Doutora Teresa R. Cadete, pela orientao e conselhos importantes para a
realizao do meu trabalho final.
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ndice
Introduo 7
Parte I 14
Conectados e conscientes 14
Snowden 28
Parte II 34
Os limites do ilimitvel 40
O autoritarismo: as novas tecnologias de comunicao ao servio da
fora 50
Imprevisibilidade e controlo 57
Concluso 64
Bibliografia 72
Referncias electrnicas 74
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A seguir, o rosto do Grande Irmo tornou a desvanecer-se,
e em vez dele surgiram, em grossas maisculas,
as trs palavras de ordem do partido:
GUERRA PAZ
LIBERDADE ESCRAVIDO
IGNORNCIA FORA
In 1984, de George Orwell (2007:21); Antgona, editores refractrios, Lisboa
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Introduo
Crise provavelmente um dos vocbulos mais utilizados na poltica, economia e
comunicao social nos ltimos anos. Crise econmica, crise poltica, crise de valores.
A sociedade ocidental parece no desistir do dramatismo hollywoodesco que caracteriza
cada acontecimento como um pressgio do fim do mundo como o conhecemos.
Crises econmicas nos pases capitalistas no so incomuns, variando apenas a
intensidade com que elas fazem sentir em relao preparao dos Estados afectados.
No entanto, a crise actual parece ser o palco necessrio para a exposio de pontos de
vista acerca da sociedade que permaneciam mais ou menos escondidos por entre a
aparente abundncia e riqueza do Ocidente. A repetio de colapsos econmicos 1929
e 2008 exige uma anlise profunda que v para alm da economia e dos seus
fundamentos. As crticas comuns ao capitalismo individualismo, ganncia e falta de
tica surgem do sentimento de insatisfao para com o sistema social, com base nas
constataes de que o mundo ocidental, principalmente as sociedade europeias e
americana, cada vez mais desigual, com a riqueza a fluir constantemente para o topo
(o que representa o oposto do mito do trickle down economics, precioso para o neo-
liberalismo, que supe que medidas fiscais brandas sobre os mais ricos e melhores
condies para os mesmos ajuda a criar emprego e, por essa ordem de ideias, a
generalizar a riqueza).
A realidade mostra que, tanto na Europa como nos EUA, a disparidade salarial
entre topo e fundo do mercado de trabalho aumentou para nveis incomportveis nos
ltimos trinta anos. Esse perodo fica marcado pela recuperao do neo-liberalismo e
pela profunda economizao da poltica, que se tornou, em definitivo, o palco de
tecnocratas aplaudidos pelos seus conhecimentos tcnicos, principalmente em pocas de
crise, e que substituem aqueles com mais preparao poltica.
No entanto, a crise o subproduto de uma sociedade regida, em grande parte,
pela economia, onde o indivduo est permanentemente identificado pela funo que
ocupa, pelo lugar que tem na hierarquia social e pela aparente riqueza que tem e que se
mostra no crescente consumo de bens fteis. As convulses que experienciamos agora
so mais um ponto, um que poder ser de viragem, na histria dos ltimos trs sculos
da sociedade europeia. A formao de Estados-nao permitiu a criao de sociedades
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centralizadas, onde o poder corresponde a uma autoridade central monopolizadora da
fora e na qual o indivduo pode representar um elemento passvel de homogeneizao,
cuja submisso necessria para o correcto funcionamento do Estado. Aquilo a que
Alain Touraine chama de modelo europeu de desenvolvimento o resultado da mistura
entre a ordem poltica central, o Estado, e o desenvolvimento econmico fruto da
industrializao e que colocou o foco na economia (Touraine; 2005:57), que criaram um
sistema social que se sustenta a si mesmo, fruto da crena ilimitada na capacidade
destas sociedades para se autotransformarem (Touraine; 2005:59).
Nos ltimos trinta anos foi possvel observar um fenmeno de crescente
desregulao do mercado financeiro. Leis que proibiam fuses entre os bancos de
investimento e bancos comerciais foram revogadas (principalmente nos EUA e na Gr-
Bretanha onde este processo se iniciou sob a influncia de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher respectivamente). Ao mesmo tempo foi permitida a criao de produtos
financeiros cada vez mais complexos como os Credit Default Swaps (ttulos de dvida
que garantiam o reembolso do investimento em caso de incumprimento atravs da
contratao de um seguro [CDSs]), medida que as restries alavancagem (processo
pelo qual uma instituio, pblica ou privada, aumenta a sua capacidade econmica
recorrendo ao endividamento) eram levantadas e as entidades reguladoras iam
perdendo, gradualmente, o seu poder devido fora dos lobbys do mercado financeiro.
Esses lobbys tinham origem, principalmente, na rea da banca que encarava a regulao
do mercado como uma barreira criao de lucro, numa perspectiva que se insere na
doutrina liberal de que a interveno estatal tem efeitos nefastos no mercado, pois
compromete o princpio da livre concorrncia, sendo que o mercado deve ser capaz de
se regular a si mesmo. Aquelas medidas eram justificadas pela ideia de que o mercado
se tornava mais seguro e isento de risco mas, de facto, o que aconteceu foi o
aparecimento de instituies com um peso na economia to elevado (bancos como
o Lehman Brothers, o Barclays, o Citigroup ou o Socit Gnrale e seguradoras
como a AIG) que a sua queda teria de ser evitada a todo o custo sob pena de todo o
sistema financeiro colapsar, dado que, ao contrrio do parece ser aceite por muitos na
sociedades europeias e americana, no so os bancos centrais que produzem dinheiro
mas sim os bancos privados, a partir literalmente do nada, cada vez que fornecem um
crdito. O excesso de crdito, ou de dinheiro criado artificialmente pelos bancos, uma
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das principais causas da crise pois todo o sistema econmico mundial est hoje baseado
em dvida.
Sem regulao estatal, o mercado financeiro auto - regulou-se. O objectivo de
uma empresa sempre o lucro e nesse sentido o sucesso das instituies financeiras
desde o incio do processo de desregulao impressionante, com um aumento drstico
nos lucros. Contudo, esse sucesso foi alcanado custa da transformao de um
mercado de risco controlado (os bancos de investimentos eram, geralmente, pequenas
empresas com um grupo de investidores limitado que usavam o seu prprio dinheiro e
por isso tendiam a ser bastantes cautelosos com os riscos que assumiam) num mercado
onde o risco passado de mos em mos at que o sistema colapse.
At ao momento a opo, dentro da Unio Europeia (UE), para resolver a crise
tem recado nas polticas de austeridade. A lgica por detrs desta escolha traduz-se na
argumentao segundo a qual os Estados viveram acima das suas possibilidades e agora
tm de contrair os seus gastos, o que demonstra no s desconhecimento da mecnica
do sistema econmico baseado em dvida e para o qual o consumo essencial, como
uma instrumentalizao tica crise. O facto da dvida privada tambm ser elevada pode
levar concluso de que os prprios indivduos e empresas privadas gastaram acima de
nveis que pudessem suportar1. O consumo foi o motor do crescimento de pases como a
Alemanha, que chegou at a ser apelidado de milagroso. A mesma Alemanha que agora
encabea o discurso da conteno e aponta o dedo aos pases do Sul pelo seu
comportamento nos ltimos anos.
A austeridade parece tambm funcionar como poltica punitiva do mau
comportamento oramental dos Estados. A ideia de viver acima das possibilidades ,
assim, criticada pelos pases do Norte da Europa cuja poltica fiscal e oramental tem
sido muito mais equilibrada. O discurso oficial dentro da UE o de que os pases do Sul
tm dificuldades em superar uma certa preguia (que remete para a falta de
produtividade) e corrupo natural que impede o seu desenvolvimento e coloca em
perigo toda a Europa. uma situao em que a tomada de decises influenciada pelos
preconceitos, algo que deveria ser sempre mantido fora da esfera da poltica.
1 Os valores da dvida privada consolidada portuguesa (aquela cujo prazo de pagamento superior a um
ano) em relao percentagem do PIB foram de 202.8 milhes de euros em 2007 e 216.2 m. de euros em
2008. Em Espanha estes valores atingiram os 200.4 m. de euros em 2007 e 206.5 em 2008, enquanto na
Grcia registaram-se valores de 107.2 m. de euros em 2007 e 119.0 m. de euros em 2008. Fonte: Eurostat
(2012)
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Os preconceitos que abundam no discurso poltico e econmico (por exemplo o
discurso que acusa os europeus do sul, principalmente portugueses e gregos, de
preguiosos e maus trabalhadores), alm de deterministas, partem de princpios que do
forma ao actual sistema social de organizao capitalista. A arquitectura hierrquica,
com desigual distribuio de poder e riqueza, s faz sentido porque existe todo um
corpo de pressupostos culturais em torno do Trabalho, que esto na origem do
capitalismo moderno, que justifica a actual sociedade como a mais correcta e benfica,
imputando o insucesso ao comportamento individual. contra aqueles pressupostos
culturais que do forma a uma sociedade regida pela economia, na qual agentes
polticos e econmicos misturam-se para se beneficiar mutuamente, que muitos
movimentos sociais que surgiram na ltima dcada na Europa e EUA se insurgem.
Os interesses daqueles que compram influncia so recompensados
custa das Pessoas, de quem o deriva o poder do governo. Ns acreditamos
que esta falha no nosso sistema est no centro de muitos problemas
interconectados que, como sociedade, enfrentamos actualmente, e a sua
resoluo a chave para um futuro justo. por isso que exigimos a criao
de uma verdadeira Democracia, desligada da influncia corrosiva do poder
econmico e apelidamos a todos os que partilham deste objectivo comum a
tomarem uma posio connosco e actuar com vista a este fim (Johnson;
2011)
A transcrio exposta parte da declarao do movimento Ocuppy Albany e
ilustra o ponto volta do qual giram os protestos que tm tomado lugar na Europa e
EUA. O que move os protestantes a ideia de que os governos se tornaram
representantes dos mercados financeiros e do poder econmico, ao invs de
representarem os eleitores. E esse sentimento comum a todos os movimentos de
protesto, quer estes se limitem a denunciar as polticas da austeridade, quer se renam
em torno da ideia de que so necessrias mudanas estruturais profundas nos sistemas
democrticos e capitalistas, com o propsito de os tornar mais justos e igualitrios.
Porque que se salvam empresas que abalaram a economia em vez de se procurar
responsabiliz-las por isso? E, principalmente na Europa, porque se escolhe a
austeridade que afecta mais os indivduos do que essas mesmas empresas que parecem
passar inclumes pela crise? So perguntas legtimas, principalmente se atendermos ao
facto de que as causas da crise no foram combatidas. Antes, elas foram at empoladas.
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O problema das dvidas tem sido resolvido com o recurso a mais dvida2 e as
instituies que eram consideradas demasiado grande para cair, ou falir, cresceram na
sua dimenso atravs da fuses e aquisies3. Enquanto isso, as taxas de desemprego
tm subido na Europa (principalmente em Espanha, Portugal e Grcia) e com isso
aumenta o descontentamento, na opinio pblica, perante os governos.
Ao nvel europeu, apesar do exerccio democrtico que se exerce nas ruas
atravs dos protestos, as decises continuam a ser tomadas apenas tendo em conta a
reaco das instituies financeiras, no que aparenta ser uma ditadura informal que
compromete o poder poltico, no sentido em que este devia representar a vontade dos
eleitores. A poltica tem por objectivo configurar um horizonte comum de sentido no
qual se articulem as expectativas individuais com o progresso colectivo (Innerarity;
2011:151). Mas so essas expectativas individuais que aparentam ser defraudadas para
garantir o funcionamento do mercado financeiro. Mesmo que esse mercado seja
publicitado como o grande motor do progresso nos ltimos trinta anos, o seu custo,
para os indivduos (nomeadamente na classe mdia e classe baixa), que os movimentos
de protesto apontam (principalmente o aumento das desigualdades que se traduzem
numa crescente discrepncia entre salrios mais altos e salrios mais baixos assim como
o aumento dos ndices de pobreza)4.
O problema principal da influncia dos mercados sobre os governos (o que pode
significar que a economia se tem vindo a superiorizar poltica, ou seja, que esta ltima
tem perdido poder de controlo sobre a primeira) est no facto desses mesmos mercados
no poderem ser escrutinados, ao contrrio dos governos. Um governo pode demitir-se,
caso as condies de governao no permitam a sua actuao, ou pode no ser
reconduzido, se perder as eleies. Mas isso no possvel com as instituies
2 Os bancos centrais emprestam dinheiro, e no o cedem, aos Estados nem a instituies privadas, pelo
que a dvida tende sempre a crescer, alm de que o mtodo de funcionamento dos resgastes consiste em
emprstimos.
3 Por exemplo, o Merryl Linch acabou por ser adquirido pelo Bank of America e em Espanha o Bankia
foi criado para resgatar sete bancos espanhis em dificuldades (Caja Madrid, Bancaja, La Caja de
Canarias, Caja de vila, Caixa Laietana, Caja Segovia e Caja Rioja). J este ano, o governo espanhol foi
forado a solicitar um resgate para o Bankia.
4 So paradigmticos os casos do pagamento de elevados bnus, por exemplo no Barclays, quando a crise
j ajudava a expor o comportamento errtico dos bancos.
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financeiras e grandes empresas, assim como no possvel evitar que alguns indivduos
alternem cargos entre instituies privadas e pblicas. E para aqueles que se envolvem
nos movimentos de protesto, uma das ideias principais a de que a sua voz no conta
para a deciso poltica, que influenciada pela aco dos grupos econmicos, que
parecem demonstrar averso participao pblica na poltica.
A Internet o meio impulsionador dos movimentos sociais que surgiram,
principalmente, aps o incio da crise na Europa e EUA. um meio democrtico e
mutvel, no qual os indivduos encontram a oportunidade de participar no espao
pblico, independentemente da sua condio social. Ao contrrio de outros meios de
comunicao, a Internet no se limita a ser parte do espao pblico, sendo mais uma
arena do mesmo porque permite ao indivduo actuar, ao invs de ser um espectador
passivo da aco. A Internet elimina as barreiras do tempo e da falta de conhecimento,
permitindo ao indivduo conectar-se e formar comunidades poderosas, atravs das quais
pode participar na modelao do futuro. No entanto, tambm um espao inseguro, um
meio que pode ser usado para reprimir autoritariamente os indivduos.
O impacto da Internet no aparecimento dos movimentos sociais e na sua
propagao poder se tornar o foco principal da anlise das tendncias do espao
pblico para o futuro. Se verdade que a Internet pode ser um meio que alarga o espao
pblico generalidade dos indivduos, tambm acarretar os seus perigos. Alm disso,
apesar ser um espao sem limites, ele prprio coloca entraves aco dos movimentos.
O protesto online no chega, por si s, para provocar as mudanas necessrias no
sistema vigente. Qual o impacto da Internet, e as consequncias da manipulao que
dela se faz, para a segurana e liberdade individual o ponto principal que ser debatido
nas prximas pginas. Face s oportunidades que a Internet fornece, tanto para a
formao de um espao pblico livre como para a implementao de medidas
autoritrias, estaremos numa era de liberdade de informao, ou caminhamos para um
futuro de represso e autoritarismo?
O trabalho aqui apresentado focar-se- na Europa e EUA, principalmente nos
acontecimentos da ltima dcada, entre a Crise e a descoberta dos projectos de
vigilncia em massa, expostos por Edward Snowden. Na primeira parte a Internet ser
analisada como um foco essencial para alteraes, actuais e futuras, no espao pblico,
com mais relevncia para a organizao de redes de poder e a oposio organizao
social de base capitalista. Posteriormente o foco recair no caso Snowden, ainda que o
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impacto das suas revelaes, das actividades de aparente cariz autoritrio de alguns
Estados e dos limites da Internet participao no espao pblico fiquem reservados
para a segunda parte.
Neste trabalho o indivduo ser encarado como um elemento singular e capaz de
produzir uma perspectiva sobre a sua realidade, ligado em rede a outros iguais, que do
forma e se movem no espao pblico em paralelo com outros grupos tanto polticos
como econmicos. O impacto da tecnologia nas relaes entre actores no espao
pblico ligados em rede constituindo uma sociedade conectadaser o ponto essencial
de pesquisa. Como afirma Manuel Castells:
a estrutura social de uma sociedade em rede resulta da interaco entre o
paradigma da nova tecnologia e a organizao social num plano geral.
Frequentemente, a sociedade emergente tem sido caracterizada como sociedade
de informao ou sociedade do conhecimento. Eu no concordo com esta
terminologia. No porque conhecimento e informao no sejam centrais na
nossa sociedade. Mas porque eles sempre o foram, em todas as sociedades
historicamente conhecidas. O que novo o facto de serem de base
microelectrnica, atravs de redes tecnolgicas que fornecem novas capacidades
a uma velha forma de organizao social: as redes (Castells; 2005:17).
O conceito de sociedade em rede como forma de organizao essencial e pode
ser definido recorrendo novamente a Castells:
[A] sociedade em rede, em termos simples, uma estrutura social baseada em
redes operadas por tecnologias de comunicao e informao fundamentadas na
microelectrnica e em redes digitais de computadores que geram, processam e
distribuem informao a partir de conhecimento acumulado nos ns dessas redes
[] um sistema de ns interligados E os ns so, em linguagem formal, os
pontos onde a curva se intersecta a si prpria (Castells; 2005:20).
Dentro da rede, o indivduo um n, um ndulo, um ponto de informao e interaco
cuja caracterstica inata de actor social em permanente processo de mudana a base da
estrutura social.
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Parte I
Conectados e conscientes
As luzes piscam numa ritmo ora mais acelerado ora mais lento, aparentemente
sem um padro discernvel. O modem e o router, os cabos, as ondas invisveis que
conectam placas, objectos electrnicos, portas, tudo este aparato mecnico cria uma
ponte entre indivduos, uma componente fsica necessria para um espao cuja forma,
etrea ou no, varia consoante quem e como usufrui dele.
O indivduo pode conectar-se ao mundo em seu redor atravs da construo de
uma rede de contactos cujos pontos de interseco aumentam com cada interaco com
o Outro. No mbito da rede, os indivduos ndulos de informao e de vivncia, de
experincia, representando uma perspectiva da realidade que ganha sentido no espao
pblico. Todo o contacto entre indivduos representa uma conexo que se forma ou se
renova, aprofundando a rede atravs da qual a informao e o conhecimento circulam
no espao pblico.
A rede tanto maior quanto mais contactos existem. De cada ndulo partem
vrias linhas de contacto que se interligam e formam uma comunidade, uma constelao
que tender a aumentar em proporo diminuio das barreiras e entraves
comunicao. A primeira das barreiras a incompatibilidade de cdigos culturais que
distorce a conversao, impedindo a transmisso e a recepo da mensagem. A segunda
barreira a da relao fsica com o meio, dado que a comunicao simplificada pela
ocupao fsica do mesmo espao pelos intervenientes. As duas barreiras, em conjunto,
impedem a criao de redes alargadas, de comunidades de grande dimenso que
ocupam largas extenses de territrio. Enquanto a semelhana ou equivalncia de
cdigos culturais essencial para a comunicao e qualquer divergncia pode ser
ultrapassada com aprendizagem, as limitaes impostas pelas barreiras fsicas podem
forar o contacto repetitivo e limitado entre indivduos que no alargam a sua
comunidade. O nmero de ndulos e ligaes pode no crescer, porque no so
introduzidos novos indivduos na rede, e a informao que circula no espao pblico
pode ficar limitada porque existem menos oportunidades de a renovar com novos
elementos.
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Os meios de comunicao, com nfase no avano mais recente que a Internet,
podem quebrar as barreiras da comunicao e alargar o tamanho da rede, porque tm
um maior raio de aco. Permitem o contacto entre indivduos que partilham dos
mesmos elementos identitrios, ou a disseminao dos cdigos culturais at que se
alcancem condies minimamente satisfatrias para a comunicao, sem que seja
necessrio ocupar o mesmo espao fsico. A disseminao da informao tende a
intensificar-se, porque existem mais canais de transmisso, e o debate alargado aos
que estavam excludos do mesmo. A informao em circulao tende a aumentar,
estando sujeita a mais interpretaes, notando-se tambm o intensificar do aparecimento
de ndulos e crescimentos das redes comunitrias porque a rede de contactos dos
indivduos tambm pode crescer.
Os meios de comunicao fazem parte do espao pblico, pela sua funo
veiculadora de informao e promotora do debate. A Internet, no entanto, mais do que
um elemento da esfera pblica. Ao contrrio do que acontece com outros meios de
comunicao, o indivduo participa activamente na Internet, ultrapassando muitas vezes
o papel de espectador e tornando-se parte da aco, ao mesmo tempo que est sujeito ao
escrutnio e observao, caractersticas fulcrais do espao pblico (Arendt; 2001:64).
As condies de acesso Internet no so diferentes de qualquer outro tipo ou espao
de acesso esfera pblica, dependendo sempre da interaco fsica com um indivduo
ou com um mediador, neste caso uma mquina. Mais do que a tecnologia que permite a
sua existncia, a Internet a reunio dos utilizadores (das suas vrias identidades) e da
informao nela contida, fluxos que existem sobre um estrutura programada
mimetizando a sua contra-parte fsica, pelo que nesse sentido se torna um mundo a
explorar (Johnson; 2001:32). A mquina existe como uma extenso do corpo humano,
uma prtese (idem), mas torna-se tambm um ponto de acesso a um espao cuja
capacidade para influenciar a realidade permanece ainda, em grande medida, por
explorar.
O que o novo mundo da Internet tem de admirvel a possibilidade que oferece
aos indivduos de ignorarem as formas organizacionais tradicionais, ou seja, at ao
momento actual capitalismo, socialismo ou qualquer outro ismo pouco ou nada
afectam o processo de organizao das relaes online. Obviamente, a utilizao os
padres de organizao, a forma de usufruto influenciada pelo contexto
organizacional no qual o indivduo se insere mas a Internet, por ser ainda uma
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novidade, mesmo que em parte, e por ser voltil - porque est menos dependente da
organizao fsica e estrutural que d corpo memria colectiva - encontra-se ainda
relativamente imune s influncias da organizao, num contexto mais prximo do
europeu e norte-americano, capitalista. A influncia capitalista mais notria num site
especfico do que no conjunto total que compe a Internet, da mesma forma que se
encontra mais variedade gentica entre indivduos do que na espcie humana como um
todo.
A Internet um meio atravs do qual o indivduo pode participar activamente
junto da comunidade, tanto local como globalmente, principalmente na ltima dcada,
em que assistimos ao aparecimento de redes sociais de grande implementao junto do
pblico. Apesar de a Internet como meio para o pblico j ter algumas dcadas, a
grande potencializao das suas vantagens (aquelas experienciadas at agora) tem
ocorrido nos ltimos anos, mas de forma muito rpida e incisiva. A melhoria dos meios
tcnicos e a crescente especializao das empresas no mercado online tem ajudado
sedimentao da Internet como o grande meio de comunicao, ao mesmo tempo que
no mundo poltico tambm se comeam a descobrir as vantagens desse meio para a
propaganda. Se Kennedy impressionou com a sua imagem na televiso, tambm Obama
marca uma gerao de governantes que do primazia, ou mais importncia, Internet
como meio de comunicao pela sua abrangncia e rapidez na transmisso da
informao.
As relaes sociais podem sofrer mudanas importantes no mbito da Internet.
A componente fsica das relaes tende a perder relevncia, dado que o indivduo s
precisa de contactar com o seu ponto de acesso, com a mquina que faz a ponte entre ele
e a sua nova gora. A hierarquia das relaes (na maioria dos pases europeus e EUA),
estabelecida geralmente atravs da insero na estrutura de organizao social
capitalista e que faz da sociedade a forma na qual a dependncia mtua em prol da
subsistncia, e de nada mais, adquire importncia pblica, e na qual as actividades que
dizem respeito mera sobrevivncia so admitidas na praa pblica (Arendt, 2001:61),
parcialmente anulada porque as relaes na Internet dependem menos da funo do
indivduo. Cada utilizador pode escolher as pginas a que acede e essas escolhas so
influenciadas pelos seus gostos e relaes fora da Internet reflectindo, em geral, os seus
padres de consumo, contudo, estando online, o indivduo pode estabelecer contactos
que ultrapassam as suas relaes sociais habituais, visitando os mesmo espaos que
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outros indivduos, independentemente da sua origem. Na Internet o indivduo tende a
encontrar menos limitaes s suas escolhas e uma estrutura normativa mais fraca, pelo
que pode recriar toda uma nova rede de relaes independente da organizao social a
que est, em grande medida, sujeito no mundo fsico. Ainda que a Internet seja, em
grande medida, o reflexo da estrutura do mundo fsico, sendo construda a partir dessa,
as diferenas, principalmente ao nvel do tempo e do espao, podem alterar parte da
mecnica das relaes sociais.
O tempo e o espao so factores sujeitos a regras diferentes no mundo online.,
tornando-se mutveis e vagos, sem fronteiras ou limites para alm da arquitectura fsica
que permite o acesso Internet. Quando acede Internet, o indivduo est mais
prximo da dimenso quntica do que da realidade fsica em que habita. O tempo o
espao existem atravs de interconexes que se misturam para formar uma realidade
que est isolada, porque a prpria natureza da utilizao concedeu Internet vida
prpria, e ao mesmo tempo conectada com o mundo exterior, dado que o que se passa
para l da Internet serve de base para o que nela transmitido, ou seja, todo aquele
mundo novo , acima de tudo, uma lente magnificadora s vezes, outra perturbadora, da
realidade. As interconexes so os fluxos de informao que no funcionam de forma
linear, antes existindo como uma teia, uma rede nodular na qual passado, presente e
futuro se mesclam para formar um ambiente totalmente renovvel e mutvel. A
ausncia de linearidade, porque as conexes de informao desencadeiam fenmenos
que carecem de pontos bvios de causa e efeito, faz da Internet um ambiente de caos,
que obriga o indivduo a lidar de forma diferente com as suas relaes sociais.
O espao pblico na Internet muito menos estruturado do que o da sua
contraparte fsica. As regras que se aplicam no mundo exterior tm menos validade na
Internet, ou pelo menos podem no mesmo efeito. A Internet , agora, o nico reduto de
espao pblico no qual as relaes no se definem tanto pelo trabalho. O indivduo
estabelece ligaes baseadas nas suas redes de contacto mas tem tambm a
possibilidade de as ultrapassar, conectando-se com desconhecidos e indivduos de
outros meios completamente diferentes, que no entrariam, de outra forma, no domnio
das suas relaes sociais. O sentimento de pertena e identificao individual
exponenciado pela possibilidade que o indivduo tem de contactar com aqueles que
noutra situao permaneceriam desconhecidos, ao mesmo tempo que pode escolher
manter o anonimato que no capaz de preservar no mundo exterior.
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A partir da Internet, o indivduo obtm dois elementos essenciais participao
no espao pblico e na democracia: informao e tempo. Atravs da Internet possvel
encontrar todo o tipo de dados que permitem ao indivduo entrar em contacto com o
mundo sua volta, assim como perceber o necessrio sobre os processos governativos e
decisrios. Atravs da Internet, um indivduo pode munir-se da mesma informao que
agentes polticos e econmicos possuem para tomar as suas decises. Tal facto permite
ao indivduo perspectivar as consequncias das medidas tomadas pelos governantes,
dotando-o de uma maior capacidade de perceber a relao entre a aco do passado, do
presente e do futuro. O indivduo tem sua disposio outras vias de informao para
alm do discurso poltico para perceber como ser afectado pelas escolhas de quem
governa, o que lhe pode conferir mais poder para intervir, assumindo conscientemente o
seu papel de actor social, na definio do futuro da comunidade.
O reverso desta situao o excesso de informao. No domnio da Internet a
falta de controlo sobre os fluxos de informao tambm pode ser prejudicial. No mbito
da Internet o indivduo est menos sujeito a direces editoriais, escolhendo os canais
de acesso e a que informao acede, contudo essa situao pode gerar um menor
controlo da quantidade e qualidade dessa mesma informao. O indivduo confrontado
com a superabundncia de fluxos e conexes, ao mesmo tempo que est exposto a
informao de fontes duvidosas e tem de aprender a escolher e a interpretar mais rpido
e com mais critrio o que v. A Internet um domnio de confronto de ideias,
caracterstica essencial do espao pblico, mas tambm de trivialidade e impreciso ao
qual o indivduo tem de se adaptar. O desafio que se coloca perante o indivduo j no
o do acesso informao, mas sim o da seleco correcta das fontes. A liberdade da
planificao de acesso e manipulao da informao benfica, sem dvida, mas
exigido ao indivduo que lute diariamente por ela, dado que tem de se debater com o
excesso e pouca fiabilidade resultantes da menor exigncia normativa da aco dos
canais de acesso.
Alm da informao, o indivduo ganha tempo. A Internet dispensa grande parte
do ritualismo fsico de participao no espao pblico. Qualquer local, desde que com
viabilidade de meios, permite aceder Internet, o que liberta o indivduo da presena
fsica nos fruns de discusso. Ao invs de ter de esperar pelo fim do seu horrio de
trabalho para participar politicamente no espao pblico, o indivduo pode faz-lo
enquanto desempenha as suas funes, ainda que com algumas (maiores ou menores)
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limitaes. O trabalho deixa de ser um factor impeditivo, pelo consumo de tempo e
disponibilidade fsica que impe ao indivduo, de participao activa no debate pblico.
possvel que, a seu tempo, a natureza das relaes sociais no mbito da estrutura
capitalista venham a ser alteradas, emulando a estrutura anrquica (com mais igualdade
e redistribuio do poder) da Internet. No entanto, o poder influenciador da Internet
ainda est longe de provocar tais alteraes, at porque continua a ser, em grande
medida, uma extenso do mundo fsico e no seu paralelo.
Alm da constante participao no espao pblico, a Internet permite tambm a
compresso do tempo e do espao no sentido em que a partir de um nico ponto o
indivduo pode entrar em contacto com grupos de origens e locais diferentes. Os tempos
de aco desses grupos fundem-se e as barreiras fsicas desaparecem, sendo que as
limitaes horrias deixam de existir. O indivduo acede informao em tempo real,
ou to perto dessa medida quanto possvel e sem dvida mais perto do que nunca, no
estando dependente da velocidade de transmisso dos meios tradicionais, e f-lo atravs
de vrios canais, o que lhe permite cruzar informao e colmatar lacunas. A medio do
lapso entre acontecimento e disperso da informao infinitesimal. O indivduo tem a
escolha de participar da aco ao mesmo tempo que est a ser testemunha de outra,
sendo assim o participante e o espectador. Durante as revolues da primavera rabe era
comum ver indivduos na rua no s a protestar como a assistir, ainda antes de ter
acesso aos canais informativos tradicionais, a protestos noutras cidades ou mesmo
pases, transmitidos em directo atravs de telemveis ou outro equipamento que
acediam s redes sociais. O tempo da aco e o tempo da contemplao mesclam-se ao
ponto de se equipararem, como nunca havia acontecido antes.
Informao e tempo fazem da Internet o meio mais eficaz de transmisso da
informao que a humanidade j utilizou, e por isso mesmo, o mais difcil de controlar,
estando rapidamente a tornar-se o alvo prioritrio de agentes polticos e econmicos,
principalmente em situaes de crise. Se alguns pases, como a China, mantm uma
censura permanente sobre a Internet, numa tentativa de controlar o fluxo de informao
e dissidncia, outros fazem-no de forma espordica e conjuntural. Foi o caso da
Primavera rabe em que Estados como o Egipto ou Lbia tentaram bloquear o acesso s
redes sociais e rede mvel, para evitar a propagao nacional e internacional da
informao sobre os protestos. O fluxo incontrolvel e permite a organizao de
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manifestantes, assim como a divulgao dos acontecimentos, quase imediata, o que
dificulta a aco de preveno, e em muitos casos represso, das foras estatais.
As caractersticas da Internet tendem a ser emuladas pelos movimentos sociais
que nela se formam. A volatilidade, destruturao e ausncia de liderana fixa
caracterizam muitos dos movimentos sociais que surgiram no decorrer destes ltimos
cinco anos (principalmente nos EUA e UE), transpondo para o mundo fsico os aspectos
que fazem da Internet um meio imprevisvel e de difcil controlo e restrio. Da mesma
forma que a Internet mutvel porque depende mais da aco individual um
indivduo capaz de quebrar ou levantar barreiras e de modificar o contedo para
melhor servir as suas necessidades, tendo sempre meios de fuga ao controlo tambm
estes novos movimentos vo mudando conforme so confrontados com a transposio
do mundo online para o mundo fsico, que os obriga a uma determinada cristalizao
dos seus objectivos. No entanto, no perdem a dinmica que os caracteriza.
O elemento mais marcante dos movimentos sociais que surgiram na Europa e
EUA a sua dinmica e a das causas em torno das quais se formam. Estes movimentos
so extremamente mutveis e difceis de fixar no tempo e no espao. A vaga de
movimentos a que assistimos, principalmente desde o incio da crise, no se foca num
assunto ou tema mas em vrios. O que defendem menos identificvel no sentido em
que pode ser interpretado e aproveitado de vrias formas, tm uma agenda voltil,
porque os seus objectivos tambm o so. mais complicado definir o que trata o pedido
por mais democracia ou igualdade do que, por exemplo, proteco do ambiente. Da
mesma forma que as suas exigncias so dinmicas, porque esto sujeitas a foras
acima de tudo polticas e econmicas - que influenciam o seu sentido (e no tanto o seu
propsito) tambm estes movimentos o so. Surgidos da Internet, parecem querer que o
resto do mundo se conforme estrutura desse mesmo espao, emulando-a, algo que
parece ainda impossvel dada a natureza completamente diversa dos mundos fsico e
online.
Exigir mais democracia ou mais igualdade e liberdade vago e passvel de
induzir em erro quem est a observar esses movimentos a partir de fora, alm de os
deixar vulnerveis a ataques dos seus opositores. Por outro lado, aparentam ser menos
susceptveis a instrumentalizaes de grupos partidrios, provavelmente porque os
partidos so encarados como parte do problema, parte de um statu quo inadequado para
a pretenso desses movimentos o que no vlido para todos os casos . A prpria
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estrutura partidria rgida, muitas vezes constituindo um aparelho dentro do qual
contam mais as influncias e acordos do que o mrito, no se coaduna com as
pretenses da maioria dos movimentos
O que significa mais democracia, igualdade e liberdade? A dificuldade em
definir tais ideias vem da opacidade provocada pela utilizao exaustiva desses
conceitos, quase ao ponto de se tornarem um chavo. Quando utilizados como conceitos
de luta, podem tornar-se palavras desprovidas de sentido porque esto saturadas dele,
isto , so to vagos que qualquer perspectiva cabe neles. O seu uso como pilar de
protesto pertinente mas apenas quando ilustram uma perspectiva definida, em
conjunto com casos identificveis.
fcil definir conceitos como democracia, igualdade ou liberdade, o problema
est em precisar o que significa mais de todas essas ideias. No caso dos pases
europeus e dos EUA existe democracia, igualdade e liberdade, ou pelo menos assim nos
dito. Se compararmos regimes democrticos actuais, como a maioria dos europeus e o
americano, com diversos regimes polticos ditatoriais do sc. XX, difcil afirmar que
uns e outros so iguais. Existe mais democracia, igualdade e liberdade hoje do que
existiu em grande parte da Europa quase at ao fim do sculo anterior. Tambm
podemos comparar regimes ditatoriais e autoritrios e regimes democrticos actuais e
acabaremos, invariavelmente, por afirmar que vivemos em Estados nos quais a
liberdade e a igualdade existem, at porque so direitos suportados constitucionalmente.
Na Europa e nos EUA a formalidade da democracia , em princpio, respeitada.
O direito de voto universal e o seu resultado encarado quase como sagrado, porque o
voto tido como a expresso mxima do processo democrtico. So cada vez mais raros
os casos de governos democraticamente eleitos, em regimes com uma democracia
consolidada, que caem por presso de movimentos sociais ou protestos pblicos, porque
esse gnero de recursos democrticos so considerados importantes mas no tanto
nem to decisivos ou definidores quanto o voto. Os mecanismos pelos quais o
indivduo se pode fazer ouvir so vrios e pouco restringidos. So regimes
constitucionais, nos quais a lei respeitada e igual para todos, Estados nos quais um
indivduo livre para escolher o que consumir, como usar o seu tempo, livre para
exercer os seus direitos. inegvel que se trata de regimes livres e seguros, e contudo
surgem movimentos que colocam em causa a existncia prtica da democracia,
igualdade e liberdade. Informao a sua disponibilidade a chave para perceber o
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que leva formao, na ltima dcada nos EUA e UE, de movimentos socias e as
causas que defendem. O monoplio da informao desapareceu. Os indivduos j no
dependem do Estado para obter informao e formao extra, nem dos media
convencionais, que so encarados como fontes inseguras devido aos interesses privados
de quem os detm. A Internet tornou-se o veculo de informao, no s pela
quantidade como tambm pela velocidade com que aquela transmitida. Ainda que a
Internet, em muitos casos, se destaque mais pela quantidade do que pela qualidade da
informao - mais quantidade tambm pode significar mais lixo electrnico no
restam dvida que o meio de transmisso mais eficaz, porque existem, de facto, fontes
bastantes seguras que fornecem informao de qualidade e, virtualmente, sem
limitaes, sendo capaz de satisfazer as necessidades dos seus interlocutores.
O discurso da complexidade da governao, que fechava as portas ao indivduo
comum, s era credvel quando agentes polticos e econmicos detinham controlo sobre
a informao, ou seja, quando os conhecimentos necessrios para a governao eram
relativamente exclusivos. A informao fulcral para governar circulava por grupos
praticamente fechados, permitindo-lhes garantir a sua posio social. O monoplio da
informao garantia poder e cristalizava a hierarquia social, dado que quem o
controlava tinha a faculdade de escolher a quem, como e o que transmitir de entre tudo
o que sabia. Ao pblico chegava apenas a informao que bastava para os governantes
obterem o consentimento necessrio para a manuteno da sua posio, ao gnero do
relatrio de contas pblicas anual. Desde que as contas batessem certo,
independentemente dos estratagemas utilizados para tal como aconteceu na Grcia
aquando da sua adeso ao Euro -, e o nvel de vida se mantivesse estvel e permitisse
determinados comportamentos, seria possvel manter o statu quo. Indivduos menos
esclarecidos tendem a no questionar, ou a no colocar tanta presso, nos seus
representantes eleitos que, sem grande escrutnio, actuam sem restries, transformando
a representao num mandato aberto.
Esse estado de coisas parece ameaado. Surgiu um novo meio de comunicao,
mais difcil de controlar porque dinmico e mutvel, ao contrrio dos meios
tradicionais. A imprensa escrita, a rdio e a televiso, so capazes de se adaptar mais
fazem-no lentamente, alm disso, a velocidade a que a informao transmitida por
esses meios, principalmente na imprensa escrita, insatisfatria para as necessidades
actuais, necessidades criadas, em parte, e respondidas pela existncia de um meio mais
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eficaz. Velocidade e independncia so elementos fundamentais para a escolha do
veculo de informao, determinando o sucesso de um meio em detrimento de outro.
muito mais complicado para um governo de um regime democrtico controlar
o fluxo de informao. O que chega ao pblico e muitas vezes como chega est hoje
menos dependente da aco de agentes polticos e econmicos e da sua influncia sobre
os meios de comunicao. So muitos os indivduos que assumem a tarefa de procurar e
difundir informao por meios prprios a Internet perfeita para esse propsito
porque alm de permitir resultados imediatos tambm barata ao mesmo tempo que
colocam em causa o que veiculado pelos meios tradicionais de comunicao. O
escrutnio maior, a margem de manobra de governantes menor e a influncia de
grupos privados sobre as instituies pblicas torna-se, em alguns casos, mais evidente,
graas informao que circula no espao pblico.
Se o pblico dispe da mesma informao que os governantes, o papel daqueles
torna-se mais complexo. J no podem depender da manipulao da informao para
manter a sua posio e j no so os nicos a ter conhecimento dos assuntos cuja
resoluo depende da sua aco. Governos e empresas deparam-se hoje com um pblico
mais informado e, muitas vezes, mais crtico e interessado. A posse de informao e
conhecimento podem conferir ao indivduo a capacidade de participar activamente e de
forma crtica no espao pblico. O indivduo tende a tornar-se mais habilitado e
perceber as escolhas que tem pela frente, de calcular os riscos e consequncias das
mesmas e de se preparar para as eventualidades. Muitas vezes acedem e possuem as
mesmas capacidades que agentes polticos e econmicos dispem para realizar as suas
tarefas. No entanto, a mais conhecimento no corresponde um incremento na
capacidade decisria, acumulao de informao no se deu um processo subsequente
de aumento de poder, porque os mecanismos do mesmo esto fechados ao pblico.
desse pormenor que nasce a insatisfao em muitas das sociedades europeias e
americana.
O indivduo informado tender a procurar no s mais poder como tambm mais
responsabilidade, sendo que uma e outra so, muitas vezes, indissociveis. Os
indivduos so capazes de decidir o que melhor, esto menos, ou mesmo nada
dependentes da aco de representantes nos quais muitos j no se revem e a quem no
reconhecem capacidades superiores s suas para ocupar os cargos que ocupam. Com
mais noo da sua capacidade para se responsabilizar pelas suas escolhas baseadas no
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acesso informao, o indivduo apercebe-se do seu papel como actor poltico, mesmo
que no espao pblico, muitas vezes, se continue a fazer a distino entre o indivduo
comum e o poltico.
natural que surjam mais protestos e exigncias por mais responsabilidade e
para tal necessria mais democracia, igualdade e liberdade. Para assumir a
responsabilidade de construir o seu futuro, o indivduo precisa de mais democracia que
lhe confira poder decisrio o que pode implicar que se realizem alteraes no sistema
representativo caracterstica da maioria das naes europeias e dos EUA-, mais
igualdade, ou seja, o fim ou amenizao da estrutura social hierrquica, e liberdade para
escolher efectivamente, para se auto-determinarem fora de um sistema que muitos
parecem considerar injusto e ineficiente. Apercebendo-se que um poltico porque
participa no espao pblico, o indivduo ganha noo, tambm da sua para impulsionar
a mudana, sendo que a restrio aos mecanismos decisrios para efectuar a mesmo so
motivo de protesto. Na maioria das vezes o protesto no se refere ao fim do sistema
representativo ou instaurao de um regime poltico diferente, mas sim criao de
mecanismos polticos e decisrios que correspondam aos desejos e necessidades de
indivduos mais informados.
O ponto comum entre os vrios movimentos, tanto na Europa como nos EUA,
a exigncia por uma sociedade mais justa, ou seja, uma melhor redistribuio do poder.
O objectivo que o indivduo tenha espao para exercer o seu livre arbtrio e
capacidade de deciso, que muito limitada pelos desequilbrios naturais de estruturas
hierrquicas como o a organizao social capitalista. A distribuio desigual do poder
significa, partida, que a sociedade se baseia num sistema de vantagens e desvantagens
onde os grupos so estruturados de acordo com a sua capacidade de influncia e onde
lhes so atribudas funes desiguais. Um ambiente de competio pode parecer mais
libertrio mas, de facto, cria apenas situaes onde o indivduo se torna mais
dependente das suas necessidades fsicas porque o acesso aos meios para as saciar
restrito, colocando em causa a sua liberdade.
A vantagem competitiva que deriva da distribuio desigual do poder no pode
ser eliminada apenas com a equiparao dos rendimentos ou uma melhor redistribuio
da riqueza. A produo de mais riqueza no pe fim s desigualdades porque ela
desigualmente redistribuda com primazia para os detentores dos meios de produo e,
acima de tudo nas ltimas dcadas nas quais os mercados financeiros cresceram em
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volume de transaces e poder, para aqueles que vivem da explorao do rendimento
sem investimento - e essa desigualdade uma forma de manter intacto o sistema
hierrquico. Acrescenta-se a isto o facto de no ser a riqueza o factor determinante da
hierarquia:
A discriminao social, o poder, etc que permanecem o essencial,
transferiram-se para esferas diferentes do rendimento ou da riqueza [] pouco
importa que todos os rendimentos sejam, no limite, iguais [] critrios como o
saber, a cultura, as estruturas de responsabilidade e de deciso, o poder, embora
largamente cmplices da riqueza e do nvel de rendimento, relegaram os
ltimos, bem como os signos exteriores do estatuto para a ordem dos
determinados sociais do valor, para a hierarquia dos critrios do poder
(Baudrillard; 2008:57).
O sistema, portanto, nunca tender para a igualdade enquanto permanecerem as
hierarquias e os mecanismos autoritrios necessrios para as manter. No podemos
sequer afirmar que a sociedade hierrquica apenas uma marca passageira da histria
humana, uma ponte para um sistema de completa igualdade, pois hierarquia e
autoridade so marcas de vrias formas de organizao social.
O estilo de vida baseado no consumo, caracterstico de vrias naes europeias e
EUA, deixa de ser suficiente se serve apenas para manter a maioria afastada do poder,
porque satisfaz vrias necessidades mas no corresponde a nenhum aumento ou
redistribuio de poder. A democratizao de um estilo de vida consumista no significa
que o indivduo suba na escala social porque os critrios da mobilidade so dominados
por aqueles que ocupam o topo da hierarquia, representando apenas um possvel
incremento na capacidade econmica individual. O acesso aos bens de consumo, fruto
do desenvolvimento e crescimento econmicos dos Estados, resultou no aumento do
conhecimento mas tambm em mais insatisfao que no entender daqueles que se
inseriram (e inserem) em diversos movimentos sociais na ltima dcada no pode ser
aplacada a no ser pelo acesso ao poder em conformidade com as capacidades que
possuem. Dado que o acesso aos canais decisrios est, em grande parte vedado, os
protestantes recorrem aos mtodos mais sublimes da democracia, retirando-a dos fruns
oficiais e retornando rua, onde se sente menos a desigualdade no acesso ao poder, ou
recorrendo Internet para vocalizar o seu protesto.
A desigualdade parte intrnseca da organizao capitalista e a igualdade, ou a
ideia dela, est permanentemente em discusso como consegui-la e preserv-la.. De
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facto, por estar permanentemente em discusso necessrio consagr-la na lei. S
quando algo que deveria ser um dado adquirido na sociedade est em perigo que se
torna um direito, como tal, a igualdade s tem de ser resguardada na lei porque existe,
efectivamente, desigualdade e necessrio um mecanismo que a amenize ou disfarce.
Nesse sentido, o direito igualdade semelhante a outros direitos adquiridos como o
direito ao trabalho:
assim como no existiu direito de propriedade seno a partir do momento
em que j no havia terra para toda a gente, tambm no houve direito ao
trabalho a no ser quando o trabalho se tornou, no quadro da diviso do
trabalho, uma mercadoria permutvel, isto , que deixou de pertencer
pessoalmente aos indivduos (Baudrillard; 2008:62).
A existncia de um sistema hierrquico, assim como de diferentes graus de
acesso ao poder significa que tendem a surgir e perpetuar grupos que que encaram a
governao como natural, porque tm mais poder econmico, mais acesso ao
conhecimento, mais capacidade de influncia sobre os mecanismos governativos e
obtm mais controlo sobre o sistema, cristalizando a sua posio social. um sistema
fechado: a hierarquia justifica a existncia de grupos mais aptos para governar e a
existncia destes justifica a hierarquia dado que ela fulcral para que mantenham o seu
estatuto. Deste sistema surgem elites com melhor preparao para governar e, por isso
mesmo, com um direito natural para o fazer.
Existe um diviso natural entre o eleitorado e os lderes, sendo que o nico poder
efectivamente concedido ao primeiro o de fazer a renovao da liderana atravs do
voto. O que os movimentos sociais tm contestado, tanto na Europa como nos EUA,
ideia de que existe um grupo naturalmente mais inclinado para a governao graas ao
poder que se perpetua atravs da sua rede fechada. Os indivduos que participam
naqueles movimentos esto cientes da sua capacidade autnoma para decidir, encarando
a hierarquia actual como desnecessria ou desfasada do que a realidade necessita. No
espao pblico, esses movimentos colocam em confronto vrias perspectivas at
porque uma das caractersticas essenciais destes movimentos a abertura, na
generalidade, a vrios quadrantes polticos acabando por promover o debate, ao
mesmo tempo que se insurgem contra o discurso determinista dos governantes, como
por exemplo o discurso da austeridade que tem sido a base da poltica governativa em
muitos dos Estados membros da UE.
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A diferena no acesso educao ou de acesso a uma educao de qualidade -
e riqueza, assim como o sistema de trabalho assalariado, podem forar o indivduo a
uma condio de subalternidade, reforada pelo facto de um sistema poltico elitista
restringir o espao pblico porque, independentemente de todos os indivduos serem
iguais e capazes de formular e partilhar as suas perspectivas pessoais, estas so, em
larga medida, desconsideradas.
excepo do momento nico do voto e de espordicos casos em que a
concertao e a presso pblica provocam a mudana principalmente quando essa
presso exercida na rua e estruturada em torno de uma ideia exequvel -, a capacidade
individual de influenciar os processos de tomada de decises referentes ao bem comum
so limitadas. Neste sentido, a restrio da capacidade individual sempre perniciosa,
seja ela originada pelo pensamento paternalista que encara o indivduo como incapaz de
fazer bem a si prprio e ao Outro se no for correctamente dirigido para tal, ou pela
ideia de que a capacidade de governar advm da posio social e da riqueza. A questo
est na definio do poder que deve ser encarada como mais do que a mera acumulao
de riqueza qual corresponde determinada capacidade decisria. Poder significa
tambm a capacidade para a auto-determinao, portanto o livre-arbtrio, em conjunto
com a liberdade de participar no debate pblico de uma forma activa e constante.
A generalizao da Internet e de meios de comunicao gratuitos que escapam
ao controlo dos grandes grupos econmicos podem conferir uma maior profundidade ao
debate pblico, ao mesmo tempo que incluem aqueles que, de outra maneira, ficariam
de fora dessa discusso. O indivduo comum tem agora acesso a tanta informao como
o poltico ou o economista, sendo muito mais capaz de criar opinies informadas,
baseadas na busca pessoal pela informao.
Num mundo baseada na comunicao constante e activa, o poder rgido o
poder que s flui do topo para a base perdeu o p [] o monoplio da
informao, em que o sistema poltico assentava no tem futuro no quadro de
total abertura das comunicaes globais (Giddens; 2007:73).
O controlo da informao, que dava a agentes polticos e econmicos a capacidade de
afirmar que o indivduo comum no se devia preocupar com a governao pela
complexidade desta, posto em causa, o que, perante uma maior consciencializao
indivduo e do seu papel de actor social, deveria gerar importantes alteraes no s ao
nvel da Democracia como tambm na percepo que o sujeito faz da sua relao com a
sociedade
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As alteraes nos meios de comunicao podem ser encaradas como a face
visvel das mudanas nas redes de poder. Mais do que nunca, a direco em que o poder
exercido torna-se difcil de discernir, o que significa que existe, ou parece existir, uma
tendncia crescente para a sua descentralizao. Os canais pelos quais o poder flui j
no so apenas verticais ou horizontais, antes imiscuem-se e criam novas situaes e
possibilidades de exerccio da conscincia individual. medida que aumenta a
informao disponvel para o indivduo, e este tende a tomar parte no processo de
criao e obteno da mesma, o poder deveria ser redistribudo forando alteraes na
estrutura hierrquica da organizao social capitalista. O indivduo deveria tornar-se
mais independente do sistema e mais capaz de experienciar o mundo nos seus prprios
modos menos limitado pelas convenes sociais especficas do seu meio ambiente -, e
as redes de poder entrariam em choque provocando a destabilizao da estrutura social.
As redes de poder so cada vez menos estticas, mais maleveis e
interconectadas. Nascem novos locais de conflito e exerccio do poder em paralelo a
velhos campos de batalha que renascem pelo meio do domnio de uma sociedade que
os havia conformado norma nica, com o debate pblico confinado a institutos,
escolas e parlamentos. A informalidade parece ser a palavra de ordem, por oposio
estrutura rgida e formal dos Estados-nao da Democracia representativa e dos partidos
e seus rituais tradicionalistas de afirmao e legitimao. A generalizao do poder,
contudo, no significa que exista mais igualdade, ainda que a tendncia poder vir a ser
essa, dependendo apenas da capacidade dos vrios grupos anularem o pensamento e
concepo hierrquica da sociedade. Como afirma Alain Touraine:
[A] decomposio da sociedade nos pases mais modernizados atinge as suas
formas extremas quando se rompe o elo entre o sistema e o actor, quando o
sentido de uma norma para o sistema j no corresponde ao que ela tem para o
actor. Tudo assume ento um duplo sentido e o indivduo quer afirmar-se pela
sua oposio linguagem da sociedade (Touraine; 2005:79)
precisamente fora do mbito do Estado e do mercado que podero ocorrer mudanas
importantes que, no futuro, colocaro em causa toda a organizao das sociedades de
organizao capitalista. Trata-se de uma questo de disputa do poder: Estado e mercado
detm um monoplio da autoridade e da hierarquia que funciona em favor de ambos e
do qual dificilmente abdicaro, ou seja, polticos e agentes financeiros, que muitas vezes
se misturam na mesma pessoa, sofrero mais contestao ao seu poder e influncia
sobre as instituies pblicas e privadas que possuem o poder autoritrio e econmico.
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A economia continuar a ser uma disciplina importante e os governos tendncia
parece ser a do crescimento de uma tecnocracia, mas essa sofrer a concorrncia
cidados cada vez mais versados nessas reas, o que significa que no podero alegar
que a dificuldade inerente poltica e economia motivo suficiente para impedir a
participao do indivduo nos processos de deciso. [] os velhos mecanismos da
governao no funcionam numa sociedade em que os cidados partilham com os
governantes os mesmo meios de informao plena (Giddens; 2010:75). O segredo e a
recluso j no so (e tendero a ser ainda menos) mtodos viveis de governao: o
escrutnio geral e o indivduo tem a possibilidade ser mais independente de
parlamentos ou assembleias representantes para estar a par do que fazem os eleitos para
cargos governativos, o que significa tambm que a teatralidade tradicional da poltica,
com todo o ritualismo que lhe prpria, poder perder grande parte da sua
funcionalidade e sentido, alm de que a exigncia por polticos preparados para o
debate, em vez de tecnocratas sem predisposio democrtica tender a ser cada vez
maior
O escrutnio a que a aco poltica est sujeita, assim como o aparecimento de
vrios movimentos sociais com forte impacto social na ltima dcada nos EUA e
Europa vem provar como errada a ideia de que os indivduos perderam o interesse pela
poltica, ainda que demonstre existir descontentamento com as estruturas e processos
governativos e de escolha de governantes. Muitos esto mais atentos, possuem mais
conhecimentos e so menos tolerantes com as atitudes que consideram reprovveis de
vrios polticos (desde a guerra no Iraque comeada no governo de Bush at s polticas
de austeridade na Europa). A insatisfao dirigida aos actores polticos e no tanto
Democracia em si, contudo, como as instituies democrticas falham, vrias vezes, em
responder s exigncias dos cidados, estes so forados a procurar alternativas para
fazer valer o seu poder no espao pblico.
Movimentos como o Occupy e Indignados ou grupos como os Anonymous5 tm
de uma caracterstica importante: nasceram nas redes sociais a partir de uma ideia
comum partilhada por indivduos de diferentes origens, o que faz deles conjuntos
relativamente destruturados e atomizados atravs dos quais se contestam as instituies
democrticas tradicionais cuja capacidade representativa acusam de estar diminuda
5 Uma colectividade de hackers e activistas (hacktivistas) que usa o anonimato e a internet para lutar por
causas variadas desde o combate pedofilia at denncia de casos de corrupo. Usam a mscara
semelhante da personagem principal de V for Vendetta, o filme baseado na graphic novel homnima de
Frank Miller, que encarna o esprito revolucionrio de Guy Fawkes.
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pelo aparecimento de vrios governantes pouco preparados para o exerccio das suas
funes no espao pblico (mesmo que economicamente competentes) e/ou manietados
por interesses privados que contrariam ou prejudicam a sociedade como um todo. As
suas reivindicaes no so apenas de cariz econmico, de facto centram-se muito mais
nos direitos humanos, na exigncia por mais democracia uma maior democratizao
da sociedade atravs da disperso do poder e acesso aos mecanismos de influncia
correspondentes ao nvel de conhecimento a que o indivduo pode aceder e no tanto
pela distribuio da riqueza, ainda que tambm seja uma exigncia ou na luta pelas
liberdades individuais.
O que distingue aqueles movimentos e a natureza dos protestos iniciados por
grupos com o mesmo cariz desde a Europa at aos EUA (como por exemplo o
movimento Que se lixe a Troika que comeou nas redes sociais como um pequeno
grupo e se expandiu at se concretizar numa das maiores manifestaes da ltima
dcada em Portugal), de movimentos e protestos anteriores a sua forma de
organizao. So espontneos, resultando da facilidade comunicacional promovida
pelas redes sociais e pelos meios de telecomunicao mveis. No tm estruturas fsicas
ou lderes, excepto em tarefas pontuais, tratando-se, ao invs, de fenmenos de reunio
voluntria despojados de hierarquias, baseando-se na distribuio equitativa do poder de
participao no espao pblico. So mveis e inorgnicos mas por isso mesmo pouco
dados cristalizao ou manipulao pelas foras polticas tradicionais.
Os movimentos sociais parecem assumir-se como a contraparte dos partidos
polticos, podendo garantir ao indivduo um lugar influente no espao pblico que ,
muitas vezes, difcil de encontrar. O que movimentos sociais originados na Internet tm
de original a ciso com ideia de que os indivduos no tm capacidade de organizao
se no estiverem submetidos a hierarquias e estruturas rgidas. No s podem alterar a
forma de participar no espao pblico, tornando a participao menos limitada pelos
processos formais da Democracia, como mostram que existem alternativas aos grupos
estruturados e rgidos, e por isso menos capazes de acompanhar os ritmos de mudanas,
tradicionais da poltica.
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Snowden
No necessrio ir at a regimes cuja democracia apenas uma teoria sem
correspondente prtico, para encontrar exemplos de Estados onde o poder est cada vez
mais concentrado num grupo no-eleito de indivduos. Casos como a Rssia ou a China,
pases onde existe o voto mas severas restries da liberdade de informao e direitos
humanos, so importantes pontos de comparao com Estados europeus, por exemplo,
mas nem necessrio alargar tanto o espectro de observao porque exemplos muito
semelhantes ocorrem mesmo nossa porta.
Aps o fim da segunda guerra, e com o crescimento do que viria a ser a Unio
Europeia, no seria de esperar um retrocesso na democracia. Tudo parecia apontar para
um aprofundamento das liberdades individuais, da tolerncia e da igualdade, em
conjunto com riqueza abundante. No entanto, ainda que do ponto de vista formal, os
pases europeus, na sua maioria, e EUA cumpram com os trmites dos regimes
democrticos, o que as ltimas dcadas provam que tambm aconteceram ataques
importantes igualdade e liberdade.
Um Estado tem o direito de se defender e tem o direito de empregar os meios ao
seu alcance para tal. No entanto, dever do pblico e governantes (porque decises que
envolvem os direitos humanos devem sempre passar pelo escrutnio pblico e a deciso
deve ser tomada por todos e no apenas pelos representantes eleitos) pesar as
consequncias ticas de determinadas medidas tomadas em nome da segurana. O
dilema da segurana e do quo longe estamos dispostos a ir envolve o presente - dado
que as necessidades de segurana so sempre prementes e de curto prazo, porque os
perigos surgem, em geral, no presente e no futuro imediato - mas tambm o futuro, dado
que a preveno dos perigos actuais no justifica medidas que restrinjam os direitos de
geraes futuras, que obviamente no tm poder de deciso no presente.
A ingerncia nos assuntos internos de outros Estados, a espionagem, a venda de
armas, entre outros mtodos, so antigos e ainda eficazes meios de obter vantagem
sobre os adversrios. No existem aliados no plano das relaes internacionais, na
prtica existem apenas armistcios mais ou menos duradouros. Quando confrontados
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com a sua sobrevivncia, os Estados empregam todos os meios ao seu alcance, mesmo
que isso implique violar normas internacionais e os mais bsicos conceitos ticos.
A partir de que ponto se traa o limite? At onde, dentro de um determinado
conjunto de valores democrticos e ticos que colocam a liberdade individual acima de
qualquer outro valor, se pode ir, sem que existe oposio utilizao de mtodos
repressivos? essa discusso que permanece por fazer, e permanece assim no por
desinteresse do pblico mas porque no do interesse das elites com poder ver os seus
recursos mais drsticos serem colocados em causa. No um debate que agentes
polticos e econmicos estejam dispostos a fazer, mesmo que seja difcil prever se as
suas intenes esbarram ou no na vontade pblica. Os meios de represso empregados
pelos Estados, principalmente desde o incio deste sculo, s tm sido aceites se
aplicados num contexto dum discurso baseado no medo pela segurana, ou se
empregados em segredo. O secretismo tambm s possvel porque agentes polticos e
econmicos sentem que existe liberdade de aco, ou seja, que esto mandatados para
actuar conforme os seus desejos e interesses sem que tenham de se submeter vontade
dos eleitores. No legtimo considerar que programas que espiam os indivduos
secretamente, e partindo do princpio que somo todos potenciais culpados, sejam
justificados pelo acto eleitoral, e por essa mesma razo tm de permanecer secretos.
No que diz respeito cedncia de poder, a democracia um regime de contra-
senso porque provavelmente o nico no qual o poder , na maioria das vezes, cedido
pacificamente. Trata-se de uma das premissas base da democracia: a alternncia nas
estruturas governativas, que permitem distribuir o poder por todos os quadrantes da
sociedade, garantido que todos vem as suas necessidades satisfeitas, mesmo que em
pocas diferentes. No entanto, se o poder do Estado controlado por entidades que
existem para l dele, logo fora do mbito eleitoral, ou por indivduos menos
preocupados com os dilemas ticos que esto associados governao e ao poder, como
costume na tecnocracia que grassa na Europa, ento ceder o poder, ou lidar com a
diferena e oposio na democracia, pode ser encarado como um entrave que, no
podendo ser abatido, tem de ser contido. por isso que os laivos de democracia que vo
surgindo em pases intervencionados causam tanto problema interpretativo a quem
compreende o poder apenas como mecanismo de imposio da vontade. Do desejo de
referendo participao na UE proposto pelo antigo primeiro-ministro grego
Papandreou, actividade do tribunal constitucional em Portugal, passando pelos
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protestos e movimentos que so descartados como o descontentamento da minoria, todo
e qualquer reflexo da democracia encarado como uma afronta ao discurso nico e
vontade de quem tem no seu horizonte nada mais do que a imposio da sua viso de
como deve funcionar a sociedade.
Observao e controlo so parte essencial das tcticas empregadas pelos Estados
para garantir vantagem na cristalizao do seu poder, e por isso mesmo a estrutura
hierrquica da sociedade intacta. necessrio manter o indivduo sob vigilncia
constante, o que permite controlar a sua actividade e as suas redes de relaes, mesmo
que essa observao seja feita de forma ilegal e, acima de tudo, desprovida de tica.
Vigiar e monitorizar os perigos so prticas constantes dos Estados ao longo da histria.
A observao, e atravs dela, o controlo do perigo, parte da lgica subjacente criao
de prises, por exemplo, onde aqueles que esto desajustados da sociedade so
monitorizados e contidos. Obviamente, dado que a prpria estrutura da sociedade no
permite a eliminao do crime, mtodos de observao e monitorizao, de separao
fsica, so essenciais e facilmente justificveis. No entanto, quando aquela lgica
alargada e abrange todos os indivduos, e isso inclui aqueles que nunca foram
considerados culpados de qualquer crime ponto essencial num Estado de direito -,
entramos no domnio da tica, forando-nos a escolher, eventualmente, entre uma
instituio que trata os cidados como potenciais criminosos ou a liberdade.
Com o statu quo ameaado, natural que os Estados respondam. As respostas,
contudo, no demonstram abertura para ouvir o que os indivduos tm a dizer sobre o
gnero de futuro que querem. Ao contrrio, a tendncia tem sido para reprimir qualquer
tipo de discurso que se oponha norma vigente que impe, ao nvel mais bsico da
cultura e da sociedade, a ideia de que o ambiente competitivo capitalista o nico que
permite alcanar a riqueza e a felicidade, no qual se pode viver na abundncia. Na
verdade, o que se passa que existem grupos que dependem das suas relaes com o
estado para permanecer na sua posio de vantagem, e para a manter esto dispostos a
empregar todos os meios, mesmo que pouco ticos. Tanto a Europa, como os EUA,
como o Norte de frica, tm assistido a variados e poderosos movimentos de mudana
que continuam a ser excludos do debate poltico ou a ser violentamente atacados ou, no
caso da primavera rabe, a ser instrumentalizados para colocar no poder grupos que
pouco diferem, nas suas prticas, dos regimes que depuseram.
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A violncia fsica no s mais bsica das formas de represso como tambm
a mais directa, ainda que, no contexto actual, das menos eficazes. Tal no significa que
no seja empregada para controlar os indivduos. Movimentos de protesto, desde os
EUA Turquia so repudiados, muitas vezes, com nveis elevados de violncia fsica.
Tratando-se de autnticas revolues, algumas que se prolongaram ou ainda prolongam
em guerras civis, a existncia de mortos, principalmente devido ao nvel de violncia
empregada pelas foras estatais, era natural. O contexto dictatorial no qual tais
movimentos surgem, e sendo natural a associao entre regimes despticos e o uso da
fora excessiva como mecanismo de represso e generalizao do medo, fazia prever
respostas duras por parte dos diferentes Estados. No entanto, o recurso fora excessivo
no exclusivo de regimes ditactoriais do Norte de frica. Na Europa, principalmente
em alguns pases que sofrem mais com a crise, e nos EUA, a violncia das foras
estatais clara, com intuito de reprimir aqueles que se atrevem a lutar por vises
diferentes da norma.
O comportamento das foras policiais nas manifestaes o espelho da vontade
daqueles que governam o Estado. A polcia a extenso fsica do poder do Estado,
reflectindo na sua actuao a matiz desptica da instituio a que pertencem, com
intensidade que varia conjunturalmente. O trabalho policial em manifestaes ou
protestos obrigatoriamente diferente da restante funo dessa instituio. Zelar pela
segurana dos protestantes e meio ambiente envolvente uma premissa menor, pois o
verdadeiro objectivo do colocar presso psicolgica nos manifestantes, lembrando-
lhes que o Estado tem a fora do seu lado. Como representantes directos do Estado, a
polcia - ou instituies semelhantes representam a fora e a violncia e nesse
sentido que comparecem nas manifestaes e protestos, o que significa que a interaco
com o Estado feita pelo confronto e no pelo debate.
Da Grcia a Portugal, os protestos contra a austeridade tm sido afrontados com
violncia excessiva por parte das foras policiais. A situao de crise que vigora
actualmente um motivo para medidas drsticas e tem revelado a incapacidade dos
governantes, mesmo em questes que pouco se relacionam com a economia, como na
comunicao. As falhas de comunicao no so apenas fruto de impreparao mas
tambm da incapacidade, misturada com um sentimento de irresponsabilidade, em
transmitir algo que fuja ao discurso pr-preparado da crise e da austeridade. Como tal,
ao confrontarem-se com o protesto, regimes cujos governantes lidam cada vez pior com
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os actos informais da democracia, parecem sentir-se acossados, justificando o uso da
fora como forma de colocar um fim a dissidncias, ao mesmo tempo que, no campo
simblico, demonstram o seu poder.
O recurso fora no se limita aos pases que atravessam crises econmicas. A
incapacidade de perceber a dinmica do espao pblico como pea fundamental da
democracia leva lderes e governos a recorrerem com mais celeridade do que razovel
violncia, levada a cabo pelas foras estatais definidas para essa tarefa. Assim, surgem
exemplos cada vez mais graves de represso, aliados a discursos incriminatrios e
divisores, que tentam colocar os indivduos numa situao de confronto entre si.
A Turquia tem sofrido desde 2013 com esse gnero de violncia promovida pelo
governo e apoiada pelo Estado. Os protestos recentes naquele pas no se limitavam
proteco do parque Gezi. Por detrs da retrica da proteco do ltimo espao verde de
Istambul, estava a luta contra a crescente islamizao do Estado turco, cuja repblica se
caracteriza exactamente pelo laicismo, promovida pelo primeiro presidente Mustafa
Atartuk. Em causa estavam as restries liberdade de escolha e a crescente violncia,
mais do foro psicolgico, de medidas que configuram a criao de um estado islmico,
disfarado pelo discurso dos bons costumes. O protesto era, de facto, pelo humanismo e
pela liberdade de escolha, por um regime poltico laico, no qual a democracia fosse
generalizada, ou seja, onde todos pudessem ter uma voz, ao invs de ficarem de fora do
debate importante que implica mudanas estruturais na sociedade turca.
A incapacidade de Erdogan para lidar com a oposio, que uma caracterstica
comum a muitos governantes modernos, criou o ambiente necessrio para a represso
violenta de um movimento pacfico, que j durava h sete dias antes dos confrontos se
iniciarem. a falta de habilidade, e vontade, em abrir o dilogo que fora os
governantes a escudarem-se por detrs de medidas repressivas. Porque muitos
governantes actuais esto pouco, ou mesmo nada habituados, ao confronto poltico
muitos deles nem so polticos de facto mas apenas tecnocratas com cargos pblicos
sem vontade, preparao ou hbito de confronto de ideias resta-lhes a fora para se
imporem.
O perigo do recurso violncia que esta se torne ineficaz, ao ponto de ser
necessrio increment-la para obter sucesso. A nica forma de a violncia no obter os
resultados esperados se existir resistncia, pacfica ou no, capaz de agregar uma
maioria de indivduos dispostos a expressar os seus pontos de vista. No entanto, de
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esperar que os protestantes respondam com mais violncia. Obviamente nem todos os
casos so assim e existem exemplos bastante diferentes. Na Grcia, na Turquia ou em
Espanha, em resposta violncia excessiva das foras polcias, movimentos e
protestantes, mesmo que no apoiados pela maioria dos participantes, englobam faces
que respondem com o recurso fora. Em Portugal, por outro lado, a resistncia tem
sido mais pacfica, assistindo-se a um desnvel muito maior na fora empregada entre
manifestantes e foras policiais.
Todos aqueles pases tm, no seu passado recente, episdios de ditaduras e
autoritarismo, mas com contornos bastante diferentes que ainda hoje influenciam a
dinmica dos protestos e dos confrontos. A Espanha, por exemplo, tem uma histria
mais marcada pela luta armada, desde a resistncia ao regime franquista at ao
separatismo, muito apoiada nos movimentos de extrema-esquerda que encaravam a
violncia como a nica resposta ao poder central do Estado. Por outro lado, em
Portugal, quarenta anos de ditadura criaram um mito de brandos costumes que muitos
parecem utilizar como um ponto de orgulho, at mesmo quando referem a revoluo dos
cravos como pacfica. A diferena na atitude perante o poder, a deferncia com que este
encarado, tambm ajuda a explicar as atitudes mais ou menos pacficas em situao de
confronto.
A fora fsica tem limites. Eventualmente criar anti-corpos importantes no seio
do espao pblico e colocar em risco a imagem das foras policiais e,
consequentemente, daqueles a que elas respondem. A utilizao da fora sobre a sua
prpria populao, coloca o governante numa situao delicada: ou tem um discurso
divisionista, criador de plos opostos que tm de se confrontar cria inimigos e
poderoso o suficiente para convencer a maioria, ou arrisca-se a perder a credibilidade e
poder. Nesta ltima situao restam-lhe duas sadas: resignao ou reforo da sua fora,
levando a extremos que, invariavelmente, terminaro numa sucesso de eventos
violentos fracturantes, sendo um exemplo disso mesmo o caso da Sria. por isso que
muitos regimes apostam noutra forma de autoritarismo, na qual o poder do Estado no
usado primariamente para a represso fsica mas sim para o controlo e preveno,
produzindo uma sociedade na qual se torna regra o panptico como forma de restringir a
liberdade.
O caso de Edward Snowden exps os meios que esto ao alcance dos Estados
para exercer o seu poder sob o indivduo. Mostra uma parte dos jogos de sombras que se
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processam nos e entre Estados, situaes que ficam fora do espao pblico e cuja
revelao acarretam consequncias, no mnimo, indesejveis para quem as protagoniza.
Espionagem e crimes de guerra no so actos desconhecidos, apesar da imoralidade que
representam. O que muda, se que de facto muda alguma coisa, a extenso desses
actos e o quo longe os agentes polticos, e outros interessados, vo para os esconder.
tambm uma questo tica que envolve o limite do poder do Estado sobre o indivduo,
at que ponto pode um cidado ser alvo dos mecanismos repressivos e autoritrios do
Estado.
O caso Snowden levanta um importante dilema tico sobre a actuao dos
Estados, ainda que decorrente de actos diferentes. possvel conceber o mundo actual
sem espionagem? Provavelmente no. A competio no s entre indivduos, o
sistema obriga os Estados a competir por vantagens no cenrio poltico mundial e nesse
confronto, espiar o adversrio a melhor forma de ficar frente. Trata-se de uma
corrida que ganha por quem tem mais meios e que tem como prmio o acrscimo de
poder para garantir a sobrevivncia. A vantagem ganha um incentivo para incrementar
os meios empregados e prosseguir com as aces de espionagem. No entanto,
necessrio traar os limites para determinados actos levados a cabo pelos Estados.