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Círculo do Graal http://reflexosespelhados.blogspot.com Página 1 Histórias da Vida! Contos De Cláudia Cruz Catarino

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Contos De Cláudia Cruz Catarino http://reflexosespelhados.blogspot.com Página 1 Círculo do Graal Cláudia Cruz Catarino http://reflexosespelhados.blogspot.com Página 2 De Círculo do Graal

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Histórias da Vida!

Contos

De

Cláudia Cruz Catarino

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Histórias da Vida

CONTOS

De

Cláudia Cruz Catarino

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Prefácio

Histórias da Vida!

Quando o vento, incontrolado, lhe batia na vidraça mal fechada, Elliot gostava de

não pensar em mais nada e ficar apenas quieto de olhos fechados e todos os sentidos

travados excepto a audição. Era aquele sentido que importava naquele momento. Era

daquele que tinha de obrigatoriamente emanar qualquer coisa. Um clique, um sinal, uma

sensação exasperada. Tal como num pôr-do-sol era a visão que prevalecia ou nos tragos

saborosos de uma qualquer ambrósia seria o paladar a protagonizar o deleite e a atenção

especial.

Os sentidos eram, sem dúvida, a porta de entrada, o canal de comunicação entre o

mundo que o rodeava e aquele que ele se propunha criar. O resto vinha de forma extra-

sensorial, envolto em magia inexplicável. O resto jorrava de uma fonte invisível e

amorfa que é segredo intransponível e a que muitos chamam inspiração.

Cláudia Cruz Catarino

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Índice

Prefácio

I – O Poeta que já não sabia escrever

II – Alice no País das maravilhas

III – As três amigas

IV – O Combatente

V – Pequenos Horrores

VI – Hannah

VII – Doce Pátria

VIII – Antes e depois

Epílogo

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I - O Poeta que já não sabia escrever

Quando o vento, incontrolado, lhe batia na vidraça mal fechada, Elliot gostava

de não pensar em mais nada e ficar apenas quieto de olhos fechados e todos os sentidos

travados excepto a audição. Era aquele sentido que importava naquele momento. Era

daquele que tinha de obrigatoriamente emanar qualquer coisa. Um clique, um sinal, uma

sensação exasperada. Tal como num pôr-do-sol era a visão que prevalecia ou nos tragos

saborosos de uma qualquer ambrósia seria o paladar a protagonizar o deleite e a atenção

especial.

Os sentidos eram, sem dúvida, a porta de entrada, o canal de comunicação entre

o mundo que o rodeava e aquele que ele se propunha criar. O resto vinha de forma

extra-sensorial, envolto em magia inexplicável. O resto jorrava de uma fonte invisível e

amorfa que é segredo intransponível e a que muitos chamam inspiração.

Num momento que podia demorar horas, mas que se traduzia em breves

segundos, eis que a obra nascia, eis que novos mundos se insinuavam e das folhas de

papel outrora brancas brotavam agora as mais belas palavras envoltas em harmonia,

musicalidade e sabedoria.

Para Elliot, sempre havia sido assim. Quase como numa dinâmica de servo que

cumpre a vontade divina, ele facilmente se tornava arauto dos céus e, de repente,

oferecia ao mundo a clarividência honesta e edificante da palavra certa que nos toca

como se de pó de estrelas se tratasse.

Tinha um público muito próprio, uma pequena elite consumidora voraz e

sequiosa do intelecto generoso do poeta. Era confortável escrever para eles. Já

conheciam os códigos. Sabiam-nos instintivamente. Admitiam inovação, enriqueciam a

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obra com a diversidade interpretativa e dos mundos criados pelo artista multiplicavam-

se os universos do leitor participativo e perspicaz.

Todavia, a fragilidade do ser humano superava a condição semidivina do poeta.,

arredando-o, assim, do Olimpo desejado. Fragilidades que se espelham em posturas tão

banais como a insegurança ou o esgotamento intelectual.

- Não posso crer! – Gritava o poeta. Não posso! Não pode ser!!!

Agitado e com um desgosto que lhe inundava a face consumida pela angústia

petrificante, Elliot sufocava em si mesmo. A inspiração tinha desaparecido. Como se de

um caudal se tratasse, o rio havia secado e o leito árido e vergonhoso era agora

estandarte de um fracasso imprevisto. Nem uma frase brotava da mente outrora

magnífica, nem uma ideia com sentido. Nada. Irredutivelmente, nada.

Desprezivelmente, nada. Nada. Nada. Nada.

Saiu porta fora. Desesperado, embrenhou-se no mato cerrado que rodeava a

pequena habitação que o acolhia, a si e às suas saudosas ideias e palavras encantadas.

Percorreu caminhos sinuosos, cheirou intensamente o pinho que abafava o solo

humedecido. Fechou os olhos vezes sem fim, como se chamasse a si todos os outros

sentidos. Congregou todas as sensações que a Natureza lhe disponibilizava, encerrou em

si os ruídos, os aromas, o sabor acre das bagas que encontrava, a aspereza dos troncos

que o vigiavam, a maciez das folhas que lhe cobriam a silhueta esbatida no chão. Média

luz, contraluz, claridade, escuridão total. Apagou-se. Acendeu-se. Rodopiou. Parou.

Agitou-se. Gritou alto… Nada!!! Desilusão…

Para onde tinha ido, afinal, a inspiração que o acompanhava há tanto tempo? E

como tinha isso acontecido? Seria uma doença passageira que um médico pudesse

tratar? Seria castigo divino por algum mal que houvesse causado?

Perguntas e mais perguntas que se acumulavam e geravam no artista uma

sinfonia desconcertante.

Resolveu, então, procurar aquele que sempre o abrigara – Rafael.

Rafael era um velho amigo que conhecera Elliot quando ambos ainda

partilhavam a juventude e o sonho da escrita. A vida tinha levado, no entanto, Rafael a

optar pelos prazeres da escrita em tempos livres. Sem obrigações. Envolta em delícias

constantes e sucessos esporádicos.

Já Elliot tinha sido consumido pela escrita desenfreada que roça a loucura. Era,

de facto, muito bom. Amava a escrita, amava o mundo e reproduzia-o sob a forma de

palavras que se unem num sentido definido.

- Deixa-me ficar cá, Rafael. Por favor. Não sei o que fazer. Se não consigo mais

escrever, o que será de mim? Porquê? Porque é que isto me aconteceu?

- Calma, descansa. Estás cansado. É só isso. És um homem. Um homem como

qualquer outro homem. Tens momentos. Todos temos. E o teu momento, agora, tem de

ser de descanso, está bem?

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Elliot anuiu sem esboçar qualquer expressão que indicasse sentimento por detrás

do semblante carregado e opaco.

Deitou-se devagar com a cabeça muito bem colocada sobre a almofada como se

acreditasse convictamente que o seu crânio abrigava um tesouro incalculável.

Chorou a noite toda. Já o sol forçava a entrada no taipal da janela quando o poeta

tranquilizou. Mas foram breves os momentos de paz interior. Demasiado breves, por

sinal.

- Nãaaaaaaaao!!!!!!!!!!! Não pode ser!!! Isto não me está a acontecer. Nãooooo,

por favor, não…… - e soluçava compulsivamente de uma maneira que causaria

compaixão a qualquer um que assistisse a tão triste cena.

- Rafael, tentei, tentei, mas não me saiu nada durante toda a noite! Nada! E

agora, Rafael, e agora?

Elliot tinha os olhos vidrados como se prestes a desprender-se da face. Gritava,

gesticulava e abanava o amigo ininterruptamente.

- Pára, Elliot. Vais magoar-me. Pára, amigo. Vamos. Temos de consultar um

médico. Não podes continuar assim. Por favor.

Foi-lhe diagnosticado um esgotamento nervoso severo. O espírito, demasiado

forçado, escusou-se a dar resposta e, num reflexo de auto-protecção, entrou num estado

de «ponto morto», nem para a frente nem para trás. Havia, portanto, que seguir à risca

um plano de descanso e tomar alguma medicação. Medicação que lhe iria entorpecer os

sentidos, aqueles mesmos que ele tanto valorizava e que eram manancial de ideias e

palavras que frutificavam e geravam Arte.

- Não sei se quero definhar desta maneira. Acabar com o que possa restar de

mim com estes fármacos hostis que vão fazer sair de mim um outro eu. Sim, porque eu

sou o que escrevo. Nada mais importará se eu não me puder concretizar na escrita. Nem

vale a pena estar neste mundo.

- Não digas disparates, Elliot. Tu vales muito. Vales tanto. E, para além do mais,

vais voltar a escrever. Não duvides disso. Vais voltar a ser feliz, amigo.

- Não me parece, Rafael. Eu existo através da escrita. Eu vejo-me através

daquilo que escrevo e os outros, aqueles que lêem o que escrevo, vêem-me através das

minhas palavras. É bom sentir o reconhecimento. Confesso que já nem sei viver sem

ele. Parece-me que me viciei nos aplausos, nos comentários. Como é que eu vou pura e

simplesmente dizer «Acabou. Acabou… Não há mais. Não vos posso dar nada mais.»

- Elliot, a tua escrita já te tornou imortal. O que escreveste jamais será apagado.

Jamais. Não será apagado das páginas das edições que correm mundo nem tão pouco

das vidas daqueles que se deixaram impregnar das tuas ideias e se inundaram da beleza

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que a tua poesia projecta. A cada nova leitura, tu renascerás na interpretação daquele

que a ler. Não te subestimes, amigo. Por favor. Abençoada a mente de quem já fez

nascer aquilo que tu fizeste. Há tantos que se vão sem conhecer esse prazer.

O poeta baixou os olhos, triste. Tão triste que parecia nem ouvir as sábias

palavras que Rafael proferia.

Fechou a porta do quarto, apagou a luz e deixou que o silêncio o inundasse numa

tortura contínua.

Foram dias tremendos em que a dor que sentia era tanta que a qualquer momento

parecia sucumbir e desagregar-se de si próprio, da sua identidade ou daquela que tão

intimamente tinha projectado…

Enclausurado no quarto, iniciou um processo de auto-comiseração incrível e

quase fatal. Não comia nem bebia. A luz feria-o e, por isso, entaipou-se como se lá fora

o mundo ansiasse sorvê-lo. Não tardou a que chegassem a ele imagens irreais, fruto da

alucinação causada pelo tremendo estado de fraqueza. Redemoinhos, fantasmas,

sorrisos e lágrimas, faces desconhecidas, palavras soltas e apenas sussurradas.

- Rafael! Rafael! Estarei louco? É isso? Enlouqueci? Não posso! Não aguento

mais este terror abismal.

O quarto exíguo mas confortável era agora cenário de uma tragédia que atingia o

clímax esperado. Era incontornável.

Existem relatos de que, na natureza, homens e animais definham rumo à morte

quando sentem que já não são úteis. Os primeiros motivados pelo raciocínio implacável,

os segundos movidos pelo instinto mais básico da sobrevivência. Deixam-se ir, acabam

de forma ténue sem grandes sobressaltos ou estranhas reacções numa evidente

decadência de espírito.

Ao lado da cama de ferro que aconchegava o poeta, numa pequena mesinha de

apoio já ausente de envernizamento, colorido e insinuante, jazia o frasco fatal que

guardava a medicação prescrita.

Tremulamente e sufocado pelas lágrimas que vertiam descontroladamente e

rolavam pela sua face agora lívida, Elliot preparou-se para o golpe final que seria a

revelação das suas fraquezas e angústias, o seu lado mais mundano que o arredava

irremediavelmente do estado de semideus que havia dimensionado.

Já os primeiros blisters entravam na sua boca quando Rafael irrompeu como um

raio seco que não se espera mesmo em noite de trovoada.

- Pára! Destruíres-te? Porquê? Para quê? Para o mundo inteiro ter pena do pobre

poeta? Por acaso achas que te tornarás um mártir? Os mártires são sempre lembrados, é

um facto, mas tu, tu não és um mártir, Elliot. És um artista caprichoso e egoísta que

desceu do seu pedestal e aterrou na crua realidade de que é um homem. E será isso um

castigo, Elliot? Ser um ser humano é um castigo? Ter o dom da vida, poder gerar vida e

ainda possuir o livre arbítrio que tudo permite e nada nega será um castigo, Elliot?

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- Olha à tua volta! Olha! Estás doente, meu amigo… Doente de ti. Tu és a tua

doença! Esse intelecto maravilhoso que abrigas e que agora deixaste adormecer infectou

o teu coração. Secou a fonte que alguém te ofereceu. A ti e não a outro homem. Sim,

porque nem todos os homens são tocados pela inspiração que, no teu caso, era

praticamente incontrolável.

Era agora a vergonha o sentimento mais furioso no semblante do poeta. Uma a

uma as escassas pílulas coloridas que haviam tragado caíam-lhe dos lábios pálidos e

imóveis. Não proferiu uma única palavra. Não se defendeu, não tentou expiar mágoas

ou encetar defesas absurdas. Nada.

Rafael tinha-se esfumado e só as palavras que haviam proferido ecoavam na

cabeça do artista.

Exausto e desprendido da vida deixou-se cair quase inanimado na enorme cama

de ferro.

No dia seguinte, acordou agitado, estremecido pelo odor forte de café acabado

de coar.

- Quem está aí? Rafael? És tu?

- Bom dia, Sr. Elliot ! Como está hoje? Sente-se melhor? Que febre, senhor…

- Rosa? E o Rafael? – Perguntou o poeta ainda anestesiado.

- Rafael, senhor? Quem é Rafael?

- O meu amigo de há anos. Melhor amigo, Rosa. Trabalhas cá desde que para cá

vim, como é possível estares a indagar-me sobre o Rafael.

- Senhor, descanse. A medicação ainda está a fazer efeito. Ainda está muito

débil, senhor. Tem mesmo de descansar. Vou trazer-lhe um chá bem quentinho. Aquele

de maçã e canela que o senhor tanto gosta.

- Rafael? Continuarei louco? Não! Claro que não! Eu sei bem que não!

- Posso, Elliot? – Perguntou alguém batendo ao de leve na porta robusta e

ligeiramente empenada.

- Rafael?

Uma cabeça loura e uns olhinhos pequeninos mas muito brilhantes espreitaram

por detrás da madeira que quase intimidava.

- Ah! Cármen? – Sorriu Elliot embevecido. Entra! Por favor, entra!

- Querido Elliot, que susto nos pregaste! Estás melhor?

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- Não sei, Cármen. Não sei se já consigo escrever. Mas, e o Rafael? Não me

digas que também não te lembras dele.

- Rafael? O filho da tia Concha? O pequenino ruivinho?

- Não, Cármen! Não! O meu amigo Rafael. Melhor amigo de todos. Estivemos

juntos na faculdade. É presença assídua nesta casa. Por amor de Deus…. Estarei louco

de todo ou quererão vocês enlouquecer-me?

- Calma, querido. Tens de descansar. O médico disse-nos que o teu esgotamento

foi grave. Não deves voltar a descurar a tua saúde. Passámos cá a noite inteira. Eu e a tia

Concha. A Rosa preparou o outro quarto para podermos descansar. Não estiveste nada

bem, Elliot, e parece que ainda não estás… Por favor, descansa.

- Obrigado, Carmenzita. Desculpa estar a ser rude. Desculpa. E a tia Concha?

- Foi ver o Rafael. Verificar se está tudo bem.

- Rafael? – Exclamou Elliot excitado e já esquecido da conversa anterior.

- Sim, Rafael, o filho da tia Concha. 10 anos. Impossível ter andado contigo na

faculdade…

- Ah, sim. Desculpa, Cármen. Sim, preciso mesmo de descansar. Vai tu também,

querida amiga.

- Tens a certeza? Ficas bem?

- Sim, claro que sim. Obrigado.

- Ah, Elliot, o senhor da editora ligou há pouco. Disse-lhe que estavas a

descansar mas nada mais adiantei acerca do teu estado.

- Sugadores! – Retorquiu Elliot em voz baixa.

- Como? – Estranhou a rapariga.

- Não, nada. Nada. Obrigado, Cármen. Fizeste bem. Como posso agradecer a tua

generosidade?

- Esquece lá isso e fica bem. Quero continuar a ler-te, a descobrir-te por entre os

enredos que as tuas palavras tecem.

E retirou-se em passos largos do quarto que abrigava o amigo.

Elliot voltou a esboçar um sorriso apagado e nada sentido. Acusou um tremor a

alastrar-se pelo corpo ao mesmo tempo que lhe subia lenta e tortuosamente pela medula.

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- Rafael? Quem és tu? Onde estás, amigo?

Deitou-se resignadamente, ausente de qualquer projecção acerca do futuro.

Todavia, as palavras de Rafael continuavam a ecoar-lhe e desciam incisivas ao lugar

mais recôndito do seu ser debilitado.

Eram palavras duras, bastante realistas, mas nada castradoras. Muito pelo

contrário, incentivavam a acção, geravam dinâmica, agitavam ideias que iniciavam

congregar-se e fundir-se num todo com sentido e também ele motivador.

Nessa noite, os sonhos trouxeram revelações que tranquilizaram o artista. No dia

seguinte, tomado pela energia intelectual inesgotável que sempre o caracterizara, Elliot

pegou na folha branca que guardava na gaveta da secretária antiga do seu quarto, a

mesma folha que o aterrorizara há dias atrás e quase o fizera desprezar o dom da vida.

Lá estava ela. Sinuosa. Desafiadora. E, ao mesmo tempo, tão frágil, tão branca,

tão vazia, tão inerte, tão nada…

Tomado pela inexplicável força anímica que fizera dele um artista adorado,

escreveu, escreveu, escreveu. Quase sem pensar. Quase louco. Claramente desprendido

da razão.

A caneta, sempre a mesma, em prata, lembrava a batuta ondulante do maestro

que inspira a música de todos os instrumentos para logo a seguir expirar as suas

emoções afinadas, porém desconcertantes:

Não sei que força ou que ímpetos me movem.

Fico quedo, petrificado, de olhos fechados e espírito aberto,

esperando sorver saborosamente

a doce brisa que me acende os sentidos e me amplifica as emoções.

Extravaso-me, supero-me, adio-me

e não mais controlo o que brota do meu ser extasiado.

Será o teu perfume, a tua doce voz?

Será o toque macio da tua pele vibrante?

Ou o sabor das tuas palavras ora acres ora melosas?

A visão de ti completa-me e enche-me de melodia compassada,

Bem orquestrada.

Deixo-me ir então.

Adio-me novamente.

Viajo por claves, pautas,

Aromas impetuosos e visões do paraíso.

Voo até ti e contigo.

Voo por baixo no topo do teu ser errante.

Voo para aterrar nas ideias claras

Que vejo por ti e através de ti.

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Amigo, companheiro, sombra dos meus passos imaginários.

Conforta-me e diverge-me,

Empurra-me para o vórtice,

Sacode-me do obstáculo.

Alento e Esperança.

Alegria e Comoção.

A divindade é tua, pois só tu reinas entre todos os outros.

Na multidão celeste que apazigua os feitos dos homens

A trompeta é tua, pois dela emana o som insinuante.

E assim, por entre coros de querubins atarefados

Eis que o protector dos meus pensamentos

A Inspiração que por momentos me torna um deles

Desce dos céus e me enche de vida.

Rafael, Anjo Rafael,

Que a tua inspiração cubra as minhas palavras

E não mais permita que me ausente de mim!

Elliot Smith

Em êxtase merecido, o poeta-maestro pousou a batuta serenamente e sorriu para

depois soltar uma gargalhada infindável.

Deitou-se novamente e descansou mais um pouco. À noite, lá estaria o editor

para programarem a próxima data de entrega e não havia muito tempo a perder.

Cláudia Cruz Catarino

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II - Alice no País das maravilhas

Desde criança sempre tivera o estranho hábito de olhar para as pessoas à sua volta e

imaginá-las outras, com um aspecto diferente, uma roupagem oposta àquela com que se

apresentavam e uma atitude diversa em relação à que exibiam naturalmente.

Vestia-as de muitas cores, despia-lhes as peles humanas e revestia-as de pêlos

farfalhudos, penas sedosas ou escamas reluzentes e transformava-as dramaticamente,

pincelando-as de imaginação e criatividade inesgotáveis.

Sempre fora assim. Para Alice, a Natureza existia para servir os seus devaneios

artísticos que moldavam caprichosamente as imagens à sua volta, servindo-se de todas

as paisagens captadas pela sua retina fotográfica.

- Anda, Alice! O que estás a fazer aí parada? – Insistia a mãe. Estou com tanta pressa,

filha! Voltamos cá amanhã, sim? Agora não pode mesmo ser, meu amor.

Alice sorria para a borboleta que esvoaçava à sua volta como se a conhecesse desde

sempre e soltava risinhos amorosos de petiza embevecida com um qualquer espectáculo

de magia.

Magia. Era isso…. Alice era uma perfeita mágica que, num toque de varinha,

transformava todo o cenário à sua volta.

Ria para a borboleta, porque há muito que aquele insecto esvoaçante já não era

borboleta, mas antes cachorro peludo agora alado. E como voava… Voava, ladrava e

gania quando os raios de sol lhe batiam nos olhos e estes começavam a lacrimejar

perante tanta claridade.

A pequena Alice tapava então a boca em jeito de reconhecida consciência da traquinice

e, colocando o indicador esticadinho sobre os lábios rosados, pedia ao canino alado para

cessar tamanha tolice.

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De mão dada com a mãe apressada, Alice percorria a calçada que rapidamente se

transformava em tapete cintilante e saltitava de pedrinha em pedrinha para não molhar

os pés na água imaginária que a salpicava a cada pulo mais descuidado.

- És capaz de estar quieta Alice? – dizia a mãe já impaciente. O que é que se passa,

filha? Anda como gente. Caramba, Alice, quando é que consigo chegar a casa? Não

sabes que tenho de dar almoço ao teu pai e ao teu irmão? Por favor, filha, tenta

compreender….

A mãe de Alice era uma senhora forte e robusta que há muito tinha perdido a fisionomia

delicada característica dos seres femininos. A vida dura que levava apagara do seu

semblante os contornos perfeitos e a frescura da juventude ao mesmo tempo que os

múltiplos afazeres com que tinha de lidar diariamente haviam pincelado a sua tez de

uma cor baça e acinzentada que desbotava o seu olhar pardacento. Era, no entanto, uma

mulher valente, dedicada à família e, sobretudo à filha mais nova, Alice. Não sabia bem

porquê, mas via na sua criança um tesouro delicado e frágil que temia ser usurpado

pelas agruras da vida que transformam o belo num amontoado de circunstâncias atrozes

e repletas de fealdade. Temia também que os outros não a compreendessem, não a

soubessem aceitar tal e qual ela era. Sim, porque Alice era uma criança muito especial.

Diferente, certamente. Mas, acima de tudo, especial.

Ao longo do caminho percorrido até a casa, Alice sorria constantemente para o seu

companheiro alado ao mesmo tempo que sussurrava baixinho: «Vai, cão! Vai!» e

salpicava-o com a água imaginária que corria debaixo dos seus pés, colocando as mãos

em concha e abrindo-as depois em jeito de arremesso.

Não tardou a que o animal pousasse numa flor suculenta em néctar e por ali ficasse

enquanto Alice acenava freneticamente, despedindo-se do seu estranho novo amigo.

E, assim, sempre pela mão da mãe, inclinou a cabecita em direcção ao céu imenso que

cobria os seus passos. Lá em cima, nuvens de muitas formas povoavam o azul profundo,

incitando a criatividade da pequena. As nuvens eram as companheiras de Alice desde há

muito tempo. Estavam sempre lá, fofas, multiformes e andantes e facilmente a

imaginação da doce Alice transformava-as em todas as coisas do mundo.

- Mãe! Hoje depois de almoço, posso ir à gruta? – Pedia Alice.

- À gruta, filha? Lá vens tu outra vez com isso. Caramba, filha, não me dás um minuto

de descanso…. Eu já não te disse que a arrecadação não é uma gruta? E, para além

disso, estão lá muitas coisas perigosas em que não podes mexer, já te disse várias vezes!

- Vá lá mãe! Deixa…. Vá lá! Eu não mexo em nada. Prometo! – e cruzava os

indicadores esticados sobre os lábios que os beijavam em sinal de juramento sentido e

inviolável.

- Por favor, filha. A mãe já tem tantas preocupações…. Como é que eu consigo estar

descansada em casa contigo enfiada na arrecadação? Como, meu Deus?

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Pobre senhora… À medida que ia falando com a filha em tom de súplica, a pequena

amuava e emudecia. De olhos fechados e punhos cerrados, avançava ao sabor do nada e

tropeçava nos seus próprios pés em jeito de punição das atitudes maternas.

Desligava os sentidos e caminhava apenas com a imaginação que, por esta altura, já a

fizera princesa aprisionada na torre de um palácio antigo com grilhões enferrujados à

espera da sua chegada.

A mãe tentava ignorar, balbuciava agitadamente a expressão «valha-me Deus» e sacudia

dos ombros o peso de um mundo só seu mas infinitamente volumoso e digno de ser

aplacado por um Atlas potente e musculado que ela, definitivamente, não era.

Chegadas a casa, Alice sentou-se no degrau do poial da porta da rua, enquanto a mãe

arrumava as compras e já a água fervia numa panela enorme capaz de dar de comer a

um regimento.

Cá fora, a princesa agrilhoada pegara num pequeno ramo da ameixeira do quintal e

desenhava na terra batida o companheiro alado que tinha conhecido no caminho para

casa. Sorria, então, para ele e via-o a ganhar vida e movimento e a saltar daquele

desenho e a rodopiar sobre si mesmo de forma a morder a própria cauda.

Tão agitada era a figura que Alice não continha o riso estridente e incontrolável.

- Ah! ah!ah! Não sejas tolo! Cão feio! Cão doido!

Tinha sete anos a nossa pequena Alice e sempre fora uma criança de fácil trato não fora

a tendência para a aparente alucinação. Desenhava, cantava, dançava e, sobretudo,

falava sozinha, num infindável mundo de faz-de-conta. Não tinha amigos, rejeitava as

outras crianças e a mãe já se tinha acostumado às particularidades da filha. Tolerava-as,

mas não as compreendia e remetia qualquer explicação para a idade imberbe da filha

especial.

Eram uma família relativamente grande. A mãe, o pai e três filhos – Alice e dois irmãos

mais velhos com os quais ela quase nem mantinha contacto embora vivessem na mesma

casa.

O mais velho de todos, Manuel, estava para casar. Era um rapaz enorme, também de

poucas falas e trabalhava com o pai no café da família. Tinha conhecido uma rapariga

azeda e muito vaidosa mas apaixonara-se perdidamente e tudo fazia para a agradar.

O irmão do meio era o estudioso da casa. Devorava livros de matemática, física e

química e aspirava a ser médico. Para os pais, era um orgulho sequer sonhar em ter um

doutor na família e muitos dos sacrifícios feitos por todos eram em prol dos estudos do

Arturzinho.

A casa, ampla e pouco ornamentada, exibia apenas uma panóplia variadíssima de flores

secas em cima de cada móvel, no parapeito das janelas e no centro da mesa de refeições.

Flores de todas as cores, de múltiplas formas e tamanhos que, de tantas e tão pouco

usuais, roçavam a excentricidade.

Alice, no entanto, não gostava deste estranho hábito da mãe que teimava trazer natureza

morta para dentro de casa. A natureza morta não tem energia, não faz sonhar, esgota-se

na monotonia da última forma que assumiu e, por isso, Alice esquivava-se a sequer

roçar o seu olhar criativo naqueles ramalhetes funestos.

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- Mãeeeeeeeee!!!! Vou para a gruta! – Gritava a petiz em jeito de ousadia assumida.

- Não vais não, Alice! Vamos para a mesa! Vai lavar as mãos!

- Brrrrrrrrrrrr!!!!!!! Não te oiço, mãe! Não te consigo ouviiiiir!!! Vou para a gruta!

E foi. De sorriso maroto e já descalça aproximava-se da arrecadação encantada que,

transposta a sua porta, se transformava em gruta medonha, humedecida por veios de

água fresca que por ali serpenteavam e tilintavam ao cair no chão.

Ping!| Ping! Ping! E Alice encetava a tão desejada incursão pelos recantos daquele

espaço banal agora transfigurado em cenário soturno e repleto de mistérios apetecíveis

ansiosos por ser descobertos até que, já quase a embrenhar-se, perdida, por entre as

paredes rochosas daquela gruta imaginária viu-se surpreendida pela voz firme do pai

que a arrancava, assim, do início daquela deliciosa deambulação.

- Já para a mesa, menina! Não te digo nem mais uma vez! Dás cabo da tua mãe! – e

apontava na direcção da porta da cozinha, exaltado.

O pai de Alice era um homem humilde e trabalhador talhado para a função de chefe de

família. Um pouco mais velho do que a mulher, as diferenças, porém, mal se notavam,

tais eram os estragos que as ralações e dissabores haviam produzido na pobre senhora.

Ao contrário dos outros homens da vizinhança, sempre desejara uma filha, uma menina

doce que embalasse a sua vida monótona e, ao mesmo tempo, apoiasse a mulher e se

dedicasse à família. Por isso, quando lhe colocaram a filha nos braços, não conteve as

lágrimas e proferiu as melhores palavras de agradecimento a Deus por tamanha dádiva.

Nunca tinha despejado os seus sentimentos assim, daquele modo lamechas, por nenhum

dos outros filhos rapazes. Mas, quando Alice nasceu, o mundo tornou-se, de repente,

melhor, mais divino, mais envolto em beleza.

- É linda, mulher, a nossa menina! Tão linda! Não lhe vai faltar nada! Nunca! Vai ter

tudo na vida! Nem que eu tenha de trabalhar noite e dia! – e assim, meio lúcido, meio

alucinado ia navegando por um mar desconhecido que lhe aconchegava o coração.

Mas, os tempos foram passando e Alice, com a sua natureza imprevisível e muitas vezes

inexplicável ia atordoando a pouca elasticidade que a mente do pai apresentava.

- Já à minha frente, Alice! Já! – Gritava, encolerizado, perante o ar atónito da pequena

que olhava fixamente a veia grossa e saliente do pescoço do pai que parecia querer

saltar ao mesmo tempo que palpitava qual cavalo a trote.

Não tardou a que a sua imaginação a transportasse para dentro daquele cordão gigante e

se visse a cambalear por entre paredes agitadas que não paravam de se mexer,

derrubando-a a cada passo que intentava. Mas, rapidamente, voltou a si e atendeu aos

pedidos do pai, seguindo, cabisbaixa, até à mesa de refeições.

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Lá, esperava-a uma verdadeira comitiva. A mãe, ansiosa e de olhinhos meio fechados

pela preocupação eminente, o irmão mais velho, sempre com um ar apático e ausente

quebrado apenas pela chegada inesperada da noiva espevitada e o Arturzinho, o

maravilhoso Arturzinho, sempre tão empenhado em ser melhor que toda a gente.

O pai entrou, tomou o seu lugar na cabeceira da mesa, fitou Alice nos olhos e torceu a

cabeça na direcção do banquinho vermelho onde a menina costumava sentar-se. Muito

devagar, mas sempre com os olhos postos nos do pai, Alice sentou-se calmamente e

colocou um enorme guardanapo à volta do pescoço em jeito de babete.

- As minhas desculpas, menina Laura. Faça o favor de se sentar. Almoça connosco, com

certeza? – questionou o pai em forçada simpatia para com a futura nora.

- Muito obrigada, Sr. Américo. Claro que sim, com todo o gosto. – anuiu rapidamente a

rapariga, arrastando um banco até ao lugar mais perto do seu noivo embevecido.

Não se calou durante toda a refeição. Numa voz irritante e com um discurso que incluía

guinchinhos de doninha pelo meio, ia sacudindo as mãos e agitando o grande rabo-de-

cavalo que ostentava no topo da cabeça.

- É horrível… - pensou Alice. Blhaac! Que bicho tão feio! Demasiado feio... Então,

num passe de magia, tratou de iniciar a metamorfose necessária.

Pôs-lhe um bico no meio da face e cobriu-lhe o corpo de penas amarelas e roxas. No

topo da cabeça, o rabo-de-cavalo farfalhudo deu lugar a uma crista escarlate que pendia

para um dos lados, exactamente para aquele em que se encontrava o irmão Manuel que

quase sufocava com aquele pendente que se ia avolumando de cada vez que a rapariga

falava.

- Ih, ih, ih, ih!! – Divertia-se Alice.

- Pára! Olha que sufocas o meu irmão! – Gritou.

Atónitos com a atitude da pequena, todas as personagens daquele Carnaval unilateral,

fixaram Alice em jeito de merecida repreensão.

- Alice!!! Como te atreves? Como podes desrespeitar assim a minha noiva? – gritava de

forma convicta o irmão, tomado pela paixão inconsciente que incita as mais

exacerbadas atitudes.

- Já para o quarto, minha menina! Só sais de lá quando te disser! – Ordenou o pai com a

veia do pescoço ainda mais insinuante do que no episódio da gruta.

Alice levantou-se calmamente e dirigiu-se para o pequeno compartimento destinado a

ser o seu quarto de dormir. Atrás de si, uma multidão inteira rendia-se à pesada

consternação da rapriga do rabo-de-cavalo que, de tão chocada, abanava-se com um

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guardanapo em jeito de leque ao mesmo tempo que retorquia «Deixem lá, é apenas uma

criança».

A entrada no quarto funcionava como a incursão num daqueles portais intergalácticos

com que os filmes de ficção científica nos presenteiam.

Alice entrava, empurrada por uma qualquer força brutal que a impelia para aquele

espaço e deixava para trás de si um mundo que não compreendia, que se esgotava em

cada momento, esgotando-a a ela também.

Ali, no seu quarto-masmorra-prisão-palácio-gruta-floresta encantada tudo era possível.

Não existiam críticas, punições, entraves e era na coexistência temperada de mundos

diversos e regidos apenas pela fertilidade criativa que Alice encontrava o verdadeiro

sentido da natureza mutante das coisas.

O tempo foi cumprindo o seu dever e passando veloz, alterando tudo à sua passagem.

Era, aliás, o efeito do tempo bastante compreensível para Alice que tão bem conhecia a

necessidade da mutabilidade dos cenários e das coisas que habitam à nossa volta. A

mudança gera nova vida, dinâmicas renovadas, energias recarregadas e, para Alice, isso

fazia todo o sentido.

Só isso, aliás, fazia sentido.

E assim a pequena Alice deu lugar a uma jovem robusta, de olhar sempre enigmático e

postura fascinante pelo mistério que envolvia o seu semblante.

Claro que a espontaneidade pueril não era já tanta. Por muito que não concordasse,

sabia que havia regras a cumprir para que pudesse coabitar com os pais e com os demais

que com eles conviviam e, para além disso, tinha-se arrependido vezes sem conta da

vergonha sentida que provocara na mãe quando, por várias vezes, a ignorava em frente

aos vizinhos.

Amava-a acima de qualquer outra coisa e sabia que embora não a compreendesse, a mãe

era aquela que mais a aceitava. Por isso, doía-lhe imenso saber que podia magoar aquela

que era, sem dúvida, a sua melhor amiga.

- Mãezinha! Estás bonita, hoje, com esse vestido pareces uma rainha medieval

imponente.

- Uma rainha medieval, filha? Só tu. Eu, uma rainha? Estás sempre a inventar – e

encolhia os ombros, franzindo o olhar já anestesiado pela presença dos constantes

devaneios de Alice.

- Calma, mãezinha. Estou a brincar. Que mal tem isso?

- Nenhum, meu amor. Nenhum. – e colocava-se em bicos de pés para beijar suavemente

a bochecha rosada da filha que, entretanto, tinha ganho uma altura incrível e estava

parecidíssima com o irmão Manuel.

- Mãe, vou sair com o Carlos. Não volto tarde, está bem?

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- Sim, filha. Mas, por favor, não leves novamente o rapaz para a arrecadação. Está tudo

tão desarrumado. O que é que ele vai pensar? Por favor, filha, como é que queres

arranjar um marido a enfiá-lo dessa maneira numa arrecadação ferrugenta onde quase

não conseguimos colocar um pé?

Alice sorria perante as preocupações da mãe. Sabia-as sinceras e bem-intencionadas,

mas, claro, não as aceitava, pois não lhe fazia sentido algum.

O Carlos era um amigo de infância. Embora não fosse propriamente talhada para a

amizade fácil, Alice conseguira, desde sempre, cativar a atenção daquele menino, agora

homem. Mostrava-lhe os seus sonhos alucinados, contava com ele nuvens esculpidas e

transformadas em todas as coisas do mundo e contava-lhe as suas aventuras

mirabolantes com estranhas personagens, fixando-o sempre à espera da reacção do

rapaz.

Ele, deslumbrado, amara Alice desde o início. Reconhecia inteligência nas suas palavras

e sonhos surreais, mas era sobretudo o olhar daquela menina que o cativava. Alice

parecia transportar todos os seus pensamentos para a órbita ocular e despejava em

cascata todos os sentimentos que lhe afluíam ao coração. Por isso, se Alice era mágica,

Carlos era o espectador atento, deliciado com a metamorfose constante.

Ela sorria sempre, desviando-lhe da testa a melena castanha clara que pendia

teimosamente e que ele constantemente soprava para que não o incomodasse.

- Nunca me vais deixar, Alice?

- Porque perguntas isso?

- Não sei, tenho medo de te perder no meio desse teu universo inconstante. Tenho medo

que um dia já não contes comigo todas as nuvens do céu.

- Não sejas tolo. Claro que não me vais perder. – Respondia Alice sem convicção

alguma. E afastava-lhe novamente a madeixa pendente que lhe dava um ar bastante

atraente. Lembrava um daqueles príncipes da Grécia Antiga. Era bonito, de uma

compleição atlética e os olhos, de um verde luminoso, ansiavam a cada minuto por um

carinho de Alice.

- Claro que não me vais perder. Eu amo-te, tu sabes disso. – dizia, encostando a sua

testa à de Carlos.

Nesse memo momento que podia ser imortalizado num qualquer quadro renascentista,

Alice desviou o olhar inclinando-se sobre o ombro de Carlos e sorriu. O mesmo sorriso

maroto e infantil regressava à sua face.

Pousada numa flor do pessegueiro que lhes fazia sombra naquela tarde de estio, uma

borboleta canina lacrimejava com a claridade do sol que a transtornava. Peluda e

soltando desesperados latidos, esvoaçava em direcção a Alice.

- Nunca te vou perder, pois não, meu amor? – Insistiu Carlos.

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- Claro que não! Claro que não! - E enxotou o cão alado que por ali rodopiava na

intenção de morder a própria cauda.

Cláudia Cruz Catarino

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III - As três amigas

- Anda connosco, Sílvia! Não fiques aí pasmada a olhar os lilases! Vem ter

connosco, amiga!!!!!!!

Tinha sido sempre assim. Desde sempre. O apelo da natureza e das cores

sugestivas que emanam dos campos em flor sempre exercera um fascínio arrebatador

sobre Sílvia. Sempre a fizera ausentar-se de forma absoluta, flutuar, sentir a sua alma

desprender-se do seu corpo e rodopiar por entre folhas e borboletas e pássaros e

pinceladas de luz que se aninhavam nesta imagem imaculada e tão irreal.

- Anda connosco, Sílvia! Anda! Tira os sapatos que corres mais depressa.

Vamos chegar lá acima primeiro! Vais ficar para trás, amiga!!!!!!

Todos os anos nos primeiros dias de Primavera as três amigas juntavam os

cestos de verga transbordantes de pretextos para os sentidos e rumavam ao campo que

principiava a tarefa de verdejar e florir.

Eram três jovens bonitas que amavam a vida e pareciam querer vivê-la o mais

intensamente possível, cuidando que todos os momentos ficassem registados na película

virtual que habitava as suas memórias.

Rosa era a mais madura, parecia já ter nascido adulta. Gostava de ler Dickens e

Tolstoi e raramente estava arredada de uma conversa em que a cultura geral fosse

indispensável.

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-Pára, Rosa, estás a aborrecer-me! – Gritava Laura. Deixa-me em paz! Não

quero meditar, não quero reflectir, não quero medir as consequências. Quero viver!!!! –

e soltava uma gargalhada estridente que contagiava as amigas, desarmando-as de

qualquer intenção de manter a expressão firme e sisuda.

- Ah, ah, ah, ah!!!!! Vais ter de usar óculos amiga! Vais, vais! Não páras de ler!

Dou-te mais uns tempos e vais transformar-te numa toupeira de olhinhos fechados à

procura da luz!

- Anda cá já, Laura! Vou puxar-te essa trança horrorosa, vais ver quem é a

toupeira, vais ver os óculos! Anda cá, já!!!!

E deixavam-se cair, ausentes, na erva fofa que atapetava os campos primaveris.

Chegavam a passar horas a fio nestas tropelias e risos infantis em corpos de

mulheres.

Laura era a mais extrovertida de todas. Atrevida por natureza, já tinha encetado

diversas aventuras que haviam preocupado as amigas, mas, ao contrário dos receios de

Sílvia e de Rosa, a vida ainda não a tinha magoado a sério. Parecia possuir uma energia

inesgotável e competir entre pares com as forças da natureza.

Um dia, convencera um dos miúdos mais tímidos da turma a ir ver o pôr-do-sol

no alto do penhasco à beira da praia. Ele, encolhido e cabisbaixo, declinou o convite,

argumentando que os pais o iam buscar à escola e daí por meia hora já lá estariam, mas

quando deu por ele, já tinha sido arrastado por um braço e ignorado na expressão das

suas vontades.

A meio do caminho, entre solavancos e sacudidelas ainda lembrava que os pais o

esperavam, mas para Laura nada era mais divertido do que corromper os receosos.

- Há gente que tem medo de tudo - dizia ela. Medo de correr, de respirar, de cair,

de rolar no chão, de nadar no Inverno, de soltar gargalhadas, de amar alguém…

Assim sendo, sentia-se deliciada e quase como que incumbida de realizar a

missão de mostrar aos receosos o outro lado da vida, ensinando-os a descontrair.

Chegados ao penhasco, Laura estendeu a mão ligeiramente humedecida e puxou

o miúdo para junto de si.

- Anda! Senta-te aqui ao pé de mim!

Do alto do penhasco enorme e altivo a paisagem era absolutamente vertiginosa.

Completamente ausentes da noção de perigo, as pernas de Laura balançavam tombadas

no vazio.

- Não!!! É um precipício! – Gritava o rapaz, aterrorizado.

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- Não sejas medricas. Olha para mim. Vês? Eu não tenho medo. Basta que

tenhas cuidado e vais ver que vale a pena. Anda, senão amanhã conto à escola inteira

que não tens coragem e que é preciso uma rapariga para te ensinar a ser valente.

Muito a medo, mas motivado pelo orgulho agora ferido, o rapaz franziu a

expressão. Olhos, boca, nariz, tudo desapareceu num redemoinho que, de repente, lhe

surgiu na face e lhe engoliu a feição ao mesmo tempo que o petrificava. Sentou-se

muito devagar, de pernas esticadas. Só os pés ficaram de fora, não se atrevendo a

manifestar qualquer tipo de actividade.

- Por amor de Deus... Endireita-te, rapaz. Ainda apanhas alguma entorse! – e

arrebatou-o com um rompante para junto de si. Ele gemia baixinho tomado por um

terror ácido que o corroía enquanto Laura soltava as suas típicas gargalhadas ao mesmo

tempo que o abanava ininterruptamente.

- Estás a ver que consegues... Respira fundo. Vá! Agora, lentamente, abre os

olhos. Consegues ver lá ao fundo aquele pontinho a luzir? É um farol. Guia os barcos

que se aproximam da costa e entram nas nossas águas, mas eu gosto de imaginar que é

uma estrela que caiu do céu e ficou a flutuar à tona do rio. Talvez vivam lá sereias

encantadas ou elfos marinhos, se é que eles existem...

O rapaz tinha todos os sentidos adormecidos. O medo tinha-lhe gelado os

membros e a boca estava tão seca que não conseguia articular palavra alguma. Porém,

os olhos continuavam a captar imagens, embora o seu cérebro não as conseguisse

descodificar.

De facto, nunca tinha estado perante tamanha beleza, mas também nunca tinha

sentido tanto terror, tanta aflição. Era sempre tão organizado e calculava tão

rigorosamente o seu futuro, mas, ali, naquele momento, acabara-se o talento para a

estratégia inteligente ou a perspicácia infalível. Nem sabia se iria voltar a andar, nem

imaginava se iria continuar a viver...

Por detrás das suas figuras, surgiu, então, o barulho acelerado de veículos

automóveis. Vários. Diferentes, com certeza, pelo som díspar que cada um produzia.

Laura virou a face divertida, ainda entretida com a história do pontinho de luz a

flutuar na água e deu de caras com um autêntico arraial de gente que se aproximava de

si.

À frente, a encabeçar a multidão, destacava-se um homem alto e louro que se

encaminhava lentamente, mas a passos largos, dela e do rapaz.

- Calma – disse o homem. Vai tudo correr bem. Não se mexam. Fechem os

olhos. Quando os abrirem, já vão estar seguros. Calma.

- Está-se a passar! – Pensou Laura. Mas que circo vem a ser este? – gritou, já um

pouco nervosa. E, num salto, pôs-se de pé, puxando o braço do rapaz lasso e imóvel,

que era, assim, peluche inanimado na sua mão.

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Um casal de meia-idade, com um semblante carregado pela aflição correu a

resgatá-lo. A senhora, pequenina e muito redondinha, chorava e soltava uivos

estridentes que incomodavam ao mesmo tempo que o senhor, pai do rapaz

provavelmente, não se cansava de exclamar:

- Isto não fica assim, minha menina! Terás o devido castigo!

Ao fundo, nos últimos lugares de uma plateia improvisada sobre a ravina, Sílvia

e Rosa permaneciam expectantes, assistindo à cena. Ansiosas. Jamais incrédulas ou

atónitas. Conheciam bem demais a amiga e sabiam que a sua natureza irrequieta

facilmente propiciava estes vendavais inesperados para os outros mas perfeitamente

aceitáveis para elas.

Correram para junto da amiga e regressaram as três de mãos dadas no carro da

directora da escola, uma senhora intratável e nada compreensiva que se preparava para

mandar Laura para casa por uns dias.

- A escola é um sítio de aprendizagem e motivação para a vida. Não pode ser um

lugar onde um colega rapta outro e quase põe a sua vida em perigo. Jamais! Jamais

permitirei que tal volte a acontecer! Vou suspendê-la durante uma semana. Vai pensar

na sua vida! – e agitava o pulso cheio de pulseiras com pendentes que produziam um

barulho de chocalho irritante.

Enquanto Sílvia e Rosa ouviam quietas o ralhete da directora, Laura lançava o

hálito quente no vidro do carro e escrevia o seu nome, apagando-o depois com a manga

do casaco e repetindo a acção vezes sem conta. Tinha-se ausentado dali. Desligara os

sentidos e funcionava a meio gás, só com a imaginação. Por isso, não estava ali, estava

na sua estrela predilecta, aquela que flutuava à tona da água e era morada para sereias e

elfos marinhos.

No dia seguinte, lá estavam sentados à frente da directora os pais de Laura. As

três amigas ficaram do lado de fora do gabinete, aguardando o veredicto final, mas

Laura era a que menos preocupada parecia. Fez e desfez a trança cor de mel e riu das

caras das amigas, deixando-as furiosas.

Meia hora depois de terem entrado, os pais de Laura saíram do gabinete da

Directora que se desfazia em amabilidades:

- Até à próxima, senhor Menezes! Passe bem, senhora Menezes! Foi um prazer!

Incrédulas, Sílvia e Rosa assistiam àquele desfilar de boas maneiras e

compreensão nunca antes vistas na Directora, enquanto fixavam Laura que exibia um

sorriso sarcástico embora cabisbaixo.

- Em casa falamos, Laura Menezes. Em casa falamos. – ameaçou o pai.

- Não se apoquentem mais, senhores, a Laurinha fica bem connosco. Fiquem

descansados. – Repetia a Directora.

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Laurinha??? - Indagaram as raparigas entre olhares duvidosos.

À medida que os pais de Laura se iam afastando, as duas amigas olhavam

incrédulas, encolhendo os ombros e franzindo o sobrolho:

- Então, senhora Directora, a Laura vai para casa?

- Claro que não! Por favor... a Laurinha é uma menina inteligente e generosa. O

que se passou não vai repetir-se. Com toda a certeza. Vá meninas, vão estudar, vá! Já

estiveram aqui muito tempo.

Por conseguinte, o facto do pai da Laura exercer um cargo de grande

responsabilidade na Câmara tinha feito a Directora transformar-se numa pedagoga de

primeira, compreensiva para com a personalidade especial de Laura e disposta a prestar

todo o tipo de ajuda.

Este foi apenas um dos muitos incidentes que preocuparam Rosa e Sílvia.

Muitos outros se seguiram. Todos propiciados pela alma agitada de Laura que não tinha

maldade, mas precipitava tempestades. Tempestades acalmadas pelo cargo que o pai

ocupava, mais do que pelo amor e atenção que devia à filha.

- Corre, Sílvia! Não fiques para trás! Por favor, amiga, deixa de molengar! Tira

os sapatos, já te disse! Corres melhor.

Rosa bem se esforçava, mas era difícil espevitar a energia ténue de Sílvia.

Já no alto da pequena serra onde haviam decidido estender a toalha axadrezada

do piquenique, Laura acenava sem parar em jeito de vitória merecida na corrida ao

palácio encantado.

Adoravam aquele lugar quase mágico. Mesmo no topo da pequena serra, como

se de uma aguarela desbotada se tratasse, erguia-se sumptuosamente uma construção

antiga em ruínas. Dizia-se por ali que em tempos havia sido a residência de uma família

abastada que, não deixando herdeiros, partiu sem apontar quem perpetuasse o calor de

um lar outrora ardente em sentimentos e vivências.

Era frequente ver as três amigas por ali. Conheciam todos os recantos daquela

moradia. As escadas interiores em caracol, os restos de um jardim de Inverno de onde

ainda brotavam acácias amarelas e dálias brancas e o recanto mais encantado de todos -

o quarto no sótão, onde ainda permanecia, embora em avançado estado de degradação,

um espelho oval envolto numa moldura em talha dourada com dois anjos roliços no

topo, empunhando trompetas e anunciando boa ventura.

Tantas vezes se olharam naquele espelho. À vez, iam contemplando as suas

imagens reflectidas no espelho desgastado.

- Ui! – Exclamava Laura sempre inundada de espontaneidade – Que velhas! Ah,

ah, ah ah! Eu envelheci! Vocês estão velhinhas!

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- Chega-te para lá, Laura! Deixa-me ver! – Reclamava Rosa – Pois é, que

esquisito…. Brrrr… Não quero ficar velha!

- Velhotinhas!!!! – Gritava Laura, rodopiando à volta das amigas. E abraçava-as

com ternura na certeza de que iriam passar por tudo juntas.

O estado de degradação do espelho contrastava com a juventude florescente das

três amigas. Todas tão bonitas, de pele macia, olhos brilhantes e cabelos viçosos.

Sílvia era, sem dúvida, a mais bela das três. Parecia saída de um fresco

renascentista. O seu sorriso perfeito lembrava as pinceladas magistrais de Boticelli ou

Rafael. Tudo nela estava em sintonia. Tudo em comunhão precisa com a perfeição

estética. O nariz afunilado, a boca pequena, o pescoço esguio, o colo macio e simétrico

e até os cabelos dourados e os olhos de um azul celeste contribuíam para que

simbolizasse a visão da mulher clássica, quase petrarquista.

Mas o espelho era feroz na projecção do envelhecimento. Quando se colocavam

diante dele, as três amigas arrepiavam a expressão ao vislumbrar manchas amareladas e

imprecisão de contornos nas suas peles imaculadas.

- Vamos, para a sala! – Sugeria Rosa.

E assim, entre gargalhadas e correrias desciam as escadas que se transformavam

em escorrega animado por onde deslizavam alegremente até à ampla assoalhada que

abrigava a sala de estar com uma lareira enorme ao fundo e janelas corridas com

portadas majestosas embora muito danificadas pelo tempo. Dos reposteiros ainda presos

ao estuque pendiam tecidos esfarrapados que deixavam antever a anterior existência de

requintadas cortinas de uma textura sublime e nobres gravuras.

- Mas o tempo tudo desgasta, não é? – Suspirou Sílvia.

O tempo arreda de nós os sonhos e esgota-se de uma forma irredutível. Perante

ele nada podemos. Passa veloz, bruscamente e não nos deixa alternativa. Não o

apanhamos, por muito que o queiramos prender entre os braços ou encerrá-lo numa

caixa dourada e fechada a sete chaves com ferrolho inviolável.

O tempo gera vida, mas é também ele que a arranca de nós. É o tempo que incita

o bater do coração minúsculo que inicia a sua actividade, gerando vida e é ele que o faz

parar cansado e desgastado de tanto trotar dentro do peito agora desprendido e

encortiçado.

- Anda daí, Sílvia! Tira os sapatos, amiga! Vês os lilases depois. Não te cansas

de os olhar?

- Anda, já cá estamos há tanto tempo! Queres que vá aí abaixo buscar-te, amiga?

Vá. Eu vou aí. Eu dou-te a mão. Anda. Estamos à tua espera!

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Ao longe, ouviam-se claramente as gargalhadas estridentes de Laura. Rosa

exibia um olhar sereno de sorriso terno nos lábios e um livro de Dickens na mão.

Sílvia fixou os olhos nos lilases viçosos mesmo aos seus pés. Eram tão bonitos,

meu Deus… Trouxera-lhe a neta no dia anterior envoltos em película de celofane.

- Tira-lhes o plástico, meu anjo. Deixa-os respirar. Ficam mais bonitos assim,

despidos de ornamentos. São tão naturalmente belos… - pedira Sílvia.

- Anda, amiga! Vamos ficar aqui o dia todo? Dá-nos a tua mão. Vá, estamos

aqui. Nós ajudamos!

Sílvia suspirou delicadamente e fechou os olhos com tranquilidade enquanto se

despedia dos seus lilases.

Sem receio, estendeu a mão enrugada para as suas amigas que a abraçaram

carinhosamente, afinal haviam feito a promessa de que estariam sempre juntas. Sempre.

- Que saudades, amiga! Estávamos a ver que nunca mais chegavas….

Nesse mesmo momento, o tempo encarregou-se de fechar a porta e Sílvia partiu

com os lilases a seus pés.

Cláudia Cruz Catarino

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IV - O Combatente

O senhor Almeida é um daqueles raros exemplos de um combatente convicto que está

nesta vida, sobretudo, para lutar. Guerreiro destemido e implacável, o Almeida traz no

olhar o brilho incandescente dos heróis genuínos que habitam o nosso imaginário

infantil e alentam o nosso devir, inspirando atitudes nobres e decididas.

Aos setenta e dois anos, conserva a voz grave e poderosa, outrora tão valiosa em tempos

de combate que é, inevitavelmente, tempo de sobrevivência. Mas só nos olhos perdura a

bravura outrora empunhada. O corpo, esse, já treme e verga a cada passo que dá. As

pálpebras descaídas e lassas abrigam-lhe as órbitas, mas quase já não as seguram. As

mãos, trôpegas e arqueadas vacilam ao iniciar a escrita, e a boca, já tão sumida por entre

uma barba abundante e crespa, move-se sem grande sintonia com a velocidade incrível a

que o seu cérebro continua a operar.

Triste fado o deste combatente. Noutros tempos, as melenas de um castanho muito claro

pendiam-lhe sobre os ombros largos e varonis. Os olhos rasgados e expressivos

inundavam-lhe a face rubra e os dentes, qual mármore macio e muito branco,

compunham-lhe a imagem de um perfeito Adónis português.

As jovens desviavam o olhar para ele e sonhavam com o herói, o destemido, o

bravíssimo Almeida e ele, embriagado com a vaidade, conquistava-as como se de uma

luta a travar se tratasse.

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Quis o destino que o galante se apaixonasse por uma mulher mais velha. É que no fogo

ardente constante em que os seus vinte anos o faziam viver só aquela o completava. O

Almeida, apesar de jovem, já tinha descoberto que esta era a tal, a que o preenchia, que

o amaria como nenhuma outra, a que, para além dos prazeres mais mundanos que lhe

havia de proporcionar, seria a única capaz de lhe segurar a mão pela vida a fora, para

sempre.

Fizerem juras de amor eterno quando se apaixonaram. Para ela, ele era um misto de

coragem desmedida e necessidade constante de amparo. Amparo que ela sonhava dar-

lhe. Para ele, ela era o céu estrelado em que ele podia tocar. Aos seus olhos, todas as

maravilhas do mundo pareciam convergir para aquela mulher.

De facto, a Maria da Glória, Glorinha, como ele tão carinhosamente a trata, era uma

mulher muito interessante. Elegante, sem ser magra, bonita sem ser demasiado bela. Os

cabelos negros caiam-lhe em cachos macios pelas costas esguias e os olhos verdes

traziam-lhe um ar enigmático ao rosto comprido e muito feminino.

Tinha o hábito de perfumar suavemente o pescoço e o interior dos pulsos com um odor

de almíscar e flor de algodão e quando passava, o seu cheiro imortalizava-a. Para o

Almeida, era odor que hipnotizava para depois alucinar. Nenhuma das outras

rapariguinhas jovens com os seus aromas frescos a flor de laranjeira e jasmim haviam

despertado nele tamanho desejo, tão grande encantamento. Mas, a Glória…. a Glória era

outro universo, um mundo altivo que ele estava decidido a conquistar.

Hoje, volvidos cinquenta anos (meio século, meu Deus!) o Almeida e a Glorinha

continuam enamorados. Ele com setenta e dois, ela com oitenta e três… Precisam um

do outro como o dia exige que o sol nasça e o mar anseia que a brisa lhe toque

suavemente.

Quando fala na sua amada, na sua doce companheira, os olhos do Almeida transbordam

uma luz leitosa que lembra as águas cálidas do rio que o viu crescer. Dá-lhe banho,

penteia-lhe os cabelos e, todas as manhãs, desperta-a com um chá e um beijo quente,

embora trémulo.

Todos os Verões, vão em passeio pelo país e jamais aceitam que a vida cessou as

hipóteses de descoberta.

Às vezes, nessas viagens derradeiras que avizinham uma etapa que se impõe terminar,

param o carro num lugar privilegiado, de onde possam observar o pôr-do-sol ardente,

tão fogoso como as suas almas ainda crepitantes. Encostam as cabeças, olham-se nos

olhos cavados pelo tempo e o Almeida beija a sua Glorinha mesmo no interior do seu

pulso, onde ainda pode sentir com prazer o cheiro do almíscar e da flor de algodão…

Cláudia Cruz Catarino

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V - Pequenos horrores

Quando chegou, trazia consigo o cansaço de uma vida que arrastava com dificuldade.

Os olhos, de uma cor aguada e indefinida, deixavam adivinhar um passado demasiado

penoso e que jamais revelaria por palavras. Afinal, elas nunca seriam suficientes…

nunca dariam conta de tudo aquilo que se havia passado, das dores tremendas que havia

sentido, dos sofrimentos desmedidos, das visões horrendas de um inferno terreno.

Para lá da órbita ocular, um cérebro crepitante ainda fumegava. Sim, porque se notava

que já houvera incêndio naquela alma outrora refulgente. Mas, a vida foi-se

encarregando de jogar porções de água envenenada que, à vez, iam tortuosamente

apagando o fogo radioso que dantes aquecia.

Silenciosamente, o desespero foi-se apoderando daquela vida e enterrou com requintes

de crueldade a esperança, a fé e a crença num amanhã misericordioso. Entregou-se,

então, a todos os prazeres mórbidos que sempre se transformam em horrores solitários

repletos de desilusão e decadência mortais. Álcool, drogas, abandono de si mesmo.

Afastou todos aqueles que amava, fez ruir o seu pequeno mundo privado e deixou-se

afogar no fel que ele próprio gerava a cada dia que passava.

Nem sei como é que este pobre resistiu a tanto. No corpo, traz marcas profundas,

irreparáveis que nem deixam adivinhar-lhe o semblante de quando era jovem, mas é no

espírito que mais impera o desgaste. É lá, lá, onde se formam as emoções e se aninham

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os sentimentos. É lá que a tragédia impera e fustiga ainda e é nos seus olhos

inconstantes que tudo acontece diante de nós.

Quando encetei conversa com ele, confesso que me senti um pouco assustada. Retraí-

me, porque aquela figura quase dantesca, a princípio, dá medo. O cabelo desgrenhado, a

boca com uma dentição em pouca quantidade, os olhos ensombrados, cavados, ora

vazios, ora transbordantes. Arrepiei-me, de facto, confesso. E, depois, passados uns

momentos de conversa com ele, envergonhei-me da minha reacção inicial, porque

dentro daquela carcaça maltratada, dentro daquele crânio desconcertado, mora um ser

humano em potência a quem a vida parece estar a dar a tão desejada derradeira

oportunidade.

Todos os dias vem ter connosco e, quando não vem, dedica-se arduamente àquilo que

lhe é solicitado. Escreve, reflecte e assim vai purgando os males que o corroem numa

sinfonia surda, mas castradora e agonizante.

Bem sei que não diz tudo, ainda lhe dói brutalmente tocar em determinadas feridas, mas

a expiação vai acontecendo todos os dias sob o nosso olhar incrédulo perante a

capacidade humana.

Há dias, mostrou-me uma carta singela que guarda como tesouro precioso e delicado.

Tem a dimensão de uma oração divina que, colocada junto do coração e rezada

silenciosamente, dá vista aos cegos e voz aos que nada são capazes de pronunciar. Está

escrita numa letra redonda e feminina de caracteres muito juntinhos e alinhados. Traz

palavras de conforto e incentivo e apela ao bom senso ao mesmo tempo que reforça o

orgulho e contentamento sinceramente sentidos. Mas, o mais central e explosivo é a

ternura derramada na expressão «Amo-te muito, paizinho e estou sempre contigo ainda

que longe, fisicamente». Arrasa-nos, no bom sentido, é claro. E arrasa aquele pobre

dilacerado pelo arrependimento que é como mordedura de cobra que mata lentamente.

Duras provações, estas que o ser humano enfrenta sem nunca ter sido preparado para

nelas deambular. E, tudo isto remete-me, invariavelmente, para a reflexão exigida

quando somos espectadores de uma história assim. É urgente fecharmos os olhos, num

impulso introspectivo, e procurarmos todos os predicados valiosos que habitam em nós

e nos tornam humanos. Só os bons, só aqueles que geram vida, só aqueles que

confortam, que acendem a luz necessária, só aqueles que fazem de nós seres

infinitamente solidários e, por isso, tão humanos.

(Gosto de acreditar que, na batalha dos lados Bom e Mau que todos abrigamos, o lado

mais divino, ainda que, numa luta renhida, possa sempre levar a melhor. Pelo menos,

tenho tido o privilégio de constatar - e, por isso, não se trata de um laivo de romantismo

exacerbado - que isso é bem possível).

Cláudia Cruz Catarino

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VI - Hannah

Conheci a Hannah quando tinha acabado de entrar neste novo desafio profissional.

Chegou de mansinho, num português africano com sabor a mar e a sol quente.

A doçura dos seus olhos muito negros exprimia-se em uníssono com a pele escura e

seca pela vida de trabalho duro que deixava antever.

Sofria do coração. Ironia do destino quando o coração em causa me parecia tão bom, tão

humanamente saudável.

Tinha filhos e netos, uma família inteira que contava com ela e a quem ela entregava

toda a sua dedicação e sabedoria. Para além disto, ainda tinha a generosidade de

trabalhar com crianças diferentes, daquelas que só de ouvirmos os problemas que

carregam, arrepiamos e franzimos a expressão. Cozinhava para elas a minha doce

Hannah e temperava cada refeição com as especiarias que cultivava na sua alma que era

solo fértil em bondade e dádiva.

Lembro-me que trazia sempre um sorriso franco embora tímido e a subserviência

característica de quem nunca se achou melhor que ninguém. Agradecia-me todas as

minhas acções, ainda que banais ou automáticas e quando pronunciava o meu nome,

fazia questão de frisar cada sílaba «Que-láu-di-a…». Ainda a oiço ao telefone,

desculpando-se por não poder comparecer a uma reunião agendada, sempre tão

humilde, sempre tão amável.

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Uma vez, chegou-me cansada, ofegante para não se atrasar. O coração traiçoeiro, que já

a tinha levado à mesa de operações por duas vezes, teimava em fatigá-la e

comprometer-lhe a respiração. Neste estado, era ainda mais difícil compreender-lhe o

português afectado pelo dialecto africano que às vezes me transportava para o universo

dos nativos.

Era uma verdadeira festa quando estávamos juntas. Aquela alegria tão primordial, tão

ausente de malícia, deixava-me completamente embevecida e a empatia era mesmo

inevitável. Ríamos, brincávamos sem maldade, sem dissabores, sem desconfiança,

trocávamos histórias de vida, preocupações, angústias, mas felicidades também.

Ela perguntava-me sempre pelos meus «mínimos» que dizia tão lindos quando os

olhava nas fotografias e, por confiar em mim, levava consigo os netinhos que a fixavam,

divertidos na complacência da sua limitação infantil. Para mim, guardavam expressões

cúmplices e sorrisos marotos que ondulavam ao sabor das marés que as minhas palavras

pareciam originar.

«Cumprimentem à dotôra, mininos!», exclamava Hannah no seu tom firme, mas

delicado. Eles esgueiravam-se por entre as mesas e as cadeiras em manifestação

provocatória e quase sempre me pediam bolachas doces, tão doces como os seus

olhinhos brilhantes, tão doces como o semblante da avó. E, no final, o beijo lambuzado

na minha bochecha era a moeda de troca a par com os sorrisos que transbordavam um

misto de inocência e tropelias que se avizinhavam.

Era com orgulho e brio que Hannah falava da sua cultura, tão cara e tão imensamente

sua. As fotos que me trazia eram para mim imagens extraídas de um filme quase

surrealista. Fatos pomposos, coloridos, repletos de remates e purpurina; cabelos

eriçados num penteado extravagante ou cobertos por um turbante vistoso; os corpos

adornados por jóias magníficas e ouro, muito ouro; a maquilhagem sofisticada e intensa

que se destacava nas fotos já envelhecidas ou danificadas porque mal acondicionadas.

E, por último, a pochete, minimalista, mas de um estilo quase barroco pelos dourados e

drapeados que exibia sumptuosamente.

Era quase como estar diante de uma dupla personalidade. Como é que alguém tão

simples e desprovido de vaidade pode passar por esta metamorfose? «São os côstumis,

dotôra, são os côstumis….», justificava a minha Hannah. E assim é. Na comunidade à

qual ela pertencia, cada dia de festa nunca era celebrado pela metade. Se o ambiente era

festivo, havia que fazer jus e elevá-lo sempre à categoria de cerimónia! E, por isso, a

minha simples cozinheira, avó, mãe e protectora dos aflitos saía do casulo e

transformava-se numa linda borboleta sempre que a ocasião assim o exigia.

Quando chegámos ao fim, reconhecemos que, efectivamente, a sua maior dificuldade

era a expressão escrita. Constatação injusta para quem comunica oralmente com tanto

empenho e expressividade. Mas, os anos de infância roubada sem ir à escola impunham

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agora as suas consequências e, de facto, era penoso o acto da escrita para a minha

Hannah. Fugiam-lhe as palavras, multiplicavam-se as hipóteses de escolha nas situações

ortográficas e as palavras não davam conta do manancial de sabedoria generosa que se

agitava no intelecto deste ser humano maravilhoso.

Há pessoas que nos tocam e, por isso, se tornam especiais, mas há aquelas que

permanecem dentro de nós e nos guiam, porque nos ensinam quando entram de

mansinho, num português africano com sabor a mar e a sol quente, mudando para

sempre o nosso modo egoísta e narcísico de enfrentar o mundo.

Cláudia Cruz Catarino

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VII - Doce Pátria

Era uma lojinha pequena e muito amistosa que servia de ganha-pão a um casal de ex-

emigrantes que, após anos a fio a laborar em terras alheias, resolvera, agora, regressar à

pátria calorosa e redimida.

Lá dentro, cinco ou seis mesas decoradas com um gosto supostamente cosmopolita,

atendendo a que se fazia notar a necessidade de evidenciar as modas trazidas «lá de

fora», como gostavam de sublinhar ao comum transeunte que por ali passasse para

saciar a sede ou beliscar qualquer coisinha…

Ao fundo, na parede mais destacada, erguia-se uma sumptuosa pintura que dava conta

de uma paisagem característica do lugar de onde haviam regressado – um lago enorme

de um azul pastoso com imensos verdes eléctricos em volta e, no centro, um imenso

repuxo acompanhado da respectiva legenda que reportava à cidade retratada e que dava

nome ao estabelecimento comercial.

Era de facto extraordinário comprovar o quanto a alma portuguesa é nata e nunca

abandona aqueles que por aqui nascem e por aqui são iniciados nas artes de se ser

lusitano. Aquela pintura berrante e repleta de tons em esmalte, os mesmos que cobrem

as embarcações do Sado, jamais poderia ser proveniente do sítio ali imortalizado.

Não porque os outros sejam melhores ou menos afectados. Simplesmente, porque os

outros, aqueles que ocupavam metade do meu campo de visão dentro daquele exíguo

cafezinho, não eram, de todo, portugueses, nem tão pouco setubalenses. Nas veias, não

lhes corre o folclore tradicional, o perfume fresco do pescado acabadinho de chegar nas

traineiras sorridentes que cantam e dançam por entre as ondas do Rio Azul. Nas veias,

jamais lhe correram os gritos das gaivotas, o cheiro tóxico das tintas que retocam as

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pequenas embarcações atracadas na doca e que são princesas imaculadas nas mãos dos

homens-artistas que lhes dão nova vida, tingindo-as de luz.

Há anos atrás, ambos haviam chorado lágrimas sem fim ao tomarem a dolorosa decisão

de ir para fora, deixando a sua amada pequenina aos cuidados de uma avó. A bebé,

ainda redondinha e rosada, tinha apenas dois aninhos quando viu os pais saírem, à

procura de um futuro melhor. Para eles. Para ela. E aquele minúsculo cafezinho situado

na baixa de Setúbal era agora troféu erguido em jeito glorioso de merecida vitória. Era a

prova de que tinha valido a pena. De que não tinha sido em vão.

Eram um casal curioso. Ambos bem constituídos e de olhinhos brilhantes e bochechas

coradas, irradiavam calor humano e uma conversa absolutamente irresistível. Ela,

principalmente. Num sotaque sadino carregado, desfiava alegremente o rol de

acontecimentos dos últimos dias. O último casamento, a próxima loja a abrir nas

redondezas, as doenças dos que por ali paravam e até as mortes daqueles a quem nem

tínhamos chegado a conhecer, mas que eram primos de um tio do amigo da irmã….

Quando lá ia debicar um saboroso café, perdia-me naquele manancial de histórias,

historinhas e historietas contadas em jeito de epopeia. Não pelo seu conteúdo, não pela

densidade semântica das frases enunciadas, não pelo potencial literário (na altura tema

central dos meus estudos), mas pela capacidade dramática, pelo tom eloquente, pelo

pensamento único acompanhado do gesto adequado, da expressão conveniente.

A pronúncia arrastada dos rrrrrs, aquele terminar das sílabas que nunca acabavam em

«o», mas em «e» - o menine trrrrôxe-me o sapate. Tudo tão meu, tudo tão familiar, tão

envolto em memórias de uma infância vivida entre as Fontaínhas e Tróino, entre peles

queimadas pelo sol que a enruga e esbate, entre cigarros fumados até à última baforada

e histórias com sabor a sal, areia e conchas.

Guardo no meu coração as melhores recordações de quando era criança feliz e livre.

Quantas vezes descia as escadinhas da estacada que dá para o rio e onde o meu pai se

distraía enquanto pescava. Quantas vezes me imaginei a escorregar nos limos macios e a

cair mesmo no último degrau e mergulhar de cabeça dentro de água. Molhar os pés era a

delícia suprema, trazer pedrinhas e conchinhas a tarefa obrigatória em dia que

acompanhasse o meu pai. Subia e descia as escadas vezes sem conta e controlava com

perícia os peixes que se iam acumulando dentro do balde que o meu pai havia

providenciado para o efeito. Lamentava sempre a sua sorte, concluía que não queria tal

destino para mim e assim afastava a ideia peregrina de querer ser sereia. Tantas vezes

me assolou esse desejo tão feminino. Imaginava-me a deambular pelo fundo do mar

com cabelos enormes e um corpo meio mulher, meio peixe. Sempre com uma flor por

cima da orelha, sempre com olhos azuis…

Que fantasias habitarão os corações dos meninos que nunca viram o mar? Que algas se

agitam no fundo das suas almas térreas?

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Aquele casal simpático e afável, sempre risonho, sempre gentil, trouxera consigo um

som diferente nas sílabas agora musicadas, trouxera retratos de outras paisagens,

memórias de outros cursos de água, mas a doce pátria e a cidade natal acenavam de

dentro deles continuamente, intimamente, de um modo desconcertante e incontornável.

No fundo, aquele rio suíço eléctrico que a parede central ostentava no ponto mais

estratégico do cafezinho mais não era do que o Sado vaidoso e ondulante, o único

pedaço de mar que os seus corações realmente conheciam e sinceramente amavam.

Cláudia Cruz Catarino

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VIII - Antes e depois

Vivi a minha infância ainda num tempo salutar em que se corre na rua e se brinca até ao

pôr-do-sol sem receios, sem impossibilidades.

Naquela altura radiosa e descomprometida, brincava aos crescidos, fazendo refeições

apetitosas com pedrinhas e todo o tipo de plantas que crescessem ali por perto da minha

casa. Eram jogos de faz-de-conta sofisticados em que o mesmo objecto assumia funções

diversas e radicalmente diferentes umas das outras. Por conseguinte, aquela pedrinha

ora servia de refeição, ora cumpria a troca monetária exigida na ida ao supermercado

ora se transformava em arma de arremesso quando o tema da brincadeira eram os

cavaleiros que salvavam as princesas e, para tal, havia que desafiar os maus.

Naquela altura, tudo acontecia a fingir e a fingir íamos assimilando o mundo que

chegava a nós pela porta dos sentidos.

Passei os meus primeiros anos de auto-consciência dividida entre dois espaços afastados

geograficamente, mas próximos nos afectos deliciosos que ambos ofereciam – a minha

casa, em Tróino e a casa da minha bisavó nas Fontaínhas.

Por um lado, a minha casa, o meu quintal, a minha rua. A minha rua era um mundo, o

universo todo contido num punhado de metros quadrados, elevados à categoria de reino

quando a brincadeira assim o exigia.

Em noites de Verão abafadas, lembro-me tão bem de me sentar no degrau da porta de

um vizinho já franzido que me deliciava com as suas histórias. Já não me recordo dos

temas de conversa, mas vem-me muitas vezes à memória o quanto me deliciava a sua

companhia.

Nos Santos Populares, saltávamos a fogueira, divertidos, extasiados. Eu e o meu irmão,

tão pequenito, na época, competíamos na categoria de salto mais alto e mais comprido.

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Que manhosa era eu, nesta altura, tão ciente de que seria a vencedora, não me

separassem dele seis robustos anos…. Ainda sinto o cheiro a madeira e o crepitar alegre

daquele fogo animado por canções e rimas populares. O cheiro acre dos orégãos que

temperavam a indispensável caracolada e que nós tanto apreciávamos…

O quintal da minha avó era outro espaço encantado. Lá habitavam os nossos animais, e

sempre tivemos muitos: cães, gatos, galinhas, patos, todos companheiros de

brincadeiras, todos protagonistas na nossa imaginação proeminente.

Não éramos muitas crianças naquele lugar, mas eu, o meu irmão e o meu primo lá nos

íamos empenhando em dar vida suficiente àquele espaço. Subíamos ao limoeiro, à

ameixeira (com enxerto de damascos!), às arrecadações…. Naqueles tempos éramos

mesmo autênticos trepadores! Nada nos escapava, o mundo inteiro era nosso.

Desafiávamos os nossos limites, testávamo-nos incessantemente e descobríamos à nossa

custa, à custa de muitos arranhões, esfoladelas e nódoas negras aquilo que podíamos e

aquilo que não podíamos, o Bem e o Mal, o perigoso e o permitido.

O outro recanto da minha infância, reporta ao bairro das Fontaínhas, sítio caro à minha

família materna, uma vez que esse ramo genealógico tem lá a sua origem.

As Fontaínhas é um bairro pequeno, tipicamente setubalense, que mistura pregões no ar,

com cheiro a maresia e gente que vive da faina do mar. Lá morava a minha querida

bisavó, figura constante no meu coração e para sempre protectora dos meus

pensamentos. Lembrá-la é recordar a dedicação à família, a conversa fluida, a inocência

calorosa de quem não conhece os livros, porque não os consegue ler, mas é douta na

ciência da vida.

A sua casa, escondida num minúsculo bataréu, convidava à entrada, sempre de porta

aberta e disponível. Lembro-me que lá dentro encontrava uma sala ampla dividida em

dois espaços distintos – sala de estar e cozinha e uma outra divisão – o quarto. Noutros

tempos, moraram lá os meus bisavós mais os seus seis filhos, três rapazes e três

raparigas, entre elas a minha avozinha. Sempre felizes.

Na mesa da sala, decorada com o indispensável naperon e uma jarra com flores

artificiais, havia sempre um frasco de «Tofina» com uns deliciosos rebuçados

embrulhados em papel branco. Mal chegava lá, sorrateiramente e sem ninguém se

aperceber, tirava um ou dois e que bem me sabiam. Só mais tarde vim a aperceber-me

que, afinal, aqueles doces rebuçados eram pastilhas para a acidez no estômago! Ainda

me vem um sorriso aos lábios quando penso nisso.

Nas Fontaínhas, também a rua contígua à casa da minha avó era muito apetecível:

ladeiras, uma escadaria enorme, muros para trepar, enfim, um paraíso para a criança que

eu era, na altura. Quando para lá ia, brincava até não poder mais. Se fechar os olhos

ainda consigo ouvir o apito do comboio que ali passa perto. Estremecia tudo à sua

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passagem. Os copos tiniam, os móveis abanavam e nós éramos sacudidos e aturdidos

pelo som estrondoso. Mas, era tão divertido!

Hoje, passadas décadas sobre estes momentos encantados de alegre irresponsabilidade

infantil, pergunto-me quais serão as recordações que os meus filhos guardarão quando,

também eles atingirem os trinta.

Vivem encurralados, num tempo de medos, de ansiedades, de super pais e super mães

que tudo controlam porque os amam e tudo fazem para que nada de mal lhes aconteça.

Mas, questiono-me muitas vezes sobre o direito à privacidade, à individualidade, a esse

aprender por si próprio que é tão construtivo e edificante.

Hoje, vigiamos os nossos filhos em todas as suas tarefas. Não saem sozinhos, raramente

brincam sem estar a ser observados e, ainda que de forma não intencional, controlamos

as suas atitudes ao pormenor. Não deixamos que guerreiem, evitamos as quedas, não

permitimos que trepem às árvores e observem lá do alto, numa outra perspectiva, o

mundo em seu redor. Limitamos, portanto, as suas descobertas ao nosso pensamento

adulto altamente socializado e esquecemo-nos que uma criança tem direito à

irreverência, à inconstância, a cair e a erguer-se numa dinâmica de aprendizagem

contínua.

O meu filho mais velho tem hoje quase dez anos e contam-se pelos dedos de uma mão

as vezes que já se magoou a sério e, se faz um arranhão, eu quase desfaleço – meu

querido menino! Na idade dele, quantas vezes já tinha eu caído com a minha bicicleta,

quantos esfolões nos joelhos e nos cotovelos por conta de me atirar das escadas do meu

quintal. Eram cinco degraus e a lógica era ir saltando cada vez mais alto…. Tenho

pequenas cicatrizes nas canelas, e nos joelhos que remanescem ainda dessa altura.

Curioso…. Naquela altura, partíamos a cabeça. E havia quem batesse recordes absolutos

de tantas vezes que tinha de ir ao hospital ou ao posto médico cosê-la! Hoje, raramente

isso acontece (e ainda bem! – diz este coraçãozinho de mãe aflita e ciosa das suas crias).

Mas, insisto, embora desconhecendo o remédio para tal ansiedade, que consequências

teremos desta educação superprotectora que dá pouco espaço às aprendizagens feitas à

maneira da criança, sem supervisões ou aconselhamentos adultos constantes?

Preocupa-me isto e preocupa-me, sobretudo, porque enquanto mãe, enquanto ser

totalmente rendido ao amor que sinto pelos meus filhos, não sei lidar com esta situação.

Lamento que eles não tenham hipótese de fazer jantarinhos com pedrinhas e brincar aos

cavaleiros que salvam princesas sem o dedo castrador do adulto que ora proíbe, ora

entra na brincadeira, conspurcando-a com o seu espírito crescido (como se fosse

possível recuperar a infância perdida!).

Sim, porque hoje é muito comum ouvirmos os pais dizer que brincam com os filhos. Os

especialistas aconselham-no e eu, pessoalmente, também o faço. Mas, embora acredite

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que os pequenos apreciem a nossa companhia, ela não substitui, de modo algum, a de

outra criança ausente de censuras, estereótipos e preocupações… Nós já não somos

crianças. É um facto. Ser criança é um estado que todos experimentamos mas ao qual

não conseguimos regressar, por muito poéticos, metafóricos ou sonhadores que

possamos ser. Trazemos connosco uma experiência de vida que não se apaga, uma

personalidade definida e isso é condição inegável para nos ser vedada a entrada no

universo descomprometido das crianças. Ao entrar nele, contaminamo-lo com o nosso

conhecimento das coisas, com a nossa incapacidade de nos surpreendermos perante o

desconhecido que, afinal, tão bem conhecemos. Profanamos um mundo sem igual, onde

se é feliz sem pensar nisso e onde o espanto é uma constante e um motivo de evolução.

Bem sei que, nos dias de hoje, vivemos dicotomias persistentes em relação ao que

esperamos das nossas crianças.

Fruto de uma sociedade mais escolarizada e tida como a «sociedade da informação»,

por um lado, exacerbamos o nosso papel de pais e educadores e sufocamos os nossos

filhos com pedagogias incisivas e direccionadas à importância de se ser criança, ao

mesmo tempo que, por outro lado, exigimos delas desempenhos intelectuais engenhosos

e sofisticados próprios dos adultos.

Testamos a sua inteligência continuamente, oferecemos-lhes computadores, pens,

MP4s, comandos de televisão e DVD. Estimulamos neles a importância do gosto pela

leitura, pela escrita e pela pesquisa activa dos temas culturais mais relevantes. Eles

reagem. Magistralmente. Como seres dotados de extraordinárias competências de

inteligência e adaptabilidade, superam-se e superam-nos, como não podia deixar de ser.

É a evolução geracional a cumprir a sua missão de aperfeiçoamento. Mas, perdem em

natureza, perdem em chão e em pedrinhas e em árvores que se trepam e em muros que

se pulam e fogueiras que se saltam e em joelhos esfolados e em rebuçados para a acidez

no estômago….

Bem sei que os tempos mudam e toda esta reflexão faz prova disso. Bem sei que este é

o sinal claro de que estamos a tentar cumprir o nosso papel e a prepará-los o melhor que

sabemos e podemos para o futuro que se avizinha e que será, sobretudo, o deles. Um

futuro diferente do nosso, ainda mais competitivo, ainda mais sublimado na tecnologia e

nas máquinas que tudo operam. E quando assim penso, descanso um pouco. Não posso

é deixar de lamentar que eles não conheçam, como eu conheci, os prazeres de viver

despreocupadamente, sem responsabilidades sufocantes e desempenhos de excelência

envoltos em contornos de obrigatoriedade…

Cláudia Cruz Catarino

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Epílogo

Portugal, pátria de poetas e romancistas, pequenos e grandes, anónimos

e de nome consagrado.

Beirando o mar, como um jardim plantado em encostas agrestes,

desfolhando palavras que o vento leva em sussurros para além do nada.

Consulte o espaço de Cláudia Cruz Catarino e leia a sua obra completa.

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