ciência e o sentido da vida v

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ciencia esentido da vida

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CAPTULO V A LINGUAGEM

1. A LINGUAGEM EM QUESTO

Um professor de filosofia da Sorbonne afirmava h pouco tempo que a importncia actual da filosofia da linguagem sobreestimada: a linguagem funciona muito bem e no justifica o volume de estudos que lhe so dedicados. Mas todo o percurso que acabamos de fazer converge para ela. E se verdade que um filsofo pode ficar satisfeito com o avano das pesquisas neste domnio, ns, os cientistas, e talvez os leitores do meu livro, temos necessidade de saber em que ponto nos achamos. De resto, os tcnicos de informtica no esto nada convencidos de que tudo tenha sido dito, de tal modo so difceis os problemas que eles encontram. Examinmos a maneira como a fsica opera, fabricando modelos abstractos da realidade, para s reter deles os elementos que se pensa serem importantes, inventando seres que, segundo ela, permitem explicar os fenmenos observados. Eles so designados por palavras: que representam eles? Conceitos? Objectos materiais? As lnguas naturais so muitas vezes ambguas, podendo a mesma frase ser interpretada de maneiras diferentes. Ser possvel que as afirmaes da fsica apresentem uma tal ambiguidade? Se no, qual ento a natureza da linguagem da fsica, para que se distinga assim das lnguas naturais?

Vimos que a matemtica partiu da observao do real, enumerando os carneiros e medindo as superfcies. Depois, os nmeros e as figuras afastaram-se destas observaes concretas para se tornarem em seres abstractos que nenhuma realizao concreta explica verdadeiramente. Ao mesmo tempo, a lgica encarregada de fornecer as regras dos raciocnios vlidos reconhecia-se como formal: ela no se ocupa daquilo que as proposies em causa querem dizer, mas apenas da maneira como as suas formas se encadeiam. Chega-se assim noo de sistema formal: um alfabeto de caracteres, regras de sintaxe, axiomas, funcionando o todo neste nico nvel, mas podendo ter eventualmente uma ou vrias interpretaes. Tambm aqui nos afastamos das lnguas naturais: as nossas frases no so, em primeiro lugar, combinaes de letras arranjadas segundo uma sintaxe, elas so portadoras de um sentido. Qual a natureza da linguagem matemtica?

A informtica alarga o problema. Tal como as outras cincias, ela diz-se com uma linguagem, que no deve ser ambgua. Para dizer os seus programas, ela fabricou as suas linguagens, para ter a certeza de que uma frase no pode ter seno uma interpretao. Mas, alm disso, os seus tratamentos operam sobre uma linguagem: ela trata informaes, sequncias de caracteres escritas com um dado alfabeto, segundo regras de sintaxe. Essas informaes so representaes dos conhecimentos dados. As sequncias de caracteres que resultam do tratamento das informaes dadas, sobretudo por computador, representam os conhecimentos resultados. Com a condio, evidentemente, de que um tratamento de um texto a partir apenas da sua forma arraste verdadeiramente ao do seu sentido. uma questo tremenda que se pe acerca da linguagem: a forma implica o sentido?

Assim, todas as cincias examinadas aqui pem, a um nvel de maior ou menor urgncia, a questo da linguagem. Ns temos desta noes intuitivas. De certa maneira, ela de tal modo familiar que no a vemos. Falamos, lemos, escrevemos, trocamos ideias sem nos interrogarmos acerca do que assim questionado. Aprendemos na escola as belezas e subtilezas da nossa lngua materna. Mas, saberemos ns, na verdade, o que est por detrs das palavras forma, sentido? No podemos evitar uma reflexo sobre a linguagem. No tentaremos fazer uma apresentao completa da lingustica, isso est fora da nossa competncia. Seguindo fielmente o mtodo adoptado at aqui, limitar-nos-emos a dar alguns pontos de referncia para ilustrar a evoluo das ideias sobre a linguagem, e apresentaremos de modo breve as noes de maneira a esclarecer o problema do uso da linguagem nas cincias.

2. O NOME A PESSOA

Tomamos a Bblia como testemunha de uma concepo da linguagem, sem procurar dizer se ela foi a primeira nem se ela desapareceu actualmente: verosmil que algumas culturas continuem a assentar nesta concepo. Para os Hebreus, o nome a pessoa: dizer um nome, dizer que ela , , de certo modo, ter poder sobre ela. Para tornar manifesto que o homem o senhor da criao, o Gnesis diz que Deus mandou desfilar os animais diante dos homens para os nomear (e, em ltimo lugar, veio a mulher, e Ado disse: Esta , na verdade, carne da minha carne e osso dos meus ossos. Ela ser chamada mulher.) Moiss, vendo uma sara em chamas sem se consumir, aproxima-se da apario e pergunta-lhe: Qual o teu nome? Segundo algumas tradues, o Senhor responde: Eu sou quem sou (no me entregarei a ti dando-te o meu nome); para outras tradues: Eu sou o eu sou: Deus define-se nomeando-se como o ser por excelncia, ele d-se pelo mesmo gesto. O nome est de tal modo ligado pessoa que esta no pode mudar de maneira profunda sem mudar de nome: Abro, por ter respondido ao apelo de Deus, torna-se Abrao, Simo torna-se Pedro, Sal torna-se Paulo. O nome a tal ponto a pessoa que, para So Joo, preciso que saibais que tendes a vida eterna, vs que credes no nome do Filho de Deus. Para So Paulo, Cristo fez-se obediente at morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que est acima de todos os nomes. Hoje, temos alguma dificuldade em medir a fora de tal afirmao. Que pensaria uma menina se a professora lhe dissesse: Resolvestes bem o problema. Daqui em diante chamar-te-s a gemetra! Se bem que...

Mas Plato, em O Crtilo, interroga-se acerca do nome: Temo-lo por natureza, ou o resultado de uma conveno? Se dado por conveno, ento estranho coisa ou pessoa, ele no a pessoa. Mas grave nomear uma coisa, o nome s pode ser escolhido pelo nomoteta, legislador e bom instrutor. Ele nomeia as coisas olhando para os nomes naturais de cada objecto: assim, ainda que dados por algum, os nomes pertencem por natureza s coisas, a conveno apenas descobre o verdadeiro nome, aquele que a coisa. Este dilogo um movimento entre as duas teses, sendo o nome dado convencionalmente por um legislador sabedor quanto basta para ver a natureza do objecto, de tal modo que o nome est de acordo com esta. Umberto Eco nota um certo parentesco com a narrativa do Gnesis: o nome dado por Ado (o nomoteta) de maneira arbitrria, mas coerente com a natureza de cada animal.

Temos ns sado completamente desta perspectiva? Um doente no gosta de ser designado pelo nmero da sua cama no hospital: eu no sou o doente da 17, tenho um nome... Ns no estamos dispostos a deixar que nos chamem pelo nosso nmero da Segurana Social, teramos a impresso de perder a nossa personalidade. Um psiquiatra contou que tratava de uma pequenita, digamos que se chamava Corlia, que tinha graves perturbaes da personalidade. Colocou-a diante de um espelho e perguntou-lhe: Que que vs? Vejo um nariz, uma boca, dois olhos, um vestido, - respondeu Corlia. E por detrs? Es tu. E o psiquiatra disse-lhe: E isto, a Corlia. A pequenita sorriu: enfim, tinha-se identificado. Pelo nome, ela tinha-se reconhecido como pessoa e no j como uma reunio de partes do corpo e de vesturio. O nome , de certo modo, a nossa primeira maneira de nos reconhecermos. Um rapazinho, ao ver-se na fotografia, dir em primeiro lugar: o Pedro, antes de dizer: Sou eu. Tal como dir: o brinquedo do Pedro, antes de dizer: E o meu brinquedo. A educao ensina-nos a tornar relativa a importncia do nome: Romeu, deixa o teu nome e por esse nome que no uma parte de ti, toma-me inteiramente. Mesmo que saibamos que o nome no a coisa, ele tem para ns uma grande importncia.

3. A PALAVRA E A COISA

Santo Agostinho, no sculo IV, distingue dois aspectos do nome: o som e a coisa que ele designa. Aquele que ouve a palavra temetum ouve trs slabas, e nada mais se no souber que uma velha palavra latina que designa o vinho. Deste modo, o nome tem o estatuto de um sinal: uma realidade material (um som, uma escrita) que remete para uma realidade de ordem diferente, que a sua significao. O nome est ligado coisa por meio de uma conveno, e preciso conhec-la para poder utilizar o nome. Na mesma poca, Porfrio pergunta-se se os termos gerais que designam os gneros e as espcies em que se podem classificar os indivduos designam uma substncia (pormenorizaremos isto mais adiante), mas recusa responder a esta pergunta.

Os gramticos da Idade Mdia do o passo e perguntam-se de que natureza aquilo para que o nome remete: se a palavra cadeira designa efectivamente aquilo em que agora me sento, que designa a palavra vermelho? Heiric dAuxerre, no sculo IX, di-no-lo explicitamente: Se se disser branco, preto, de modo absoluto e sem uma substncia prpria e determinada que contenha o branco ou o preto, no se poder mostrar com isso uma coisa determinada, a menos que se diga homem branco ou cavalo branco, ou o mesmo com preto. Vai-se assim desembocar na querela dos universais, as ideias gerais so apenas conceitos. Segundo Bernard de Morlaix, monge do sculo XII, Stat rosa pristin nomine, nomina nuda tenemus (Uma velha rosa existe apenas por um nome, ns temos nomes vazios) e isto retoma Franois de Malherbe: E como rosa ela viveu o que vivem as rosas, o espao de uma manh. A querela sobre a existncia das ideias gerais culmina no nominalismo de Guilherme de Occam. Este distingue os modi signandi e os modi significandi, que de Saussure traduzir por significado e signficante. Umberto Eco faz reviver estas ideias em O Nome da Rosa. Guilherme de Baskerville (sobre o qual plana a sombra de Guilherme de Occam) v frades que saem do convento e que caminham sob o comando do celeireiro: Vs andais procura de Brunel.... A Adso De Melke, que se admira de ele ter podido assim adivinhar o nome do cavalo, Guilherme responde: Vi vestgios de patas na neve tinha ento o conceito de cavalo; depois vi crinas negras presas bastante alto numa moita, provando que se tratava de um cavalo preto de grande tamanho. Para o celeireiro em pessoa vir procura dele com vrios frades, preciso que seja importante... Assim se passa do conceito de cavalo a um cavalo concreto: Brunel.

A distino entre significante e significado pe numerosas questes. Se o nome no a coisa e se est ligado a esta apenas por uma conveno, como que um raciocnio que articula palavras entre si poder atingir as coisas? Segundo Michel Foucault, o sculo XVI acreditava na ideia de assinatura, talvez em germe em Plato. H entre o sinal e o que ele significa uma similitude que traz essa significao: a noz pilada no lcool cura as dores de cabea porque se assemelha a um crnio, com a sua dura carapaa e os seus hemisfrios; a folha de alcachofra boa para o fgado porque tem o amargor do fel... Em numerosas lnguas, a palavra que designa a serpente assobia como ela. Desde logo, conveno, sim, mas fundada nesta similitude. O arbitrrio desapareceu, a palavra ainda a coisa. Mas s o de maneira oculta, dado o pecado de Babel.

No sculo XVII, est consumada a ruptura:

What is a name? That which we call a rose

By any other name would smell as sweet.

Na segunda das Provinciales, Pascal explica: H duas coisas nesta expresso de graa suficiente: h o som, que apenas ar; e a coisa que ele significa, que real e efectiva. Assim afirmada a distino entre significante e significado, mas fora do nominalismo, porque a coisa significada real. Quando Blaise Pascal trata da imposio de nome, ele diz que, tendo forjado um conceito expresso com frases, toma-se uma palavra que se esvazia da sua significao anterior e se liga a esse conceito. J no h nenhum liame entre a palavra e o conceito alm da deciso daquele que impe o nome. Mesmo assim preciso que a deciso, uma vez tomada, seja respeitada. As duas primeiras Provinciales nada mais dizem: jesutas e dominicanos entendem-se para condenar os jansenistas, empregando expresses poder prximo e graa suficiente em sentidos absolutamente contrrios: para uns, a graa suficiente tudo de que se necessita, para outros ela no d fruto sem a graa eficaz. E Pascal a fustig-los: vs no podeis estar de acordo e dais sentidos diferentes mesma palavra; vs no podeis impedir que o senso comum tenha uma concepo da palavra suficiente contra o qual vai a ideia de graa eficaz.

Estas ideias sero retomadas por Ferdinand de Saussure no seu Cours de linguistique gnrale. Numa palavra, ele distingue o significante (o som ou as letras da palavra), o referente (aquilo de que se fala), o significado (aquilo que dele se diz). As palavras operam por diferena: utilizar uma palavra fazer uma escolha entre todas as que eram possveis, rejeit-las todas excepto uma. A linguagem articula-se segundo duas dimenses: uma dimenso sintctica, que a do arranjo dos significantes segundo regras de gramtica; uma dimenso pragmtica ou simblica, o universo das significaes para as quais as palavras remetem. Mas, para Saussure, distinguir o significante e o significado no separ-los. No possvel que este animal se chame gato um dia e co no dia seguinte. Significantes e significados esto entre si como as duas faces de uma medalha: no se podem separar a no ser quebrando a medalha.

4. O NOME PRPRIO

Os nomes prprios designam uma pessoa nica, perfeita e totalmente determinada desde que o nome dado. Martin Luther King designa esse pastor negro que se bateu sem violncia pela igualdade cvica nos Estados Unidos. O nome no a pessoa: com um nome completamente diferente, a aco desse pastor teria sido igualmente notvel. O nome prprio age por diferena, distingue a pessoa no meio de todas as outras. As opinies divergem acerca da sua significao.

Gottlob Frege pensa que: A denotao de um nome prprio o prprio objecto que ns designamos por esse nome; a representao que a juntamos inteiramente subjectiva. Isto bastante claro: Haute-Loire designa um departamento em Frana, que encontrareis consultando uma carta administrativa da Frana. Para aquele que a nasceu, a sua terra com tudo o que isso comporta de carga afectiva: so os elevados planaltos ridos e batidos pelos vento... Frege pe o sentido entre a denotao (no o objecto) e a representao, totalmente pessoal e no limite do incomunicvel: haver outra pessoa que tenha do planalto a mesma percepo que eu (para a gente da regio, o planalto o do Mezenc)? O sentido comum a vrias pessoas. Mas o texto de Frege no nem muito claro nem muito convincente. Haver, na verdade, lugar para uma entidade entre a denotao e a representao?

Ludwig Wittgenstein, nas suas Investigaes filosficas, rejeita a ideia de o nome prprio ter uma significao. Importa estabelecer que o termo significao se emprega de maneira incngrua, desde que se queira deste modo designar o objecto correspondente palavra. O que se reduz a confundir a significao de um nome prprio com aquele que o tem. Se o Senhor X... morre, dir-se- que aquele que tem o nome que morre, no a significao do nome. E seria puro contra-senso falar desta maneira, porque se o nome deixasse de ter uma significao, no teria nenhum sentido dizer-se: O Senhor X... morreu. Assim, o nome prprio designa a pessoa mas no a pessoa; se a pessoa morre, o nome continua a design-la, se bem que ela j no exista. Mozart continua a designar o genial compositor da pera Don Giovanni.

A noo de nome prprio no se restringe s pessoas. Denominar alguma coisa anlogo ao facto de prender o rtulo de um nome a uma coisa. Numerosos objectos da vida corrente esto assim rotulados: o televisor, o automvel, a mquina de lavar roupa; eles no deixam lugar a nenhuma interpretao. Encontram-se tambm estas palavras-rtulo em todos os domnios em que se tem necessidade de grande preciso, o direito, a economia, a gesto e, evidentemente, a cincia, como discutiremos no captulo seguinte.

O estatuto de uma palavra como cadeira ou cavalo j mais complexo. Cadeira o nome prprio de uma certa categoria de assento, para uma s pessoa, munida de costas, mas sem braos. Poder-se- dizer mais? H cadeiras de quatro ps, outras de trs ps... Deste ponto de vista, cadeira um nome prprio, rtulo desse nico tipo de assento com costas e sem braos. Mas e, ao mesmo tempo, um nome comum, porque designa um grande nmero de assentos diferentes: h a minha cadeira que no a vossa, nem essa cadeira Lus XV da poca, nem essa cadeira de jardim em ferro, nem aqueloutra em plstico. Para retomar o que Umberto Eco dizia sobre o cavalo, a minha cadeira um nome prprio que designa esse nico objecto que est diante da minha mesa de trabalho, enquanto cadeira designa um conceito acerca do qual se pode discutir se representa ou no alguma coisa. Frege v a um defeito fundamental da linguagem, que se revela defeituosa desde que se trate de prever os erros do pensamento [...] a mesma palavra que serve para designar um conceito e um objecto particular que subjaz ao conceito. Ele d como exemplo que em isto um cavalo se faz referncia ao conceito, enquanto que em isto o meu cavalo, se trata de um indivduo particular. A palavra prpria ou genrica, segundo as utilizaes, de tal modo que a linguagem corrente nos no permite retirar todas as vantagens da unicidade de designao do nome prprio.

5. O NOME E A SUA SIGNIFICAO

Logo que se sai do domnio do nome prprio, ao mesmo significante podem ser ligados vrios significados. Anel designa, conforme os casos, o crculo de metal ao qual o cavaleiro prende o seu cavalo, a aliana que, em geral, os casados trazem, uma estrutura matemtica particular... Wittgenstein fala de utilizao mais propriamente que de significao. De facto, a maneira de utilizar fixa na maior parte das vezes o significado que est em causa. A sintaxe governa os significantes, a semntica os significados (mas a compreenso de uma frase assenta numa pragmtica).

Um dicionrio d, em princpio, os diferentes significados que se ligam a um dado significante. Esta definio feita com frases da linguagem de que a palavra definida um elemento. Blaise Pascal tinha j notado, no seu texto sobre o esprito de geometria ou a arte de persuadir, que se no podem definir assim todos os nomes. Se eu quisesse definir o que o ser, ser-me-ia preciso comear por ... e a palavra a definir figuraria na definio, o que , segundo Pascal, um absurdo. H, pois, palavras primitivas cuja significao h que ser tida como evidente para toda a gente. Volta-se a encontrar esta ideia claramente exposta nas Reflexes filosficas de Ludwig Wittgenstein: eu defino uma palavra por meio de uma frase, ela prpria formada por palavras. preciso que eu as defina de novo, por meio de frases com palavras que defini por meio de... Entra-se naquilo a que se chama, em lgica, uma regresso sem fim. A nica maneira de se parar admitir a existncia de palavras primitivas, cujo sentido evidente a toda a gente e a partir das quais se podem definir as outras palavras. Discutiu-se a maneira de as escolher: deixemos esta questo para os linguistas e tenhamos como adquirida a existncia de palavras cuja significao conhecida por toda a gente. Poder vir um dia em que seja preciso tentar definir uma destas palavras primitivas: deslocar-se- ento o ponto de paragem para descer mais abaixo no estudo das palavras.

Para definir uma palavra, para se dar o significante que se liga ao significado, vai-se pois remeter para as palavras primitivas, quer directamente quer por intermdio de palavras j definidas. Dir-se-, por exemplo, que o homem um animal racional. Animal remete, talvez, para ser vivo. Criam-se, assim, ligaes entre as palavras. Um exemplo disso dado pela rvore de Porfrio, na sua Isagoge, no sculo IV, que j citmos, mas que lembraremos de modo breve. Os seres classificam-se segundo o seu gnero e a sua espcie. Um gnero pode comportar vrias espcies (animal abranger pssaros, rpteis, mamferos...) mas cada espcie s depende de um nico gnero. Assim se tecem ligaes entre as palavras: animal ter por sucessores pssaro, rptil, mamfero. A rvore tem uma raiz, o gnero supremo, o ser de que tudo deriva; h folhas, pontos sem sucessores, espcies especialssimas que so os indivduos: a minha cadeira uma folha de rvore. De facto, a estrutura mais complexa, com liames que se cruzam no tem importncia para o que estudamos aqui.

O conjunto das palavras assim ligadas entre si forma aquilo a que Umberto Eco chama um dicionrio, e os tcnicos de informtica uma rede semntica (a que aludimos no captulo anterior). preciso entendermo-nos bem acerca desta locuo. A rede de ligaes entre palavras no criadora de sentido, ela repercute sobre palavras as significaes das palavras primitivas (que so como as folhas da rvore de Porfrio). Em contrapartida, a criao do dicionrio ou da rede semntica supe que se conhea o sentido das palavras ou, pelo menos, que se possa inferir uma ligao entre duas palavras pela maneira como se acham associadas num grande nmero de frases. Umberto Eco faz notar que tudo isso s funciona se se admitir como conhecida a significao das palavras primitivas. Se eu no souber nem o que um tigre, nem o que um carnvoro, de que me servir saber que as palavras esto em conexo? O dicionrio ou a rede semntica no criam significao, elas no fazem mais que remeter de uma palavra para outra, cruzando-as eventualmente.

Se a significao no puder ser fornecida por uma rede semntica ou por um dicionrio no sentido que lhe d Umberto Eco, ser preciso procur-la, ainda segundo Umberto Eco, na enciclopdia que d para cada significante o significado ou os significados que lhe esto ligados por comunidades maioritrias. A palavra informao tem uma significao para o uso corrente (texto dando um conhecimento novo), uma outra para os tcnicos de informtica (texto). Esta enciclopdia (o dicionrio no sentido usual do termo, no a rede semntica) d a significao por meio de perfrases, na maior parte das vezes ilustradas por citaes tiradas de grandes obras da literatura. Vimos como a lgica exigiu que uma definio no contivesse a palavra a definir. Mas quase inevitvel que duas definies remetam uma para a outra: Ascendente, pessoa de que se descende. Parece necessrio que se tenham em conta as aquisies da lgica que dizem respeito recorrncia e recursividade para se chegar a uma ideia mais precisa daquilo que pode ser uma definio. No voltemos a isso, dado que o discutimos longamente no captulo dedicado matemtica. (No entanto, remetemos para a o leitor alrgico que tenha saltado esse captulo, para que ele tente pelo menos ler o pargrafo sobre as definies.)

6. O SENTIDO DAS FRASES

Toda esta discusso incidia sobre as palavras. claro que, do mesmo modo que um significado est ligado a um significante, tambm um sentido est ligado a uma frase. Ele resulta da significao das palavras que a constituem, mas no a simples justaposio delas. Fundamentalmente, uma frase diz alguma coisa de qualquer coisa. Ela articula-se em volta de um verbo e utiliza palavras indefinveis em si mesmas, como os pronomes que substituem palavras precedentes do discurso ou remetem para eles. Aqui e agora so deicticos que s tm significao numa frase inserida num contexto.

As lnguas naturais tm isto de particular, a saber, que o sentido de uma frase nelas normalmente ambguo. Entendemos por isso no que toda a frase ambgua, mas que no nem anormal nem excepcional que ela o seja. Os gramticos do sculo XVII pensavam que o que nos impede de atingir a verdade com certeza por meio da linguagem corrente, e que, portanto, era preciso melhor-la. Eles viam o tempo antes de Babel como a idade de ouro da linguagem, a idade na qual qualquer expresso era perfeita e qualquer verdade claramente demonstrvel. Para reencontrar esta perfeio, Leibniz decidiu criar uma caracterstica universal, na qual cada palavra seria designada por um carcter que lhe fosse prprio e com a qual ele pensava que tudo se poderia provar. Ele julgava que seria coisa fcil. No fim da vida, ele tinha reconhecido a extrema dificuldade disso. Dissemos que Gottlob Frege retomou sua conta esta crtica da linguagem e como tentou prosseguir a obra de Leibniz, utilizando notaes muito complexas, ideografia a duas dimenses, para exprimir os seus trabalho em lgica. Ele no teve qualquer sucesso, no compreendendo os seus colegas o que ele tinha em mente. Mas os seus trabalhos foram de grande importncia para a lgica e, atravs de Bertrand Russel, desembocaram nos sistema formais, que se podem ver como linguagens artificiais que excluem a ambiguidade, mas no a multiplicidade de interpretaes. Quando se escolheu uma interpretao, qualquer frase tem nela uma significao nica.

Bertrand Russel, ao apresentar os trabalhos de Ludwig Wittgenstein, descreve-os como uma busca da linguagem ideal. Wittgenstein, nas suas Investigaes filosficas, ao partir de que a significao de uma palavra a sua utilizao, estuda os jogos de linguagem: O falar faz parte de uma actividade ou de uma forma de vida. Ele imagina intrigas nas quais uma expresso deveria tomar uma significao precisa. Mas as mais simples fazem de imediato aparecer dificuldades; se o mestre-de-obras diz ao operrio: ladrilho, para lhe ensinar aquilo que se designa por esta palavra, ou para lhe dar, de modo breve, a ordem d-me um ladrilho? Uma frase enunciada como mando uma ordem ou uma predio? Quando anuncio que partirei s cinco horas, trata-se de uma declarao de inteno ou de uma predio?

Definir a noo de sentido est no limite do possvel: dar o sentido do sentido criar uma definio auto-referente, que leva obrigatoriamente a um paradoxo. preciso considerar a palavra sentido como uma dessas palavras primitivas cuja significao um dado de evidncia ou de intuio para cada um: evita-se assim a formao de um crculo vicioso. Mas pode-se mesmo assim dizer que o sentido de uma frase o que o falante tem a inteno de comunicar mediante as palavras que pronuncia, o que ele quer dizer, o que entende com isso (entender e inteno so da mesma famlia). Para o ouvinte, o sentido a inteno que ele percebe imediatamente, que ele cr perceber imediatamente ou que ele tenta perceber. Toda a questo , com efeito, a do querer dizer. Entra-se no dificlimo problema da intencionalidade, no centro do debate sobre a linguagem.

Os tcnicos de informtica procuram determinar o sentido de uma frase mediante o dado da sua forma (as letras que a compem, as regras de gramtica que comandam a construo da frase) e o seu contexto, quer dizer, da ocorrncia das palavras vizinhas. Eles so obrigados a isso porque a informtica no tem acesso ao sentido das palavras. Vimos que a significao de uma palavra a sua utilizao (Wittgenstein). o contexto que diz qual que est em jogo. Assim, o contexto seria aquilo que suprime as ambiguidades de uma frase. fcil dar contra-exemplos disso.

Como vimos, a palavra anel designa um pequeno aro de metal. Para o cavaleiro o objecto ao qual ele prender o seu cavalo; para o descendente de escravo uma recordao infame; para os que se ho-de casar o sinal da sua aliana; para o matemtico uma estrutura matemtica. Mas, a est Cosinus que se prepara para o casamento. Precisamente ao enfiar a sobre-casaca, descobre um novo teorema de que acha imediatamente trs corolrios, mas de que no pode estabelecer a recproca. Soou a hora, h que partir: esquece-se dos anis. Que anis? As alianas para o casamento ou a estrutura matemtica que era a chave da recproca? O contexto criou a ambiguidade acerca do uso da palavra. Se s se tivesse falado do casamento, ter-se-ia pensado nas alianas. Se s se tivesse falado de matemtica, ter-se-ia sabido de que estrutura se tratava. Mas falou-se dos dois...

Passa-se o mesmo com a anlise da frase. Paulo fecha a porta: Paulo, sujeito, fecha, verbo, a, artigo, porta, complemento. Paulo e Virgnia saram a passear. Eles assistem a um terrvel acidente. O carro embateu numa rvore. Pela porta da frente, v-se o condutor tombado sobre o volante, com o crnio esmagado. H sangue por toda a parte, um bocado de miolos no pra-brisas... Virgnia desmaia. Paulo, firme, carrega-a. ainda a anlise anterior que se aplica aqui, ou ento Paulo, sujeito, firme, adjectivo qualificativo, carrega-a, verbo...? O contexto cria a ambiguidade. Compreendi-vos Uma nica anlise possvel, nenhuma ambiguidade acerca das palavras. O sentido deveria estar perfeitamente determinado. Juntemos o contexto: Argel, Maio de 1958, De Gaulle a dirigir-se multido. Que queria ele dizer? Algum dia se saber?

para explicar estes factos que Umberto Eco ope o significado convencional e o significado situacional. Para marcar como a frase mais andina pode prestar-se a jogos de linguagem extremamente variados, ele d o exemplo seguinte: o avanado-centro do PSG deu uma bela lio ao defesa do OM, frase dita por E. a D.

a) O avanado-centro no deu uma bela lio (E dado ironia).

b) E cr que o avanado-centro deu uma bela lio (E quer que D o julgue competente em futebol; na realidade, o avanado-centro jogou muito mal).

c) No se devem fazer certas perguntas (D tinha perguntado a E se ele teve uma relao sentimental com a senhora Fulana e E, ostensivamente muda o assunto de conversa).

d) E tem uma relao sentimental com ela (D fez-lhe a pergunta acima referida, e E sabe que, mudando de conversa, far com que D creia que ele est embaraado por responder afirmativamente)

e) E adepto do PSG.

f) D no deveria gabar-se demais (D desafiou E para o futebol e E lembra-lhe que outros antes dele sofreram severas lies).

g) Um fornecimento de cocana deve chegar amanh (E est a falar em linguagem cifrada).

h) E est ao corrente das traficncias de D (E cita y a D, porque sabe que y significa de facto g, que D recebeu ontem uma mensagem desse teor, e quer que D saiba que ele sabe tudo).

Qual o verdadeiro significado desta frase, isso a que Paul Ricoeur chama o seu intento (a inteno do autor)? o sentido aparente, de superfcie, aquele que se daria frase se se ignorasse tudo sobre o contexto ou sobre a inteno de quem a pronunciou? Demos exemplos em que o contexto criava a ambiguidade. Bastar o contexto para se achar a inteno do autor? Seria preciso, sem dvida, distinguir a compreenso de um texto (a imagem que tenho do avanado-centro do PSG a dar uma lio ao defesa do OM, se eu tiver alguma noo de futebol) da sua interpretao, uma entre as que Umberto Eco evoca. Mas isso na verdade possvel? Para que serve compreender a frase Compreendi-vos, pronunciada por De Gaulle em Argel em 1958, ou Viva o Quebeque livre em Monreal em 1968, se no se lhe puder encontrar interpretao? No parece que se tenha ainda resolvido estes problemas.

7. OS NVEIS DE LINGUAGEM

No muito difcil perceber que a lngua natural que ns utilizamos oferece diferentes nveis de expresso. Isso no resulta de sermos franceses, pois que verdade para qualquer lngua. Insistimos j na ambiguidade dos textos escritos na nossa lngua de todos os dias. H, mesmo assim, casos em que esta dificuldade no aparece, porque se fez tudo para que assim seja.

A LINGUAGEM DE DETERMINAO

Certas palavras ou grupos de palavras no se prestam a qualquer possibilidade de interpretao, porque so rtulos presos a coisas perfeitamente especificadas, sem nenhum equivalente (mesmo aproximado). Cloreto de sdio, foto, anel so exemplos disso. O vocabulrio tcnico das cincias abunda em termos desta natureza. Mas encontram-se em outros domnios: para um notrio, avanos por conta da herana no pode dar lugar a nenhuma interpretao, no mais que dedal para uma costureira ou parafuso para madeira com cabea fresada para um marceneiro. A significao destas palavras nica e perfeitamente determinada.

Quando uma palavra um rtulo, um nome prprio designando um nico objecto ou um nico conceito, poder-se- falar de significao? A palavra suficiente para dizer tudo. Tem-se tudo quando se deram as letras (ou os algarismos) que o compem. Desde logo, aplica-se a rasoira de Occam: Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem. Para qu multiplicar inutilmente os conceitos? Se a forma basta, porqu falar de um sentido? o que tinha pressentido Thomas Hobbes ao pedir que se calcule com as palavras tomadas independentemente da sua significao como se calcula com nmeros: nenhuma meno de significao para o nmero intil. tambm o que abundantemente sublinhou Wittgenstein, tanto para os nmeros como para os nomes prprios. No h que falar de sentido para a palavra dois ou para a palavra cinco, h somente a utilizao que delas se faz segundo as regras que aprendemos na escola. No h que falar de significao para a palavra cloreto de sdio, h um composto qumico referido por essa palavra, separada das outras como teria dito Ferdinand de Saussure. A linguagem de determinao no de natureza simblica, mas poderia ser chamada cdigo, uma reunio de elementos escolhidos convencionalmente que referem objectos extremamente precisos de que se afirmam propriedades. intil falar de sentido nesse caso, tal como se no fala do sentido do cdigo-barras que figura nos rtulos dos objectos que se compram num supermercado.

A LINGUAGEM CORRENTE

A linguagem corrente oferece uma enorme variedade de nveis de expresso, como bem mostrou Ludwig Wittgenstein nos seus jogos de linguagem. A Senhora Valentin, na sua comunicao ao colquio mundial Informtica e Ensino, em Marselha, em 1975, contou como dava aos seus alunos a lista das palavras que constituam um pequeno texto, pedindo-lhes que reconstrussem o texto a partir dessa lista. Para um primeiro texto, eles obtiveram todos quase o mesmo resultado. Tratava-se de um extracto de um desdobrvel publicitrio: Voc poder bronzear-se ao sol em praias de areia fina... Para um outro texto, no chegaram a coisa alguma: era um poema.

Assim, nos seus inmeros jogos, a linguagem corrente presta-se a combinaes muito variadas. Em numerosos casos, ela de uma grande simplicidade, transparente, sem qualquer ambiguidade possvel: compra-se po, adquire-se um bilhete de caminho-de-ferro, escutam-se as previses meteorolgicas... No estamos, em todo o caso, na linguagem de determinao: Amanh vai estar calor no tem o mesmo sentido para o esquim ou para o habitante do Sara. O Outono ser quente anuncia muitas vezes um regresso de frias marcado por conflitos sociais de toda a espcie, nada tendo que ver com o boletim meteorolgico...

A linguagem corrente por essncia simblica. As palavras so sinais, materiais, feitos de letras no caso da linguagem escrita ou de fonemas no da linguagem falada, sinais que se podem traar no papel, ler com um captador ptico, ou registar com um microfone ligado a um gravador. Estes sinais remetem para realidades materiais (como a palavra cadeira) ou para conceitos (como a palavra vermelho). Aliquid stat pro aliquo, segundo a definio latina que deles foi dada na Idade Mdia.

H palavras que remetem para realidades ou imagens precisas, percebidas por toda a gente da mesma maneira (como numa mensagem publicitria). As frases formadas deste modo so quase vazias de sentido. H outras carregadas de sentido, de poesia, tesouros da literatura. Podemos l-las e nutrirmo-nos delas, voltar a l-las e encontrar nelas uma nova interpretao que se no tinha visto da primeira vez. a linguagem corrente que impe este jogo difcil de encontrar a inteno do autor: que quis ele na verdade dizer? Mas no apenas um inconveniente ou uma dificuldade, tambm uma mais-valia: h mais no texto do que as palavras que o compem. Posso l-lo, rel-lo, nutrir-me dele ainda, maravilhar-me com ele ainda... a linguagem corrente que permite estas numerosas interpretaes, graas s quais alguns encenadores podem fazer apresentaes to diversas da mesma pea de teatro.

H, em todo o caso, um limite ao esprito criador deles: o texto existe. No se pode proceder como se nada tivesse sido escrito. Se o autor utilizou tal palavra e no um dos seus sinnimos, que ela correspondia melhor sua inteno: todo o sentido da noo de diferena introduzida por Saussure. O crtico literrio discorrer longamente sobre a escolha da palavra, tentando penetrar naquilo que o autor tinha em mente. A menos que no tenha prestado nenhuma ateno escolha da palavra... Como sab-lo? Na poca da pena de pato, o manuscrito conservava as rasuras e emendas que permitiam ver as hesitaes do autor, as palavras que tinha primeiro tomado e depois rejeitado. Na poca do tratamento de textos, a correco faz desaparecer as verses anteriores: no imaginais as variaes que este livro tem sofrido! Umberto Eco discorreu sobre isto no seu Pndulo de Foucault. Ele apresenta um bloco de texto cheio de erros de batida e comenta o resultado: A est, eu batia nas teclas s cegas, e agora peguei neste bloco de teratologias ortogrficas e ordenei mquina que repetisse o erro no fim do percurso, mas desta vez corrigi-o e ele apareceu-me enfim completamente legvel, perfeito, de tretas fiz belas-letras. Poderia ter-me arrependido e deitar fora o primeiro bloco: deixo-o ficar unicamente para mostrar como podem coexistir neste ecr ser e dever-ser, contingncia e necessidade. Mas poderia ter subtrado o bloco infame ao texto visvel e no memria, conservando assim os arquivos dos meus recalcamentos, retirando aos freudianos omnvoros e aos virtuosos das variantes o gosto da conjectura, o ofcio e a glria acadmica...

Numa conferncia em que eu apresentava as minhas ideias acerca da inteligncia artificial, um participante pediu-me que comentasse o que o senhor escreveu no seu livro: o riso prprio do homem, ora um computador no pode rir... Achei a ideia excelente, mas tive de confessar que ela nunca me tinha ocorrido. O ouvinte tentou mostrar-me o contrrio. Como que se podem atribuir a um autor ideias que ele no teve ou que nunca se saber se ele as teve? A mesma aventura aconteceu-me por ocasio da discusso da tese de um socilogo. Ele explicou como Arsac, a partir de 1970 tinha visto bem j no sei o qu. Fazendo parte do jri, pude responder-lhe que no tinha visto isso, que continuava a no ver. Sobre isto, empreendeu demonstrar que era claramente visvel no que eu tinha escrito. Tanto melhor para mim! O caso no tem absolutamente nada de excepcional. Podemos ns realmente falar daquilo que o autor quis dizer?

Isto abre a difcil questo de saber onde est o sentido de um texto. O sentido est no texto? Se sim, ento deveramos fazer todos a mesma leitura, a menos que no soubssemos ler bem... Se no est no texto, ento o leitor que a o pe, a partir do texto que o ponto de partida irrecusvel, mas tambm a partir da sua experincia pessoal, da sua bagagem cultural, do seu temperamento. A educao ensina-nos a dar quase o mesmo sentido s mesmas palavras. Mas cada um acrescenta-lhe o seu toquezinho pessoal. Como articular ento o texto e o sentido que se lhe d? Conforme se seja optimista ou pessimista, pode-se ficar admirado de ver que tal sistema, to frgil, possa funcionar to bem: ns lemos todos de modo quase idntico os mesmos textos. Tambm se pode discorrer acerca da fragilidade da comunicao, que faz com que o que dizemos seja to frequentemente mal compreendido e utilizado como acusao contra ns. Tais interrogaes so o objecto principal da filosofia da linguagem.