cidadania e meio ambiente caplivro p132 163

Upload: sonia-aguiar

Post on 18-Jul-2015

118 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Organizao

Carlos Frederico Bernardo LoureiroDoutor

Salvador 2003

Srie Construindo os Recursos do Amanh, v.1 Cidadania e Meio Ambiente Copyright 2003 Centro de Recursos Ambientais - CRA Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida ou transmitida sem autorizao prvia por escrito da Editora, sejam quais forem os meios empregados: eletrnicos, mecnicos, fotogrficos, gravaes ou quaisquer outros. GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA PAULO SOUTO SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE E RECURSOS HDRICOS JORGE KHOURY CENTRO DE RECURSOS AMBIENTAIS - CRA FAUSTO AZEVEDO

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) pelo Centro de Informao e Memria Ambiental (CIMA) C568 Cidadania e meio ambiente / Carlos Frederico Bernardo Loureiro (organizador). - Salvador: Centro de Recursos Ambientais, 2003. 168 p. ; 21 cm. - (Construindo os Recursos do Amanh; v. 1) ISBN 85-88595-14-1 1. Educao - Meio ambiente. I. Loureiro, Carlos Frederico Bernardo. II. Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos. Centro de Recursos Ambientais. III. Ttulo. IV. Srie. CDU 37:504 CENTRO DE RECURSOS AMBIENTAIS - CRA Rua So Francisco, 1 - Monte Serrat 42425-060 - Salvador - BA - Brasil Tel.: (0**71) 310-1400 - Fax: (0**71) 314-1414 [email protected] / www.cra.ba.gov.br

Sobre os Autores

Carlos Frederico Bernardo LoureiroDoutor em Servio Social e professor adjunto da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Nahyda FrancaMestre em Educao e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas

Philippe Pomier LayrarguesDoutorando em Cincias Sociais e professor da Universidade do Grande Rio

Snia Aguiar LopesDoutora em Comunicao e Cincia da Informao e professora adjunta da Universidade Federal Fluminense

Produo EditorialReviso de Textos Valdomiro Santana

Coordenao Editorial e Projeto Grfico Ricardo Baroud

Concepo Artstica e Capa MagalyNunesmaia Ilustrao (acrlica s/tela) Britto

Editorao Eletrnica Patrcia Chastinet

A gesto ambiental na Bahia tem como marco a criao do Conselho Estadual de Meio Ambiente Cepram, frum de participao da sociedade no tratamento das questes ambientais. Implantado em 1973, o Cepram completa 30 anos, perodo em que tem evoludo e aprimorado o processo de integrao das polticas pblicas e de exerccio da cidadania na proteo do meio ambiente. Consciente de que os desafios da sustentabilidade ecolgica so pautados no conhecimento sobre a complexidade que permeia o uso e a conservao dos recursos naturais e em uma efetiva co-responsabilidade dos diferentes atores sociais envolvidos, o Governo da Bahia, atravs da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos - SEMARH e do Centro de Recursos Ambientais - CRA, busca mais uma vez munir a sociedade de ferramentas, dessa feita, uma nova srie de publicaes tcnico-cientficas que busca apresentar e discutir temas instigantes relacionados a uma nova atitude para a construo do futuro. A Srie Construindo os Recursos do Amanh a terceira editada pelo CRA/NEAMA, e vem juntar-se a outras duas: Cadernos de Referncia Ambiental e Educao Ambiental, com 17 publicaes, de outubro de 2001 a janeiro de 2003.

O tema Cidadania e Meio Ambiente, que inaugura esta srie de publicaes, sem dvida o mais apropriado para marcar a nova etapa da histria ambiental da Bahia, em que a criao da SEMARH foi conseqncia natural do processo de aprimoramento da Poltica Ambiental do Estado. Governo do Estado da Bahia PauloSouto Governador

A Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos - SEMARH, criada neste janeiro de 2003, veio consolidar o processo de integrao e participao na gesto dos recursos ambientais do estado. Entende que, para isso, a gerao de idias, a discusso, e a organizao do conhecimento, so fatores fundamentais na formao do capital intelectual que ir contribuir para a melhoria contnua das polticas pblicas voltadas para a conservao do patrimnio ambiental da Bahia. Com a criao do Ncleo de Estudos Avanados do Meio Ambiente - NEAMA, em 5 de junho de 2002, o Governo da Bahia estabeleceu um marco na gesto ambiental do estado, tornando disponvel um espao privilegiado do conhecimento, para a produo tcnicocientfica e para discusso dos diferentes temas relacionados ao desenvolvimento sustentvel. A construo de uma participao cidad nas questes que tocam o ambiente, seu uso e proteo, exige o aprofundamento dos debates e o desenvolvimento contnuo da ferramenta educao ambiental, para possibilitar as mudanas necessrias nas relaes homem x natureza. Esta publicao inaugura uma nova srie voltada para a descoberta de novos caminhos e atitudes, como j o indica sua denominao: Construindo os Recursos

do Amanh. O tema deste primeiro volume, Cidadania e Meio Ambiente, nos remete a uma reflexo sobre como despertar nos indivduos o seu papel de agentes de mudana. Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hdricos Jo Khoury rge Secretrio

A construo (e no interessa aqui lembrar de sua anttese, j to prestigiada nos dias atuais) talvez seja a marca mais fundamental e contnua do Universo e do Tempo. O hidrognio constri nosso Sol; a partir dele, o Sol constri a energia; a energia constri possibilidades quase infinitas num pequenino planeta chamado Terra. Este profcuo processo levou construo de um fenmeno chamado Homem, o qual no em absoluto seu ponto final, de culminncia. Contudo, o Homem abriga em si a potencialidade de construir muitos fins. Fim, aqui, no sentido terminal, no finalstico ... E vem ele exercitando zelosamente sua capacidade de construir fins destrutivos: intolerncia; soberba; excluso; escravido; guerras; ultrajes, o dicionrio fica interminvel! Mas construir, do latim construere, que um bom dicionrio da Lngua Ptria explicaria significar: dar estrutura a; edificar; fabricar/organizar, dispor, arquitetar/formar, conceber, elaborar, tambm pode e deve ser empregado pelo mesmo Homem para fazer exatamente o que contm sua etimologia. H que se Construir nossa existncia e passagem por este planeta. De maneira maiscula e substantiva; aumentando a dimenso de nossa dignidade e efemeridade. Somos efmeros, quem sabe, sob o ponto de vista individual, porm, com o uso da devida inteligncia, poderemos ser

definitivos sob a lgica coletiva. Reconhecidas as limitaes de cada qual, a transitoriedade dos fatos e conquistas, a verdadeira e transcendental inexistncia de qualquer posse e a imperiosa necessidade da irmanao, a, ento, estaremos aptos a agir qual um dos eleitos daquele citado processo. , provavelmente, neste perfil que, uma vez mais, o Centro de Recursos Ambientais rompe barreiras e fronteiras e se arrisca a lanar a srie ConstruindoosRecursosdoAmanh. Ttulos dos mais significativos e provocativos encontramse ou prontos ou em elaborao, todos debatidos e aprovados pelo Conselho Tcnico-Consultivo do Ncleo de Estudos Avanados do Meio Ambiente (NEAMA), responsvel pelas publicaes. Inaugura-se a srie com o desafio Cidadania. Por que? Qual a relao entre cidadania e gesto ambiental? O que um rgo estadual de meio ambiente tem a ver com cidadania, e com inovao tecnolgica, e com instrumentos econmicos, etc.? Lamento sentenciar, mas quem no mundo de hoje no percebe a clara e franca relao no estar se alinhando ao lado daqueles que sabem/fazem o uso etimolgico correto da palavra construir... Centro de Recursos Ambientais FaustoAzevd eo Diretor Geral

Acreditando que as mudanas para levar a sociedade a uma melhoria da qualidade de vida sero fruto de um amplo trabalho de educao, o NEAMA sustenta um programa de formao em meio ambiente que capacita, promove estudos e traz discusso temas relevantes para o desenvolvimento sustentvel. A ampla abrangncia e relevncia dos temas tornam difcil escolher por onde comear: instrumentos de gesto ambiental, inovaes tecnolgicas, conservao e uso da biodiversidade, conservao e usos dos recursos hdricos, cidadania e meio ambiente, entre outros, so assuntos que merecem aprofundamento e discusso com a sociedade, visando produzir propostas que venham contribuir com os debates e apoiar a formulao de polticas pblicas para o Estado da Bahia. Este o objetivo da Srie Construindo os Recursos do Amanh, que vem complementar a linha editorial do NEAMA trazendo anlises apuradas de experincias nacionais e internacionais, sobre temas com rebatimento na realidade baiana. A edio dessa srie parte de um programa de trabalho que ir promover a realizao de seminrios, com a presena de pesquisadores, empresrios, organizaes do terceiro setor e entidades governamentais, para discusso de temas relevantes para a poltica ambiental do estado.

A srie Construindo os Recursos do Amanh tem incio com a publicao CidadaniaeMeioAmbiente, uma viso focada no preparo da sociedade para uma participao efetiva na conduo das escolhas de uso e conservao dos recursos naturais do planeta. Viro, em seguida, InovaoeMeioAmbiente:elementos paraodesenvolvimentosustentvelnaBahia (v. 2); e Instrumentos EconmicosparaConservaoAmbiental (v. 3). Assim, o NEAMA cumpre o seu papel, contribuindo para a gerao e disseminao do conhecimento na temtica ambiental. Centro de Recursos Ambientais Te LciaMuricy de Abre resa u Diretora de Recursos Naturais

SumrioIntroduo ............................................................................ 1 2 Paradigma ecolgico e sustentabilidade ........................ 1.1 Desenvolvimento sustentvel ............................................... Conceitos de tica, educao ambiental e cidadania ..... 2.1 Educao ambiental ............................................................... 2.2 Cidadania ecolgica ................................................................ 3 4 Histria e pressupostos da educao ambiental ............. 3.1 Educao ambiental no Brasil ............................................. A educao ambiental no processo de gesto ambiental participativa: atores sociais para a construo de uma sociedade justa e sustentvel ......................................... Fo rmarpara a gesto participativa: mtodos em construo 5.1 Debilidade histrica das relaes ........................................ 5.2 Lies que determinam caminhos experincias no campo do desenvolvimento local ....................................... 5.3 Pontos de partida ...................................................................... 5.4 Participao / emancipao cidad ..................................... 5.5 Prioridades para estratgias ..................................................... 5.6 Desafio para a educao ......................................................... 6 A educao ambiental como prtica social contextualizada 6.1 Educao infantil, ensino fundamental e mdio ............... 6.2 Ensino superior ........................................................................ 6.3 Comunidade ............................................................................. 1 5 1 9 26 33 37 41 45 55

59 73 74 75 77 78 82 83 85 86 87 90

5

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

7

O desafio empresarial para a sustentabilidade e as oportunidades da educao ambiental ......................... 7.1 A crise ambiental como um duplo desafio reproduo do capitalismo .......................................................................... 7.2 Negociaes entre mercado e Estado em torno da responsabilidade ambiental ................................................... 7.3 Ecoeficincia como a sntese do ecocapitalismo ............ 7.4 Oportunidades da educao ambiental nas empresas ...

95 96 97 103 107 11 1 120 123 126 131 132 135 139 144 151 157 159 165 167

8

Gesto ambiental participativa em unidades de conservao ................................................................... 8.1 Busca de alternativas ............................................................... Agenda 21 e a participao da sociedade ........................ 9.1 Indicadores de avaliao de programas em educao ambiental ....................................................................................

9

10 Formao da cidadania: comunicao e informao da sociedade ........................................................................ Mdia e meio ambiente no Brasil ......................................... Orientao pelo mercado: a ecoestratgia ................... O jornalismo ambiental: resistncias, avanos e recuos ... Especificidades do discurso jornalstico: enquadramentos, nfases e excluses .................................................................. 10.5 Jornalistas e ambientalistas: entre a objetividade e o engajamento ............................................................................... 10.6 Formao e capacitao para a comunicao ambiental 10.7 A teia invisvel: articulao em rede e aes comunicativas cidads ............................................................ Consideraes finais ............................................................ Referncias bibliogrficas ..................................................... 10.1 10.2 10.3 10.4

14

CidadaniaeMeioAmbiente

IntroduoA primeira questo a ser respondida, antes da elaborao dos textos aqui reunidos, foi: que contribuio efetiva poderia oferecer aos profissionais e interessados na temtica ambiental, ao produzir este livro para o Centro de Recursos Ambientais da Bahia? Em conversa com os outros autores participantes do processo, definimos que o objetivo principal seria formular argumentos e fundamentos tericos, academicamente validados e consistentes, que permitissem ao leitor uma compreenso crtica da interface meio ambiente e cidadania, tendo em vista uma atuao qualificada dos atores sociais individuais e coletivos no cotidiano e no ambiente de vida. A cidadania ecolgica, categoria central deste livro por ser a sntese da interface mencionada, impe reformulaes profundas nos processos sociais, polticos e educativos, no somente nos espaos escolares, mas em todos os espaos pblicos e pedaggicos (logo, da cidadania) em que atuamos: instituies governamentais, associaes comunitrias, ONGs, empresas, famlias, conselhos, sindicatos, Agenda 21 Local etc. Implica a capacidade de agirmos no ambiente, em processos interativos e dialgicos, a partir da compreenso da totalidade em que nos inserimos e da vida em seu sentido mais profundo. Sendo este o enfoque adotado, pensamos e construmos os captulos luz do rigor conceitual da teoria social e da educao, campos por excelncia do debate sobre cidadania e novos paradigmas societrios. Procuramos, com isso, fornecer as bases conceituais fundamentais para uma leitura crtica da questo ambiental, sob a tica da cidadania, e evitar as simplificaes, modismos e um certo idealismo ingnuo que domina o debate ambiental no Brasil, sempre, no entanto, com a preocupao de escrever algo de fcil15

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

compreenso para profissionais e agentes sociais com diferentes nveis de conhecimento da temtica. Nos quatro primeiros captulos fornecemos as premissas tericas para uma anlise consistente da questo ambiental e da cidadania no mundo contemporneo, detalhando conceitos como paradigma ecolgico, desenvolvimento sustentvel, qualidade de vida, tica ecolgica, cidadania e educao ambiental. H maior nfase na recuperao histrica da educao ambiental e seus pressupostos, por sua centralidade em processos que tm por finalidade a consolidao da cidadania ecolgica. Apresentamos tambm as principais tendncias e foras sociais que caracterizam o diversificado movimento ambientalista e suas implicaes nos processos participativos de gesto ambiental, evidenciando a pertinncia de uma compreenso dinmica de um movimento social e histrico que est longe de ser homogneo e unitrio em seus propsitos. No captulo cinco fornecemos elementos indispensveis para a construo de metodologias participativas voltadas para a incluso democrtica dos atores sociais em processos decisrios e para a responsabilidade da sociedade na promoo de modelos sustentveis de desenvolvimento. Tais princpios e orientaes servem de fundamento para a atuao social especfica nos espaos que so abordados na segunda metade do livro. No captulo seis explicitamos o significado estratgico de alguns espaos educativos, com indicaes de como trabalh-los numa perspectiva cidad adequada s premissas do paradigma ambiental. Nos quatro ltimos captulos abordamos, analisamos e problematizamos o setor produtivo empresarial, dois espaos de atuao cidad (conselhos gestores em UCs e Agenda 21 Local) e os meios de comunicao enquanto instrumentos democrticos de socializao e divulgao da informao. Buscamos, assim, trazer elementos concretos para uma prtica social e educativa que fortalea a participao, o exerccio da cidadania, a qualificao dos envolvidos no debate pblico ambiental, a transparncia e a igualdade no acesso s informaes. Enfatizamos tambm, como16

CidadaniaeMeioAmbiente

premissa, o respeito democrtico entre os setores sociais responsveis em tornar realidade o desejo de vivermos em uma sociedade sustentvel, justa, ecologicamente equilibrada e pautada por valores ticos que priorizem a vida e a solidariedade. Em comum acordo com o Centro de Recursos Ambientais, e enquanto responsvel por esta tarefa, reuni profissionais com qualificao acadmica pertinente, larga experincia e atuao em movimentos sociais, ONGs e universidades de todo o Brasil, elevado nmero de artigos e livros publicados e reconhecida competncia profissional, de modo a propiciar um livro consistente que expresse o que h de mais atual sobre o tema proposto. Longe de querer unanimidade de aceitao da perspectiva terica adotada e dos argumentos produzidos, em nome de todos os autores, espero que o livro seja um estmulo reflexo e ao debate democrtico de idias e posicionamentos, elementos indissociveis do esprito cientfico e da prtica cidad.Carlos Frederico B. Loureiro

17

Separatriz 1

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

A categoria meio ambiente vem se constituindo em uma das mais importantes dimenses da vida humana merecedoras de ateno e anlise por parte dos diferentes grupos e classes sociais que compem a sociedade contempornea. Sociedade esta que se baseia na acelerao da produo, na transformao dos bens de uso em bens de consumo, na perda de durabilidade dos objetos e na banalizao e mercantilizao da vida (ARENDT, 1983), gerando incertezas quanto possibilidade de se evitar ou compensar os problemas propiciados pela modernidade industrial, e a urgncia de se estabelecer amplo debate pblico acerca das questes que envolvem os riscos vida no planeta (BECK, 1992). A complexificao da vida em sociedade est intimamente associada ao processo de globalizao, enquanto fenmeno contraditrio da modernidade. Por um lado, este a expresso de um modelo de desenvolvimento econmico sem fronteiras que acentua as desigualdades e a excluso social, cujo atores principais so as instituies transnacionais; por outro, a expresso de um movimento de tomada de conscincia dos limites naturais planetrios, da eliminao das fronteiras entre as naes, como resultado dos avanos cientficos e tecnolgicos, destacadamente nos meios de comunicao, informacionais e de transporte (HELD, MCGREW, GOLDLATT, PERRATON, 1999). Tal fenmeno propicia uma possibilidade nica e paradoxal de se formular diferentes classificaes simultneas para a mesma sociedade: industrial e ps-industrial; moderna e ps-moderna; informacional; ps-materialista, dentre outras. A globalizao, especificamente em sua dimenso ecolgica, caracterizada por dois sentidos interconexos: (1) Pela origem transfronteiria de diversos problemas ambientais (uso de bens ambientais comuns, poluio e dinmica populacional) e (2) Pelos processos polticos e culturais decorrentes desses problemas (institucionalizao de organizaes transnacionais, leis, tratados e convenes internacionais e de debates acerca da tica ecolgica).20

CidadaniaeMeioAmbiente

Em breve retrospectiva histrica, fica evidente o aumento de intensidade da problemtica ambiental na globalizao, se a compararmos aos processos mundiais ocorridos desde o incio do sculo XVI. 1. Entre 1501 e 1760, com base na expanso colonial europia e no crescimento do capitalismo agrrio, verifica-se intensa transformao da Amrica e dos espaos locais europeus, em funo do movimento e crescimento demogrficos e da degradao dos solos. 2. Entre 1760 e 1945, sob os efeitos da industrializao e da urbanizao,aparecem os primeiros sinais de extino de espcies decorrentes da ao humana, exausto de recursos localizados, poluio urbana e transformao do ambiente da Oceania. 3. Contemporaneamente, com a exploso demogrfica, a consolidao de um modelo industrial-consumista, o desenvolvimento tecnolgico e a ocidentalizao planetria, surgem os problemas globais: risco de aniquilao nuclear e bioqumica, manipulao gentica, declnio da biodiversidade, poluio de todos os biomas, exausto dos recursos naturais em escala mundial, ausncia de destino adequado para a crescente quantidade de resduos txicos, depleo da camada de oznio e efeito estufa. So impactos sem fronteiras e que ocorrem em velocidade acelerada. Este quadro propicia um discurso de interdependnciaambiental que amplia a prpria constituio de redes transnacionais ambientalistas, com fortes implicaes sobre a poltica mundial e os conceitos de cidadania e democracia. Neste contexto, as preocupaes decorrentes da ameaa de extino e da reflexo sobre a possibilidade de manuteno da vida e do direito vida, em um planeta em constante transformao, caracterizam a anunciada crise civilizacional e societria que marca a discusso ecolgica. Em sntese, vivemos um dilema entre a certeza de que as patologias oriundas dos modelos hegemnicos de desenvolvimento conduziro a humanidade a uma condio insustentvel, e a necessidade de se rever a relao sociedade-natureza, sem saber exatamente em que bases sociais, econmicas, polticas e culturais isto poder ocorrer (UNGER,1992; HOBSBAWM, 1995).21

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Tais sentimentos e representaes so empiricamente justificados. Segundo dados publicados no boletim ONU em Foo, a partir de resultados c obtidos pelo PNUMA, apesar da proliferao de organismos de defesa ambiental (mais de trinta mil identificados pelo programa) e da existncia de documentos internacionais assinados pelos pases membros das Naes Unidas aps a Rio92, a qualidade de vida vem piorando. Dentre outras informaes graves: cerca de 20% das espcies esto em processo de extino pela interveno humana direta; 40% da populao mundial no possuem gua potvel; a qualidade do ar piorou nas megalpoles; as florestas esto desaparecendo em ritmo superior a 50% alm da velocidade de uma dcada atrs e doenas, como a tuberculose, mataram mais na dcada de 1990 do que no incio do sculo XX. Dados estes corroborados no relatrio Estadodomundo2001, do Worldwatch Institute. Estes cenrios desvelados, associados mobilizao em torno da problemtica ambiental, levaram construo de teorias e paradigmas que buscam alternativas de desenvolvimento, acompanhadas da reviso do contedo tico de nossas relaes. Para o que vem sendo denominado por paradigmaecolgico, a busca pela liberdade e felicidade humana se associa ao projeto de redefinio de nossa insero e pertencimento natureza. Neste, as causas da degradao ambiental no so entendidas como decorrentes de uma essncia r i inerente ao Homosapiens, mas sim de um conjunto de variveis um interconexas das categorias: modernidade/industrialismo/mercado/ tecnocracia. Portanto, o discurso da sociedade sustentvel, no mbito de uma nova forma de entender o mundo, supe a crtica s relaes sociais tanto quanto ao sentido, valor e uso dado natureza. A ns cabe superar o que entendemos como nefasto integridade planetria e felicidade humana. O paradigma ecolgico composto, para efeito de orientao inicial, de cinco princpios (ALPHANDRY, BITOUN, DUPONT, 1992): 1. Enquanto cultura global e prtica poltica, concerne ao conjunto das atividades em sociedade, relao sociedade-natureza e aos problemas decorrentes dos modelos de organizao social que estimulam o individualismo, o produtivismo e o consumismo. Logo, enquanto princpio, no pode ser reduzido busca da soluo tcnica dos problemas identificados como ambientais,22

CidadaniaeMeioAmbiente

2.

3.

4.

5.

6.

visto que engloba uma reflexo sobre os bens simblicos e materiais da humanidade. Procura redefinir desejos, necessidades e formas de apropriao e uso dos recursos naturais, a partir do reconhecimento da existncia de limites planetrios e do ambiente como um bem comum. Supe a mudana radical dos valores culturais, comportamentos e atitudes que formam a base para uma compreenso do ser humano como senhor absoluto e dominador. Estimula a vida comunitria, processos de desenvolvimento local sustentveis e uma nova dinmica entre global-local e sociedade-Estado. Visa democratizao do Estado, cidadania plena, construo de condies materiais justas para satisfao das necessidades vitais, bem como formao de uma governana interligada em diferentes escalas: local, regional, nacional e planetria. luz deste entendimento, ambiente uma categoria constituda por relaes entre elementos humanos e naturais, no sentido estrito, espacial e historicamente localizadas, no podendo ser confundida com a viso clssica das cincias naturais e das perspectivas tecnocrticas, que excluam a dinmica social. O conceito de ambiente, portanto, exprime uma totalidade, que s se concretiza medida que preenchido por sujeitos individuais e coletivos com suas vises de mundo (GONALVES, 2001), algo que se materializa medida que grupos especficos e seus interesses diversos agem em sociedade, com implicaes sistmicas (FUKS, 1997).

Meio Ambiente o lugar determinado e percebido, onde os elementos sociais e naturais esto em relaes dinmicas e em interao. Essas relaes implicam processos de criao cultural e tecnolgica e processos histricos e sociais de transformao do meio natural e construdo (REIGOTA, 1995, p. 14).

HARVEY (1996), no campo terico-filosfico, em um esforo de sistematizao de princpios norteadores da dialtica sociedade-natureza, elencou princpios de um pensamento complexo, sistmico e ecolgico, dentre os quais destacamos:23

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

1. Elementos so demarcados por todos estruturados. O sistema estruturado deve ser entendido fundamentado nas relaes que o constituem. 2. Elemento e sistema so perpetuamente constitudos e reconstitudos por mltiplos processos. Isso no significa que somos passveis aos efeitos externos. Pelo contrrio, somos interconexos, reorganizando internamente o que apreendido do ambiente, transformando-o tambm. 3. Partes e todo so mutuamente constitutivos de cada um, o que implica dizer muito mais do que a existncia de retroalimentao entre estes. 4. H intercmbio entre sujeito e objeto, causa e efeito. Logo, os organismos so sujeitos e objetos da evoluo e os indivduos humanos, sujeitos e objetos do processo de mudana social. 5. Mudana a norma das coisas e sistemas, e a histria feita pelo movimento permanente de transformao social, cultural, poltica e econmica, com profundas implicaes sobre o ambiente e o sentido de natureza. O paradigma ecolgico, que expressa vises de mundo e questionamentos em relao sociedade, se concretiza por meio dos movimentos e atores sociais que tm como foco de ao o ambiente e o processo de apropriao e uso dos bens naturais o denominado movimento ambientalista 1. De posturas anti-humanistas, ecocntricas e individualistas, a concepes coletivistas e racionalistas, possibilitando a formao de correntes distintas fundamentalistas, ecossocialistas, compatibilistas, zeristas, verdes radicais, entre outras (HERC U L A N O, apud GOLDENBERG, 1992) os ambientalistas fazem crticas pertinentes e equivocadas a todas as linhas de pensamento representadas na modernidade, absorvendo proposies e argumentos que vo de1 Alguns autores fazem uma diviso entre ecologistas e ambientalistas. Os primeiros so os adeptos de mudanas societrias radicais para se alcanar uma sociedade sustentvel; e os demais, os que acreditam que mudanas nas prticas produtivas, comportamentais e de juzo de valores podem resultar em modelos mais responsveis ambientalmente. Esta uma diviso difcil, pois as fronteiras entre as tendncias so tnues. Portanto, para efeito do que se prope com este livro, a generalizao em ambientalistas, reconhecendo-se a diversidade interna de projetos e vises de mundo, se mostra menos problemtica. Maiores detalhes, ver o captulo 4.

24

CidadaniaeMeioAmbiente

marxistas (Gorz, OConnor, Pepper, Marcuse, Bahro e outros) a pacifistas (Gandhi e Luther King), passando por humanistas (Schweitzer e Dubos) e anarquistas (Bookchin e Proudhon), em uma atitude de negao do modo de vida vigente (SIMONNET, 1981). Desde a primeira entidade com uma proposta explicitamente ambientalista, fundada na Inglaterra em 1865 a Commons, Foot-paths,and OpenSpacesPreservationSociety , at os tempos contemporneos, as formas associativas e as orientaes polticas e ideolgicas se diversificaram, em uma mirade que deve ser analisada como um todo dinmico que se movimenta na histria (McCORMICK, 1992; PDUA, 1997). J em seus primrdios na dcada de 1960, traz quatro eixos fundamentais de discusso e reflexo, no contexto de sua proposta de transformao civilizacional. O primeiro eixo refere-se crtica tradio religiosa ocidental, que afirma a espcie humana como acima das demais, parte da natureza. Neste escopo, a relao com a natureza profana: quanto mais prximo desta, mais imperfeito e bruto. Autores vinculados a diferentes correntes teolgicas procuram repensar particularmente o cristianismo em uma perspectiva ambientalista, o que meritrio. Contudo, este um movimento interno religiosidade ocidental instituda ainda incipiente. Um segundo eixo relaciona-se Revoluo Cientfica, bem como consolidao do paradigma cartesiano, que molda a cultura moderna e o projeto positivista de cincia. A nfase na cincia analtica cartesiana conduz fragmentao do objeto, perdendo-se a noo do todo, e do contexto histrico em que se situa. Cria-se, ento, o primado do racionalismo instrumental, do reducionismo e do mecanicismo. Esses dois fatores sustentam o terceiro eixo de crtica e reflexo: a orientao individualista, antropocntrica. A sensao de poder, seja de origem divina ou cientfica, fundamenta a noo de que a humanidade pode ir alm dos limites biolgicos que lhe so constitutivos. A quarta crtica feita sociedade industrial, que representa a urbanizao descontrolada, o produtivismo e o uso tecnolgico como meio de dominao eexplorao, qualificando o tipo de degradao ambiental existente.25

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

O novo modo de pensar a vida, alm de refletir sobre os eixos expostos acima, procura promover, como base de conduta humana adequada harmonizao com a natureza, valores vistos como superiores: amor, solidariedade, cooperao, respeito e responsabilidade.

1.1 Desenvolvimento sustentvelA Declarao de Estocolmo documento final da Conferncia das Naes Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em 1972 apresentou, como alternativa aos problemas existentes, um modelo de desenvolvimento que conseguisse minimizar os efeitos dos processos degenerativos do ambiente. A orientao do encontro pautou-se nas concluses do Clube de Roma, presentes na obra Limitesdocrescimento (MEADOWS, 1978). O estudo afirma que qualquer que seja a associao feita entre os cinco fatores bsicos determinantes do crescimento (populao, produo agrcola, recursos naturais, produo industrial e poluio), os resultados sero sempre assustadores, com uma profunda desestabilizao da humanidade at o ano de 2100. Esta orientao se ampliou, ganhou em complexidade e culminou no relatrio Nosso futuro comum, da Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, instituda em 1983 na sesso 38 da Assemblia Geral da ONU, inicialmente com 23 membros, coordenada por Gro Harlen Brudtland, primeira ministra da Noruega. O referido relatrio foi aprovado sem restries na sesso 42 das Naes Unidas, no ano de 1987, formalizando o conceito oficial de desenvolvimento sustentvel: garantir os meios de atendimento s necessidades e exigncias atuais sem comprometer a sobrevivncia das geraes futuras (CMMAD, 1991). Existem inmeras formas de se entender a sustentabilidade e de se buscar caminhos para viabiliz-la, como veremos no captulo 4. Uma das possibilidades mais sintticas de defini-la, que serve para ilustrar o debate, apresenta-a como a resultante das relaes entre cinco componentes bsicos sobrevivncia de um agrupamento humano (GUIMARES, 1997): 1. Populao (tamanho e densidade demogrfica) 2. Organizao social (padres de produo e estratificao social)26

CidadaniaeMeioAmbiente

3. Entorno (habitat fsico e construdo e processos ambientais) 4. Tecnologia (progresso tcnico e utilizao de energia) 5. Aspiraes sociais (padres de consumo e valores sociais). Princpios do desenvolvimento sustentvel, normalmente apontados como norteadores da ao social e do pensamento acerca de uma sociedade substantivamente democrtica e ecologicamentevivel, so (de acordo com GUIMARES, apud BECKER, 1997): Sustentabilidade planetria reverso dos processos globais de degradao (emisso de poluentes, depleo da camada de oznio, desmatamento, desertificao e reduo da biodiversidade), com o devido respeito soberania dos Estados-Nao; Sustentabilidade ecolgica e ambiental uso racional dos estoques de recursos naturais e a adequao dos processos urbanos e rurais aos limites ecossistmicos; Sustentabilidade demogrfica urbanizao planejada e dinmica demogrfica realizada sob bases sociais e econmicas justas; Sustentabilidade cultural respeito pluralidade de valores aceitos universalmente e s minorias tnicas, entre outras; Sustentabilidade social melhor qualidade de vida para todos, pautada em justia distributiva, satisfao das necessidades bsicas, convivncia e respeito entre povos e culturas, e garantia dos direitos civis, polticos e sociais; Sustentabilidade poltica consolidao de espaos pblicos participativos e deliberativos, democracia e cidadania plena.

No bojo desta discusso acerca do desenvolvimento sustentvel e seus princpios, amplia-se a produo conceitual e cientfica em torno de indicadores que caracterizam modelos de desenvolvimento humano, articulando as questes econmicas s sociais e ambientais. E, ainda, indicadores que sinalizam parmetros de qualidade de vida distintos das medies tradicionais vinculadas ao nvel de consumo e condio socioeconmica (HERCULANO, 2000). Os primeiros movimentos neste sentido foram promovidos pelos governos canadense e holands, em meados da dcada de 1980, e pelo27

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

G-7 que solicita OECD a construo de um modelo de indicadores ambientais que respeite os pressupostos da sustentabilidade. Em 1985, movimento similar foi feito pelo World Institute for Development Economics Research, da ONU, no que se refere qualidade de vida. Em 1992, a Agenda 21, em seu captulo 40, com o intuito de articular um conjunto de indicadores de sustentabilidade a seus preceitos de participao, cidadania e responsabilidade na tomada de decises, afirma:Os indicadores comumente utilizados, como o produto nacional bruto (PNB) e as medies dos fluxos individuais de poluio ou de recursos, no do indicaes adequadas de sustentabilidade. Os mtodos de avaliao das interaes entre diferentes parmetros setoriais ambientais, demogrficos, sociais e de desenvolvimento no esto suficientemente desenvolvidos ou aplicados. preciso desenvolver indicadores de desenvolvimento sustentvel que sirvam de base slida para a tomada de decises em todos os nveis e que contribuam para uma sustentabilidade auto-regulada dos sistemas integrados de meio ambiente e desenvolvimento (Agenda 21, Cap. 40, item 4).

No Brasil, o IBGE, em 2001, desenvolveu um modelo de indicadores de sustentabilidade baseado no concebido pela Comisso de Desenvolvimento Sustentvel da ONU, o qual serviu como referncia para a pesquisa nacional que publicou em 2002. Tal modelo est assim estruturado (PENNA FRANCA, 2001):

28

CidadaniaeMeioAmbiente

(continua)

29

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes (continuao)

30

CidadaniaeMeioAmbiente

Em termos de qualidade de vida, merece citao, para ilustrar o debate recente, o modelo escandinavo baseado em trs dimenses (HERCULANO, 2000).

FONTE HERCULANO, 2000

Todas estas reflexes, que no so exclusivas dos ambientalistas, tiveram grande impacto sobre o processo educativo, levando a se consolidar o que ficaria mundialmente conhecido como Educao Ambiental. Isto no significava que pela primeira vez se falava em ambiente na educao. Todas as educaes sempre tiveram vises prprias de natureza e ambiente, mas pela primeira vez estava se dando destaque para a necessidade de se repensar a relao sociedade-natureza, quem somos e que tica pode nos levar ao respeito a todas as formas de vida, gerando a sustentabilidade a longo prazo. sobre a educao ambiental e cidadania que estaremos discorrendo nos prximos captulos.

31

Separatriz 2

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Apesar de, etimologicamente, moral (mores latim) e tica (ethos grego) apresentarem o mesmo significado conjunto de princpios ou padres de conduta , historicamente foram incorporando significaes diferenciadas. Em filosofia, moral refere-se ao conjunto de princpios, crenas e regras que orientam o comportamento individual em sociedade; e tica refere-se reflexo crtica sobre a moral, caracterstica inerente ao ser humano (FIGUEIREDO, 1999). Logo, o contedo moral ganha concretude no interior de cada contexto scio-histrico, cabendo ao indivduo posicionar-se livre e responsavelmente diante do conjunto de valores aceitos pela sociedade. A tica, enquanto capacidade de estabelecer juzos, possibilita que estes valores sejam alterados. Exemplificando, se a mulher era vista e aceita como um ser humano inferior na Grcia antiga, hoje ela , pelo menos para boa parte da cultura ocidental, igual e cidad, sendo condenvel qualquer atitude de discriminao e opresso masculina. Evidentemente, estas mudanas no so simples e lineares, j que significam conquistas em defesa dos valores considerados justos para uma dada coletividade. O mesmo pode ser dito sobre a questo ambiental. Particularmente para o Ocidente, antes da reflexo ambientalista, a natureza era vista como objeto passivo de domnio e os seres vivos objeto de uso e preservao segundo as necessidades e interesses humanos. Atualmente,atravs do que vem sendo denominado de ticaecolgica, estes valores so questionados por diferentes movimentos sociais e no bojo do conhecimento cientfico, buscando-se o reconhecimento de que: (1) a vida um direito primordial; (2) a natureza, no processo dinmico de reproduo da vida, nos impe limites; (3) todas as formas vivas merecem respeito; e (4) os modelos de desenvolvimento no podem se basear apenas no presente, ignorando a obrigao de se garantir a possibilidade de sobrevivncia para aqueles que esto por vir. Os autores que trabalham com uma abordagem ambiental da tica formam dois blocos de pensamento no que se refere ao nosso retorno 34

CidadaniaeMeioAmbiente

natureza. Um, defende que os seres vivos no-humanos possuem direitos em si e no em funo das necessidades humanas, implicando atitudes que vo desde uma viso integradora humanidade-natureza, sob um prisma ecocntrico, at concepes fascistas, para as quais a Terra s voltar ao equilbrio com a eliminao de nossa espcie. O segundo bloco entende que a vida deve ser o direito primordial, mas a definio de seu significado uma condio humana. Esta linha gera duas possibilidades: um humanismo antropocntrico-individualista, em que a preservao faz sentido em detrimento das necessidades humanas; e um humanismo ecolgico, no qual se pressupe que a capacidade de estabelecer juzo de valor humana, sendo possvel constituir uma tica que valoriza a vida em si, no exclusivamente em funo de nossos interesses, mas atravs de uma compreenso e contemplao da vida em seu sentido mais profundo. Contudo, os autores convergem em um ponto: o atual sistema de valores de nossa civilizao propicia modelos de desenvolvimento que so insustentveis (GRN, 1996). Assim, independentemente da orientao terica e poltica que se adote, a tica ecolgica a m l reflexiva que permite oa que, mesmo inseridos em uma cultura consumista, individualista e de valorizao da frivolidade, passemos a questionar esta prpria cultura. neste ponto que entra a educao. Teoricamente, define-se a educao como uma prtica social cujo fim o aprimoramento humano naquilo que pode ser aprendido e recriado a partir dos diferentes saberes existentes em uma cultura, de acordo com as necessidades e exigncias de uma sociedade. Atua, portanto, sobre a vida humana em dois sentidos: (1) desenvolvimento das foras produtivas; (2) construo e reproduo dos valores culturais (BRANDO, 1986). Estas finalidades se materializam em dois processos simultneos ao ato educativo: a) Transmisso e assimilao do conhecimento cientfico, popular, religioso e laico e dos aspectos tcnicos desenvolvidos como parte de um contexto social. No campo do ensino formal, um direito humano de grande significado em sociedades complexas, o domnio do conhecimento tcnico-cientfico confere ao indivduo maior conscincia de si mesmo e capacidade de intervir de modo qualificado no ambiente.35

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

b) Estabelecimento de relaes sociais na escola, famlia, trabalho ou comunidade, possibilitando que o indivduo tenha uma percepo crtica de si e da sociedade, entendendo sua insero social e construindo a base de respeitabilidade para com o prximo o que se entende por processo de socializao. Assim, antes de ser um procedimento formal de escolarizao, a educao um processo livre de relao entre pessoas e grupos, que busca maneiras para se reproduzir e recriar aquilo que comum, seja como trabalho ou estilo de vida, a uma sociedade. A noo implcita de educao nas sociedades complexas at o incio da modernidade era a de que esta servia sociedade governada por nobres possuidores de direitos divinos, algo que ter mudana significativa a partir do sculo XVII. A questo posta foi: a educao no pode ser apenas para tornar o indivduo apto para o convvio social e para o trabalho, segundo normas preestabelecidas, mas para form-lo como cidado ativo, sujeito capaz de conviver em sociedade isto , de decidir sobre como deve ser a sociedade em que se quer viver. Cidado, neste momento, deixa de ser a elite que pode participar das decises polticas e passa a ser qualquer indivduo, entendido como agente de transformao da histria. Na atualidade, isto se busca de diferentes formas, com diferentes nfases, segundo a perspectiva assumida: universalizao do ensino fundamental, qualificao profissional (em servio ou no), fim do analfabetismo, acesso universal aos meios tecnolgicos informacionais, fim de qualquer forma de discriminao de gnero, etnia, cor e opo sexual, entre outras coisas. No Brasil, esta busca esbarra em questes relativas estrutura do ensino regular e ao prprio sentido que a educao assume para a sociedade. Ainda que se observem avanos reais nos ltimos anos no que se refere expanso do ensino regular, o dado de realidade que o pas ainda se encontra em posio modesta em termos de desenvolvimento humano, se for considerado o IDH (sade, educao e expectativa de vida) do PNUD/ ONU como parmetro. Alguns dados apresentados pelo IBGE (2000), atravs da PNAD de 1999, ilustram o quadro atual:36

CidadaniaeMeioAmbiente

13,3% da populao so de analfabetos absolutos; 29,4% da populao so de analfabetos funcionais; h grande discrepncia no acesso ao ensino regular entre brancos e negros. Entre as pessoas com 12 anos ou mais de estudos, os brancos apresentam ndice quatro vezes superior aos negros (10,9% contra 2,8%); h enorme discrepncia entre as regies, com acentuados problemas no Norte e Nordeste. Por exemplo, o ndice de 26,6% de analfabetismo absoluto no Nordeste 129% maior que na Regio Norte e 241% maior que nas regies Sul e Sudeste; a populao etria compreendida entre 20 e 24 anos possui escolaridade mdia de 7,5 anos, bem abaixo dos 13 anos recomendados internacionalmente; 30% dos alunos matriculados na primeira srie do ensino fundamental abandonam a escola ou so reprovados; 50% das crianas com 10 anos e 70% das que esto com 14 anos se encontram em situao de defasagem srie-idade.

Alm disso, o Sistema de Avaliao da Escola Bsica (SEAB) revela que houve queda na qualidade do ensino, mesmo considerando os investimentos do MEC junto ao ensino fundamental, o que refora a tese de que a educao no pas ainda no , de fato, a expresso de um direito inalienvel de qualquer ser humano.

2.1 Educao ambientalA educao, e seu significado poltico e social no Brasil, tem de ser levada em considerao quando pensamos em educao ambiental. Afinal, um aspecto elementar precisa ser definitivamente incorporado pelos que trabalham na rea: educao ambiental educao e dentro desta perspectiva que devemos compreend-la. Entretanto, sua prtica descontextualizada, sem respeitar princpios pedaggicos, gera resultados incuos e, muitas vezes, duvidosos em termos qualitativos. O modo como se realiza a educao e as diferentes compreenses da relao sociedade-natureza, inerentes ao paradigma ecolgico, no nos37

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

permitem definir uma nica educao ambiental, mas uma mirade complexa constituda por sujeitos ecolgicos distintos, com vises paradigmticas de natureza e sociedade, numa rede de interesses e interpretaes em permanente conflito e dilogo (CARVALHO, 2001). Dentro deste amplo cenrio em que nos movemos, e no escopo da interface cidadania-meio ambiente, a educao ambiental aqui definida como uma prxis educativa que tem por finalidade a construo de valores, conceitos, habilidades e atitudes capazes de possibilitar o entendimento da realidade de vida e a atuao lcida e responsvel de atores sociais individuais e coletivos no ambiente. Contribui para a implementao de um padro civilizacional distinto do vigente, pautado numa nova tica da relao sociedade-natureza. Dessa forma, podemos afirmar que para a real transformao do quadro de crise em que vivemos, a educao ambiental se define como elemento estratgico na formao de ampla conscincia crtica das relaes sociais que situam a insero humana na natureza (LOUREIRO, 2000). Conscincia no sentido proposto por Paulo Freire (1983), que implica o movimento dialgico entre o desvelamento crtico da realidade e a ao social transformadora, segundo o princpio de que os seres humanos se educam reciprocamente e mediados pelo mundo. Objetivos da educao ambiental

F O N T E DIAS, 2000, p. 111 38

CidadaniaeMeioAmbiente

No acompanhamento de projetos em todo o pas, observamos que uma das maiores incongruncias existentes no modelo de educao ambiental predominante reside no entendimento dicotmico da categoria sociedadenatureza (LOUREIRO, LAYRARGUES, 2000), expressos no: (a) naturalismo, em que os problemas so abordados como se o contexto histrico no os situassem; (b) tecnicismo, em que as solues tcnicas e de manejo dos recursos naturais so apontadas como capazes de resolver os dilemas atuais, subdimensionando os aspectos polticos, econmicos e ideolgicos que contextualizam as opes tecnolgicas e seus desdobramentos sociais; e (c) romantismo ingnuo, defendido por aqueles que buscam o que ecologicamente correto, mas desconsideram a prpria dinmica da natureza e a ao humana sobre esta. Sua produo apresenta evidncias de que se propem a sacralizar o ambiente e, por isso, o ser humano representado abstratamente como um agente nefasto. Exemplo evidente e clssico deste posicionamento equivocado, sob a tica da cidadania, so os projetos escolares de Coleta Seletiva de Lixo. Em grande parte estes acabam, intencionalmente ou no, reproduzindo uma educao ambiental voltada para a reciclagem, sem discutir a relao produo-consumo. Premiam a instituio ou o aluno pelo volume coletado e encaminhado s empresas de reciclagem, mas no abordam quais so os maiores beneficirios deste processo, nem a lgica do consumismo e do suprfluo, ou mesmo as percepes e simbolismos presentes no tema lixo. Assim, a soluo encontrada reproduz, paradoxalmente, a excluso social e a lgica daquilo que se diz negar o consumismo e a cultura do descartvel e do desprezvel (LAYRARGUES, 2002). Ou seja, o lixo no visto nem enfrentado como problema em sua complexidade e totalidade, mas apenas como fator de reciclagem de determinados recursos, favorecendo mais a certos setores sociais do que ao conjunto da sociedade e ao ambiente. Em sntese, a educao ambiental envolve a compreenso de que o processo educativo composto por atividades integradas formais, informais e no-formais, estando fundamentada numa concepo pedaggica norteada pelos seguintes princpios (QUINTAS, 2000): Educao como mediadora de conflitos entre atores sociais que agem no ambiente, usam e se apropriam dos recursos naturais de modo desigual.39

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Percepo do problema ambiental como questo mediada pelas dimenses econmicas, polticas, simblicas e ideolgicas, que determinam a sua compreenso cognitiva. Entendimento crtico e histrico das relaes existentes entre educao, sociedade, trabalho e natureza. Desenvolvimento da capacidade de usar saberes para agir em situaes concretas do cotidiano de vida. Preparao dos sujeitos da ao educativa para se organizar e intervir em processos decisrios nos diferentes espaos de participao existentes no Estado brasileiro.

Tais princpios se realizam pela adoo de procedimentos participativos e dialgicos, cognitivo-conteudistas e ldicos, a fim de que, pelo processo educativo, educador e educando possam (QUINTAS, op. cit.): conhecer a realidade, num processo de sistematizao, reflexo e ao; fortalecer a ao coletiva e organizada; articular diferentes saberes na busca de solues de problemas; compreender a problemtica ambiental em toda a complexidade. As esferas de inter-relao em educao ambiental

FONTE SAUV, ORELLANA, apud SATO, SANTOS, 2001 40

CidadaniaeMeioAmbiente

Longe de ser uma educao temtica, a educao ambiental uma dimenso essencial do processo pedaggico, situada no centro do projeto educativo de desenvolvimento humano e definida a partir do paradigma ecolgico e do entendimento do ambiente como uma realidade vital.

2.2 Cidadania ecolgicaEm sinttico recorte histrico, verificamos que os primrdios da noo de cidadania, na Grcia clssica, cerca de seis sculos antes de Cristo, demonstram conotao diversa da existente nos Estados modernos. Longe de ser uma concepo universal, o conceito de cidado referia-se quele que participava da formao do governo inferncia na esfera pblica, da qual eram excludos, dentre outros, escravos e mulheres. Na Idade Mdia, a cidadania continua sendo um privilgio de poucos, s que ao lado dos nobres, prncipes e imperadores, encontram-se os padres, bispos e o papa, em funo da asceno do poder da Igreja. Contudo, no mais era servo aquele que no pertencia a tais grupos, pois desde o momento em que o indivduo morasse por mais de um ano em uma cidade, ganhava a condio de livre. Portanto, havia uma possibilidade de se sair da posio de escravo, mesmo que isto no implicasse ser um cidado. A modernidade traz a idia racional de direitos universalmente vlidos, e tambm um avano fundamental: cidado o indivduo livre que tem a seu alcance uma srie de direitos e responsabilidades e o estado de liberdade a condio em que todos esto inseridos em igualdade, e no mais um privilgio de poucos (COUTINHO, 1997). Apesar do sentido transformador que a caracteriza, a noo moderna-naturalista do sculo XVIII mostra-se equivocada e restrita por sua a-historicidade, pois ignora a procedncia social. Os direitos no so dados, mas conquistados; a garantia formal e legal no implica que a igualdade seja praticada e o que j foi entendido como vlido hoje poder no mais o ser e vice-versa. Dessa forma, uma importante ruptura no campo conceitual foi a contribuio de Marshall (1967), ao oferecer uma perspectiva41

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

processual e sistematizar a cidadania em direitos civis e polticos (de primeira gerao) e direitos sociais (de segunda gerao). Para o autor, que utilizou como realidade analtica o Welfare State ingls, os direitos civis surgiram no sculo XVIII, como correspondncia aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir e de segurana. So os que garantem a autonomia do indivduo frente ao Estado. Os direitos polticos, obtidos no sculo XIX, referem-se liberdade de associao, de organizao poltica e eleitoral. Os direitos sociais, conquistados no sculo XX, vinculam-se ao direito ao trabalho, educao, sade, aposentadoria e ao sistema previdencirio. Um aspecto a ser problematizado nesta teoria marshaliana a perspectiva seqencial e cumulativa da cidadania, que no expressa a dinmica da sociedade, os conflitos, avanos e retrocessos nesse campo dos direitos. O Brasil um caso exemplar. Em conseqncia de uma poltica autocrtica e assistencialista, os direitos sociais foram formalmente concedidos antes mesmo de alguns direitos polticos e civis (CARVALHO, 2001). O resultado disso foi que a existncia de garantia legal no propiciou a obteno dos direitos de fato, at pela falta de uma cultura cidad que garantisse a sua efetivao. A livre expresso cidad e democrtica exige o acesso justo aos bens produzidos, a superao de padres de Estado ditatoriais, assistencialistas e paternalistas, que inibem a participao, e a ruptura com modelos econmicos que criam uma tradio cultural de submisso s necessidades do mercado (DEMO, 1996). Assim, o conceito de cidadania diz respeito capacidade conquistada por alguns indivduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos indivduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realizao humanas abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado (COUTINHO, 1997, p. 146).

A cidadania , portanto, algo que se constri permanentemente e que se constitui ao dar significado ao pertencimento do indivduo a uma sociedade. O desafio para a consolidao de uma cidadania substantiva reside na capacidade de publicizar as instituies governamentais; estabelecer42

CidadaniaeMeioAmbiente

prticas democrticas cotidianas; e promover uma escola capaz de levar o aluno a refletir sobre seu ambiente de vida. Qual seria, ento, o papel da cidadania ecolgica, cerne da educao ambiental? Em um contexto globalizado, o conceito de cidadania vem incorporando outras dimenses e significados. Passou a ser urgente a busca de mecanismos efetivos de participao que tragam para o mbito dos direitos o senso de responsabilidade cvica com nfase nas questes de humanidade (gnero, ambiente, minorias, fome, explorao infantil, analfabetismo, doenas epidmicas, entre outras). No mundo contemporneo, o conceito de cidadania envolve complexos conjuntos de direitos e responsabilidades sociais no mais limitados ao Estado-Nao, e sim pensados, produzidos e reproduzidos em sentido global. Ecocidadania, cidadania planetria ou cidadania ecolgica um conceito utilizado para expressar a insero da tica ecolgica e seus desdobramentos no cotidiano, em um contexto que possibilita a tomada de conscincia individual e coletiva das responsabilidades tanto locais quanto globais, tendo como eixo central o respeito vida e a defesa do direito a esta em um mundo sem fronteiras geopolticas. Nesse conceito, amplia-se o destaque ao sentimento de pertencimento humanidade e a um planeta nico. Contudo, cabe transcrever uma esclarecedora colocao:(...) para que se possa falar na construo de uma cidadania planetria, necessrio avaliar se as prticas destas mltiplas redes de movimentos esto caminhando para humanizar a natureza construindo direitos sociais e ambientais de fo rma histrica garantindo a partir do presente a sustentabilidade do futuro sem fronteiras no sentido de se referenciar ao conjunto dos povos e radicalmente democrtica articulando requisitos de igualdade (justia social), de liberdade (expressa na diversidade cultural) e de compromisso com o coletivo na gesto pblica (SCHERER-WARREN, 1999, p. 77).

Na atualidade, o conceito de cidadania, alm dos aspectos relativos ao acesso e uso de bens e riquezas produzidos e da participao poltica43

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

na definio do que comum, possui um terceiro componente: o consumidor livre e racional em suas opes e exigente quanto qualidade do que adquire. Nessa tica, a competitividade e a liberdade individual de escolha no mercado tambm so um caminho para a expresso cidad conquistada (KYMLICKA, NORMAN, 1996). Uma manifestao de amadurecimento do indivduo em sua capacidade de decidir, querer e exigir produtos adequados. Todavia, h de se ter uma permanente preocupao em manter equilibradas as trs dimenses do exerccio da cidadania. Os direitos individuais devem estar acoplados aos sociais e ao bem comum. Alm disso, os limites que o ambiente impe e a impossibilidade de expandir a todos o conforto que os bens de consumo propiciam, geram uma necessria compreenso solidria e coletiva que muitas vezes os enfoques individualistas de cidado-consumidor ignoram. O dado de realidade preocupante que o aumento hipottico de liberdade pessoal, em funo do acesso s informaes e de poder de escolha individual, coincide com o aumento da fragilizao do poder de deciso pelo coletivo. Uma vez que no se consegue traduzir as preocupaes pessoais em pblicas, as nicas queixas ventiladas so um punhado de agonias e ansiedades pessoais que, no entanto, no se tornam questes pblicas apenas por estarem em exibio pblica (BAUMAN, 2000, p. 10). Logo, a expresso da cidadania plena e ecolgica uma resposta colonizao do mundo da vida pela racionalidade econmica e instrumental, com o objetivo de se constituir instncias coletivas de dilogo e atores sociais individuais e coletivos que saibam agir com conscincia e responsabilidade social, em diferentes escalas (local, regional, nacional e global) e sob novo modo de se relacionar com e na natureza (GOLDBLATT, 1996).

44

CidadaniaeMeioAmbiente

Separatriz 3

45

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Em termos cronolgicos e mundiais, a primeira vez que se adotou o termo educao ambiental foi em um evento de educao promovido pela Universidade de Keele, no Reino Unido, em 1965 (ARRUDA, 2001). Tornouse um campo especfico em 1975, com a realizao do I Seminrio Internacional de Educao Ambiental, em Belgrado. Este evento se constituiu em um dos desdobramentos das discusses ocorridas na Conferncia das Naes Unidas sobre Ambiente Humano, em 1972, na qual constou, atravs da recomendao 96 e do princpio 19, a necessidade de se inserir a discusso acerca do ambiente na educao. No I Seminrio foram estabelecidos os princpios referenciais para as diretrizes definidas na Conferncia Intergovernamental realizada em Tbilisi, 1977, consensualmente adotadas internacionalmente. Eis como se definem a orientao central e compreenso do que a educao ambiental: a educao dirigida ao crescimento de uma populao mundial consciente e preocupada com o meio ambiente e seus problemas associados, e que tenha conhecimentos, habilidades, atitudes, modificaes e compromissos de trabalhar individual e coletivamente para a soluo dos problemas atuais e a preveno dos problemas futuros (UNESCO, 1976).

Diversos eventos ocorreram desde ento. Podemos mencionar, dentre outros, o Seminrio Educao Ambiental para a Amrica Latina (Costa Rica, 1979) e o Seminrio Latino-Americano de Educao Ambiental (Argentina, 1988), que reforaram a necessidade de preservao do patrimnio histricocultural e a funo da mulher na promoo do desenvolvimento local e da cultura ecolgica. O Congresso Internacional de Educao e Formao Ambientais (Moscou, 1987), ao avaliar os avanos obtidos e ratificar as diretrizes de Tbilisi, enfatizou o estmulo organizao de redes de informao e comunicao entre os profissionais, alm de ter defendido a capacitao de profissionais de nvel tcnico como essencial a uma interveno instrumental compatvel com parmetros sustentveis. A Jornada Internacional de Educao46

CidadaniaeMeioAmbiente

Ambiental (Rio, 1992), paralela Conferncia Oficial na Rio92, na qual foi produzido o Tratado de Educao Ambiental para Sociedades Sustentveis e Responsabilidade Global, que expressa com clareza o que educadores de pases de todos os continentes pensam em relao educao ambiental. A Conferncia Meio Ambiente e Sociedade: Educao e Conscincia Pblica para a Sustentabilidade (Thessaloniki, 1997) considerou prioritrias a formao de professores, a produo de materiais didticos e a realizao de encontros de menor porte para a troca de experincia entre educadores. E destacamos, por fim, o Taller Subregional de Educacin Ambiental para Educacin Secundaria (Chosica/Peru, 1976), que apresenta uma das mais completas definies de educao ambiental:La Educacin Ambiental es la accin educativa permanente por la cual la comunidad educativa tiende a la toma de conciencia de su realidad global, del tipo de relaciones que los hombres establecen entre s y con la naturaleza, de los problemas derivados de dichas relaciones y sus causas profundas. Ella desarrolla, mediante una prctica que vincula al educando con la comunidad, valores y actitudes que promoven un comportamiento dirigido hacia la transformacin superadora de esa realidad, tanto en sus aspectos naturales como sociales, desarrollando en el educando las habilidades y aptitudes necesarias para dicha transformacin (UNESCO, 1976a, p. 10).

Nesses eventos foi definido um conjunto de pressupostos tericos, os quais podem ser estruturados em cinco eixos (LOUREIRO, 2001), que so: Unidade ecolgica/Ambiente como totalidade Este pressuposto est relacionado com a compreenso da educao ambiental em termos filosficos, conforme o descrito acerca do paradigma ecolgico no captulo 1. Na busca de ruptura com princpios positivistas, afirma:

Nenhum elemento possui identidade e existncia fora do ambiente, entorno ou contexto de sobrevivncia A obteno de conhecimentos depende da participao dos indivduos nos processos existentes47

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

A capacidade de sntese to importante quanto a de anlise, pois se parte do princpio de que tudo est interconectado e que para se conhecer algo necessrio procurar compreender sua origem e finalidade O Universo uma realidade que se auto-organiza.

Saber trabalhar com o movimento que constitui a prpria vida a condio de possibilidade para superar o pensamento linear e compreender que a realidade dinmica e diversa. Isso traz para a educao ambiental um carter flexvel, dialgico e construtivo, posto que no se baseia em nenhum princpio rgido ou verdades absolutas. Interdisciplinaridade A educao ambiental foi discutida como disciplina, no Brasil, durante a dcada de 1970 e at meados dos anos 1980. Entretanto, nessa poca, verificava-se pouco aprofundamento terico e, em conseqncia, confundia-se conceitualmente educao ambiental com o ensino de contedos da ecologia. Aps a superao do enfoque disciplinar, adotou-se um enfoque multidisciplinar, isto , o de tematizar o ambiente no campo de cada disciplina. Essa mudana pode ser entendida luz dos Anais do 2o Simpsio de Educao Ambiental, realizado em Santos (SP), em 1986. A partir de meados da dcada de 1980, a interdisciplinaridade passa a ser central, recuperando uma antiga discusso nas cincias humanas e sociais. A interdisciplinaridade pressupe a reciprocidade, a mutualidade e o fim da compartimentalizao, tendo em vista uma percepo integral do ser e a compreenso do humano enquanto parte da natureza. No auge do debate interdisciplinar, a declarao de Gusdorf, em prefcio de um dos livros clssicos de Hilton JAPIASS (1976), exemplifica a crtica viso tradicional de construo do saber cientfico e laico:S que tais verdades (as cartesianas), desligadas de toda referncia figura humana, so verdades que se enlouqueceram. Devemos considerar como alienada e alienante toda cincia que se contenta em48

CidadaniaeMeioAmbiente

dissociar e em desintegrar o seu objeto. absurdo, vo, querer construir uma pretensa cincia do homem, se tal cincia no encontra na existncia humana sua plenitude concreta, seu ponto de partida e seu ponto de chegada (p. 20).

Em termos estritamente conceituais, temos a seguinte classificao:

Multidisciplinaridade Aproximao entre contedos e mtodos de disciplinas diversas de reas distintas. Como, por exemplo, a integrao entre matemtica e histria. Pluridisciplinaridade Enfoque semelhante ao anterior, s que realizado entre disciplinas prximas em termos de rea de conhecimento. Interdisciplinaridade Interao real entre disciplinas, independentemente da rea de origem. H diferentes nveis, indo desde a utilizao de mtodos e incorporaes tericoconceituais de outras disciplinas, at a aproximao inerente ao fato de duas ou mais disciplinas possurem domnios de estudo que estabeleam afinidade e dilogo.

A interdisciplinaridade se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integrao real das disciplinas, no intervir de um projeto especfico (...) (JAPIASS, op. cit., p. 74).

Nessa perspectiva, a interdisciplinaridade visa construo conjunta a partir da interao conceitual, metodolgica, de ensino e pesquisa, sendo capaz de produzir uma linguagem comum sem perda do que especfico de cada disciplina. A atitude interdisciplinar de recusa prtica fragmentria e onipotente das disciplinas est intimamente relacionada com as propostas inclusivas de educao, ao afirmar que a pulverizao do saber no nos conduziu compreenso da presena humana no mundo. A proposta interdisciplinar no nega a importncia da especializao, que ajuda e aprofunda a compreenso dos fatos, mas entende que esta faz parte de uma interpretao global, histrica e social. Isto no significa se especializar49

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

em vrias disciplinas, mas saber aproximar-se da totalidade do conhecimento especfico. Segundo esse entendimento, cada cincia tem seu objeto, cabendo interdisciplinaridade estabelecer pontes e dilogos entreelas. De acordo com LEFF (2000), a complexidade do ambiente como objeto de reflexo vai muito alm de qualquer limite epistemolgico ou cientfico. Ou seja, no se trata de impor ou instituir uma cincia das cincias.No campo do conhecimento, a complexidade manifesta a impossibilidade da unidade da cincia, da idia absoluta, de todo tipo de pensamento homogeneizante e hegemnico. A diferena o signo que marca a impossibilidade de se estabelecer equivalncias entre processos incomensurveis; de se pensar a igualdade e a eqidade como o elo final da cadeia significante numa unidade ensimesmada. A complexidade leva-nos a uma reconstituio de identidades, que se separam do idntico para forjar o indito. Identidades hbridas e identificaes solidrias na diferena, na singularidade, de onde se constituem alianas estratgicas para a satisfao de interesses comuns, mas que no buscam sua homologao num futuro sem origens, sem ancoragens no ser e no tempo, que dissolveria as diferenas na entropia de uma cidadania global sem identidade (LEFF, op. cit., p. 203).

Entretanto, cabe perguntar: possvel o que se chama de transdisciplinaridade, enquanto axiomtica comum ao conjunto das cincias? Diramos que isto muito pouco provvel, pois poderamos recair em um totalitarismo baseado em uma metacincia, uma cincia ambiental unificadora das demais. De resto, esse equvoco epistemolgico se verificou quando se afirmava que a sociologia era a unidade das cincias sociais e humanas, e a biologia, a unidade das cincias naturais. Outro problema que a transdisciplinaridade pode estimular um bom senso generalizado que acabaria por tornar o ensino e os conhecimentos cientficos inconsistentes pela ausncia de discordncias e crticas. Logo, como algo consensual entre educadores de todo o mundo, a interdisciplinaridade indissocivel da educao ambiental, visto que oferece algumas vantagens ao processo pedaggico:50

CidadaniaeMeioAmbiente

a) Melhor capacitao, fornecendo informaes em uma perspectiva de compreenso dos fatos em suas mltiplas interrelaes e respeitando-se a diversidade de opinies que representam a totalidade b) Estmulo viso crtico-construtiva, objetivando alteraes concretas por meio de uma anlise dialtica dos acontecimentos c) Estmulo educao permanente, entendida como a capacidade de o indivduo se educar em diferentes contextos pedaggicos d) Novo tipo de compreenso do mundo em sua complexidade, conduzindo, quem a vivencia, busca da qualidade de vida em sua prpria atitude cotidiana. Participao 2 A participao forma, juntamente com a interdisciplinaridade e a unidade ecolgica, o trip da educao ambiental. Participao igualdade de poder no processo, respeito pelas experincias acumuladas por cada indivduo e construo coletiva em busca da cidadania plena.Com efeito, participao o processo histrico de conquista da autopromoo. a melhor obra de arte do homem em sua histria, porque a histria que vale a pena a participativa, ou seja, com o teor menor possvel de desigualdade, de explorao, de mercantilizao, de opresso. No cerne dos desejos polticos do homem est a participao que sedimenta suas metas eternas de autogesto, de convivncia (DEMO, 1988, p. 23).

Participao um dos termos mais referidos tanto em discursos de organismos multinacionais e empresas transnacionais quanto em movimentos sociais revolucionrios, passando por governos e ONGs. Para GOHN (2001), trs concepes fundantes auxiliam-nos a entender um vasto campo de disputa e composio entre projetos de participao para a sociedade: a liberal, a revolucionria e a democrtica radical.2 Aqui o enfoque conceitual, pois a explicitao deste pressuposto, em termos de sua possibilidade de concretizao, ser apresentada nos captulos seguintes.

51

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

A concepo liberal est baseada num movimento espontneo dos indivduos, vistos como iguais, sem que sejam consideradas relevantes as diferenas de classe, gnero ou tnicas. A participao inerente aos desejos e escolhas racionais da liberdade individual humana e decorre do esprito, no tendo relao de determinncia com os interesses derivados do posicionamento na sociedade. Fortalecer a sociedade civil no significa torn-la parte orgnica do Estado, mas enfatizar sua dimenso independente, evitando as ingerncias deste na vida privada. Assim, o que se busca o aprimoramento dos canais de comunicao e de acesso informao, garantindo aos indivduos os meios que lhes permitam a plena e lcida capacidade de escolha. A concepo revolucionria entende a participao como um processo de organizao popular na luta contra as relaes de dominao e o modo como o poder est distribudo em uma sociedade de classes. Os caminhos para o enfrentamento podem ser os institucionais e legais ou os paralelos, em busca de rupturas revolucionrias. Os partidos so aparatos de organizao por excelncia e a democracia representativa deve ser substituda pela democracia direta, sendo essenciais, para isso, a criao e experimentao de estruturas coletivas alternativas. A concepo democrtica radical visa ao fortalecimento da sociedade civil em favor de uma ordem social mais justa e igualitria. Diferencia-se da concepo revolucionria porque no pressupe a centralidade dos partidos de massa. Os movimentos sociais, sindicatos, ONGs e outras formas associativas tm papel relevante na construo do processo plural de hegemonia. Os sujeitos sociais no so os indivduos abstratos da concepo liberal e nem exclusivamente os membros de uma classe social, mas os cidados, os quais so definidos por suas relaes de classe e tambm de gnero, etnia, orientao sexual, grupo etrio etc. Ainda neste esforo de definir o sentido de participao, alguns princpios merecem destaque (BORDENAVE, 1995): 1. Pode ser entendida como uma necessidade biolgica, uma vez que o ser humano s sobreviveu como espcie por meio do desenvolvimento de sua capacidade de vida coletiva e em sociedades organizadas.52

CidadaniaeMeioAmbiente

2. Justifica-se por si mesma, no por seus resultados. Sendo uma necessidade e uma conquista cidad, deve ser promovida mesmo quando isto resulta em perda de eficincia operativa. 3. um processo de conscientizao e de compartilhamento de poder e responsabilidades. 4. algo que se aprende atravs de sua promoo. 5. facilitada com a organizao social e a criao de fluxos de comunicao. 6. Devem ser respeitadas as diferenas individuais na forma de participar. Nem todas as pessoas participam da mesma maneira. 7. Pode resolver conflitos, mas tambm pode ger-los. Logo, no uma panacia, mas um processo inclusivo e educativo no tratamento e explicitao de problemas, e no a soluo em si destes. Participao promoo da cidadania, realizao do sujeito histrico, instrumento por excelncia para a construo do sentido de responsabilidade e de pertencimento a um grupo, classe, comunidade e local. Num certo sentido rousseauniano, a participao o cerne do processo educativo, pois desenvolve a capacidade de o indivduo ser senhor de si mesmo. Como diria BAUMAN (2000), uma sociedade aberta, democrtica e pluralista aquela capaz de definir os seus limites, isto , quando os atores individuais ou coletivos tomam conscincia do significado da vida em sociedade. Adequao do processo educativo realidade cotidiana Para se chegar compreenso dos problemas nacionais e internacionais, deve-se partir do cotidiano, possibilitando a construo de um sentido coerente no discurso ambiental para os educandos (do concreto para o abstrato). preciso construir um senso de pertencimento a uma comunidade, a uma localidade definida, ser um cidado local para s-lo no nvel planetrio. Neste tpico, cumpre ressaltar tambm que as atividades fechadas em si mesmas, se no forem articuladas como processos educativos, no passaro do plano da sensibilizao ou da instrumentalizao para o melhor53

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

uso dos recursos naturais. evidente que, em um projeto, no temos condies de trabalhar todos os espaos pedaggicos e abordar a teia de problemas existentes em um ambiente; porm, mesmo a partir de algo especfico, no podemos perder de vista os princpios e fundamentos da educao ambiental, sabendo relacionar os diferentes aspectos que constituem a totalidade. Sensibilizao e aquisio de conhecimentos e habilidades Este pressuposto, para ser melhor compreendido, pode ser apresentado de modo esquemtico: O primeiro passo no processo educativo sensibilizar, chamar a ateno e mobilizar para um dado problema, que s o medida que aceito como tal. Para poder agir sobre um problema definido, preciso antes conhec-lo (origem, condicionantes, impactos etc.). Contudo, para mudar a realidade confrontada no basta estar mobilizado e saber a sua complexidade. preciso ser capaz de agir, estar devidamente instrumentalizado para isto, criando habilidades e competncias.

Entretanto, alm de observar esses procedimentos, fundamental que o cidado disponha de dois outros recursos: condies materiais para agir e o estmulo coletivo necessrio. Desse modo, torna-se evidente a pertinncia de todos os pressupostos articulados em um mesmo processo educativo. Aps essas consideraes, podemos dizer que a educao ambiental tem como diretrizes principais as definidas em Tbilisi: a) considerar o ambiente em sua totalidade, ou seja, em seus aspectos naturais e criados pelo ser humano; b) constituir um processo contnuo e permanente, comeando pela educao infantil e continuando atravs de todas as fases do ensino formal e no-formal; c) aplicar um enfoque interdisciplinar, aproveitando o contedo especfico de cada disciplina, de modo que se adquira uma perspectiva global e equilibrada;54

CidadaniaeMeioAmbiente

d) examinar as questes ambientais do ponto de vista local, regional, nacional e internacional, de modo que os educandos se identifiquem com as condies ambientais de outras regies geogrficas; e concentrar-se nas situaes ambientais atuais tendo em conta a ) perspectiva histrica; f) insistir no valor e na necessidade da cooperao local, nacional e internacional para prevenir e resolver os problemas ambientais; g) ajudar a descobrir os sintomas e as causas reais dos problemas ambientais; h) destacar a complexidade dos problemas ambientais e, em conseqncia, a necessidade de desenvolver o senso crtico e as habilidades necessrias para resolver tais problemas; i) utilizar diversos ambientes educativos e uma ampla gama de mtodos para comunicar e adquirir conhecimentos sobre o meio ambiente, acentuando devidamente as atividades prticas e as experincias pessoais.

3.1 Educao ambiental no BrasilEm termos oficiais, no Brasil a educao ambiental referida pela primeira vez, com maior destaque, na Constituio Federal de 1988, Captulo VI, sobre meio ambiente, artigo 225, pargrafo 1o, inciso VI, onde se l que compete ao poder pblico promover a educao ambiental em todos os nveis de ensino e a conscientizao pblica para a preservao do meio ambiente. Nos anos 1970 e 80, o que se verificou foi a adoo de medidas educativas voltadas para a conservao dos recursos naturais e, nesse mbito, a proposta de mudanas comportamentais individuais; por sua vez, os sistemas de ensino incluram a educao ambiental no currculo como disciplina, caracterizada por um contedo composto por principios e noes da ecologia. Nessa poca tambm foram recorrentes aes promovidas por instncias tcnicas vinculadas rea de meio ambiente strictosensu, mas sem a participao de rgos de educao. Entretanto, s nos anos 1990 a55

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

prtica da educao ambiental passou a basear-se em determinados princpios, sintonizados com as diretrizes mundiais para a rea. Assim, na ltima dcada o governo federal tentou estabelecer diretrizes nacionais compatveis com uma abordagem scio-histrica. Em 1994, foi lanado o Programa Nacional de Educao Ambiental - PRONEA (MEC) em convnio entre o Ministrio da Educao e o do Meio Ambiente, e participao do Ministrio da Cultura e o da Cincia e Tecnologia, com o propsito de buscar consolidar a educao ambiental como poltica pblica. Constitui-se em um documento de grande relevncia, no somente por ser a primeira iniciativa governamental nesse domnio, mas por significar o reconhecimento por parte do MEC de que este era um tema institucional e politicamente marginal at ento. O PRONEA foi definido por meio de sete linhas de ao: (1) educao ambiental atravs do ensino formal (capacitar os sistemas de ensino formal, supletivo e profissionalizante); (2) educao no processo de gesto ambiental (sensibilizar e apoiar gestores pblicos e privados para agir em concordncia com os princpios da gesto ambiental); (3) realizao de campanhas especficas de educao ambiental para usurios de recursos naturais (conscientizar e instrumentalizar usurios de recursos naturais, promovendo a sustentabilidade no processo produtivo e a qualidade de vida das populaes); (4) cooperao com os que atuam nos meios de comunicao (possibilitar-lhes condies para que contribuam para a formao da conscincia ambiental); (5) articulao e integrao das comunidades em favor da educao ambiental (mobilizar iniciativas comunitrias adequadas sustentabilidade); (6) articulao intra e interinstitucional (promover a cooperao no campo da educao ambiental); (7) criao de uma rede de centros especializados em educao ambiental, integrando universidades, escolas profissionais, centros de documentao, em todos os Estados da Federao. Em 1996, o MEC definiu os Parmetros Curriculares Nacionais (MEC, 1998). O tema meio ambiente, nesse documento, apresentado como um estudo articulado e transversal s diversas reas de conhecimento, que impregna a prtica educativa e possibilita uma viso abrangente da questo ambiental a partir de projetos pedaggicos. Nessa56

CidadaniaeMeioAmbiente

perspectiva, consideram-se como prioritrios o significado das aes cotidianas no local de vida, a gesto coletiva de alternativas de produo que superem o quadro de degradao, e a insero poltica na sociedade, redefinindo o que se pretende por qualidade de vida e propiciando a construo de uma tica ecolgica. Os contedos previstos esto divididos em trs blocos condizentes com os pressupostos tericos da educao ambiental: a apreenso de que a natureza cclica (conhecimento da dinmica da natureza); sociedade e ambiente (aspectos abrangentes e histricos das formas de organizao humana e a relao com a natureza na definio de seus espaos de vida); e manejo e conservao ambiental (possibilidades de interveno no ambiente, visando melhoria da qualidade de vida e preservao dos recursos naturais). Em 1997, em comemorao aos 20 anos de Tbilisi, foi realizada a I Conferncia Nacional de Educao Ambiental, com a participao de 2868 pessoas de entidades governamentais e da sociedade civil. Foi ento elaborado um documento nacional, conhecido como a DeclaraodeBraslia, onde constam grandes temas com seus problemas associados e recomendaes (MEC, 1997). Nesse evento, foram consideradas como principais necessidades da educao ambiental: implementar o PRONEA; reformular os currculos do sistema formal de ensino e implementar os PCNs; definir polticas pblicas integradas (governo/sociedade civil) e fundamentadas nos princpios da Agenda 21; estimular a gesto ambiental e processos de desenvolvimento comunitrio sustentveis; democratizar os meios de comunicao, a fim de garantir mais espaos para a divulgao e promoo de projetos, experincias e debates acerca da questo ambiental; e motivar a mdia a ser um formador de opinio social em que a tica ecolgica esteja presente. Em 1999, foi instituda a Poltica Nacional de Educao Ambiental, mediante a Lei n 9795, que, em seu art. 2o, estabelece: A educao ambiental um componente permanente da educao nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os nveis e modalidades do processo educativo, em carter formal e no-formal.57

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Em seu artigo 3o, sobre as incumbncias, determina que cabe ao Poder Pblico, nos termos dos artigos 205 e 225 da Constituio Federal, definir polticas pblicas que incorporem a dimenso ambiental, promover a educao ambiental em todos os nveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservao, recuperao e melhoria do meio ambiente. E sociedade como um todo, manter ateno permanente formao de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuao individual e coletiva voltada para a preveno, a identificao e a soluo de problemas ambientais. Como concluso, destacamos que a educao ambiental, alm do conhecimento do cenrio global, que forma o contexto em que se d a atuao pedaggica, trabalha os problemas especficos de cada grupo social ou comunidade, principalmente quando se tem por finalidade bsica a gesto ambiental. Os grupos sociais possuem peculiaridades ligadas situao particular de seus ambientes, ao modo como interagem neste e percepo qualitativa dos problemas. A partir da ao territorializada dos diferentes atores sociais, com seus distintos interesses, compreenses e necessidades, instauram-se os processos de apropriao e uso do patrimnio natural e realizam-se os atos educativos voltados para a gesto democrtica do ambiente (LOUREIRO, 2002).

58

CidadaniaeMeioAmbiente

Separatriz 4

59

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

Como qualquer texto, este ensaio elege seus interlocutores: os que militam nos movimentos ecolgicos e os que se identificam com eles sabem o porqu do emprego desse plural. Tento aqui estabelecer um dilogo com esses companheiros, com vistas a trazer alguma contribuio para o desenvolvimento de nossas lutas. Em suma, trata-se de um esforo no sentido de apontar a complexidade e a diversidade daquilo que constitui os movimentos ecolgicos. Assim inicia-se a obra Os (des) caminhos do meio ambiente, de Carlos Walter Porto GONALVES (1989), que se caracteriza pelo mrito de ser um pioneiro esforo para romper uma equivocada percepo que resiste ao longo do tempo: a idia de que o pensamento e o movimento ambientalistas se conjugam no singular. Idia essa absorvida e cristalizada na prpria educao ambiental. Nos acostumamos a v-la monoliticamente no singular, como uma possibilidade de se recorrer a uma nica pedagogia relativa ao meio ambiente. nesse sentido que as palavras de Carlos Walter se prestam a iniciar este captulo, cujo propsito apenas o de ressaltar a existncia de uma multiplicidade de possibilidades e interesses que perpassam no apenas o pensamento do(s) movimento(s) ambientalista(s), como tambm a(s) prtica(s) pedaggica(s) relativa(s) ao meio ambiente. Frente crise ambiental, no tardaram as tentativas de classificao das reaes de modo binrio e excludente, cuja argumentao dualisticamente defendia as foras ecolgicas e atacava as foras desenvolvimentistas. Inicialmente as posies antagonizaram as disciplinas ecologia e economia, de modo superficial e baseadas numa argumentao meramente semntica, em que a ecologia se destinava ao estudo da casa, e a economia, gesto da casa, no fazendo sentido, portanto, ocorrer no s a dissociao entre ambas, mas, sobretudo, a subordinao da ecologia economia. O debate desdobrou-se posteriormente com contornos mais ntidos, porm ainda em termos binrios, aexemplo da posio de Vandana SHIVA (1991), que defende a naturez como princpio organizativo da vida, a60

CidadaniaeMeioAmbiente

em contraposio ao mrc d como princpio organizativo da produo, e ao ou dos trabalhos de Enrique LEFF (1993), a respeito da mesma posio binria, entre uma racionalidade ecolgica e outra econmica. Mas, se verdade que a atual crise ambiental colocou as foras desenvolvimentistas clssicas em antagonismo e oposio s forassustentabilistas que, de excludentes num primeiro momento, passaram logo depois a compartilhar certas vias de convergncia, fundindo-se para criar o desenvolvimento sustentvel , no to verdadeiro assim que atualmente exista uma ntida e explcita fronteira que separe e demarque de modo categoricamente binrio esses dois territrios. O que se verifica no real, alm dessa didtica, mas limitada classificao, , alm de um gradiente de possibilidades entre esses dois extremos, a interpenetrao desses gradientes entre si, tornando infrutfera qualquer tentativa de sistematizar uma classificao, posto que reduz o real a um empobrecedor dado instantneo. O que torna complexo esse cenrio aparentemente simples a imbricao de outras categorias de classificao de acordo com outros critrios que definem as demais caractersticas do movimento ambientalista. O embate entre as foras sustentabilistas e as foras desenvolvimentistas produziu novos e mltiplos vetores snteses, e no a vitria ou hegemonia pura e simples de um dos plos sobre o outro. Nosso ponto de partida, portanto, o reconhecimento da riqueza interna daquilo que se convencionou intitular de pensamento ambientalista no singular, apesar de plural. J de domnio comum, por exemplo, a classificao efetuada por SOFFIATI (1993, 2001), que coloca as atitudes polticas frente crise ambiental num gradiente com seis categorias: Exponencialismo: tambm rotulado como desenvolvimentismo, uma posio segundo a qual h infinita continuidade do crescimento ilimitado numa base fsica limitada. Resiste a aceitar a existncia de uma crise ambiental, e se de fato ela existir, seu enfrentamento ficaria para o futuro, pois h outros problemas mais urgentes a resolver. Aqui, a poluio tida como um mal necessrio no processo de desenvolvimento, a ser resolvida posteriormente com a riqueza gerada a partir de sua degradao. Entende ser possvel e necessrio exaurir a natureza, considerada61

Carlos Frederico B. Loureiro / Nahyda Franca / Philippe P. Layrargues / Snia A. Lopes

ilimitada e inesgotvel, j que a tendncia humana seria a artificializao da natureza, conquistando inclusive outros corpos celestes alm do planeta Terra, desde que a racionalidade instrumental e a densidade tecnolgica da sociedade permitam tal empreitada. Trata-se de posio tmida no discurso ativista, pois politicamente incorreta, mas vigorosa na prtica. Compatibilismo: uma tendncia que, sem abrir mo dos estilos clssicos de desenvolvimento, advoga a possibilidade de efetulo com simultnea proteo ambiental, pois, ao contrrio do exponencialismo, entende ser menos prejudicial e arriscado prevenir do que remediar. O conceito de desenvolvimento sustentvel3 configura-se no pice dessa formulao. Possui um discurso mais vigoroso do que o do exponencialismo. Preservacionismo: a posio que co