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JORNAL DO M.A.U.S.S. IBEROLATINOAMERICANO
Cidadania além da dádiva:
Uma breve análise das políticas públicas (sociais) no Nordeste
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Serge Katembera Rhukuzage
Inocêncio Soares do Rosário ²
Curso de Ciências Sociais/UFPB
Resumo
O presente artigo desenvolve uma breve análise sobre políticas públicas (sociais) e as
transformações que exercem sobre a cidadania. O nordeste brasileiro é o principal foco
empírico de nossas reflexões, especialmente a região semi-árida do Estado da Paraíba. Num
primeiro momento apresentamos brevemente a noção de política pública. Em segundo,
abrimos um debate com a concepção corrente no Brasil relativa à cidadania no nordeste,
muitas vezes considerada como dádiva, outorgada, tradicional, para não dizer às avessas. 1
Palavras-chaves: cidadania; dádiva; políticas públicas.
Résumé
L'article fait une brève analyse sur les politiques publiques et les transformations qu1elles
exercent sur la citoyenneté. Le nordeste brésilien est le point focal de notre étude,
spécialement la région sémi-aride de l'Etat de Paraíba. Dans un premier temps nous
présentons très brevement la notion de politique publique. Deuxièmement, nous débatons
avec certains auteurs brésiliens sur le concepte de cotoyenneté dans le nordeste. Plusieurs fois
celui-ci a été consideré comme un don, concédé, traditionnel, pour ne pas dire à l'envers.
Mot-clés: citoyenneté, don, politiques publiques.
INTRODUÇÃO
Refletir sobre as políticas públicas no Nordeste, sem perder a ligação com o âmbito
nacional, e os rumos da cidadania nessa região corresponde em abrir o debate sobre as tensões
que persistem entre modos de vida e de pensamento tradicionais, e, aqueles tidos como
modernos.
Chama muito a atenção o título de um artigo recente sobre o impacto do Programa
Bolsa Família no sertão da Paraíba dirigido pela professora Flávia Pires, que inicia justamente
com a seguinte indagação: “elas decidem?”. Alguns meses apenas após a eleição da primeira
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mulher na presidência do Brasil. Perguntar sobre o papel da mulher na vida social e política
do país pode parecer irônico. Mas não é. A perguntar nasce de uma constatação que revela a
persistência no Brasil de traços culturais tradicionais que impera sobre várias esferas da vida
social e política.
Vários trabalhos já foram realizados nesse campo das políticas públicas, mas tem
faltado uma visão pluridisciplinar a essas pesquisas. Autores como Vera Telles, Teresa Sales já
se dedicaram ao exame da cidadania no Brasil do ponto de vista da chamada “cultura da
dádiva”. Flávia Pires retoma o debate colocando-o em termos da dicotomia entre “favor” ou
“direito”. Dicotomia essa que, aliás, não procede mais, segundo a autora.
Teresa Sales começa sua análise questionando desde já a cultura política da dádiva que
seria o fio condutor do desenvolvimento da cidadania no Brasil. José Murilo de Carvalho
também adere a essa visão ao elaborara o conceito de “estadania” para caracterizar a natureza
dos direitos de cidadania no Brasil – cidadania outorgada. A crítica de Sales se volta para o
processo que ela denomina de metamorfose dos direitos sociais em dádiva. Vale lembrar que
as lentes de Sales se voltam para as populações pobres que se beneficiam de políticas públicas
de combate à miséria e à fome. Segundo a autora, essas populações acabam reproduzindo
laços de subserviência quando não percebem esses benefícios como sendo direitos. Isto que
Flávia Pires identifica como elementos capazes de reproduzirem o ciclo geracional da
pobreza.
Nossa intenção neste trabalho é analisar, sob a perspectiva pluridisciplinar, o impacto
das políticas públicas de corte social no Nordeste sobre a cidadania. Em outras palavras
estamos nos preocupando em saber se essas políticas sociais têm produzidos pessoas
emancipadas ou dependentes frente ao Estado. Daí a necessidade de dialogar com autores de
várias áreas de conhecimento.
Além disto, tentaremos submeter o conceito de cultura da dádiva a uma critica fundada
no conceito de dádiva do próprio Marcel Mauss. Esse conceito mantém intacto seu núcleo
básico de significado? Ou foi deformado pela autora? Antes disto, porém, vamos apresentar
um panorama, baseado na literatura relevante, sobre o tema de políticas públicas. Mais que
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isto, colocaremos em evidência algumas características dessas políticas durante o governo de
Luís Inácio Lula da Silva, o Lula, tornando-se, assim, paradigmático do modelo Petista de
governo.
NOÇÕES SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS
No conceito mais “genérico” repassado para a grande parte da população sobre
políticas públicas, é afirmado que são as maneiras de concretizar os direitos garantidos pelo
Estado, principalmente os direitos constitucionais (a exemplo disso podemos citar a moradia,
a saúde e a educação como direitos básicos constitucionais), interferido direto ou
indiretamente na realidade social local, sobretudo numa parcela da sociedade em situação
precária socialmente (PÓLIS, 2006).
Isso deverá ser obtido através do compromisso público entre o Estado e a sociedade
(numa democracia de massas, contudo, a relação se estreita apenas entre o Estado e o cidadão
que representa somente um voto) garantindo assim a efetivação e a garantia dos direitos e não
ficando somente no plano das intenções ou, como se diz popularmente, “não ficar no papel”.
A elaboração, execução e fiscalização dessas políticas podem ser realizadas nos planos
municipal, estadual e federal, sendo o Estado o principal responsável. É ideal para que essa
política tenha alcance e eficiência que a sociedade acompanhe e participe em todas as fases da
concretização de uma política pública, fases essas que começam pela identificação dos
problemas que estão acontecendo cotidianamente, passando pela formulação de um plano de
ação para enfrentá-los, decidir e optar quais serão essas ações prioritárias, acompanhar a sua
implementação e por fim realizar as avaliações dos efeitos alcançados (Idib.).
Isso segue por jogos políticos que podem assumir vários matizes, de acordo com a
forma e aos resultados dos meios de implementação. Podemos situar quatro matizes: o
primeiro são políticas distributivas são qualificadas por um baixo nível de desavença dos
processos políticos, visto que políticas de caráter distributivo só parecem propagar benefícios
e não ocasionam despesas – pelo menos diretamente percebíveis – para outros grupos, pois,
em geral, políticas distributivas beneficiam uma boa parte da população, todavia em escala
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relativamente pequena (na medida em que buscam, sobretudo, diminuir a concentração de
renda nos países de grandes capitais e, de fato, essas políticas de redistribuição fazem parte de
um novo conceito de justiça social iniciado nos anos 1970 na América do Norte); potenciais
opositores habituam ser incluídos na distribuição de serviços e vantagens; o segundo são
políticas redistributivas, que, ao contrário, são encaminhadas para o conflito, pois o objetivo é
o desvio e a mudança consciente de recursos financeiros, direitos ou outros valores para
determinadas camadas sociais e grupos da sociedade; o terceiro são as políticas regulatórias,
que trabalham com ordens e proibições, decretos e portarias, pois os resultados referentes as
despesas e os benefícios não são deliberados de antemão, dependem da configuração concreta
das políticas, sendo que as despesas e os benefícios podem ser distribuídos de forma igual e
equilibrada entre os grupos e setores da sociedade, do mesmo modo como as políticas também
podem atender a interesses particulares e restritos de acordo com a configuração específica
das políticas; e o quarto são as políticas constitutivas ou políticas estruturadoras produzem as
regras do jogo e com isso a estrutura dos processos e conflitos políticos, isto é, as condições
gerais sob as quais vêm sendo negociadas as políticas distributivas, redistributivas e
regulatórias (FLEY, 2000).
Porém nem sempre isso é possível de ser posto em prática e verificar a eficiência das
políticas públicas pelos mais diversos motivos. Destes, podemos situar principalmente dois
principais problemas: o primeiro é a questão das mudanças das prioridades públicas quando
tem transição de troca de governo, na qual a oposição quando se torna situação muda o perfil
da administração com o intuito de se diferenciar do antecessor, realizando “novas” obras para
marcar a gestão e abandonar o que estava sendo construído, atrapalhando, ou até mesmo
“quebrando”, ações públicas que exigem um longo prazo de efetivação para alcançar aos
resultados desejados (a exemplo das políticas educacionais), tornando esse compromisso
público entre o Estado e a sociedade frágil e inoperante por estar à mercê das vontades
político-partidárias do governante (são as chamadas perversidades do mercado político nas
democracias de massas); e o segundo é da fraca ou até mesmo a inexistência de uma
sociedade civil organizada socialmente e autônoma politicamente para que seja nítida a sua
atuação, não deixando que o Estado realize todas as fases da concretização das políticas
públicas praticamente “sozinho”, e a sua independência no momento de propor as suas
reivindicações, não permitindo que a organização dessa sociedade não seja mais um espaço
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controlado por político-partidários que ora poderá ser utilizada para fazer meramente uma
oposição política da administração imediata do governo ora poderá ser um espaço que essa
administração poderá usar para impor e legitimar as suas deliberações mesmo que não seja a
desejada pela população. Existe então uma fragmentação interna à sociedade civil, na qual as
lideranças dos movimentos populares (ou socais, em casos específicos) se distanciam das
massas (das bases, para assim dizer) populares.
Baseado no que foi descrito acima e avaliando essa situação com a realidade brasileira,
podemos reparar que essas duas problemáticas são pontos importantes para entender e
analisar a circunstância que essas políticas públicas são utilizadas pelo Estado. Daí a
relevância de retomar o ponto relativo aos efeitos dessas políticas sobre o processo de
construção de cidadania no Brasil, mais especificamente no Nordeste.
A literatura dominante sobre o tema da cidadania tende a eleger o fenômeno da cultura
da dádiva como onipresente na região Nordeste. Mas as pesquisas recentes no campo da
antropologia confirmam essa tendência?
MAIS AUTONOMIA OU MAIS DEPENDÊNCIA?
Segundo Teresa Sales, a cultura política da dádiva serve apenas para reproduzir laços
políticos clientelistas, de pobreza e submissão. Para ela, as populações pobres não tendo
consciências de seus direitos e personificando os benefícios que recebem na pessoa do homem
político, acabam não ganhando direito nenhum, e permanecem assim sem direitos
elementares. Essa lógica produz dois efeitos dialeticamente compatíveis. De um lado,
reproduz a dependência ao Estado na medida em que muitas vezes quem se beneficiou dos
direitos sociais tem a obrigação de retribuir o favor, e por outro lado, disponibiliza os meios
de uma futura luta política pelos direitos (isto que Sérgio Tavolaro chama de
“disponibilidades políticas”, 2008).
A compreensão da cidadania nas Ciências Sociais tem um vínculo direito com a
definição histórica de Marshall. E com isto, os autores que tratam da cultura política da dádiva
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estão presos de alguma forma a essa elaboração de Marshall. É um pouco isto que Tavolaro
critica ao contestar a construção “moderna” do conceito de cidadania herdada dos clássicos da
sociologia.
Entretanto, Sales lembra a nova perspectiva de Amartya Sen, que considera que a
cidadania depende basicamente da união de duas condicionalidades: a dotação e as garantias
de troca. Ou seja, não se pode exigir de cidadão certos comportamentos de lealdade a uma
comunidade política se não lhe são garantidos determinadas condições para exercer essa
cidadania. Como uma crítica a Carvalho, Sen coloca que os direitos outorgados são
imprescindíveis para a cidadania. Outra leitura diria que as políticas de dádiva são as bases
para cidadania, reforçando assim essa relação dialética. Complicando ainda mais as coisas,
podemos colocar a seguinte pergunta: a cultura da dádiva consiste no avesso ou na premissa
para a cidadania?
Nisto, Vera Teles (2006) tem uma palavra. O debate para a autora requer que se faça
uma relação entre o Brasil tradicional e o Brasil moderno e miserável. No Nordeste, a pobreza
é relacionada com o fenômeno do mandonismo local e com a subserviência, diria Sales. O
problema para Teles está além das análises de Sales. Para esta primeira, as relações sociais no
Brasil nunca foram mediadas por direitos, mas sim, “pelo arbítrio sem limites do poder
privado, e pela violência”. A partir daqui, Teles pretende abandonar a concepção de Sales que
relaciona a cultura da dádiva unicamente às populações pobres do Nordeste. Ou seja, os
problemas da tensão entre cidadania e tradição não é uma questão de classes, nem mesmo
uma questão de diferenciação regional. Trata-se de da permanência da tradição na ordem
relaciona, de escala nacional. Isto, sim, seria a base da reprodução da desigualdade no Brasil.
Quando se fala em cultura política da dádiva, se está tratando diretamente com o
problema do modo de pensar coletivo vigente num determinado lugar. Ou seja, está-se
lindando com a questão ideológica da cidadania. Nisso, Juarez Brandão Lopes (2006) acerta
em cheio quando reitera a necessidade de analisar mais a percepção da pobreza do ponto de
vista das populações pobres. Além da necessidade de considerar as mudanças que ocorrem no
meio termo. Para Brandão Lopes, Sales deveria incorporar em suas análises a questão da
diferenciação regional das relações de mando/subserviência no Brasil. Trata-se, para o autor,
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de considerar a instauração do trabalho livre no Sul do país que se deu muito mais cedo e que
dessa maneira possibilitou, por assim dizer, uma “outra cultura política” nesta parte do país.
Para o autor, falta para Sales considerar o problema da pobreza desde as suas origens
estruturais e não ver apenas suas manifestações nas classes mais pobres.
Se o problema da cultura deve ser levado a cabo, há de se questionar quanto à
ideologia por trás dessa cultura. Com isto, Brandão Lopes pretende estudar as relações entre
pobreza e aspectos ideológicos da estrutura de dominação. Só dessa forma ele pretende
compreender os rumos que a pobreza poderia tomar no Brasil. Essa colocação se transforma
numa urgência sobretudo no momento em que o novo presidente do Brasil coloca o combate à
fome e à pobreza no centro de sua ação política. A melhor compreensão da pobreza, hoje,
pode facilitar o combate às “novas pobrezas” como o desemprego estrutural e as lacunas do
sistema educacional.
A oportunidade de uma série de publicações sobre as políticas públicas no Nordeste
brasileiro permite novas abordagens e novos questionamentos sobre a cidadania no Brasil.
Flávia Pires e seus pesquisadores (Patrícia Oliveira e Jéssica da Silva) abrem agora o debate
sobre a relação entre as políticas públicas no Nordeste brasileiro e as relações de gênero. É
daqui que pretendemos enriquecer o velho debate entre Sales, Teles, etc.
Vale dizer que o Programa Bolsa Família tem entre outros objetivos a contribuição
para a conquista da cidadania para as populações pobres do Brasil. Ou seja, se reconhece
desde o princípio que sem o “primeiro passo” do Estado essas populações não teriam como
alcançar os direitos humanos básicos de cidadania. O programa é construído em torno de
várias condicionalidades como bem colocam as autoras, entre elas a exigência que apenas a
mulher seja responsável pelo recebimento do auxílio. Com isto vemos já um postulado
contraditório nesse projeto: o programa pretende dar autonomia as famílias mais vulneráveis
do país, e ao mesmo tempo condiciona o auxílio com base numa concepção tradicional da
mulher como administradora das necessidades simbólicas e materiais da família.
O que se coloca de mais inovador neste trabalho, além da percepção da tensão entre
tradição e modernidade na construção da cidadania no Brasil, é também a ênfase que se dá à
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penetração das políticas públicas na esfera privada; a ponto de afetar as relações de gênero. A
pesquisa mostra que as políticas sociais não se desvinculam das relações de sacralidade que já
predominam nessas regiões de grande pobreza. Daí que para algumas pessoas, seja
absolutamente compatível associar o programa a uma dádiva de Deus, e ao mesmo tempo
concebê-lo como um favor do antigo presidente (“nenhum outro presidente antes fez o
mesmo”, é o motivo da crença.). Nas relações de gênero essa visão sacralizante permanece
forte. A dominação do homem é também um preceito divino. Voltando à questão puramente
funcional da reprodução das relações de gênero e seu impacto sobre a emancipação, as autoras
percebem certa “autonomia emergente” no papel da mulher. Contudo, quando se trata de fazer
compras maiores ( eletrodomésticos, roupas, tênis para os filhos, etc.) são os homens que
ainda detém o grande poder deliberativo, apesar das mulheres terem a função de demonstrar a
necessidade da compra.
Pires mostra, portanto, que a mulher tem adquirido mais autonomia na família
tradicional do semi-árido paraibano. O poder aquisitivo tem significado a possibilidade de ela
ter mais poder de decisão; e quem sabe político? Essas novas considerações tendem a se
alinhar à intenção de Brandão Lopes de se analisar as mudanças de pensamentos quanto à
pobreza e à cidadania no Brasil. Nas próximas linhas pretendemos verificar mais os contornos
desse problema.
É importante (seguindo este raciocínio) salientar a posição de Marcos Lanna (2000)
sobre o papel da dádiva na sociedade moderna. Para ele, a dádiva se torna um elemento
central em toda sociabilidade e comunicação humana. Lembrando a interpretação de Lévi-
Strauss, Lanna reafirma o sentido político da dádiva que toma os contornos de “aliança”. As
políticas de redistribuição no Brasil teriam esse sentido. O autor não esquece o lado perverso
da dádiva enquanto prestação unilateral que supõe sempre uma superioridade internalizada
pelos atores sociais.
A leitura de Lanna se contrapõe à de Sales quando ele recusa qualquer associação da
“cultura” da dádiva a uma categoria social
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Estudos como os de Sarti (1996), por exemplo, cometem o erro de
associar a dádiva a uma “moral dos pobres”, associando-se assim a
uma tradição que trata os “pobres” como “outros” (CALDEIRA,
1984), dissociando trocas e ideologias de cada classe social e não
analisando as trocas entre classes. Ora, se a dádiva cria uma moral,
isso também ocorre em nossa elite. Haveria ainda que se demonstre
até que ponto há uma “moral dos pobres” e uma “moral das elites” ou
se não se trata de uma mesma “moral”. […] (nota, Lanna, 2000).
A teoria de Sales é bastante próxima dessa de Sarti.
Para retomarmos essa ênfase de Flávia Pires, é de se questionar sobre a hesitação da
autora em atribuir esse poder de comprar da mulher do semi-árido um papel emancipatório
que lhe caberia muito bem. Precisa ser lembrando para efeito do papel central da compra e da
venda na sociedade moderna tal como colocavam Marx e Mauss (Lanna, ibid). O poder de
compra é decisivo para entender a nova mulher do semi-árido paraibano.
No Brasil contemporâneo, duas perspectivas são possíveis ao se tratar das políticas
sociais de distribuição: ou dá-se uma ênfase no papel de debilidade da cidadania através do
clientelismo decorrente dessas políticas; ou então se considera essas políticas como
necessárias para a futura ação cidadão. No primeiro caso, há de se adotar uma postura
próxima a de Marx, que consiste em considerar a dádiva como um desenvolvimento histórico
para o mercado (Lanna, ibid). Isto implica em incorporar a sugestão de entender essas
políticas de transferência como uma forma de fortalecimento do mercado. Quando se olha de
perto, o Programa Bolsa Família tem servido a esse propósito. No segundo, teríamos de ver
essas políticas como sendo o reflexo de uma sociedade que não se constitui unicamente com
base numa “moral de comerciante”. Quem sustente o primeiro argumento alegaria o fato de
que a política de transferência de renda do governo Lula não diminui a desigualdade e que
talvez não tenha sido esse seu “verdadeiro” objetivo. Basta por isso olhar para a importância
que tem a erradicação da miséria e da fome para o governo Dilma.
Bourdieu se torna central nesse debate na medida em que defendia a importância de
enxergar as políticas sociais do welfare-state como legitimadoras da reprodução do papel do
Estado. Aí, parece que Marcos Lanna (2000) completa o passo dado pelo sociólogo francês ao
afirmar a natureza esquerdista das políticas de redistribuição baseadas na lógica da dádiva. E
isto nós parece ser uma contribuição fundante para compreensão “cultura da dádiva”.
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Do ponto de vista social, as políticas públicas têm surtidos efeitos sobre as relações de
dependência no Nordeste brasileiro.
Existe a possibilidade de relacionar o desenvolvimento das políticas públicas com um
tipo de administração centralizada. É mais ou menos essa a intenção de Luis Werneck Vianna.
Esse autor critica a caráter conciliador do governo do PT. Aproximando o programa do
governo com a era Vargas ele critica as políticas sociais por pacificarem os conflitos e
reduzirem a capacidade critica das diversas classes sociais cooptadas (Vianna, 2007: 2).
Critica-se então a despolitização dos conflitos sociais essenciais para o exercício da cidadania.
Mas o mesmo autor reconhece que em termos de justiça social, o governo Lula foi o mais
progressista dos últimos anos. Em outras palavras houve realmente um avanço democrático
durante a governo do PT. Werneck Vianna é muito critico em relação a políticas populistas
que sobrevivem no Brasil. Ligando essa argumentação com a de Sales vemos a persistência de
uma democracia dada de cima por baixo. O crescimento das políticas públicas não deixa de
ter, segundo o autor, um objetivo puramente econômico de desenvolvimento do mercado
interno (Vianna, 2007). Contudo, mantêm-se as populações de baixo dentro de uma relação
subalternizada, caracterizadas pela passividade, afirma Vianna. Em definitivo, a esquerda
política do país (caracterizando, o PT) constituiu um novo Estado de compromisso (Vianna,
ibid).
Retomemos um pouco o fio argumentativo de Sales. A autora articula a construção da
cidadania no Brasil com a pobreza e, com isso, o surgimento posterior de uma cultura política
da dádiva. Empiricamente, porém, falta fundamentar isto. A busca pelas raízes que Sales
empreende a leva forçosamente a caminho errado. Sem dizer que na sua análise não entram
uma problematização sobre as relações raciais e a formam como diversificam a formação da
cidadania. Sales mantém uma característica mais ou menos difusa na intelectualidade
brasileira, o preconceito básico contra os pobres. A cidadania concedida não pode se resume
ao Nordeste, nem aos pobres apenas, como mostramos anteriormente. Nos estudos recentes
sobre cidadania, desenvolvimento, e gênero (Pires, 2011; Santos, 2011; Fulgêncio, 2011) o
argumento da permanência de tipos coronelistas de poder não se verifica. Para Sales, parece
que o senhor de ingênuo manteve até os dias atuais o domínio político no Nordeste (Sales,
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ibid). A autora abusa de termos como sobrevivência para definir a cultura política do
Nordeste, apesar desses termos serem pouco usuais na antropologia contemporânea (Sales,
ibid: 9). Criticamos também o uso genérico do conceito de dádiva. Para Sales, todo parece ser
dádiva. Esses conceitos perderam suas características tríplices (presentes em Mauss) que
consistem em dar, receber e retribuir; sobretudo nas relações de simetria, em geral (Lanna,
ibid).
Elaborando dicotomias como lealdade local-lealdade nacional, poder local-poder
público, a autora vincula o Nordeste com a imagem do passado sem incorporar na sua análise
a possibilidade de mudança cultural na forma política de cidadania.
Podemos observar essas mudanças nas recentes pesquisas no Estado da Paraíba
relativas a programas como Bolsa Família e Fundos Rotativos Solidários. Em seus resultados,
Santos (2011) registra uma participação maior das mulheres – em torno de 68% - na política
de financiamento. Com isto a pesquisadora sugere que se possa deduzir uma mudança na
percepção das próprias mulheres quanto ao seu papel na política. Apesar de essas políticas
serem direcionadas à atividades tipicamente femininas (artesanato e agricultura, em certa
medida), é possível perceber uma reconfiguração das relações de gênero. Para as pessoas que
se beneficiam das políticas a vida cotidiana melhorou na medida em que a sociabilidade se
direciona em direção a mais solidariedade.
As relações de gênero se enquadram nessas dimensões de cidadania deixadas de lado
por Sales. Para as mulheres de Santa Cruz (Paraíba), as políticas dos FRS ajudaram a
aumentar sua auto-estima. O poder aquisitivo significa desde Marx possibilidade de
visibilidade na sociedade capitalista que não poderíamos deixar de levar em conta em nossa
análise. Contudo, as rendas das políticas ainda dão o reflexo de uma situação global da mulher
na qual sua renda tem sido em larga medida inferior à renda do homem; e não deve esse
detalhe ser imputado apenas à mulher do Nordeste. Entretanto, apesar do aumento da renda da
mulher, Santos (2011) aponta para a dificuldade de integrarem sua produção no mercado
nacional. Essa dificuldade se deve sobremaneira à falta de inovação tecnológica durante o
processo de produção.
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Uma breve análise das políticas públicas no Nordeste
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CONSIDERAÇÕES
Ao longo do trabalho procuramos verificar a tese da cidadania baseada na cultura da
dádiva como sendo modelo paradigmático no Nordeste Brasileiro. Nas Ciências Sociais, hoje,
teorias caracterizam a cidadania como sendo sintomaticamente afeitadas pela tradição. Com
isto o conceito de dádiva de Mauss tem servido para justificar uma leitura desqualificadora,
muitas vezes teórica, dos povos do Nordeste. Apresentou-se, portanto, a necessidade de
submeter essas leituras às evidências do campo. A partir de estudos recentes na área da
Antropologia procuramos mostrar que ao contrário do que se tem lido, a cidadania tem outras
configurações, positivas e ativas (no sentido de promover a participação), que merecem ser
relatadas. Mostramos brevemente, numa análise introdutória, como nas regiões mais pobres
do Nordeste as mulheres, por exemplo, têm desenvolvido posturas políticas relevantes para
reconstrução do conceito de cidadania no Brasil. Esse conceito tende a ser apresentado como
estático. Nosso trabalho procura mostrar seu caráter dinâmico e como a antropologia pode
realizar estudos mais detalhados e aprofundados sobre as mudanças (no âmbito
microssociológico) nas relações sociais e culturais que vem ocorrendo nessas populações
pobres. Mostrar que as políticas públicas de redistribuições de renda produzem cidadãos
participativos; as mulheres redefinem seu papel através da maior participação nas decisões,
não só familiares mais também comunitárias. Portanto, uma leitura como a de Sales precisaria
de mais fundamentações empíricas para estar em consonância com as condições históricas.
Condições essas, aliás, que são em geral contingenciais.
Notas
1 Artigo desenvolvido como parte da avaliação da disciplina “Antropologia Econômica”, ministra pela professora
Dra Alicia Ferreira Gonçalves, durante o período letivo 2011.1.
² Serge Katembera Rhukuzage e Inocêncio Soares do Rosário são estudantes de graduação em Ciências Sociais,
habilitação em bacharelado, da Universidade Federal da Paraíba. Contatos: Serge [email protected] e
Inocêncio [email protected].
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JORNAL DO M.A.U.S.S. IBEROLATINOAMERICANO
Cidadania além da dádiva:
Uma breve análise das políticas públicas no Nordeste
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