Vestida de Preto

(Uma sala, com duas cadeiras, onde esto sentados Juca e Maria)

Juca (gritando) Maria! Maria! Maria! (voltando a tom normal de voz) Quando foi a ltima vez que nos vimos?Maria (voltando-se para ele) No lembro. Acho que ainda ramos crianas, no tenho certeza.

Juca Eu tambm no lembro...

Maria Brincvamos bastante, queramos fazer parte do mundo dos adultos.Juca Cada casalzinho escolhia um quarto da casa, cada um para o seu canto... ramos marido e mulher.

Maria Se dependesse de voc era s aquilo, nada mais. Voc nem estudava.

Juca Enquanto voc era o oposto, estudiosa, correta. Eu admirava isso em voc.

Maria Onde foi que nos perdemos um do outro? Voc lembra?

Juca Acho que nunca nos perdemos, voc que se foi.

Maria Mas acabamos nos transformando. Mudamos muito.

Juca Ou ser que apenas mostramos o que realmente ramos?Maria Prefiro acreditar que quando h sentimentos envolvidos, nos identificamos de tal modo com quem amamos a ponto de querermos ser o que a pessoa amada .

Juca Ento eu no sou como voc me v. Eu sou apenas uma sombra...

Maria Ora, Juca, pare com isso.

Juca Num primeiro momento eu me identificava com voc, simplesmente pelo fato de haver um amor, embora fosse uma paixo de criana.

Maria Que sempre nos acompanhou quando adultos. A paixo evoluiu, se modificou e tambm ficou adulta, no foi?

Juca No entendi.

Maria Voc e eu nos transformamos, mas aquela paixo, embora ainda estivesse dentro de ns, mudou. O que quero dizer que esta a razo de nunca nos esquecermos, esta a razo de tanta identificao e admirao entre ns.Juca Acho que estou comeando a entender, porm voc no acha que tudo isso uma forma de evoluo s avessas? Pense bem: tudo o que eu sou agora s cheguei a ser porque voc me transformou indiretamente. Estou certo?

Maria Este o pensamento, mas no foi eu quem o transformou. Voc assim porque me amava, queria ser o que eu era, como eu era. O mesmo aconteceu comigo em relao a voc.

Juca Nossa! Mas voc no acha que a partir disso eu nunca serei como voc? Veja: voc no mais o que era, porque j se transformou em mim, ou pelo menos no que eu era. S que agora no sou mais o que voc almeja ser, porque eu sou o que era voc.Maria E a eu j no sou mais eu, porque eu quero ser voc, que j no voc, porque desejaste ser como eu... E a por diante. Por isso tantos desencontros de amor entre todos os amantes.

Juca Ento seria o caso de sempre nos apaixonarmos por ns mesmos.

Maria Ama ao teu prximo como a ti mesmo, meu caro.

Juca Estamos fadados ao desencontro? isto o que voc quer dizer? Mas h tanta gente por a que se encontra, se reencontra e permanece para sempre como um casal. Eu gostaria de saber o segredo para que tudo d certo.

Maria No h segredo, o nico segredo o silncio. Ningum nunca diz a razo de sua volta.

Juca Ento porque voc sempre volta?

Maria Porque eu no te esqueo.

Juca As lembranas sempre pedem que sejamos francos com ns mesmos. Este o maior segredo da alma humana: sempre teremos que admitir no silncio de nosso quarto, falando baixinho, pensando antes de dormir...

Maria Certamente.

Juca Minhas lembranas nunca permitiram que voc fosse embora.

Maria Isto um pensamento meu ou seu?

Juca Se meu pensamento, logo seu. Voc deseja ser o que eu sou.

Maria Ento damos um primeiro passo para um encontro real.

Juca Sim, um passa a existir no outro somente em funo dos pensamentos, no em funo do corpo. A reside o verdadeiro amor. Eu sou o que voc .

Maria Sua presena s acontece porque eu penso em voc.

Juca J ouvi dizer que o ltimo pensamento de um morto permanece, que tudo o que ele pensou em seu ltimo segundo de vida ficar na lembrana de quem o ama. Agora faz sentido esse tipo de crena, apesar de no concordar com esse misticismo.Maria ( frente) Juca era um menino que eu gostava, um primo distante, mas um amor to prximo, um amor to dentro de mim. No havia malcia, a no ser quando os adultos a percebiam em nossas brincadeiras. Mas s eles viam malcias... (volta e senta-se de frente para Juca novamente).Juca ( frente) Como eu gostaria de acabar com todas essas brincadeiras, tornar tudo verdade, mas eu nunca ouvi um eu te amo. O que sentia era uma fantasia. Eu queria deixar a infncia de lado e ser adulto, s. Voc lembra quando foi a ltima vez que nos vimos? Eu no lembro. (volta e tambm senta-se de frente para Maria).Maria Eu tambm no me lembro. ramos crianas.

Juca Eu no lembro de mim, no lembro de voc.

Maria (em tom desolado) Natural. Alm disso, evolumos. Passamos a ser pessoas diferentes. Quando foi que voc me viu a ltima vez?Juca No sei.Maria Tente lembrar.

Juca Eu no sei.

Maria Ento como pode se lembrar de mim? Voc s lembra de mim porque eu penso em voc. Voc est aqui porque eu estou aqui. Seu pensamento est aqui porque eu estou aqui. Eu sou seu ltimo pensamento.

Juca Que que voc est falando?

Maria Pois , eu me perdi querendo ser voc, voc se perdeu se projetando em mim.Juca Mas eu me recordo apenas que sempre recebia notcias suas por meio de seus pais, ou pelos meus.Maria J ramos adultos a ltima vez que eu soube de voc por minha me.Juca E mesmo assim nunca mais nos vimos.Maria Estranho, no ?Juca Depois disso, voc foi embora...

Maria Querendo ser o que voc era.

Juca Mas de uma coisa eu me recordo, isso aconteceu antes de toda a confuso de nosso desencontro.Maria O beijo.

Juca Sim. Voc lembra?

Maria Voc lembra porque neste exato momento eu estou com ele em minhas recordaes.Juca Eu penso naquele momento a todo instante.

Maria (como que voltando a uma outra realidade, como se desconhecesse o local onde est) Como foi mesmo? Como um beijo de despedida...Juca Voc ainda est a? (gritando) Maria! Maria! Maria!

(Black-out. Maria aparece sozinha no palco, trocando de roupa. Coloca um vestido preto e senta-se na cadeira).

Maria Descanse em paz, Juca. Acredite, eu fui, sim, muito apaixonada por voc, at seu ltimo momento de vida.

FIM