cavaquinho domingos

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  • O cavaquinho um cordofone popular de pequenas dimenses, do tipo da viola, de

    tampos chatos e portanto tambm da famlia das guitarras europeias , caixa de

    duplo bojo e pequeno enfranque, e de quatro cordas, de tripa ou metlicas de

    arame (ou seja ao) , conforme os gostos, presas, nas formas tradicionais, em

    cima, a cravelhas de madeira dorsais, e, em baixo, no cavalete colado a meio do bojo

    inferior do tampo, pelo sistema que descrevemos a propsito da viola (figs. 10 e

    170/176). Alm deste nome, encontramos ainda, para o mesmo instrumento ou outros

    com ele relacionados, as designaes de machinho, machim, machete (que parece ser

    uma palavra arcaica, cada em desuso, e subsistente nas Ilhas e no Brasil), manchte

    ou marchte330, braguinha ou braguinho, cavaco, etc., que a seguir analisaremos.

    Dentro da categoria geral com aquelas caractersticas, existem actualmente em Portugal

    continental dois tipos principais de cavaquinho, que correspondem a outras tantas

    reas: o tipo minhoto (figs. 10 e 170/172), e o tipo de Lisboa (fig. 174).

    sem dvida fundamentalmente no Minho que, hoje, o cavaquinho aparece como

    espcie tipicamente popular, ligada s formas essenciais da msica caracterstica dessa

    Provncia. O cavaquinho minhoto tem a escala rasa com o tampo, como a viola, e doze

    trastos; a boca da caixa , no caso corrente, de raia, por vezes com recortes para

    baixo; mas aparecem tambm cavaquinhos de boca redonda.

    As dimenses do instrumento variam pouco de caso para caso: num exemplar comum

    elas so de 52 cm de comprimento total, dos quais 12 para a cabea, 17 para o brao,

    e 23 para a caixa; a largura do bojo maior de 15 cm, e a do menor, 11; a parte

    vibrante das cordas, da pestana ao cavalete, mede 33 cm. A altura da caixa menos

    constante; na generalidade dos casos regula por 5 cm, mas aparecem com frequncia

    cavaquinhos muito baixos, que tm um som mais gritante (e a que, em terras de Basto

    e noutras regies minhotas, chamam machinhos).

    Os cavaquinhos minhotos so construdos por essa indstria violeira que referimos,

    localizada outrora sobretudo em Guimares e Braga, e, hoje, no Porto e arredores de

    Braga. Em Guimares, j no sculo XVII se construam tambm estes instrumentos e o

    Regimento para o oficio de violeiro, de Guimares, de 1719, menciona, entre as

    espcies ento ali fabricadas, machinhos de quatro e outros de cinco cordas.

    As madeiras variam conforme a qualidade do instrumento: os melhores tampos so em

    pinho de Flandres; mais correntemente, eles so em tlia ou choupo; e as ilhargas e o

    fundo so em tlia, nogueira ou cerejeira. Em regra, os tampos so de uma folha nica

    daquelas madeiras que apontamos, mas, no raro, fazem-se cavaquinhos em que a

    metade superior do tampo em pau preto331 (figs. 10 e 170); as ilhargas e o fundo so

    tambm, muitas vezes, nesta madeira. Brao, cabea ou cravelhal, so em amieiro; a

    cabea ou cravelhal geralmente muito recortada, segundo moldes variados e

    caractersticos. Rebordos e boca so sempre avivados e enriquecidos com frisos

    decorativos. Os cavaletes so quase sempre em pau preto; e j o Regimento de

    Guimares, de 1719 assim os indica para as violas.

    O cavaquinho um dos instrumentos favoritos e mais populares das rusgas minhotas,

    176

    330 Jos Leite de Vasconcelos, Histria do Museu Etnolgico,Lisboa, 1915, p. 245. O Autor indica os nomes de machte decordas de arame, manchte ou marchte, registados emPortalegre, transcrevendo a seguinte quadra, ali ouvida: Otocador de manchte/Tem dedos de mar(a)fim./Tem olhos deenganar tro,/No mhadenganar a mim. Note-se que, na ilha daMadeira, a palavra machte significa por vezes o braguinha, oucavaquinho local, e outras vezes os instrumentos de corda desteformato em geral, que se definem seguidamente com outro termo:machete viola, machete rajo, machete braguinha.

    331 O emprego destas madeiras no indica qualquer influncia docavaquinho brasileiro sobre o seu congnere portugus. De facto,o emprego de madeiras brasileiras foi geral em Portugal a partirdo sculo XVII, para objectos mobilirios diversos, e, no casoespecial que nos interessa, para instrumentos de msica,nomeadamente violes, guitarras e cavaquinhos. Cfr. AlbertoVieira Braga, Curiosidades de Guimares, Vol. XI, Os Votos deSantiago, Artes e Artistas, Guimares, 1948, pp. 50-52. ArmandoLea, Violeiros da S, menciona tambm um violeiro de Lousada,que fazia cavaquinhos (e violas) de amieiro, pltano ou choupo,para as rabeladas.

    170. TEBOSA, BRAGACavaquinho minhoto (comp. 53,5).

    Cavaquinho

  • CORDOFONES

    e, como estas e como o gnero musical que lhe especfico, tem carcter exclusiva e

    acentuadamente ldico e festivo, com radical excluso de usos cerimoniais ou austeros

    (fig. 41). No h ainda muitas dezenas de anos, rara era a casa rural do concelho de

    Guimares onde ele no existisse e no fosse tocado. Pode-se usar sozinho, como

    instrumento harmnico, para acompanhamento do canto; mais frequentemente, porm,

    aparece com a viola, e muitas vezes ainda com outros instrumentos nomeadamente

    o violo, a guitarra, a rabeca, o banjolim e a harmnica ou acordeo, e mais os

    percutivos, tambor, ferrinhos e reco-recos prprios desses conjuntos festivos. Em

    terras de Basto e de Amarante faz-se uma distino muito ntida entre o instrumental

    do tipo da rusga, para as canas-verdes e malhes, que compreende o cavaquinho, viola,

    violo, hoje harmnicas e acordees, bombo e ferrinhos, e o do tipo da chula ou

    vareira, que compreende a rabeca (e hoje, em vez dela, por vezes, a harmnica), violas

    (uma alta em tom de guitarra, e outra baixa), violes, assurdinados no sexto ou stimo

    ponto, bombo e ferrinhos, mas no cavaquinhos. V-se assim que, na regio, o

    cavaquinho alterna com a rabeca chuleira as funes de instrumento agudo, conforme

    os casos. O cavaquinho geralmente toca-se de rasgado, com os quatro dedos menores

    da mo direita, ou apenas com o polegar e o indicador, como instrumento harmnico;

    mas um bom tocador, com os dedos menores da mo esquerda sobre as cordas agudas,

    desenha a a parte cantante que se destaca sobre o rasgado, ao mesmo tempo que as

    cordas graves fazem o acompanhamento em acordes. Ele tem um grande nmero de

    afinaes, que, como sucede com a viola, variam conforme as terras, as formas musicais

    e at os tocadores; geralmente, para tocar em conjunto, o cavaquinho afina pela viola;

    a corda mais aguda pe-se na mxima altura aguda possvel (M. 5).

    A afinao natural parece ser o acorde de sol invertido com a primeira corda mais

    aguda: r4 -si3 -sol3 -sol3 (a que certos tocadores da regio de Braga do o nome de

    177

    171. CELORICO DE BASTOCavaquinho minhoto (comp. 53).

    172. TEBOSA, BRAGA (1961)O construtor e tocador de cavaquinho DomingosMartins Machado.

  • afinao para o varejamento); mas usa-se tambm mi4 -d sustenido4 -l3 -l3 (do

    agudo para o grave), que diversifica o mundo sonoro do instrumento. Esses mesmos

    tocadores bracarenses indicam ainda outras afinaes, prprias de determinadas

    formas: a afinao para malho e vira, na Moda Velha mais antiga, l4 -mi4 -r4 -sol4

    (do agudo para o grave); em Barcelos, preferem a afinao da Maia: l4 -mi4 -d4 -sol4

    ; etc.

    Hoje usa-se o cavaquinho (como de resto outros instrumentos das rusgas) tambm para

    o fado, com afinao correspondente, e igualmente a primeira mais aguda.

    A origem do cavaquinho duvidosa. Gonalo Sampaio, que explica as sobrevivncias

    de modos arcaicos helnicos, que ele prprio nota na msica minhota, luz de

    conjecturais influncias gregas (ou lgures) sobre os primitivos Calaicos daquela

    Provncia, acentua, sem mais consistncia do que isso, a relao entre o cavaquinho e

    os tetracrdios e sistemas helnicos, e de opinio que ele, com a viola, veio para

    Braga por intermdio dos Biscanhos332, sem explicar nem dizer as razes desta opinio;

    de facto, h em Espanha um instrumento semelhante ao cavaquinho, da famlia das

    guitarras o requinto de quatro cordas, brao raso com o tampo e dez trastos, que

    afina, do agudo para o grave, mi4 -d sustenido4 -l3 -r3. Jorge Dias parece tambm

    consider-lo vindo de Espanha, onde se encontra, em termos idnticos, a guitarra,

    guitarrn ou guitarrico, como o chitarrino italiano; e acrescenta: sem precisar a data

    da introduo, temos que reconhecer que o cavaquinho encontrou no Minho um

    acolhimento invulgar, como consequncia da predisposio do temperamento musical

    do povo pelas canes vivas e alegres e pelas danas movimentadas... O cavaquinho,

    como instrumento de ritmo e harmonia, com o seu tom vibrante e saltitante, , como

    poucos, prprio para acompanhar viras, chulas, malhes, canas-verdes, verdegares,

    prins. Alm disso, no Minho notrio o gosto pelas vozes femininas sobreagudas e

    por vezes mesmo estridentes, que se casam bem com a tonalidade do cavaquinho333.

    O machinho de cinco cordas mencionado no Regimento de 1719, de Guimares, que

    corresponde certamente ao desaparecido cavaco (e, como veremos, parece encontrar

    hoje o seu representante no rajo madeirense), derivaria igualmente de outro

    instrumento espanhol da famlia das guitarras de cinco cordas o guitarro andaluz

    , cuja afinao precisamente a do rajo madeirense: si3 -f sustenido3 -r3 -l2 -mi2

    334.

    O cavaquinho, de tipo minhoto, com escala rasa com o tampo e doze trastos, ainda em

    fins do sculo passado era bastante frequente na regio de Coimbra, figurando, ao lado

    da viola, nas mos do povo e, nomeadamente, nos festejos do S. Joo, nas fogueiras

    da cidade, junto com a guitarra, pandeiro e ferrinhos, e nas serenatas da Academia,

    com largas referncias, sob o nome de machinho, na Macarronea335. H poucos

    decnios, ele ainda se via nessas ocasies, mas ento j em casos raros, e sobretudo

    tocado por estudantes minhotos336. O cavaquinho de Coimbra afinava, de acordo com a

    viola da regio, mi4 -si3 -sol3 -r3 (do agudo para o grave); um exemplar da autoria de

    Antnio dos Santos outro antigo violeiro famoso coimbro, na Rua Direita , e que

    332 Gonalo Sampaio, Cancioneiro Minhoto, Porto, 1944, pp. XXVIe XXX, e O coro das maadeiras, Homenagem a Martins Sarmento,Guimares, 1933, p. 358: ...afinidades com os tetracrdios esistemas helnicos, pela situao, denominao e perfeitacorrespondncia de certas cordas, como seja a prima, porexemplo, mesmo processo de mudar os gneros ou tipos deafinao diferentes, processo originariamente grego baseado nadiviso das cordas em duas categorias: cordas estveis e cordasmveis. Ver ainda A. Csar Pires de Lima, A Linguagem e oFolclore de Entre Douro e Minho (Dados colhidos em algunscadernos do Doutor Gonalo Sampaio), Boletim do Douro Litoral,1. srie, fasc. VI, Porto, 1943, p. 44.

    333 Jorge Dias, O Cavaquinho. Estudo de difuso de uminstrumento musical popular, Actas do Congresso Internacional deEtnografia - Santo Tirso, 1963. Vol. Quarto, Porto, s/d, pp. 93-116.

    334 Raoul Laparra, La musique et Ia danse populaires enEspagne, Encyclopdie de la Musique et Dictionnaire duConservatoire (A. Lavignac e L. de la Laurencie) Premire Partie -Histoire de la Musique, 4 - Espagne-Portugal, p. 2393.

    335 Alberto Pimentel, A Triste Cano do Sul, Lisboa, 1904, p. 22.Ver Nota 137.

    336 Jorge Dias, op. loc. cit., citando Armando Lea, quetranscreve Octaviano S. Vimos porm que Trindade Coelho,referindo-se a 1870, no o menciona.

    178

  • CORDOFONES

    se encontra no Museu Nacional de

    Machado de Castro, naquela cidade (fig.

    173), mede 50 cm de comprimento total,

    sendo 9,5 de cabea, 17 de brao e 23,5

    de caixa (com 23,5 da pestana ao

    cavalete); o bojo superior tem 10,5 cm

    de largura, e o inferior 13,5; a cinta tem

    7,8 cm; a altura da caixa de 3 cm em

    cima, e de 3,4 cm em baixo.

    Ele parece pois ser ali uma espcie local,

    que porm se extinguiu do mesmo modo

    que a viola, suplantados pela guitarra. E,

    de facto, esse exemplar de Antnio dos

    Santos, dessa poca, atesta no s o seu

    uso mas mesmo o fabrico regional337.

    O cavaquinho de Lisboa, semelhante ao

    minhoto pelo seu aspecto geral,

    dimenses (um pouco mais curto de

    brao e mais comprido de caixa, que

    tambm um pouco mais larga do que

    nos modelos minhotos; no cavaquinho

    do Sul, como a escala vem abaixo at

    junto boca, essa mede mais cerca de 5

    cm do que nos nortenhos) e tipo de

    encordoamento, difere contudo

    essencialmente deste pela escala, que em ressalto, elevada em relao ao tampo, e

    pelo nmero de trastos, que so dezassete e vm at boca, como no violo e na

    guitarra portuguesa e em todos os demais cordofones de atadilho da famlia dos

    banjolins (fig. 174); a boca sempre redonda.

    O cavalete de um tipo diferente do dos cavaquinhos minhotos: uma espessa rgua

    linear com um rasgo horizontal escavado a meio, onde a corda prende por um n

    corredio depois de atravessar, como nos outros, quatro pequenos sulcos verticais, entre

    o tampo e a metade inferior do cavalete. Ele parece a ser mais um instrumento de

    tuna, de uso urbano burgus, que, em meados do sculo XIX, os mestres de dana da

    cidade utilizavam nas suas lies, e que era s vezes tocado pelas senhoras338; como

    tal, toca-se ento de pontiado, com plectro a palheta , como os instrumentos

    desse gnero do tipo dos banjolins, geralmente fazendo trmulo sobre cada corda com

    a palheta.

    No Algarve, conhece-se igualmente o cavaquinho como instrumento de tuna a solo

    ou com bandolins, violas (violes), guitarras e outros instrumentos339 , de uso, como

    em Lisboa, urbano, popular ou burgus, para estudantinas, serenatas, etc.

    179

    337 Jorge Dias, op. loc. cit., atentando na falta de referncias aouso do instrumento nas zonas rurais desta rea beiroa, deopinio que se deve tratar de um instrumento no da Beira Litoral,mas apenas coimbro, por influncia estudantil nortenha. Nopassado, porm, ele era muito usado ali pelo povo das aldeias, eh que notar mesmo que os violeiros locais o fabricavam.

    338 Pinto de Carvalho, Histria do Fado, Lisboa, 1909, p. 15.

    339 Jorge Dias, op. loc. cit., citando Fernandes Lopes.

    173. COIMBRA - Cavaquinho (comp. 50). 174. LISBOA - Cavaquinho de Lisboa (comp. 51).

  • Na Ilha da Madeira existe tambm o correspondente destes cordofones, com os nomes

    de braguinha, braga, machete, machete de braga ou cavaquinho. O braguinha tem as

    mesmas dimenses e nmero de cordas dos cavaquinhos continentais, a mesma forma

    e caractersticas do cavaquinho de Lisboa: escala elevada sobre o tampo, dezassete

    trastos, boca redonda (fig. 175); o encordoamento parece ser de tripa, mas o povo

    substitui geralmente a primeira corda por fio de ao cru; a sua afinao , do agudo

    para o grave, r4 -si3 -sol3 -r3.

    Gonalo Sampaio acentua a distino entre os instrumentos minhoto e madeirense, ou

    machete, que conhece apenas como instrumento solista e, como vimos, com

    caractersticas diferentes daquele340; Carlos Santos considera-o mesmo de inveno

    insular, explicando o seu nome, de acordo com o autor do Elucidrio Madeirense, pelo

    facto de o instrumento ser usado por gente que vestia bragas, antigo trajo do campons

    ilhu341. Mas esta opinio parece ignorar o instrumento continental, do qual, a despeito

    das diferenas apontadas, no podemos deixar de aproximar a forma madeirense. De

    resto, outros autores madeirenses, como Eduardo C. N. Pereira, notando embora certas

    particularidades do braguinha, como a sua afinao pela viola, inclinam-se

    decididamente pela hiptese da origem continental do braguinha ou machete

    madeirense342. E notamos a designao de machinho que aparece em algumas terras do

    Baixo Minho e de Basto, e j no Regimento de 1719, referente a Guimares.

    Na realidade, o braguinha madeirense, sob o ponto de vista do seu contexto social,

    apresenta-se, por um lado, como instrumento de ntido carcter popular, prprio do

    vilo, rtmico e harmnico, para acompanhamento, tocando-se ento de rasgado; por

    outro, instrumento urbano, citadino e burgus, de tuna, meldico e cantante de

    facto o nico instrumento cantante madeirense tocando-se de pontiado, com

    palheta ou, preferentemente, com a unha do polegar direito ao jeito de plectro,

    alternando com rufos ou acordes dados com os dedos anelar, mdio e indicador (o que

    torna bastante difcil a execuo); e tendo como tal figurado em conjuntos de que

    faziam parte pessoas da maior representao social da cidade do Funchal, com

    conhecimentos musicais, e ao servio de um repertrio de tipo erudito, em arranjos

    mais ou menos adequados. Morfologicamente idnticos, o braguinha rural

    extremamente rstico e pobre, enquanto o burgus e citadino geralmente de uma

    feitura muito esmerada, em madeiras de luxo, com embutidos, etc.

    O Dicionrio Musical, de Ernesto Vieira, e tambm o Groves Dictionary of Music,

    mencionam o cavaquinho nos Aores. De facto, na ilha do Pico, encontrmos um

    excelente informador, a despeito da sua idade avanada o P. Joaquim Rosa, que em

    1963 contava 90 anos , que em criana, usara o cavaquinho na Pranha do Norte,

    sua aldeia natal, na mesma ilha; e temos notcia da sua existncia na vizinha ilha do

    Faial, nomeadamente na aldeia dos Flamengos, perto da Horta. Na ilha Terceira,

    constroem-se hoje tambm cavaquinhos, mas apenas por encomenda do pessoal

    340 Gonalo Sampaio, op. cit., p. XXX, Nota 4.

    341 Carlos M. Santos, Tocares e Cantares da Ilha, Funchal, 1937,pp. 33-43; e Trovas e Bailados da Ilha, Funchal, 1942, pp.197-207.

    342 Eduardo C. N. Pereira, Ilhas de Zargo, II, Funchal, 1957, pp.1194-1196.

    180

    175. FUNCHALBraguinha (comp. 52).

  • CORDOFONES

    americano do aeroporto das Lajes, ou destinados a terceirenses que habitam a Amrica

    do Norte, e rotulados de ukulele (fig. 427).

    O cavaquinho existe tambm no Brasil (fig. 176) onde goza de uma popularidade maior

    do que entre ns, figurando em todos os conjuntos regionais, de choros, emboladas,

    bailes pastoris, sambas, ranchos, chulas, bumbas-meu-boi, cheganas de marujos,

    caterets, etc., ao lado da viola, violo, bandolim, clarinete, pandeiro, rabecas,

    guitarras, flautas, oficleides, reque-reques, puita, canz e outros, conforme os casos,

    com carcter popular, mas urbano343, tendo como os de Lisboa e da Madeira, o brao

    em ressalto sobre o tampo, com 17 trastos, e a boca sempre redonda, mas mais

    pequena, como de resto todas as suas dimenses; a sua afinao, segundo Oneyda

    Alvarenga, como na Madeira (e como em certos casos minhotos), o acorde de sol

    maior invertido; mas Cmara Cascudo informa que tambm ali se usam afinaes vrias.

    Os autores brasileiros, Oneyda Alvarenga, Mrio de Andrade, Renato Almeida, etc.,

    consideram o cavaquinho brasileiro de origem portuguesa, e Cmara Cascudo fala

    mesmo concretamente, a esse respeito, na Ilha da Madeira344.

    De uma maneira geral portanto, ao instrumento francamente popular, minhoto (e,

    originariamente, coimbro), que se toca de rasgado, corresponde o velho tipo de brao

    raso e com doze trastos; enquanto que aos instrumentos de carcter citadino e burgus,

    de Lisboa, Algarve e Madeira portanto menos presos tradio , que se toca de

    ponteado, corresponde o tipo de brao em ressalto, e dezassete trastos, que parece ter

    sofrido influncias desses instrumentos mais evoludos, violo, guitarra ou banjolim. O

    cavaquinho brasileiro, embora popular, deste ltimo tipo; mas vimos que ele usado

    sobretudo pelos estratos populares urbanos. Esta regra no porm geral: o braguinha

    rural da Madeira, acentuadamente popular, , a despeito disso, morfologicamente

    idntico ao urbano.

    Finalmente, nas ilhas Hawai existe um instrumento igual ao cavaquinho o ukulele

    , que parece, na verdade, ter sido para ali levado pelos portugueses. Como o nosso

    cavaquinho, o ukulele havaiano tem quatro cordas e a mesma forma geral do

    cavaquinho (figs. 177/178); certos violeiros fazem-no com o brao em ressalto e

    dezassete trastos, como a generalidade dos cordofones desta famlia, e como o

    cavaquinho de Lisboa, da Madeira e do Brasil; mas h ukuleles de fabrico ingls do

    tipo do cavaquinho minhoto, de brao raso com o tampo e apenas 12 trastos. A sua

    afinao natural , do agudo para o grave, l 4 -mi4 -d4 -sol3 ou si4 -f sustenido4 -r4 -

    l3, ou ainda mi4 -si3 -sol3 -r3, como indicam certos manuais ingleses. Carlos Santos e

    Eduardo Pereira referem-se divulgao do braguinha por todo o mundo, graas ao

    turismo e ao cinema, e sobretudo exportao e emigrao dos colonos ilhus para

    as Amricas, do Norte e do Sul, ilhas Sandwich, etc.; citam mesmo alguns dos primeiros

    exportadores que, nos princpios deste sculo, os enviaram, a pedido, para Barbados,

    Demerara e Trinidad345.

    De facto, o cavaquinho, ou braguinha, foi introduzido em Hawai por um madeirense de

    343 Indispensvel nos chorinhos, em Cunha e Atbaia, mas demaior uso no meio urbano do que no rural (Alceu MaynardArajo, Instrumentos Musicais e Implementos, loc. cit., p. 156).

    344 Oneyda Alvarenga, Msica Popular Brasileira, Ed. Globo, Rio deJaneiro, Porto Alegre, So Paulo, 1950, p. 25: Mrio de Andrade,Pequena Histria da Msica, Livraria Martins, So Paulo, 1942, p.148: Renato Almeida, Histria da Msica Brasileira, Ed. F. Briguiet& C., Rio de Janeiro, 1942, p. 310 (nota).

    345 Carlos Santos fala, a respeito das origens do ukuleleamericano, do rajo madeirense na sua forma especial de quatrocordas (ou na de cinco, qual tivessem suprimido uma), cujobrao encurtaram, passando a ter apenas doze trastos. Issosignificaria que ele tem, pelo menos em certos casos, ascaractersticas no do braguinha madeirense, mas do cavaquinhominhoto, o que pode fazer pensar em influncias deste ltimo,sem porm se saber por que via. Ver Nota 346.

    181

    176. SO PAULO, BRASILCavaquinho do Brasil (comp. 52).

  • nome Joo Fernandes, nascido na Madeira em 1854, e que foi da sua ilha para Honolulu

    no barco vela Ravenscrag num contingente de emigrantes 419 pessoas,

    incluindo crianas , com destino s plantaes de acar, numa viagem pela rota do

    cabo Horn que demorou quatro meses e vinte e dois dias. Entre esses emigrantes

    vinham cinco homens que ficaram ligados histria da introduo do cavaquinho em

    Hawai: dois bons tocadores, o mencionado Joo Fernandes (que tocava tambm rajo

    e viola) e Jos Lus Correia; e trs construtores, Manuel Nunes, Augusto Dias e Jos do

    Esprito Santo.

    O Ravenscrag chega a Honolulu a 23 de Agosto de 1879, e Joo Fernandes (segundo

    um relato feito revista Paradise of the Pacific, de Janeiro de 1922), ao desembarcar,

    trazia na mo um braguinha, pertencente a outro emigrante tambm passageiro do

    Ravenscrag, Joo Soares da Silva, que porm no sabia tocar e o emprestara a Joo

    Fernandes para que este entretivesse os demais companheiros na longa viagem at

    Hawai. Os havaianos, quando ouviram Joo Fernandes tocar o pequeno instrumento,

    ficaram encantados, e deram-lhe logo o nome de ukulele que significa pulga

    saltadora, figurando o modo peculiar como tocado. Depois de os recm-chegados

    estarem instalados, todos os naturais queriam que Joo Fernandes tocasse, o que ele

    fazia gostosamente em danas, festas, serenatas, etc., tendo depois formado um

    conjunto com Augusto Dias e Joo Lus Correia. Tocou assim para o rei Kalakaua, em

    especial na festa do seu aniversrio, para a rainha Emma e a rainha Lilinokalani, no

    palcio de Ilakla e no pavilho de vero, de Iolani, que era um centro de msica, dana

    e cultura.

    O ukulele tornou-se extremamente popular em Honolulu, e Manuel Nunes, na fbrica

    e loja de mveis que abrira na King Street, passou a construir esses instrumentos, que

    no sabia tocar, mas que passava a Joo Fernandes para que este tocasse, e as pessoas

    reuniam-se porta da sua oficina para o ouvirem.

    Com o tempo os havaianos aperceberam-se de que o instrumento no era difcil de

    tocar, e comearam a comprar os exemplares ali construdos, cujo preo era ento de

    5 dlares. Esta actividade de Manuel Nunes que, na tradio oral da sua famlia,

    desde ento radicada em Honolulu, se iniciou logo a seguir sua chegada est

    documentada desde 1884; na mesma altura, Augusto Dias abre, pelo seu lado, uma loja

    de fabrico e venda de ukuleles; e o mesmo faz Jos do Esprito Santo em 1888. Estes

    trs primeiros violeiros passaram a utilizar as madeiras locais de Kou e Koa, com as

    quais construram instrumentos de muito boa qualidade.

    Manuel Nunes deixou descendentes em Hawai e um seu bisneto, o Senhor Leslie Nunes,

    grande cultor do ukulele, e autor de um pequeno trabalho sobre as suas origens, e a

    quem devemos os informes que aqui utilizamos, julga que o seu bisav quem est na

    origem da sua difuso nessas ilhas, e seguidamente nos Estados Unidos346. Nunes o

    nome de famlia dos mais famosos construtores madeirenses de instrumentos de corda,

    nomeadamente Octaviano Joo Nunes (que ofereceu um braguinha da sua autoria

    imperatriz Elisabeth da ustria, que se encontra no museu de Viena), e seu sobrinho

    Joo Nunes Diabinho. Segundo nos informou um sobrinho deste ltimo, o Senhor

    346 Ver John Henry Felix, Leslie Nunes, Peter F. Senecal, TheUkulele A Portuguese Gift to Hawai, Honolulu, 1980. Antes dapublicao deste trabalho, utilizamos, no estudo do assunto, umacarta do cidado americano G. D. Burchenal (20, Garden Place,Brooklinn, 2 N.Y.C., U.S.A), dirigida a Jorge Dias, e que seconserva nos arquivos do Centro de Estudos de Etnologia, deLisboa. E tambm as notcias insertas no Dirio de Lisboa, de19.X.1971, Origem portuguesa da guitarra havaiana, e no Diriode Notcias, de ?. XI. 1971, Saiu de Portugal a guitarrahavaiana... chamava-se braguinho, segundo uma crnica queteria sido publicada no Jornal Portugus, de Oakland (Califrnia).Subsequentemente, entramos em comunicao com o SenhorLeslie Nunes, a quem ficamos a dever informes e esclarecimentosprecisos e completos acerca de todo o problema. De acordo com olivro da sua autoria acima citado, foram suas primas Flora e EthelCannon, netas de Manuel Nunes, quem ensinou a tocar epopularizou o Ukulele na Califrnia, tendo comeado a suacarreira nos EUA na Exposio de San Francisco, em 1915. VerNota 345. Karl Geiringer, Musical Instruments, 1959, p. 245, notaexpressamente de igual modo a origem portuguesa do ukelelehavaiano, que os portugueses levaram para as ilhas Sandwich, eque da foi para os Estados Unidos, regressando destes Europa,com um novo nome e num contexto diferente.

    182

    177. FUNCHALUkulele (comp. 55,5). Fabricado no Porto.

  • CORDOFONES

    Bartolomeu de Abreu, nem um nem outro daqueles construtores acompanhou porm os

    seus conterrneos no referido movimento emigratrio, nem estiveram nunca em Hawai

    ou nos Estados Unidos. Restaria averiguar se o Senhor Manuel Nunes, que foi para

    Hawai, e que, pelo que vemos, foi tambm construtor de cavaquinhos, pertenceria

    estirpe dos velhos violeiros Nunes do Funchal.

    O cavaquinho existe igualmente em Cabo Verde, num formato maior do que o do

    instrumento em Portugal, com escala em ressalto at boca, e dezasseis trastos, e

    ligado a formas tradicionais da msica local.

    Louis Berthe menciona ainda um outro tipo deste instrumento, que ocorre na

    Indonsia: o ukll ou Krontjong, como acompanhante na orquestra que leva o

    mesmo nome de Krontjong, a par de uma viola grande (guitare), violoncelo ou

    contrabaixo, e um alto (viola). Esta orquestra corresponde a um gnero musical

    indonsio que surge nos comeos do sculo XVI, por contacto com a msica

    portuguesa, influenciada, conforme as regies, pelos estilos tradicionais, como o

    gamelan347.

    Ser o cavaquinho uma espcie que teve outrora carcter de grande generalidade no

    Pas, e que se foi extinguindo, subsistindo apenas em manchas dispersas de maior ou

    menor vulto e importncia em relao s formas musicais locais? Ou uma espcie fixada

    entre ns primordialmente no Minho, donde teria irradiado directamente ou

    indirectamente para as, ou algumas das, outras partes onde hoje aparece Coimbra,

    Lisboa, Algarve, Madeira, Aores, Cabo Verde e Brasil , encontrando diversa aceitao

    conforme os casos? Jorge Dias parece inclinar-se para esta segunda hiptese genrica;

    mas, mais concretamente, considerando o carcter diferente que o instrumento

    apresenta no Minho e no Algarve opina que ele foi levado para o Algarve por algarvios

    de regresso da Madeira ou do Brasil para onde, de resto, foi por sua vez levado por

    gente minhota. E julgamos que o mesmo se pode entender em relao ao caso lisboeta.

    Desse modo, a partir da Provncia nortenha, o cavaquinho ter-se-ia difundido na

    Madeira pela via do emigrante minhoto. Longe do seu foco de origem, e por isso menos

    preso sua tradio mais castia, modifica a sua forma por influncia de outras

    espcies ali existentes e mais evoludas, e s quais ele se teria pouco a pouco

    associado; e ao mesmo tempo que conserva o seu carcter popular originrio, adquire

    na cidade do Funchal um novo status mais elevado.

    E assim que ele regressa ao continente, Algarve e Lisboa, em mos de gente dessas

    reas que o conheceram ali s sob esse aspecto. O mesmo se pode ter passado com o

    Brasil, embora, neste caso, sejam tambm de admitir relaes directas entre a Madeira

    e esse Pas.

    Na Madeira, alm do braguinha, existe outro cordofone da mesma famlia o rajo

    (fig. 179) de feitio igual ao dele e ao da viola, mas de um tamanho intermdio cerca 347 Louis Berthe, Ukll, Encyclopdie de Ia Musique, III, Paris(Fasquelle), 1961, p. 831.

    183

    178. Ukulele de fabrico ingls (comp. 53 cm).

  • 348 Carlos M. Santos, op. cit., pp. 19-30 e 189-195,respectivamente; e Eduardo C. N. Pereira, op. cit., pp. 1191-1192.Grove fala tambm em machetes maiores e de cinco cordas, que,na Madeira, acompanham o cavaquinho ou braguinha (J. Dias) e que supomos serem o rajo.

    de 66 cm de comprimento (dos quais 32

    na caixa harmnica) por 21 de largura

    , com dezassete trastos e, normalmente,

    cinco cordas, ora todas de arame, ora

    com as primeira e quarta (toeira) de

    arame (n. 10 ou 8, e 4,

    respectivamente), a segunda e terceira

    de tripa ou de bordo afinando, do

    agudo para o grave, l3 -mi3 -d3 -sol2

    -r2; ou si3 -f sustenido3 -r3 -l2 -mi2;

    instrumento acompanhador, toca-se

    como o braguinha, de rasgado,

    igualmente com rufos de cima para

    baixo, dos indicador, mdio e anelar da

    mo direita, alternando com outros, de

    baixo para cima, do polegar.

    Carlos Santos e Eduardo Pereira

    consideram este instrumento de

    inveno madeirense, imitao do

    violo, em tamanho menor. Contudo,

    vimos no Regimento dos violeiros de

    Guimares, de 1719, que a se construram machinhos de cinco cordas (alm de

    outros de quatro, que correspondem aos actuais), sendo por isso de admitir que tenha

    havido no Continente um tipo maior que corresponderia porventura ao cavaco

    (mencionado por vrios autores), depois desaparecido, e que, levado para a Madeira,

    ali subsistiu, tendo certamente modificado o seu tipo originrio, no que se refere

    forma do brao e nmero de trastos, por influncia certamente do violo, difundido e

    popularizado nos princpios do sculo XIX, e que tem essas caractersticas. E esta

    hiptese parece ser reforada ainda com a considerao da afinao do rajo, idntica

    de outro instrumento espanhol da famlia das guitarras de cinco cordas o guitarro

    andaluz , antecessor presumvel do cavaco ou seja, esse manchete de cinco cordas

    do Regimento de 1719. Acresce que a Enciclopdia Universal Espasa alude a um cavaco

    dos portugueses, que como um cavaquinho de maiores dimenses; e o referido Senhor

    Leslie Nunes fala num outro instrumento hawaiano de origem portuguesa o

    taro-patch , como um violo pequeno, de cinco cordas (e em certos casos quatro),

    que pelas suas dimenses, se relacionaria com o rajo madeirense348 e que foi difundido

    naquelas ilhas pelas mesmas pessoas que para l levaram o braguinha, e na ocasio

    que atrs relatmos. Em resumo, pois, conheceram-se em Portugal, no sculo XVIII,

    machinhos grandes, de cinco cordas, que subsistem na Madeira e em Hawai, mas

    desapareceram aqui (e no se conhecem no Brasil, onde porm existem cavaquinhos

    pequenos e grandes).

    184

    179. FUNCHAL - Rajo (comp. 67,5). 180. LISBOA - Cavaquinho de Lisboa (comp. 49,5).