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MOSTRA CINEMA BRASILEIRO INÉDITO A PRODUçãO INDEPENDENTE DOS ANOS 2000

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Catalogo da Mostra Cinema Brasileiro Inedito 2010

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Page 1: Catalogo MCBI

MOSTRA CINEMA BRASILEIRO INÉDITO

A pRODuçãO INDEpENDENTE DOS ANOS 2000

Page 2: Catalogo MCBI
Page 3: Catalogo MCBI

A PRODUÇÃO INDEPENDENTE DOS ANOS 2000

mOSTRAcINEmAbRASIlEIROINéDITO

26 de Novembro a 02 de Dezembro de 2010

Vitória/ES

Page 4: Catalogo MCBI

APRESENTAÇÃO

Gabriel AlbuquerqueResponsável Técnico em Cinema

Setor de Cultura SESC/ES

Centro Cultural SESC/Glória

Page 5: Catalogo MCBI

Criando uma oportunidade para o público capixaba, a MOSTRA CINEMA BRA-SILEIRO INÉDITO apresenta em sua programação um conjunto de obras audio-visuais nacionais produzidas na primeira década de 2000. Em sintonia com as diretrizes que regem a cultura dentro do SESC, este projeto deve ser compreen-dido pelo público não só por sua importância documental, quando se utiliza de um recorte temporal recente em sua curadoria, mas como uma ação mais am-pla, que aponta para uma reflexão acerca do audiovisual nacional e regional da última década. O SESC investe nesse segmento como ferramenta importante na promoção de cidadania alicerçado no tripé da formação, produção e difusão. Re-conhecendo nessa mostra, portanto, além da apresentação artística, uma ação de desenvolvimento artístico e cultural, na medida em que traz perante o público geral, do não iniciado ao já apreciador da linguagem audiovisual, a presença dos diretores e realizadores destas obras, gerando um debate que conduz a uma reflexão mais aprofundada das obras, seus autores e conceitos.

O Centro Cultural SESC/Glória tem através de sua equipe o foco voltado para o atendimento ao público. Esse atendimento se dá na medida em que forta-lecemos a cultura em suas diversas manifestações na sociedade. No caso do cinema, seus três pilares básicos: Produção, distribuição e exibição. Quando for-talecemos qualquer uma dessas três etapas, fortalecemos assim a cultura audio-visual para quem a produz e para quem a consome.

O conjunto de mudanças ocorridas na ultima década nestas três etapas da ca-deia produtiva do audiovisual são mensuráveis na mesma medida em que per-cebemos as novas e variadas formas de se produzir uma obra nesta linguagem. Desde o custo de sua produção ao tempo gasto na mesma, passando pelo aces-so à informação que seus realizadores possuem. A MOSTRA CINEMA BRASI-LEIRO INÉDITO deve nos apresentar de maneira providencial o reflexo dessas mudanças, oferecendo matéria-prima para uma reflexão atual e com potencial para ampliar ainda mais a penetração desta linguagem no repertório cultural dos que dela se beneficiarem.

Page 6: Catalogo MCBI

AbREvIATURAS UTIlIzADAS

cP companhia produtora

D direção

P produção

R roteiro

F fotografia

S som

DA direção de arte

AD assistência de direção

m montagem

TO trilha original

EF efeitos

FI figurino

Page 7: Catalogo MCBI

(Rio de JaneiRo, 2009, FiC, 82 min)

A FuGA DA MuLHER GORILA

Duas meninas em uma van neste

road movie musical. Uma história

sobre ódio, alegria, uma praia,

cana de açúcar e um pouquinho

de música. Filmado em uma via-

gem de oito dias pelas redonde-

zas do Estado do Rio de Janeiro.

Melhor Filme - Júri Oficial e Júri Jovem | 12a Mostra de Cinema de Tiradentes / Filmmakers of the

Present, 62ND Festival Del Film Locarno / Indie Bh 2009 / Semana dos Realizadores 2009 - Rio de Ja-

neiro / Fic Brasilia 2009 / Festival Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2009 – Portugal / Festival

Cinema Global 2010 – México / Phillipines Int. Art Festival – Cinema Rehyion – Filipinas / Mostra do

Filme Livre – Rio de Janeiro 2010

cP Duas Mariola, Arissas Multimidia

D Felipe Bragança, Marina Meliande

P Felipe Bragança, Marina Meliande, Clara Meliande

AD Carolina Durão

R Felipe Bragança

F Andrea Capella

DA Gustavo Bragança, Mayra Sergio

m/S Marina Meliande

El Morena Cattoni, Flora Dias, Alberto Moura Jr, Pedro Freire

Os personagens de A Fuga da Mulher Gorila não poderiam existir em ou-tro lugar que não o próprio filme. Eles soam como a gente, se parecem com a gente, caminham como a gente, sorriem, choram, tomam banho e urinam, mas não são, a rigor, “gente”. Nem tampouco são entidades simbólicas, arquétipos, modelos de psicologia prontos para se armar diante de uma nova lição sobre como ser humano. São personagens de ficção que caminham por um mundo que lembra o nosso, mas que é imediatamente transformado em espaço imagi-

Gente De Brinquedo, Ao Vivo

Page 8: Catalogo MCBI

nado tão logo eles pisem ali. Nem mesmo a garantia de uma troca mais franca entre as atrizes e a figuração espontânea pode afiançar alguma relação direta com o real, com a ideia de uma verdade anterior à qual o cinema serviria, e não o contrário. Quando Flora está divulgando o espetáculo de ilusionismo da Mu-lher Gorila num posto de gasolina, a câmera parece impaciente diante daquela manifestação da vida não-manipulada, e aproveita a primeira deixa que aparece para se colar ao rosto da irmã, Morena, que é tão impaciente quanto a câmera e logo se isola do grupo para voltar ao espaço onde pode ser o que é por completo, sem essa necessidade de pareamento com o lado de lá. Para se fazer uma fábula é preciso mais que monstros, estradas douradas, espaçonaves travestidas de Kombi: é preciso viver pelas regras da fábula, se relacionar com o mundo real apenas de viés. Nem a metáfora A Fuga da Mulher Gorila nos oferece. É possível perceber a trajetória dessas irmãs mambembes como lição de afeto, como sím-bolo, até como auto-ajuda, vá lá. Mas o filme que se monta quando nada disso acontece tem impacto muito mais prazeroso.

É a diferença entre compreender e experimentar, instâncias por demais diferen-tes quando se trata de um cinema que não quer oferecer pistas para um mistério a ser resolvido, mas que quer justamente absorver o mistério como dado natu-ral, pleno o bastante para não demandar conhecimento. O que faz Flora, afinal, quando brinca perigosamente com o fogo? Ela incendeia a si mesma, carrega uma tocha na mão ou simplesmente caminha frente a frente com o fogo, como se ela e as chamas fossem feitas da mesma matéria-prima e, portanto, incapa-zes de ferir um ao outro? “Sem saber, a maioria dos homens nutre o mesmo sentimento que eu pelo oceano”, diz ela no começo do filme, ainda que todo o resto nos ofereça muito mais chão que água, muito mais estrada que mar. Para A Fuga da Mulher Gorila, um certo sentimento de ignorância é não só fundamental como desejado, porque a ignorância promove a habilidade de provar o estranho sem sentir-se estranho, porque não há marca exterior que diga o que é a norma-lidade. Ela existe, e está à espreita apenas esperando um retorno para a cidade, uma conversa dura com o marido e o filho que se abandonou, e impressiona como Felipe Bragança e Marina Meliande reformam o olhar encantado que até ali lançavam sobre o mundo das fantasias quando se arriscam a pisar do lado de fora, ali onde há sim explicação, compreensão, causa e efeito. Eis uma cena dramática, em seu sentido mais lato, e ela coloca em perspectiva toda a paixão gritada, a poesia de beira de estrada e as atitudes desbragadas anteriores. Mo-rena não pode cruzar a Baía de Guanabara não porque queira evitar o confronto com os erros de um passado. É que a transformação da pessoa em personagem, em fábula, já foi completada, e é irreversível. A dinâmica da conversa franca na

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mesinha da calçada, com cursos de computação e empregos em banco, já não a comporta. Morena perdeu a função.

O que afasta A Fuga da Mulher Gorila do exercício niilista, no entanto, é seu constante elogio do caos, da fábula como um problema de encenação. Abster-se do mundo corrente através da fuga perpétua, intempestiva, reativa, significa a criação de um outro espaço de convivência – porque aqui, a única morte real é a morte por desistência do contato humano, e disso Flora e Morena nunca fogem. O que Felipe e Marina propõem, o tempo inteiro, é o desaprendizado dos códi-gos estabelecidos de poesia e beleza em nome do primitivismo das sensações, de uma tabula rasa do afeto, lá onde a música brega de um videokê adquire sta-tus de grande verdade secreta, onde o verbo melodioso dos números musicais não pode escapar do que há de mais primário da expressão humana (“o mundo é mau e bonito”, e pronto, pense-se a partir do básico). A sofisticação dos espí-ritos evoluídos não precisa de grandes exegeses, mas tão somente da possibili-dade da menina bonita se transformar em gorila bestial diante dos nossos olhos. “Não é boneco, não é filme: é ao vivo!”, diz a propaganda.

E propaganda significa manipulação de desejos alheios para um fim, e significa truque, construção. Se há um elemento a que se agarrar em A Fuga da Mulher Go-rila ele é Alberto, o sujeito perdido que deseja ser ator de verdade, e que abraça a encenação das irmãs até o limite de suas possibilidades, apenas para reconhecer que nada o prende do lado de cá da Guanabara. Ele entra para o show, veste a carapuça do monstro, mas não escapa de ser o assustado fio terra para toda a explosão de energias que testemunha nos limites da Kombi e os novos lugares onde ela estaciona todo dia. As sobreposições de imagem usadas amplamente pela montagem não estão ali para propor o sonho, a convivência pacífica e musi-cada de um Rio de Janeiro que se mistura sem conflitos com o céu estrelado e as figuras de néon. É apenas um truque, o anúncio da fantasia e da realidade como possibilidade de habitação concorrentes, eventualmente até complementares, mas diferentes demais entre si para que se admita a ilusão. Alberto vai provar da barraquinha-de-cachorro-quente-com-carrinhos-de-bebê-e-empregos. O filme, devedor e promotor ao mesmo tempo dos jogos de espelhos que permitem a existência de Flora e Morena, permanece na tenda armada para o espetáculo. O rio é “feio pra caralho”, mas à beira dele vive-se e morre-se do jeito que se quiser.

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A FALTA QuE ME FAZ

cP Teia

D Marília Rocha

P Luana Melgaço, Helvécio Marins Jr.

AD Clarissa Campolina

F Alexandre Baxter, Ivo Lopes Araújo

m Francisco Moreira, Marília Rocha

S O Grivo

El Alessandra Ribeiro, Priscila

Rodrigues Ribeiro, Shirlene Rodrigues

Ribeiro, Valdênia Ribeiro

(minas GeRais, 2009, doC, 80 min)

Durante um inverno, rodeadas pela Cordilheira do

Espinhaço, quatro meninas vivem o final de sua

adolescência. Entre o romantismo e a realidade,

elas vivem as angústias e contradições da passagem

para a idade adulta.

Júri de Melhor Filme | 5º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo / 42º Festival de Brasília

do Cinema Brasileiro | Mostra Competitiva 35mm (2009) / 39º Festival Internacional de Roterdã

(2010) / 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes

A sequência de créditos de abertura de A Falta Que Me Faz já apresenta um arranjo social e uma economia dos afetos que veremos se afirmar muito diretamente ao longo de todo o filme. Existem as meninas de um lado e os me-ninos do outro, eles se unem para dançar, para cortejar, para exercitar um desejo que parece motor maior para a ação que qualquer outro estímulo habitual. A cena termina com um casal que se beija cheio de volúpia, e num movimento panorâmico para a direita, veremos duas meninas solteiras, que provavelmente não deram a mesma sorte, se beijando de mentira. Neste intervalo fomos apre-sentados às protagonistas do documentário como se faz nos filmes de ficção: o nome inscrito ao lado da primeira aparição de cada uma delas, narradoras e personagens de si mesmas. Tomada ao pé da letra, a sinopse de A Falta Que Me

O Amor Desconhecido

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Faz poderia servir de base para uma comédia romântica adolescente qualquer, e nesse primeiro contato com o universo rural de Curralinho e sua juventude, não há nada que separe tão radicalmente essa dinâmica dos bailes de formatura que sempre vemos nos filmes americanos, nada além do contexto. A pequena cidade e a maneira como ela se organiza, no entanto, servirão muito pouco para explicar o modo como estas meninas vivem da passagem entre as paixões juvenis e os compromissos adultos, e Marília Rocha não emoldura esse drama como quem procura razões – novamente, como na ficção, ao filme parece interessar muito mais a ideia de uma cenografia (espontânea, mas dramática) do que uma geo-grafia propriamente dita. Não existem explicações a serem buscadas no meio. É uma história do interior da imagem, à primeira vista.

Mas o que acontece lá dentro é impressionante demais até para se imaginar que um roteirista, em seus sonhos mais loucos, fosse capaz de produzi-lo (e se o fizesse, certamente seria chamado de inverossímil). Duas meninas estão sen-tadas na rua, emolduradas em contra-luz diante de um belíssimo céu de fim de tarde, mas tudo o que falam e, sobretudo, a maneira como falam, é perturbador. Discutem o suicídio de um homem, por amor ou por vergonha, mas discutem aos berros e aos risos. Uma interlocutora no fora-de-quadro dá informações er-ráticas sobre o caso, e nem é preciso saber completamente a verdade do acon-tecimento para que logo passe-se a falar sobre a possibilidade delas mesmas um dia também se matarem por motivo parecido. Parece torpe, parece errado, desrespeitoso até. Algumas sequências adiante, com a mesma aparência de ino-cência leve e constrangida, ouviremos que uma das amigas de fato já tentou se matar por amor, mas fracassara – a sensação é próxima, por isso posso tratá-la como quiser. São estas as mesmas meninas que fazem marcas na pele com uma agulha de costura para exibir o nome do novo namorado no corpo, as mesmas que preenchem regularmente as enormes pedras da região com corações dese-nhados em torno do nome dos amantes. As que riem do dia em que uma delas levou um tapa em público por ter saído para uma festa sem o noivo, ou que na-turalizam por absoluto as discussões sobre gravidez adolescente e casamento. Anti-natural ali não são elas, acostumadas a esse tipo de expressão entregue e furiosa ao amor. Quem está fora de lugar é o nosso olhar e, em primeiríssima instância, o olhar de Marília Rocha. Num caso ou noutro, a impressão é de es-tarmos assistindo a algo inédito e, justamente por isso, totalmente empático.

Mas antes mesmo que a empatia dessas meninas pudesse convencer a cineasta a parear-se a elas, Valdênia, Priscila, Alessandra e Shirlene pegam Marília pelo braço e a trazem para o interior dessa imagem, mesmo que ela nunca apareça,

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mesmo que em algum momento ainda surja como a voz de fora que faz inquéri-tos ao que está dentro. É, no fim das contas, o que vemos as protagonistas faze-rem constantemente com tudo o que diz respeito ao contato humano, ao afeto, ao desejo de presença: elas tomam as rédeas, decidem primeiro e informam de-pois, seguram as barras mesmo que já projetem o momento de fraquejar e pôr--se em dúvida. A aparência inocente, pouco articulada, vive sendo transtornada por suas ações. Antes mesmo que A Falta Que Me Faz possa perceber, Valdênia trai Priscila ao ficar com seu namorado, Priscila dá o troco, as duas desfazem a amizade e juram nunca mais se aproximar, mas a raiva da traição e a saudade da presença da outra logo desfaz o rompimento. É tão curiosa e renovadora esta sensação que o filme está sempre dois ou três passos atrás das personagens, e que a instância cinematográfica só se aproxima delas quando há um movimento voluntário e consciente das meninas de ter Marília e sua equipe por perto. Talvez porque, como elas próprias, o filme também se convença da necessidade desse amor desbragado e sem fronteiras, dessas marcas na pele, desse romantismo ao mesmo tempo ilusório e despido de esperanças. O amor ali é um exercício prático, que exige esforço físico (arrumar-se rapidamente para ir ao “Mexe”, dan-çar, subir montanhas, descer precipícios). É movimento antes de contemplação, e por isso as lindas paisagens da região de Diamantina só parecem realmente lindas quando apressadas, de carona no casal de motocicleta no fim do filme, e ainda com a chanson francesa de pendor brega assumido, brega como o forró que as meninas tanto gostam.

Há sempre um “não é, Marília?” à espreita, jogando para trás da câmera a res-ponsabilidade de interagir com grandeza com aquilo que pediu sua participação. O momento definidor de A Falta Que Me Faz, quando Alessandra assume o papel da documentarista e entrevista o técnico de som e o fotógrafo do filme sobre os mesmos temas que o filme percebeu na vida dela, é menos espetacular que jus-to. Pela duração ilusória do processo, e da projeção (“quem sabe quando a gente voltar...”), filme e objetos parecem ser feitos da mesma matéria-prima.

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ESTRADA pARA YTHACA

cP Alumbramento

D/R/P/F/S/m Guto Parente, Luiz

Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti

FI Lia Damasceno, Themis Memória

TO Luiz Pretti

El Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro

Diógenes, Ricardo Pretti, Rodrigo

Capistrano, Uirá Dos Reis, Ythallo

Rodrigues

(CeaRá, 2010, FiC, 70 min)

Quatro amigos partem numa viagem de carro pelo

interior do Ceará depois que a morte de um antigo

companheiro os faz repensar suas vidas.

A mais famosa seqüência de Estrada para Ythaca evoca Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, talvez a combinação mais perigosa e, paradoxalmente, mais recorrente e simplificadora para um cinema jovem e de invenção – nada enve-lheceu tão mal quanto a idéia que se faz, hoje, destes dois gênios, a reprodução ad infinitum de alguns dogmas e preceitos que não encontram correspondência real em seus filmes, estes sim ainda frescos e renovadores como quando foram lançados. É a tabular cena da encruzilhada em Vento do Leste, filme que Godard co-dirigiu com Jean-Pierre Gorin em 1970 no bojo das experiências audiovisuais do Grupo Dziga Vertov, um coletivo de produção que revisa todas as conside-rações estéticas e políticas do cineasta francês até ali. No filme, Godard usa Glauber como ator, e faz o brasileiro apresentar, diante de uma bifurcação numa estrada de terra, os dois caminhos possíveis para o cinema daquela época. Do lado direito fica “o cinema do desconhecido, o cinema de aventuras”, moldado na tradição européia e, especificamente, da Nouvelle Vague, que admite o terri-tório da imagem como um parque de diversões em eterno movimento político, a admissão da influência clássica vinda do cinema americano, a proximidade

Política Da Reconciliação

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dos fenômenos da cultura pop e urbana florescente no fim da década de 60, o diálogo nascido da linguagem, do experimento estético, e despejado no mundo. Do lado esquerdo fica o “cinema do Terceiro Mundo, perigoso, divino e maravi-lhoso”, uma atribuição própria a Glauber e ao ambiente latino-americano, onde o diálogo surge primeiro de uma constatação do modo de proceder do mundo, das relações sociais e políticas ao nível do chão, e só então se transforma em linguagem, um cinema de compromisso com a intervenção no real, que influen-cia e não se deixa influenciar, que precisa demarcar uma posição contrária à ingerência das narrativas estrangeiras em nome da constituição de uma imagem nacional, própria – é um caminho sério, “perigoso”, mas que tem tamanha res-ponsabilidade sobre aquilo que filma que acaba alcançando, eventualmente, a suspensão “divida e maravilhosa” cantada por Caetano e Gil. Quando o amigo morto de Estrada para Ythaca reaparece fantasmagoricamente para os quatro so-breviventes, ocupando o espaço de Glauber e ditando as mesmas coordenadas, tudo o que víramos até ali nos aponta para a direita, para o caminho godardiano. Os meninos, no entanto, rumam sem titubear para a esquerda, para a Ythaca imaginária que perseguem. Erro de trajetória?

Não exatamente, uma vez que todos os movimentos de Estrada para Ythaca apontam sempre para a reconciliação, para o apaziguamento entre opostos apa-rentes. O mais evidente deles é a idéia do congraçamento entre jovens amigos de afinidade profunda, de tal modo que se confundem fisicamente (no caso, há o uso de imensas barbas, ou a coincidência de dois primos e dois irmãos gêmeos formarem o grupo), jovens no auge de sua expressão – eles cantam, dançam, bebem, se divertem em comunhão perfeita – que precisam lidar com o símbolo da morte, tão anti-natural nessa faixa etária. O movimento interno da narrativa é sempre o da surpresa diante de um sentimento não dominado pelos meninos, a sensação de acompanharmos um romance de formação um tanto esquizofrênico, mas que ainda assim atinge as notas conhecidas – o desespero, a perda, a inabilidade de suportar uma ausência, a busca desenfreada por algo que preencha esse vazio à custa da sanidade, da lei, da lógica (“a gente inventa cada merda!”, diz um deles a certa altura). Ficar no bar, beber a morte do amigo, isso oferece apenas parte do segredo para se seguir adiante, e daí o impulso da viagem, lá onde os meninos experimentam o inédito, o que parece impossível na cidade.

E chegando ao interior, ao sertão, espaço tradicional do cinema terceiro-mun-dista apontado por Glauber, lá onde é preciso se chocar com a vertigem do real inclemente (o sol, o abandono, a fome, o desterro, a tragédia sem mediações),

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o que se experimenta é o repertório aventuresco de Godard. Ou ainda, os en-quadramentos tomados de baixo para cima que enquadram os quatro atores/diretores como víramos em O Cangaceiro, de Lima Barreto, “filme de aventu-ras” clássico (ou vindo de qualquer filme de Sergei Eisenstein, basta escolher a referência). Estrada para Ythaca é permeado por essas antíteses, é o filme da dilatação temporal, dos planos longos despidos de dramatização que, logo de-pois, nos apresenta a mais comovente explosão em choro de um personagem desamparado que, no entanto, receberá o amparo de um amigo – irmandade e compromisso em seu mais alto grau, mesmo que dissonante com o “ninguém fica completamente infeliz diante do fracasso de seu melhor amigo” que ouví-ramos há pouco. O único gesto absoluto em Estrada para Ythaca é aquele que justifica sua própria realização, esta reunião de Guto Parente, Pedro Diógenes, Luiz e Ricardo Pretti em torno de um filme a ser realizado inteiramente por eles numa viagem de poucos recursos e equipamentos próprios para se fazer cinema – ou melhor, para se buscar cinema, lá onde ele exista em estado bruto e precise do trabalho de todos para se materializar em imagem montável, em som gravá-vel. Daí para adiante, tudo é relativo, tudo aponta para o reconhecimento de um terreno, e não exatamente a demarcação de um território. Por isso a escolha do caminho à esquerda não soa como testemunho de uma fé inabalável, mas como a primeira das muitas decisões que os quatro realizadores tomarão pelas próxi-mas encruzilhadas com que se esbarrarem.

O que parece estar firme é o propósito de lidar com as ferramentas do cinema sem amarras, bloqueando a até obrigação de apenas dois caminhos, duas esté-ticas antagônicas, duas maneiras de se instalar nesse território. Existem várias, e seguir para Ythaca os faz retornar ao ponto de origem. Não por repetição, por destino: é preciso uma abdução, e sabe Deus o que estes alienígenas fazem com os corpos daqueles que raptam (raspam a barba, talvez, ampliam a janela de registro, mas ainda não podemos prever todos os efeitos). Importante é apenas “estar atento e forte”, e deixar morrer para testemunhar as múltiplas reaparições e renascimentos que o futuro reserva.

Page 16: Catalogo MCBI

D/R/m Daniel Bandeira

P Sarah Hazin, Cátia Oliveira, Juliano Dornelles, Daniel

Bandeira

F Pedro Sotero

DA Juliano Dornelles, Ananias de Caldas

S Phelippe Cabeça, Luís Eduardo Carmo, Alexandre

Jardim

FI Ingrid Mata

TO Tomaz Alves Souza, Chambaril

El Rodrigo Riszla, Paulo Dias, Irandhir Santos, Jr. Black,

Regina Carmem, Lílian Kelen, Madalena Sabóia

AMIGOS DE RISCO (PeRnambuCo, 2007, FiC, 90 min)

Joca volta à cidade depois de anos

em fuga e sai pra comemorar o

retorno com os amigos Benito e

Nelsão. Mas o que parecia um

simples reencontro se transfor-

mará numa corrida violenta e alu-

cinada pela noite do Recife.

“Cinema de guerrilha” é uma expressão que vem imediatamente à cabeça quando se pensa em Amigos de Risco. Estão todos os elementos lá, afinal de contas: o longa-metragem produzido com valores que, atualmente, não pagam sequer o custo de um curta nos editais tradicionais, o uso da câmera digital, um senso de improviso, o trabalho realizado entre amigos, uma certa urgência e agilidade do relato, as restrições de produção se refletindo na própria estética, enfim. Quando foi exibido no Festival de Brasília em 2007, “cinema de guerrilha” tornou-se, nas reportagens sobre o filme, uma desqualificação. A confusão é compreensível, mas diz muito a respeito do estado geral da produção cinema-tográfica brasileira até aquele ano, que ainda confundia o cinema pobre com os filmes pobres de cinema.

A brutalidade, por vezes em estado quase primitivo, é o que faz Amigos de Risco

O Real Alucinatório

Page 17: Catalogo MCBI

ser o que é. Esse talvez seja o primeiro filme brasileiro de ficção a tentar pensar o uso da câmera digital dentro da especificidade que a imagem dessa tecnologia relativamente nova tem, e ela se afasta bastante das práticas habituais do 35mm. Há uma simbiose muito poderosa entre o modo de registro de Daniel Bandeira e todas as emoções – e, sobretudo, as ações – promovidas em cena por seus três protagonistas, de tal maneira que o que há de “guerrilha” nesse contexto perde completamente o sentido pragmático do aporte financeiro para se relacionar, de maneira profunda, à própria experiência de vida desses amigos pela noite do Recife. Guerrilha sugere luta, armamento, violência, propósitos e causas, e a impressão que se tem é que ela surge do universo que o filme habita, como se fosse o registro mais natural, ou ainda, o único registro possível para se dialogar com inteireza com esse espaço.

O mundo de Amigos de Risco é, aparentemente, o do submundo, aquele que fica às margens da cidade próspera e oficial, mas o desenvolvimento da trama parece acreditar nesse conceito muito mais como um estado de alma do que uma locali-zação geográfica, e assim esse underground surge sempre na superfície, à luz dos olhos de quem quiser ver – o problema parece ser, como no caso da própria exis-tência do filme, que cada vez menos deseja-se olhar para forças tão feias, confu-sas e negativas, justo aquilo que parece mais pulsante e mais digno de atenção a Daniel Bandeira. Ver e não enxergar é, de certo modo, o que leva Nelsão e Benito, dois jovens de classe média baixa, trabalhadores honestos, ainda que atribula-dos em sua relação com o sistema em que vivem, a se reagrupar com o amigo de longa data Joca, um marginal que surge com aparência regenerada depois de um exílio de dois anos por conta de crimes no passado. O primeiro encontro do trio é particularmente encantador ao mostrar como parece fluída e plena essa ligação afetiva que passou tanto tempo cortada e que, logo saberemos, envolve uma sé-rie de rancores e dívidas emudecidas pelo bem dessa alegria forjada do retorno. O filme insiste, o tempo inteiro, que a suposta transformação de Joca é teatro, e registra Irandhir Santos sempre que alguma fissura em sua máscara doce surge no rosto. Mas a força do filme, da ficção sobre a desventura do trio, neste ponto da história ainda é muito menor que a força da amizade ilusória compartilhada por eles. “Sempre fui um filho da puta, mas mesmo assim vocês estão aqui comigo hoje”, dirá Joca mais adiante, quando suas armações começarem a ser desvendadas. Nelsão e Benito, no entanto, insistem no afeto, na parceria.

Não há em Amigos de Risco, no entanto, espaço para o romantismo. Os dois amigos reconhecem cada uma das falhas de Joca, sabem onde começar a des-confiar, onde recuar diante dos exageros, da suposta boa vontade, do ímpeto de

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curtir a noite como se passado não houvesse. E o movimento do filme é o de uma constante atualização da figura de Joca, que se dá justamente no processo da noite, e se aprofunda quando ele se ausenta (está desacordado) e Nelsão e Benito podem lidar apenas com a dimensão palpável dele, literalmente (está sendo carregado pelos dois cidade adentro). Físicas, diretas, igualmente palpá-veis, a direção e a montagem que Daniel Bandeira realiza não nos deixa nunca nos enganarmos, porque o filme se assume, desde o começo, muito mais cínico e desconfiado com o mundo que aqueles a quem escolhe acompanhar. É um cinismo que não incorre no julgamento moral, nem em qualquer tentativa de metáfora espiritual para a vida aqui fora, para o espectador cioso de mensagem. A vida aqui fora, assim tão urgente, bruta, primitiva, guerrilheira, é a própria ma-triz estética e ética do filme, está dentro dele também.

Para isso, a atenção ao detalhe e a crença no olhar, na imagem. Amigos de Risco, em toda sua precariedade assumida e cheia de sentidos, é também primoroso na construção da ação, do movimento físico e mental desses três errantes, e para que aquilo que se passa dentro do filme não pareça um jogo de forças en-tre a ficção inocente e o cineasta esperto, para serem francas as respostas que a própria narrativa oferece às dúvidas de Nelsão e Benito, é preciso mostrar, antes de tudo mostrar (nós, os espectadores, talvez nos beneficiemos primeiro disso pois, imediatamente, reconhecemos em Joca um sujeito desagradável, e a própria construção de ator nunca faz questão da simpatia pura). Estar sempre tão ciente da realidade, dos movimentos que o mundo faz ao seu redor, da mais radical sinceridade com que ele se mostra, eventualmente acumula todos esses sentidos no espectro oposto da cadeia, no delírio, na alucinação, no sobrevôo do real, na ficção enfim. O trajeto final de Nelsão e Benito envolve uma profusão de grandes acontecimentos consecutivos que parecem tão impressionantes que só podem se dar no cinema e, ainda assim, está lá o registro cru, o fluxo estético sujo e sem floreios para nos dar perspectiva. “Ninguém é perfeito, e a vida é assim”, diz a música que encerra os créditos finais. Nada que os dois sobrevi-ventes já não soubessem desde sempre, mas Amigos de Risco existe justamente para experimentar a imperfeição até as últimas conseqüências.

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AGRESTE cP Franco Filmes, Aruac Produções

D/R Paula Gaitán

P Ailton Franco

F Louise Botkay Courcier, Eryk Rocha,

Paula Gaitan

S Edson Secco, Joaquim Castro

m Joaquim Castro, Paula Gaitán,

Daniel Santos

TO Pupillo, Ava Rocha,Maciel Salú

El Marcélia Cartaxo, Sara Antunes,

Zabé da Loca, Maíra Senise

(Rio de JaneiRo, 2010, doC, 76 min)

Uma viagem ao sertão paraibano com Marcélia Car-

taxo. Em contato com a natureza e com outras figu-

ras femininas, a atriz relembra o trajeto de sua mais

famosa personagem, a Macabéa de A Hora da Estrela.

Festival do Rio 2010 / Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Uma Artista De Todo Território

Como em Vida, seu filme anterior, sobre Maria Gladys, Paula Gaitán ini-ciou o projeto de Agreste como um documentário de média-metragem sobre Marcélia Cartaxo encomendado pelo Canal Brasil para a série “Retratos Brasilei-ros”. Diante da possibilidade de contato com uma grande atriz, no entanto, Pau-la Gaitán rejeita a idéia do memorial (ou, pior ainda, do testamento), da reunião de depoimentos laudatórios e trechos de trabalhos passados que dêem “provas” da importância dessas figuras no cinema brasileiro e extrapola o projeto inicial para responder ao que há de maiúsculo em Gladys e em Marcélia. Grandioso, no entanto, não é apenas o peso de suas trajetórias, mas o fato de que estes talentos – e, como a cineasta revela, estas forças da natureza tornadas atrizes pela vida e pelo destino – se renovam e se atualizam feroz e apaixonadamente no instante em que uma câmera está apontada para elas. Um retrato exige que

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o objeto do artista permaneça estático à sua frente, e o que vemos em Agreste, particularmente, é uma mulher em movimento perpétuo.

E parece muito natural que o título do filme traga um endereço, uma demarcação geográfica específica, uma idéia de chão. Agreste começa com uma narração em off de Marcélia Cartaxo relatando as passagens de sua infância em que surgiram os primeiros sinais de que sua vida seria preenchida pela atuação. Os muitos irmãos e os poucos brinquedos a faziam usar as roupas dos pais para se di-vertir em pequenos teatrinhos improvisados, mas é a experiência de sair para a rua, escapando pela janela, que a faz ampliar esta idéia de ser simplesmente alguém que finge ser outra, para a atriz que se debate com o mundo e canaliza suas emoções através do próprio corpo, seja lá o preço que pague por isso – ela sempre apanhava quando voltava para casa. É o primeiro e único depoimento de Marcélia no filme todo. Daí para frente teremos simplesmente a dimensão física dessa fuga pela janela: Marcélia no mundo, na guerra de sensações que é estar no mundo. E se Agreste representa mesmo um passo adiante na filmografia de Paula Gaitán é porque a cineasta investe na dureza, no esforço, na dificuldade de ser o que se é, neste endereço que é a Paraíba, mas que também é o Brasil. Não há, a rigor, nenhum momento de suspensão aqui, não se levita. Ninguém faz arte impunemente e o filme toma ao pé da letra a resposta que Marcélia dá ao final, sobre o que é ser uma atriz brasileira. “É um desafio”, ela diz. É a guerra, paixão com a faca entre os dentes. E não se vence uma guerra sem uma tropa de iguais, e não se vence uma guerra sem fé.

A tropa: Marcélia é esta mulher que vemos e também todas aquelas que cruzam seu caminho. E se ela pode se colocar no lugar de todas as outras, se pode in-terpretar suas emoções, suas histórias, também recebe dessas mulheres a mes-ma atitude. No caso de uma caminhada pelas pedras ser muito longa, ou uma dança muito exaustiva, no caso de a reza diante de um muro de lamentações descarregar suas energias, haverá sempre outra mulher por perto para levar o desafio adiante enquanto a guerreira toma fôlego para a próxima jornada. Essa camaradagem pede não só uma correspondência afetiva, como nas fotos que umas vêem das outras –como é muito próprio de um trabalhador da arte, essa correspondência é um exercício físico. É o debulhar o algodão de Maíra Senise, é o tocar flauta de Zabé da Loca, é o abraço na pedra de Sara Antunes, o canto afinado de uma menina da região ou simplesmente o desvio de olhar na direção da câmera das diversas garotas e senhoras que o filme encontra no caminho. A equalização de todas essas energias produz em Agreste uma sensação de monta-nha-russa sentimental que, longe da simples observação e contemplação, exige

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de Paula Gaitán também uma investida emocional rara. Agreste reúne respira-ções, vozes, velas, tambores e rostos em nome de uma memória coletiva que não se apresenta cândida e harmônica, mas, pelo contrário, é episódica e repleta de estados de espírito distintos entre si. À corrida épica ao som de Rachmaninoff se equilibra a calma parnasiana do som dos sinos de um rebanho de cabras, para que então se experimente o desespero absoluto de uma ladainha repetida exaustivamente e de maneira angustiante, mas não tanto a ponto de impedir o encontro doce e amoroso das mulheres de torso nu sentadas à sombra de um rochedo. Fúria e êxtase em doses iguais.

A fé: não se chega a tamanho grau de entrega às intempéries do mundo sem que se acredite em algo para além dele. Agreste é um filme religioso, em vários senti-dos, mas sua fé tem sinal invertido. Ela não aponta para o céu, para a elevação. Quando Paula Gaitán filma um pôr-do-sol, apenas uma faixa pequena da ima-gem traz de fato o horizonte, o sol caindo. O resto todo é preenchido de chão, de pedra. Em diversas situações, vemos o corpo de Marcélia colado a terra, se debatendo entre folhas, espelhado numa poça d’água que evita o reflexo do céu para mostrar seu rosto apenas. Marcélia é encontrada escondida sob a terra, a foto de Clarice Lispector aparece compondo o mostruário de um ambulante no piso da rua, a Macabéia, que Clarice escreveu e Marcélia interpretou no cinema, ressurge nas mãos de camponeses, trabalhadores da terra. Quando Sara Antu-nes propõe a Marcélia que coloquem seus desejos dentro das pedras, insiste na localização: “dentro”. Tão atadas à experiência terrena, à humanidade ao nível do chão, ao mundo que corre por ele e às pessoas que o habitam, é bem possível que a atriz fure a resistência da pedra e se plante de fato lá dentro. “Uma artista de todo território”, diz um senhor a Zabé da Loca, e é preciso se orgulhar das viagens para apresentar sua arte, ocupar palcos, personagens, dominar plateias. “Orgulho não. Para ser melhor que os outros?”, ela responde. Marcélia Cartaxo se satisfaz com o domínio do espaço, com o espalhar-se por aí. Lá onde ela não precisa de orgulho nem de humildade. Lá onde basta a disposição de um corpo e de uma voz para o desafio, que é “bom, gostoso”, mas que também se encerra. No plano final de Agreste, ela tapa os olhos como quem fecha as cortinas de um palco. Como quem diz gentilmente ao espectador um “vocês já podem lutar com suas próprias armas agora”. Avante, portanto.

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MORRO DO CÉu cP Gusgus Cinema, ABPEC, TVE/RS

P Patrícia Goulart

D Gustavo Spolidoro

R Gustavo Spolidoro e Bruno Carboni

m Bruno Carboni

El Bruno Storti, Joel Storti, Geni

Storti, Raul Storti

(Rio GRande do sul, 2009, doC, 71 min)

Bruno tem 16 anos e é morador da comunidade de

Morro do Céu. Junto com seu primo Joel, divide os

dias de verão entre a colheita da uva e uma oficina

mecânica, onde consertam carretos e se preparam

para aventuras pela região.

Troféu Caríssima Liberdade | Mostra do Filme Livre 2010 / 37º Festival De Gramado / 13ª Mostra De

Tiradentes / 1ª Semana Dos Realizadores / 10º Indie Bh / 6º Festival Internacional De Cinema De

Salvador / Mostra De Londrina / Mostra Do Filme Livre

Aquilo que poderia ser denominado como o mais poderoso efeito de cine-ma em Morro do Céu, o momento em que o cineasta precisou exibir sua maior força e traquejo com o universo adolescente e rural que retrata, sequer faz parte do produto final, do filme que vemos na tela. Isso diz respeito a um momento anterior às filmagens – e, imaginamos, anterior à gravação de cada plano – em que Gustavo Spolidoro precisou estabelecer um contrato moral com o garoto Bruno Storti, sua família e seus amigos, para que a câmera pudesse estar ao lado deles em rigorosamente todos os momentos possíveis de sua jornada pelo que parecia ser mais um verão típico de uma comunidade perdida no meio do Rio Grande do Sul. Esse momento é toda a razão pela qual alguns documentários desse tipo são feitos, mas aqui ele é completamente ignorado pela montagem final. Parece uma troca justa: os personagens do mundo real oferecem sua vida

O Que Há Depois Do Túnel

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com absoluta franqueza e liberdade de registro, enquanto o filme devolve a con-fiança ao se segurar apenas nisso, em vida acontecendo diante da câmera. Nos primeiros dez minutos de Morro do Céu é impossível não pensar nesse contrato, não supor quais foram as regras impostas de parte a parte para que essa comu-nhão entre câmera e personagem acontecesse e, sobretudo, o que, de tudo aqui-lo que vemos, aconteceu respeitando fielmente o desenvolver das ações e do co-tidiano desta gente e o que, para o benefício de uma criação artística consciente que objetiva fins específicos, Spolidoro pediu para que os meninos encenassem propositalmente. Dez minutos passam rápido, e todo o poder deste trabalho anterior rapidamente se dissolve como mera curiosidade uma vez que aquilo que surge na tela peça por atenção, nos esfregue na cara o quão poderosos são os seus efeitos. E, ainda assim, nada demais está acontecendo.

O que Morro do Céu faz, eventualmente, é devolver o caráter espetacular àquilo que parece mais banal na vida. E tudo o que é preciso para esse fim é um olhar dedicado e atencioso. Estamos longe da obrigação de afeto que permeia alguns registros dessa juventude em transformação. Não que a câmera aqui não seja carinhosa: ela simplesmente não precisa disso – o universo de Bruno já vem repleto de trama, de viradas, de trilha sonora, de ação. Na maioria dos planos de Morro do Céu a câmera permanece fixa num tripé, a uma distância relativa dos protagonistas, nos fazendo retomar a sensação do cinema como janela para um mundo que se move sem consciência da nossa presença ali como observadores, sensação essa que é a base da história do cinema de ficção e que hoje, tão reuti-lizada e banalizada que foi, parece mesmo só nos abalar quando despertada por um documentário.

O que não significa que Morro do Céu não trabalhe constantemente na constru-ção daquele universo, construção dramática, pensada, montada a posteriori. A câmera domina completamente esse espaço, mas apenas para poder acompa-nhar melhor o momento em que Bruno aponte para fora dele. É uma história de formação como tantas outras que já vimos antes (e alguns planos de Bruno e os amigos caminhando pela linha do trem nos levam diretamente ao marco geracional que foi Conta Comigo, de Rob Reiner, mesmo que, no minuto seguin-te, vejamos os trilhos serem filmados como tantas vezes já fez o taiwanês Hou Hsiao-Hsien). E talvez só faça mesmo diferença insistir que este é um documen-tário no sentido mais estrito do termo porque, uma vez em contato com Bruno, tudo o que testemunhamos é uma avalanche de atualidade, de tempo presente, uma quase etnografia do ser-jovem-hoje-no-Brasil. Há os dados da cultura es-pecífica de Cotiporã, e o sotaque dos meninos é um grande diferencial – é um

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português que não se ouve por toda parte, e que, ao mesmo tempo em que nos coloca numa espécie de suspensão espaço-temporal, também demarca uma ma-neira de se comunicar incrivelmente relacionável, humana, de modo que ouvir qualquer outro sotaque depois de ver o filme pareça estranhamente deslocado (a língua deles vira, ilusoriamente, a nossa). Mas há, também, tudo aquilo que vibra na mesma freqüência de qualquer jovem brasileiro de 16 anos, as mesmas narrativas, as mesmas mediações. Há o Orkut – eis aí outra língua estranha que nós, como sociedade, já admitimos como possível, mesmo em toda sua estra-nheza –, há o celular, o lazer e a escola, a tensão do amor e a leveza da amizade adolescente, há até o insistente hit de Victor & Léo tocando sem parar na rádio.

E a tudo isso que o filme tanto valoriza e tão bem percebe, Bruno insiste em dizer “mas ainda é pouco”. Uma vez que Morro do Céu esteja completamente integra-do à dinâmica daquele lugar, aos humores da família, às características dos ami-gos, à compreensão da geografia e da economia dos gestos, é aí que Bruno se dá conta que isto já não o representa mais. Quando perguntado pela mãe sobre o que quer fazer da vida, ele diz simplesmente que tem vontade de viajar. Isso não é profissão, não é garantia de futuro, mas é outro contrato moral – dessa vez um estabelecido entre o Bruno no fim da infância, aquele que começou o filme, e este Bruno recém-adulto que vemos ao final, marcado pela perda de um amor, pelo assombro diante da doença do pai, pela resistência de um amigo a reconhe-cer que ali nada mais dá certo e que, portanto, é preciso sair. Gustavo Spolidoro viajou até Cotiporã para habitar um espaço através de seu representante mais enraizado, e o que Bruno quer, no fim das contas, é se espalhar lá onde o cine-asta vive, nesse lugar-qualquer-fora-daqui que pode ser Porto Alegre, os Estados Unidos ou a Itália, lá onde é ele igual a milhões de outros e onde, talvez, nenhum filme fosse feito sobre sua história. E, de fato, não haverá mais filme para além dali. Mas nem por isso Morro do Céu deixa de mostrar todos os caminhos para a fuga, os trilhos, as estradas, os vagões de trem, as luzes desconhecidas no fim de um túnel. Porque o filme precisa acabar, mas a vida continua depois dele. E o Bruno que Morro do Céu testemunhou nascer, ele talvez se dê bem do lado de lá.

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SÁBADOÀ NOITE D/F Ivo Lopes Araújo

P Ivo Lopes Araújo, Rúbia Mércia, Luiz

Carlos Bizerril

S Danilo Carvalho, Ivo Lopes Araújo

m Alexandre Veras, Ricardo Pretti, Luiz

Pretti, Fred Benevides, Ivo Lopes Araújo

(CeaRá, 2007, doC, 60 min)

Personagens anônimos, imagens abstratas e sons se

misturam em uma viagem noturna por Fortaleza.

Tudo o que se poderia imaginar de um documentário autoral/conceitual que se anuncia como uma “viagem noturna por Fortaleza” está lá, materializado nas imagens de Sábado à Noite. Os planos silenciosos e estáticos em que nada pa-rece acontecer até que se descubra eventualmente uma invenção do cotidiano (uma pessoa que passa, carros que cruzam o quadro, rostos fugidios em lugares estranhos, ruídos e formas diversas), a câmera observadora, destinada à paciên-cia da espera por alguma iluminação natural, alguma manifestação do mundo ao qual se dirigir. Por outro lado, a apreensão surrealista dos indícios mais cor-riqueiros de realidade (postes de luz que se tornam pontos brancos móveis e indistintos, reflexos das mais variadas naturezas e motivos, o jogo de agitação da imagem quando a câmera passeia dentro de um ônibus). Cada momento desses, no fundo, uma reapresentação, em contexto diferente, de uma mesma ideia de beleza cotidiana que brota “naturalmente” diante do aparato cinemato-

Melhor Filme - Júri Jovem | 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes / Melhor Experimentação: Disposi-

tivo | Cine Esquema Novo 2008 - Festival de Cinema de Porto Alegre / Prêmio Caríssima Liberdade

| 8ª Mostra do Filme Livre

Uma Alma Cujas Intenções São Verdadeiras

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gráfico, a golpes extremamente calculados do realizador, numa onda que tem atingido o documentário brasileiro recente (sobretudo dentro do espectro de filmes realizados no projeto DOCTV, do qual Sábado à Noite faz parte, e que já teve recentemente filmes como Acidente seguindo esta mesma lógica da plasti-cidade a fórceps).

Ao mesmo tempo, sempre que decide embarcar naquilo que parece lhe perten-cer muito particularmente, uma idéia posta em cena na primeira sequência do filme, Sábado à Noite não só consegue produzir imagens de absoluto encanto, como também se veste de um conceito que não nasce de outro lugar que não de sua própria estrutura. É o tal momento da “regra do jogo” que Eduardo Coutinho tanto comenta e que Ivo Lopes Araújo apresenta na única fala em off dita no filme todo. Estamos na rodoviária de Fortaleza e ouvimos a abordagem de alguém da equipe a um grupo que está saindo dali de carro. O objetivo é que a câmera (“de um documentário que vai passar na TV Cultura”) os acompanhe no carro, numa espécie de carona, até onde o motorista for, para que então se aborde um novo carro, e o filme nasça deste passeio involuntário pela cidade. O grupo da rodo-viária se nega à carona, mas ali está lançada a ideia de um trabalho de câmera e de som que só se materializa pelo gesto físico, pelo deslocamento anunciado, muito mais pela busca atribulada de imagens e ruídos do que necessariamente no encontro plácido e ocasional com eles. Há, num certo sentido, um desejo de perceber em Fortaleza uma cidade que nunca dorme, jogando-se na ideia de que a madrugada é um espaço tão pleno de movimento quanto o dia (não se começa numa rodoviária à toa). Mas Fortaleza não é São Paulo ou Nova York e quando sua noite dá sinais de cansaço e anuncia claramente que ali se dorme sim, Sá-bado à Noite começará, por conta própria, a forjar movimento onde antes não havia nenhum. São os únicos momentos de perda de controle da câmera, que está na mão e atua frontalmente sobre (e contra) o que se põe à frente. Persegue pombos que comem coisas da rua, afugentando-os até que alcem vôo e depois se embriaga de uma seqüência de postes numa praça, correndo atrás deles e provocando um efeito de dispersão confusa da luz, muito distante daquela figu-ração de vídeoarte dos pontinhos luminosos brancos e dançantes.

O momento no qual essa operação aparece mais bem exposta (e que, isolado, é uma das grandes sequências do cinema brasileiro recente) é o longo plano que mostra Danilo Carvalho, o técnico de som do filme, armado de um gravador e um microfone enorme, registrando o ambiente da cidade a partir de uma pas-sarela de rua. Há uma coincidência entre a movimentação física do técnico, que aponta o microfone para diversos pontos do ambiente, e aquilo que ouvimos

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na banda sonora do filme. Um grupo de pessoas vem atravessando a passarela e, ainda que percebamos que conversam entre si, só ouviremos um resquício desse diálogo uma vez que o técnico, manualmente, desvie o microfone dos carros da rua e aponte-o diretamente para as pessoas. A interação com a cidade não é passiva, muito pelo contrário: está baseada no contato direto, corpóreo, da equipe com o que a cerca. E então, tendo ficado longos minutos observando aquele jogo de suposta “denúncia” do aparato, Ivo Lopes de Araújo deixará a tela preta e seguirá com o som ambiente ocupando sozinho o espaço do filme. Para onde estará o técnico direcionando seu microfone agora? Em nome daquilo que ouvimos de fato, que outros sons estão sendo deixados de fora porque não participam do campo de captação do aparelho (e das intenções do realizador)? A tela preta se estende e o filme – tendo nos mostrado literalmente sua produção a fórceps, esforço concentrado, cálculo sobre o acaso – finalmente não nos amarra à apreensão obrigatória de um belo de força centrípeta, que restringe os senti-dos, que se fecha no interior da imagem. Pelo contrário, se há alguma beleza na banalidade (mesmo quando a imagem for suprimida e o que ouvirmos for o mesmo som presente diariamente na vida de qualquer cidade grande), seu prin-cípio só pode ser a expansão da experiência perceptiva. É quando retornaremos à luz, desta vez não mais na rua agitada, mas diante do quebra-mar, e aquilo que imaginávamos como puro barulho do trânsito se transformará alquimicamente no som das ondas na praia. Basta, como diz a canção de Nina Simone que ou-vimos na casa de uma família que recebeu a equipe no meio da madrugada, que este olhar seja “uma alma cujas intenções são verdadeiras”. Não são muitos os filmes que conseguem, ainda hoje, devolver ao jogo simples de imagem e som uma categoria de revelação sensorial e são mais raros ainda aqueles que, como Sábado à Noite, parecem verdadeiramente nos meter num buraco negro (ou no-turno), de onde se saia com a impressão de que nossa relação com o cinema foi verdadeiramente “re-purificada”. E que essa ilusão só dura até o amanhecer.

Texto originalmente publicado na Revista Contracampo em janeiro de 2008, por ocasião da exibição do

filme na 11º Mostra de Cinema de Tiradentes

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cP Fábulas Negras

D/R/m Rodrigo Aragão

P Edilamar Fogos de Deus, Hermann Pidner

F Rodrigo Aragão, Bruno Maranhão, Mauricio Junior

AD Mayra Alarcon

TO Jacequay Lins e OFES sob regência do maestro Helder

Trefzger

S Luciano Allgayer

EF Maurício Junior, Rodrigo Aragão, Vitor Hugo Medeiros

El Walderrama dos Santos, Kika Oliveira, Markus Konka,

Ricardo Araújo, Mauricio Junior, André Lobo, Alzir Vaillant,

Julio Tigre, Reginaldo Secundo, Antônio Lâmego

MANGuE NEGRO(esPíRito santo, 2008, FiC, 105 min)

Depois que um mangue é con-

taminado de forma inexplicável,

uma comunidade humilde é cha-

cinada por zumbis. Mocinho e

mocinha lutam para sobreviver e

encontrar uma cura.

Melhor Filme · Júri Popular | Festival Rojo Sangre, Buenos Aires, 2008 / Melhores Efeitos Especiais

| Festival Rojo Sangre, Santiago, 2008 / Melhor Diretor Estreante | Festival Rojo Sangre, Santiago,

2008 / Melhor Filme Ibero Americano | SP Terror Festival Internacional de Cinema Fantástico, Brasil,

2009 / Melhor Filme | Prêmio Omelete Marginal, Brasil, 2008 / Seleção Oficial SCIFI London, 2009

A primeira aparição de um morto-vivo em Mangue Negro é bastante de-finidora do projeto dramático que Rodrigo Aragão pretende aplicar a seu filme. Vemos um catador de caranguejos sozinho no mangue, todo coberto de uma lama cinza que o deixa com aparência desumana, e enquanto se aproxima do solo, grunhidos e expressões exageradas, poderíamos imaginar que é esse ca-tador o primeiro caçador de zumbis que o filme apresentará. Não é: toda essa construção de suspense se dá para uma simples retirada do animal ainda vivo do meio da terra. Há algo de intrinsecamente macabro na atividade do catador e

Cinema Devorador De Tradições

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no ecossistema que ele habita. Assim, quando ele se depara com um cadáver já em decomposição a dois passos de onde realiza sua atividade, este corpo parece integrado àquele ambiente.

O mangue está morrendo, é o que ouvimos várias vezes ao longo da trama. Logo na primeira seqüência, o pescador Agenor apresenta a narrativa da nostalgia de um tempo em que seu pai e ele conseguiam retirar dos rios toda ordem de pei-xes, sempre fartos e saudáveis. A morte do mangue, portanto, seria o resultado de uma degradação produzida pelo homem ao longo das décadas, e por um se-gundo Mangue Negro parece flertar com o cinema ambiental – mas só por um se-gundo. O que quer que tenha acontecido neste espaço transformou não apenas a natureza de plantas e animais, mas também a natureza dos homens. O arranjo social em torno desse lugar, no entanto, é estritamente fictício. Uma comuni-dade de pescadores reduzidíssima, vivendo em barracos de madeira precários, sem qualquer demarcação clara de tempo. Não importa a época, na verdade: o diagnóstico aqui é de alma, a corrupção do espírito aponta para uma metáfora do mundo que existe para além dessa aldeia.

Oásis do comportamento primitivo brasileiro, os personagens de Mangue Negro não pensam, eles apenas reagem. Reconhecemos no trabalho de Rodrigo Aragão todas as referências aos filmes de zumbi de Sam Raimi e Lucio Fulci, mas esses são dados exteriores ao universo da trama. Ali dentro não se menciona nunca a palavra “zumbi”, nem mesmo “morto-vivo”. Quando precisam definir o caos em que a pequena vila se encontra, os personagens não chegam mais longe do que um “o mangue tá cheio de defunto andando”. Estes homens e mulheres talvez nunca tenham visto um filme na vida, não têm televisão em casa, mal tem ener-gia elétrica. A consciência coletiva do pop passa longe do Perocão, e talvez por isso tudo aqui soe tão estranhamente genuíno, mesmo quando se trata de um gênero repisado inúmeras vezes. Em Mangue Negro tudo o que se conhece vem da cultura local, as soluções que se encontram dizem respeito à história da vila, nunca à história do cinema.

Há uma voz e um verbo no filme que são de fato inéditos no terror. Ela diz res-peito, especialmente, ao trabalho de atores e na maneira como o roteiro deixa entrever a especificidade deste ambiente. Muitos documentários tentam, através de mil artimanhas de produção e abordagem, conseguir este frescor que Aragão atinge aqui em meio a toda parafernália de maquiagem e efeitos que põe para funcionar. A demarcação entre o elenco profissional e o elenco voluntário é dei-xada evidente já desde a primeira aparição de Marcus Konká como Agenor, no

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barco com Alzir Vaillant. Tal qual Maria Gladys em Sem Essa Aranha, a Konká cabe repetir um bordão ao longo de todo filme, grito de desesperança puro, mas que, no fim das contas, é apenas um “ah, desgraça!” a preencher a banda sonora insistentemente – um mal que se nomeia, mas que não exige maior articulação. Os não-atores são zumbis de si mesmo, atropelam as falas sem preocupação com entonações e psicologia dos personagens, porque em Mangue Negro não se trata de psicologia, mas de anatomia.

André Lobo no papel da preta velha Dona Benedita é um espetáculo à parte. É mais um desses elementos que parecem alardear a autoconsciência metalingüís-tica do filme, não fosse o fato de representar, no interior da narrativa, um dado da realidade daquelas pessoas – nós vemos a maquiagem carregada e o homem fazendo voz de velha, mas o protagonista Luis vê apenas a esperança de uma saída para seu desterro, e ele acredita naquela imagem. É um pacto que Aragão também estabelece com o espectador: há o esforço dos efeitos especiais, do domínio da gramática cinematográfica, da criação de climas através da precisa trilha sonora do maestro Jaceguay Lins, mas isso tudo é oferecido como material adjacente. É preciso que se compre o terror vivido por Luis e sua garota Raquel antes de se comprar o terror do sangue falso e das cabeças decepadas, e o im-pacto do filme depende, paradoxalmente, na crença que estabelecemos com a humanidade que ainda resta ali, com o casal protagonista, e não com a degra-dação desta humanidade, representada pelos monstros muito bem produzidos.

E é justamente por nos fazer crer no drama destas pessoas, tão espontâneos em suas trocas de diálogo, tão naturais ao reagir diante do horror, que Mangue Negro passeia por vários registros sem nunca parecer desigual. As seqüências de noite americana estão certamente entre as imagens mais bonitas produzidas pelo ci-nema capixaba recente, e só podem ser bonitas porque são justas. Nem todos os filtros e as manipulações digitais, as luas falsas e os alvoreceres de pós-produção podem bater a ilusão de vermos uma mulher de vestido branco desfalecida no mato, com o sol brilhando sobre ele, e ainda assim nos fazer acreditar que aquilo é noite. Como é possível amar esta mulher em meio a tanta carnificina? E como é possível não amá-la, uma vez que ela surja assim, diante dos olhos de Luis e dos nossos olhos, tão natural e sobrenatural ao mesmo tempo? Mangue Negro é, no fim, um filme sobre a fé na magia.

Texto originalmente publicado no segundo número da Revista Milímetros, em julho de 2010, lançado

dentro da IV Mostra Produção Independente, promovida pela ABD-ES

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IDEAlIzAÇÃOPique-Bandeira

cURADORIARodrigo de Oliveira e Vitor Graize

PRODUÇÃO ExEcUTIvAVitor Graize

ASSISTENTE DE PRODUÇÃOTatiana Beling

PRODUÇÃO gRáFIcAFelipe Gomes e Wérllen Castro

TExTOS DO cATálOgORodrigo de Oliveira

vINHETA mcbI 2010Gustavo Senna

ASSESSORIA DE ImPRENSAVitor Graize

EqUIPE cINE jARDINSElzio Dos Santos, Sanger Amorim,

Diego Barbosa, Talmon Júnior

PASSAgENS AéREASIntercontinental

ImPRESSÃOGráfica A1

REAlIzAÇÃOPique-Bandeira e SESC/ES

PATROcíNIOseCult - Secretaria de Estado da Cultura

FunCultuRa - Fundo de Cultura do Estado

do Espírito Santo

AgRADEcImENTOSAlumbramento, Gus Gus Cinema, TEIA, Franco

Filmes, Vitrine Filmes, Fábulas Negras, Cia do

Filme, Símio Filmes, João Moraes, Leonardo

Gomes, Larissa Ventorim, Vitor Lopes, Fabrício

Noronha e Bianca Sperandio

EqUIPE SESc/ESBeatriz de Oliveira Santos, Lídia Morena Gonçalves,

Gabriel Albuquerque, Thiago Arruda, Paulo Cruz

mOSTRA cINEmA bRASIlEIRO INéDITO | mcbI 201026 de Novembro a 02 de Dezembro no Cine Jardins, Vitória / ES

APOIO

PATROcíNIO

REAlIzAÇÃO

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