cassin - a performance antes do performativo, ou, a terceira dimensão da linguagem notas.pdf

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  • revistA LetrAs, CuritibA, n. 82, p. 11-46, set./dez. 2010. editorA uFpr.issn 0100-0888 (verso impressA); 2236-0999 (verso eLetrniCA)

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    CAssin, b. A perFormAnCe Antes do perFormAtivo, ou A terCeirA dimenso...

    A perFormAnCe Antes do perFormAtivo, ou

    A terCeirA dimenso dA LinguAgemLa performance avant le performatif

    ou la troisime dimension du langage

    Barbara Cassin Traduzido por Luana de Conto*

    [] isso que podemos chamar adequadamente uma retrica moderna, um outro estudo

    sistemtico do modo como podemos alcanar um efeito ou ser afetados pelos atos de fala, a saber, a obra How to do things with words, de Austin, que

    um apanhado de notas para suas conferncias (como so tambm os textos de Aristteles),

    publicadas postumamente.

    Stanley Cavell1

    Nada nos impede de traar uma linha onde ns queiramos e onde nos seja conveniente.

    J. L. Austin2

    * Ps-Graduao em Letras UFPR.1 [...] ce que lon peut appeler juste titre une rhtorique moderne, une autre tude

    systmatique de la faon dont on peut avoir un effet ou tre affect par des actes de discours, savoir louvrage dAustin How to do things with words, qui est un recueil de notes pour des confrences (comme le sont les textes dAristote) publies titre posthume. Stanley Cavell, 2001, p. 335.

    2 Rien ne nous empche de tirer un trait l o nous le voulons et o cela nous ar-range. J. L. Austin, 1970, p. 123.

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    CAssin, b. A perFormAnCe Antes do perFormAtivo, ou A terCeirA dimenso...

    i. FiLosoFiA, retriCA, soFstiCA

    Como Age exAtAmente o Logos?

    Eu gostaria de comear traando um horizonte de problemas e um ngulo de ataque.

    Meu ponto de partida a frase, muito conhecida, em que Grgias caracteriza o logos no Elogio de Helena (82 DK 118, t. II, p. 290) :

    Lo/goj duna/sthj me/gaj e)sti/n, o$j smikrota/twi sw/mati kai\ a)fanesta/twi qeio/tata e@rga a)potelei=

    frase que eu proponho que se traduza:O discurso um grande soberano que, com o menor e mais inaparente dos corpos, performa os atos mais divinos.

    Trs termos devem ser sublinhados, termos que remetem seno ao ato de linguagem, ao menos linguagem como ato. A diferena entre ambos, ato de linguagem e linguagem como ato, exatamente o que estou buscando questionar.

    Duna/sth: o primeiro determinante do lo/goj. Notemos que eu traduzo lo/goj por discurso procurando encobrir sob o manto desse ter-mo todas as distines anteriores contidas em francsi; com efeito, para compreender como esse discurso adotado por Grgias (o#de o( lo/goj, 3) pode servir de ponto de partida para uma reflexo sobre o ato de linguagem legitimamente, importante notar que a amplitude semntica do grego lo/goj muito mobilizada nessa passagem, principalmente por meio do jogo constante entre singular e plural. Poderamos, por exemplo, traduzir (ou supertraduzirii) as ocorrncias dos pargrafos 9 a 13, conforme for o caso, no somente por linguagem, fala, discurso, no singular, mas tambm no plural, por gneros literrios, doutrinas e tratados, discusses, frases e palavras. Simultaneamente, o termo tambm se relaciona ratio enquanto formalizao racional (e)gw de\ bou/lomai logismo/n tina tw=i lo/gwi do/uj, 2, eu quero, dando lgica ao discurso) e enquanto proporo (to\n au)to\n de\ lo/gon e!xei h# te tou= lo/gou du/namij pro\j th\n th=j yuxh=j ta/cin, h a mesma relao entre poder do discurso e disposio da alma que entre dispositivo das drogas e natureza dos corpos 14). Enfim, o lo/goj, tanto aquele que Grgias apresenta quanto o que pde persuadir Helena, os dos poetas e dos orculos, os dos meteorologistas, dos oradores e dos filsofos, um soberano: conforme Chantraine3, duna/sthj quem tem o poder de

    3 Dictionnaire de la Langue Greque de Pierre Chantraine, em que me baseei para tudo que se segue.

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    CAssin, b. A perFormAnCe Antes do perFormAtivo, ou A terCeirA dimenso...

    agir em geral, e principalmente o poder poltico, como Zeus (Sfocles), os chefes de uma cidade (Herdoto, Plato), um prncipe ou um rei (Tucdides). A palavra antes de mais nada poder de agir.

    Apotelei=: este o primeiro verbo que define esse poder de agir. composto de tele/w, alcanar, levar a termo, realizar uma obra, uma empreitada, uma ao, em conformidade com a ambiguidade de te/loj, o fim enquanto termo, objetivo, e de a)po/ que refora a concluso de algo at o fim, exatamente como o per de performa. Poderamos vert-lo para completariii, mas eu escolhi performa para fazer entender o que nos interessa.

    1Erga: o que performado. O termo, da mesma raiz de work, participa de dois grandes sistemas de oposio: ao / inao (em Hesodo, por exemplo), e ato / palavra, palavra vazia (tanto no singular quanto no plural, de Homero a Tucdides, passando pelos tragedigrafos). Essa oposio tradicional entre a palavra e o ato, entre o verbal e o real, evidentemente o que a nossa frase de partida pe em curto-circuito. Ela o faz no sem se beneficiar da amplitude do sentido de e1rgon, e do seu plural, obra, atividade, ocupao, trabalho, afazer, manobra, que ligam o real do ato e o real da obra: o lo/goj performa os atos/as obras mais divinas. Essa ambiguidade, de que no trataremos mais, parece-me acompanhar a questo da performance da mesma forma como ela se constituiu na Antiguidade, e mesmo sempre.

    Prossigamos na frase, para explicitar o ngulo de ataque:

    Du/natai ga\r kai\ fo/bon pau=sai kai\ lu/phn a)phelei=n kai\ xara\n e)nerga/sasqai kai\ e1leon e)pauch=sai.De fato, ele tem o poder de pr fim ao medo, afastar a tristeza, produzir a alegria, aumentar a piedade.

    Dois novos verbos devem ser incorporados ao dossi, confirmando o poder de agir do lo/goj. Du/natai: o dinasta tem o poder de, o poderoso pode. Pode fazer o qu? Aumentar ou diminuir paixes primeiras (pa/qhma, e1paqen 9). Um dos verbos que trata da ao de uma paixo mais notvel que os demais, e aparentemente pouco frequente: e)nerga/sasqai, mal tradu-zido por produzir a alegria (que, por sua vez, est longe de querer dizer xa/rij, a graa que verte Atena sobre a cabea de Ulisses para que ele mostre em sua fora e sua beleza, o favor e o reconhecimento, o prazer e o deleite); esse termo retoma e1rgon, o ato/a obra que a linguagem performa enquanto ato; na verdade, e)rga/zomai (aqui em composio com a)na/, talvez no sentido de produzir de forma novaiv, ou de fazer subir a alegria) j por si s vertido para to perform no dicionrio Liddle Scott Jones. A alegria uma das performances mais divinas que o lo/goj realiza.

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    Eis a questo que eu gostaria de propor agora: em que tudo isso que foi descrito excede a retrica? No podemos simplesmente desdobrar a primeira frase sobre a segunda, a segunda sobre uma terapia da alma, subjetiva, e o todo sobre uma funo persuasiva de tipo retrico? Enfim, a ao da linguagem no se confunde com a retrica? No desse modo que se pensa habitualmente a cada vez que um filsofo l um sofista?

    Eu gostaria de testar precisamente um outro ponto de vista, utili-zando a noo de performance. Da minhas tradues. O que est em jogo, que se mostrou com toda clareza quando reli How to do things with words, o estatuto da retrica. Direto ao ponto: ser que se faz necessrio contarv dois em matria de discurso, ou se deve contar trs?

    As questes logo se encadeiam. Qual a identidade do terceiro termo? Para a filosofia, o terceiro, o intruso, a logologia sofstica4,vi, e a filosofia faz inexistir esse terceiro termo na medida do possvel em seu benefcio e em benefcio da retrica, que ela assujeita. Para Austin, o terceiro termo a retrica, que aparece como que de imprevisto, mas para quem ele tenta garantir um lugar entre o ilocucionrio, que ele inventa, e o locucionrio, que ele circunscreve. A filosofia grega e Austin no com-partilham as mesmas evidncias, mas so ambos confrontados com uma terceira dimenso da linguagem diz-menso para, com Lacan, colocar ortograficamente os pontos nos is5.

    A dupLA CApturA FiLosFiCA: A soFstiCA A retriCA e A retriCA A FiLosoFiA

    Contar dois a que a filosofia nos habituou. Quando falamos, podemos falar de algo ou falar a algum, com um ou no exclusivo, evidentemente. Falar de algo, desvelar, descrever, demonstrar, na maior parte do mbito da filosofia, da mesma maneira que da ontologia e da fe-nomenologia. Falar a, persuadir, causar efeito sobre o outro, do mbito da retrica. Do ponto de vista da philosophia perennis, no h terceira di-menso da linguagem.

    Por consequncia, a prpria segunda dimenso aspirada pela primeira.

    Testemunhamos, na verdade, um desdobramento duplo. De um lado, aquilo que poderia exceder a retrica, a saber, algo como a perfomance sofista arraigada na linguagem enquanto ato, desdobrado sobre a retrica.

    4 Sobre o termo logologia, eu me permito remeter a LEffet sophistique (CASSIN, 1995), em particular p. 113-117.

    5 Le mieux est que je fasse um effort et que je vous montre comment je lcris: dit--mension. [ melhor que eu faa um esforo e mostre a vocs como eu escrevo: diz-menso.] Lacan, 1976, p. 42.

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    De outro, a retrica se torna, mais ou menos tranquilamente, assunto da filosofia. A terceira dimenso, aquela que poderia servir para esboar qual-quer coisa como a sofstica, apropriada, junto com a retrica, pela filosofia normal, normatizada, normativa, e o fluxo pontencialmente potente, ativo e autnomo do ato lingustico se encontra agora domesticado pela ontologia.

    Pode-se descrever muito precisamente dois pontos de desdobra-mento.

    Primeiro ponto: a sofstica a retrica. O Grgias de Plato institui essa equivalncia como evidncia de partida, mas deixa de mencion-la no restante do texto. Grgias inquire Scrates , diga-nos voc mesmo como, de que arte, devemos lhe chamar sabedor [au)to\j h(mi=n ei)pe\ ti/na se xrh\ kalei=n w(j ti/noj e)pisth/mona te/xnhj]. A resposta de Grgias: Th=j r(htorikh=j, w) Sw/kratej, da retrica, Scrates. Devemos ento chamar voc de orador? [Rh/tora a1ra xrh/ se kalei=n;] E um bom orador, Scrates (449a) [ )Agaqo/n ge, w) Sw/kratej]. A sofstica a retrica, e o sofista em pessoa quem o dissera. Mesmo se, de acordo com toda probabilidade e contra a aparncia tramada por Plato de um sempre j l da retrica, testemunhamos nessa mudana ao momento de inveno da palavra r(htorikh/ [sc.te/xnh], como alhures da palavra sofistikh/, pelo prprio Plato6.

    Segundo ponto: ora, a retrica assunto da filosofia. Isso verdade para Plato, j que o Grgias e sua retrica-sofista, operria da persuaso (peiqou=j dhmiourgo/j, 453a), no se compreendem seno submetidos ou transcendidos pelo Fedro, com a ascenso de uma retrica filosfica que se confunde, por sua vez, com a dialtica e visa a uma audincia de deuses7. A boa retrica, ento, a prpria filosofia. Do mesmo modo, pode-se susten-tar que com Plato a retrica desaparece, j que ela se confunde seja com a sofstica, quando retrica ruim, seja com a filosofia, quando boa retrica.

    Esse extremismo filosfico, que equivale aniquilao da retrica como tal, desde ento menos convincente que a perspectiva aristotlica, segundo a qual a retrica uma te/xnh, e mesmo uma e)pisth/mh toda par-te: sua funo prpria no persuadir como em Plato, mas enxergar os meios de persuadir que cada assunto comporta8 e ela deve fazer a teoria do persuasivo que convm a cada caso9. A retrica, antstrofe da dialtica10,

    6 Acerca dessa questo, remeto ao artigo muito convincente, a meus olhos, de Edward Schippa, Rhtorik, whats in a name. Toward a revised history of early greek historical theory (SCHIPPA, 1992, p. 2-15). Ele a desenvolveu de diversas maneiras, especialmente em The Beginning of Rhetorical Theory in Classical Greece (SCHIPPA, 1999).

    7 Permito-me remeter nesse ponto s anlises de LEffet sophistique (CASSIN, 1995, p. 414-423), que ento eu tratava via a leitura proposta por lio Aristides.

    8 Retrica, I, 2, 1355 b 10s: ou) to\ pei=sai e1rgon au)th=j, a)lla\ to\ i)dei=n ta\ u(pa/rxonta piqana\ peqi\ e3kaston.

    9 du/namij peri\ e3kaston tou= qewrh=sai to\ e)ndexo/menon piqano/n, ibidem, 1355b 25sq.10 a primeira frase da Retrica, 1354a1.

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    ora existe por si mesma sem dvida e pertence com todo direito ao Orga-non. A sofstica ser, nessa perspectiva, um simulacro da filosofia, ligado retrica enviezada por uma inteno ruim e mal conceituada, propondo uma srie de receitas ao invs de uma teoria e um mtodo. A sofstica no quer compreender que a retrica prescinde do regime discursivo geral que o apofntico, que o falar a e deve ser submisso ao falar sobre.

    Ora, essa submisso , acredito, o ponto crucial que determina a ancoragem filosfica, grosso modo at em Perelman e via a latinidade. A violncia do gesto pode ser lida no paradoxo a seguir, que Aristteles institui no incio de sua Retrica: A retrica til porque o verdadeiro e o justo so naturalmente mais fortes que seus contrrios11. Mas por que diabos haveria necessidade, ento, de algo como a retrica, se o verdadeiro e o justo so naturalmente mais fortes que o falso e o inquo? A meu ponto de vista, a nica resposta, no explcita, que a retrica deve ajudar a verdade que tenha uma fora natural maior, exatamente como a arte ajuda ou perfaz a natureza: assim, na Fsica, em certos casos, a arte alcana o que a natu-reza incapaz de atingir at o final e, em outros casos, imita12. A filosofia conta dois, falar sobre e falar a, mas que lembram aquilo que cai no colo de algum, sob o regimento da verdade que governa o falar sobre.

    Sem terceira dimenso: o falar como ato no entra numa conta como essa. O que mais poderia se aproximar disso, um le/gein lo/gou xa/rin, falar por falar ou pelo prazer de falar, radicalmente excludo pelo livro Gama da Metafsica13. H certos enunciados que para Aristteles es-capam do regime da verdade: assim a orao no verdadeira nem falsa. Mas nenhum enunciado escapa do regime do sentido que funda o princpio da no contradio, conforme a equao evidente segundo a qual falar dizer alguma coisa, dizer alguma coisa significar alguma coisa, uma nica coisa e a mesma coisa para si e para outrem. Ou, precisamente, aqueles que recusam a deciso do sentido e o princpio de no contradio so esses mesmos que Aristteles descreve como aqueles que falam por falar, os sofistas, que sustentam isso que pode ser uma linguagem enquanto ato. Esse redobramento do le/gein lo/gou xa/rin seria suscetvel a exceder no somente a verdade, mas tambm a persuaso, a fortiori, j que o falar a (a persuaso) regido filosoficamente pelo falar sobre (a verdade). Ou ainda,

    11 xrh/simoj de/ e)stin h( r(htorikh\ dia/ te to\ yu/sei ei)nai krei/ttw ta)lhqh= kai\ ta\ di\kaia tw=n e)nanti/wn, ibidem, 1355a 21-22, com um texto que no se exime de problemas (te/ge, om. to). Essa frase no deixa de relembrar o ttulo de Vaclav Havel: Lamour et la verit doivent triompher de la haine et mensonge (HAVEL, 2007).

    12 Fsica, II, 8,3 199 15s: me\n e)pitelei= a1 h( yu/sij a)dunatei= aperga/sasqai, ta\ de\ mimei=tai, onde se nota a proximidade com o vocabulrio de Grgias no Elogio (duna/sthj, a)potelei=, e)nerga/sasqai).

    13 Sobre esse ponto, ver La Dcision du sens (CASSIN; NARCY, 1998).

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    antecipando as distines austinianas, o poder autnomo da linguagem desse modo posto em prtica poderia ser assunto mais da fora que do efeito. Mas essa logologia remetida por Aristteles para fora do sentido, semelhante a um lo/goj de planta, isto , um no lo/goj, ao mesmo tempo em que so excludos da humanidade aqueles que, como Protgoras, mantm sua recusa ao princpio de no contradio.

    Evoco o regime normal do sentido, o regime normatizado por Aristteles, que nos determina ainda hoje que ns saibamos e desejemos ou no, porque sobre essa base que se sobressai a inveno de Austin, em seus desvios e ambiguidades.

    ii. LoCuCionrio, iLoCuCionrio, perLoCuCionrio

    A third kind oF ACt: que terCeiro?

    Let us contrast both the locutionary act and the illocutionary act with yet a third kind of act14. A inveno austiniana consiste em contar trs. Meu propsito equivalente: quais so os pontos de similaridade entre o nmero trs sofstico, refreado pela filosofia, e o nmero trs inventado por Austin e desconhecido, diz ele, pela filosofia que lhe antecedeu? Qual a relao entre a logologia e o ilocucionrio? A questo que eu coloco retrgrada, como a fora da verdade segundo Nietzsche: em que Austin pode contribuir para esclarecer aquilo que, na Antiguidade, excede a filosofia e a retrica, ao menos a retrica pensada filosoficamente, i.e. desdobrada sobre a filosofia?15 Dito de outra maneira: como pensar a performance antes do performativo? As reflexes que se seguem no fazem nada alm de abrir esse canteiro.

    Mas, para formular melhor a questo entre logologia e ilocuo, necessrio de incio apontar uma diferena essencial: a ordem de apario dos protagonistas; antigos: (1) a filosofia, (2) a retrica, depois (3) a sofstica,

    14 How to do things with words (AUSTIN, 1980, p. 101). A traduo francesa Quand dire, cest faire (AUSTIN, 1970), foi feita com base na primeira edio inglesa de 1962 (da Oxford University Press). Eu recorrerei traduo francesa existente ou/e segunda edio inglesa, com eventualmente uma traduo de meu punho.

    [N.T. A traduo em portugus se baseia na verso da autora, vertendo para o portugus as citaes em francs, citadas pela autora, bem como vertendo as prprias tradues da autora.]

    15 O Centre Lon Robin consagrou seus dois ltimos seminrios anuais (2007-2009) temtica Definies filosficas e definies retricas de retrica. Creio, de minha parte, que a retrica pensada retoricamente totalmente distinta da retrica pensada filosoficamente, seu nome mais exato muito provavelmente sofstica.

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    que a filosofia renega (assimila ou expulsa); modernos: (1) o locucionrio, (2) o ilocucionrio, (3) o perlocucionrio. Porque ele a terceira espcie de ato para Austin, e evidentemente no o ilocucionrio, mesmo que seja o ilocucionrio que tome sua ateno. impressionante constatar que o perlocucionrio, que, como veremos, funciona como o nome austiniano da retrica, aparea somente depois da evidncia do locucionrio e da desco-berta do ilocucionrio16. O que para a filosofia vem em segundo, como bem conhecido e dominado (a retrica), o que vem em terceiro na economia austiniana, como um terceiro a se re-explorar: eu tomo isso como um convite a recolocar em circulao o estatuto da retrica.

    A relao que convm questionar , portanto, a relao entre, do lado grego, falar de, falar a, falar por falar, ou seja, adotando a terminologia corrente da filosofia: filosofia, retrica, sofstica, e do lado austiniano, locucionrio, perlocucionrio, ilocucionrio. Minha pergunta se baseia nos limites da analogia entre essas triparties. Proponho organizar as ideias ao modo do quadro seguinte, quadro que todo o restante do texto dever questionar e explicitar. J compreendemos que a ordem das colunas traz a indicao do ponto de vista: a ordem vertical (1 filosofia, 2 retrica, 3 sofstica) na verdade uma ordenao filosfica e no austiniana. Ela indica que para ns, filsofos e historiadores da filosofia, o logolgico/o ilocucionrio que esto em questo.

    1 2 3Locucionrio Perlocucionrio Ilocucionrio

    falar de falar a performarFilosofia Retrica Sofstica

    sentena normal convencer, persuadir, impedir, e

    mesmo surpreender ou induzir ao erro

    Eu me desculpo

    O gato est no tapete A sesso est aberta

    [He obeys] I got him to obeyI ordered him and he

    obeysmeaning effects strenght, force

    (sense and reference) (producing effects) (bound up to effects)of saying by saying in saying

    Truth Persuasion Felicity

    As trs dimenses da linguagem

    16 Notre intrt, dans ces confrences, va essentiellement lillocutoire, dont nous voudrions faire ressortir loriginalit. On a constamment tendance en philosophie lescamoter au profit des deux autres. Il en est pourtant distinct. Austin, trad. fr. p. 115 (cf. ingl. p. 103).

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    A revoLuo iLoCuCionriA?

    Austin desperta a filosofia de seu sono apofntico. Partamos desse despertar que, a crer em Austin, est em curso de produzir uma revoluo na filosofia: Se algum quiser chamar essa a maior e mais salutar revolu-o de sua histria, pensando bem, no uma pretenso extravagante17. A revoluo consiste em isolar as enunciaes (utterances) que so gramatical-mente afirmaes (statements)18, que no so sentenas nonsense, que no constatam, que no descrevem nem relatam nada, que no so verdadeiras nem falsas, e que so tais que a enunciao da frase a execuo (ou parte dela) de uma ao, que normalmente no saberamos descrever como, ou somente como, o ato de dizer alguma coisa [as, or as just, saying some-thing]19. H a algo de excepcional, a tambm, no que diz respeito norma ontolgica aristotlica: uma afirmao (no uma questo nem uma orao) que, sem carecer de sentido, carece de verdade. verdadeiro, contudo, aris-totelicamente verdadeiro, que toda questo de fico, por meio de qualquer enunciado sobre um bode-cervo, sentido sem referncia, suscetvel a se perder nessa caracterizao se a descrio pra por a, e Austin mesmo no se deter muito tempo nessa questo embaraosa20.

    Os exemplos, previne Austin, so decepcionantes: pontuais, pequenos, excepcionais, o sim dos noivos, eu deixo meu relgio ao meu irmo, eu batizo esse barco de Queen Elizabeth, eu aposto seis pence que chover amanh Contudo, resulta que eles tm em comum uma propriedade caracterstica muito slida: enunciar a frase no nem descre-ver o que fao nem afirmar que o fao, faz-lo, it is to do it21. O ato de

    17 Austin, trad. fr. p. 39 (cf. ingl. p. 4).18 No me agrada traduzir statement por affirmation: uma afirmao no desgina uma

    frase negativa, uma negao, em linguagem ordinria, posto que um statement pode muito bem ser negativo. O gato no est no tapete um statement, que state um estado de coisas, e corresponde, alm disso, a um enunciado, termo que certos tradutores reservam para utterance (ver a introduo aos Ecrits philosophiques (AUSTIN, 1994, p. 17-19)). Observamos ainda 1) que uma ambiguidade desse gnero j era grega: apophansis, declarao, tem como par apophasis, embora uma das duas entradas de apophasis no dicionrio signifique tambm declarao, a outra entrada de apophasis indiscernvel significa negao (e isso no deixou de causar problemas na interpretao no Organon de Aristteles); 2) que, quando statement traduzido por enunciado e utterance por enunciao, em especial nas ltimas conferncias, nada nisso que diz Austin garante que a diferena statement/utterance seja equivalente diferena enunciado/enunciao nem ainda, verdade, que a diferena language/speech equivalha ao trip langue/langage/parole: a traduo no faz milagres.

    19 Austin, ingl. p. 5, cf. fr. p. 40.20 Para uma tipologia do sentido aristotlico que d lugar fico, eu me permito

    remeter a La Dcision du sens, (CASSIN; NARCY, 1998, p. 58), e ao seu desenvolvimento em LEffet sophistique (CASSIN, 1995, p. 333-336). [N.T. Sugerimos que se consulte O Efeito Sofstico (CASSIN, 2005, p. 107-111), a respeito do problema do bode-cervo.] O lugar da fico, e mais em geral da literatura, certamente um n da reflexo contempornea sobre Austin (ver, por exemplo, Jacques Derrida, Signature, vnement, contexte (1972, p. 365-393).

    21 Austin, ingl. p. 6, cf. fr. p. 41.

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  • revistA LetrAs, CuritibA, n. 82, p. 11-46, set./dez. 2010. editorA uFpr.issn 0100-0888 (verso impressA); 2236-0999 (verso eLetrniCA)

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    CAssin, b. A perFormAnCe Antes do perFormAtivo, ou A terCeirA dimenso...

    fala, entende-se, no o ato de falar, mas o ato em que se fala, o ato que se enuncia. ele que atuado, executado, quando o enunciamos. Ou, como diz perfeitamente Benveniste ao comentar a conferncia de Austin em Royau-mont: O ato se identifica portanto com o enunciado do ato. O significado idntico ao referente, e, ainda mais claro: O enunciado o ato22.

    Algumas notas so necessrias para desobstruir o terreno comparativo. visvel logo de incio, por um medievalista ou um jurista, em

    todo caso, que a inveno austiniana no assim to nova nem to pouco teorizada quanto parece ao mencionar. Seu exemplo do testamento ou do ba-tismo testemunham isso, como todas as frmulas de sacramentos, promessas e leis. O ato de fala intervm desde sempre na histria do pensamento, de maneira ora crucial ora marginal. Faz parte do jogo dessa coletnea limitar, com relao norma apofntica, os domnios da exceo, que so o domnio mgico e o sagrado, desde a criao divina at a frmula sacramental, o domnio poltico-jurdico, com o direito romano, o domnio literrio, com o estatuto do poeta e do auctor.

    visvel, igualmente, que os exemplos austinianos, sem grande relevncia, no tm muito a ver, como afirmao de uma terceira dimenso da linguagem, com a amplitude da dinastia do logos de que compartilho e que, em todo caso, eles no podero se confundir com ela.

    Para buscar compreender melhor a relao entre o extremo que o performativo e a noo mais vasta, vaga e genrica, de performance, eu gostaria de comear com algumas observaes sobre a famlia termino-lgica dessas palavras.

    Em seguida, eu gostaria de fazer a comparao entre essas tercei-ras dimenses, no diretamente, mas indiretamente, atravs da diferena entre aquilo que elas no so (i.e. as outras duas dimenses respectivas). E mostrar como a dificuldade, at para o prprio Austin, de traar uma fronteira ntida entre perlocucionrio e locucionrio de um lado, e entre per-locucionrio e ilocucionrio de outro, que o leva a propor uma noo mais vasta e mais genrica: a noo de speech-act, digamos ato de fala, muito mais prxima de performance.

    Retomarei, ento, a logologia sofstica em dois pontos muitos precisos: na maneira como ela opera uma leitura da filosofia em termos de speech-act, com o Grgias leitor de Parmnides; e na maneira em que ela excede, ao mesmo tempo, a filosofia ou o regime locucionrio normal, e a retrica ou o perlocucionrio, com a epideixis, que no descreve em termos de verdade, que no produz mais s um efeito de persuaso, mas realiza com felicidade aquilo que chamo de efeito-mundo.

    22 La philosophie analytique et le langage (BENVENISTE, 1963, p. 274).

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    To perform performance e performaTive, per-FormAtivo e per-LoCuCionrio

    Performative /performativo uma inveno de Austin, aclimatada ao francs pelo prprio Austin j no Colloque de Royaumont23, e em breve justificado e apropriado por E. Benveniste: J que performance j est em uso, no haver dificuldade em introduzir performativo no sentido particu-lar que ele toma aqui. De resto, no se faz nada alm de trazer de volta em francs uma famlia lexical que o ingls tomara do francs antigo24.

    O ingls, conforme Kleins Comprehensive Etymological Dictionary of English Language, teria forjado performance a partir do velho francs parfournir (do latim perfurnire) ou/e de parformer, antes que o francs o emprestasse ao menos trs vezes, a crer no Dictionnaire Culturel de la Langue Franaise de Alain Rey: em 1869, por analogia com o vocabulrio dos turfistas, o termo significa a maneira de desenvolver um assunto, de executar uma obra em pblico; em 1953, ele significa o resultado individual da realizao de uma tarefa; em 1963, ele se ope, na esteira de Chomsky, competncia. um termo bilngue e em movimento, que rene o esporte (performance-record), a tcnica (performance-rendimento de uma mquina), a psicologia (teste de performance), a lingustica (performance/competncia) e a arte moderna (performance-happening sem esquecer a apresentao teatral, acepo possvel em ingls). difcil no acrescentar que hoje a performance ocupa os bastidores na Frana, com a avaliao e a cultura do resultado, com o risco de debochar do trabalho25.

    Quanto a performatif, acrescenta simplesmente Benveniste, o termo regularmente formado, como rsultatif, prdicatif, ou como o outro termo austiniano, o constatif.

    O que me interessa, contudo, a diferena entre o nome e o adjetivo substantivado. S o adjetivo performative (sentence ou utterance, de que fazemos elipse, como em rhetorik ou sophistik ) inventado e marcado por Austin; quanto ao verbo to perform e ao substantivo perfor-mance, no fcil de distinguir do significado comum e do significado j marcado. Tenho uma tendncia a pensar (mas meu inventrio no sistem-

    23 Performatif-constatif (AUSTIN, 1962, p. 271-281).24 La philosophie analytique et le langage (BENVENISTE, 1963, nota 4 p. 270).25 Assim: Eu vejo na avaliao a recompensa da performance. Se no h avaliao,

    no h performance (Discurso do Sr. Presidente da Repblica Francesa, ocasio do lanamento da reflexo por uma estratgia nacional de pesquisa e inovao, Elyse, 22 de janeiro 2009), ou: A cultura do resultado e da performance sempre esteve no centro de minha ao. No devemos ter nenhum tabu em relao aos nmeros e eu sempre preconizei a maior transparncia (Discurso do Sr. Presidente da Repblica Francesa, em Reunio com os principais responsveis pela segurana, pela cadeia penal e pela Educao nacional, 28 de maio de 2009).

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    tico) que o significado usual ingls que usado regularmente, mesmo que ele no possa ser contaminado pela carga terminolgica do adjetivo. Assim, l-se no cap. VIII, em que aparece a terceira espcie de ato: We shall call the performance of an act of this kind the performance of a perlocutionary act and the act performed [] a perlocution26. A performance claramente indiferente ao tipo de ato performado (Austin, em outro momento, conclui a frase anterior com a expresso: the performance of the locutionary or the illocutionary act).

    The performance of a perlocutionary act. Gostaria de apontar um caminho fazendo um redemoinho terminolgico que aparentemente sou a nica a experimentar, j que Austin por sua vez no d sinal de ter sido afetado por isso: no se deve confundir o per- de perlocuo com o per- de performativo. Os dois no tm nada a ver. O per de performativo, como aquele de performance, denota a realizao de algo at o fim (apo-telei na frase de Grgias), enquanto que o per de perlocuo denota o meio, a saber o by de by saying27: por meio do dizer, e no no prprio dizer (in saying caracterstico do ilocucionrio ou performativo), que age o perlocu-cionrio. No per-formativo, o enunciado o ato em si, no per-locucionrio, o enunciado o meio de agir e produzir um efeito. Contudo, quando eu escolhi o vocbulo performance para traduzir epideixis (terminologia de Plato sobre a discursividade dos sofistas, sobre a qual voltarei mais longamente), desde o Efeito sofstico, ele me parecia propcio para introduzir na retrica alguma coisa da ordem da Wirklichkeit fazendo, se se pode dizer, uma confuso dos prefixos per.

    Vejamos agora como ligar termo a termo o antigo e o novo.

    LoCuCionrio/ApoFntiCo

    Acredito que podemos aceitar sem muito dano a equivalncia entre locucionrio ou constativo austiniano e o falar sobre ou apofntico aristotlico. Nos dois casos, ocorre o regime normal do discurso, esse que a filosofia pensa e pratica, ligado, ao menos na antiguidade, ontologia e fenomenologia, que se pode designar por reduo como iluso descritiva e

    26 Ingl. p. 101. No encontramos a famlia terminolgica na traduo francesa, que verte to perform an act em produire un acte (produzir um ato), e a frase citada em Nous appellerons un tel acte perlocutoire, ou une perlocution (p. 114) (Chamaremos tal ato de perlocucionrio, ou uma perlocuo). Essa no traduo no tem nada de falso, ela revela que performance e perform so no marcados.

    27 Austin com certeza perfeitamente consciente desse sentido para o perlocucionrio; pois: Ns diremos por seu ato de B-ar, ele C-ou, preferentemente a B-ando. Eis porque chamamos C um ato perlocucionrio, e o distinguimos do ilocucionrio. (fr. 118/107).

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    que Austin considera em princpio como aquele a que os filsofos dedicaram ateno exclusiva28. Um normal statement um logos apophantikos: o gato est no tapete corresponde a Scrates branco. Ambos dizem alguma coisa, legein ti para Aristteles e say something para Austin, e mesmo dizem algo sobre alguma coisa. Eles tm em ambos os casos uma relao com meaning, com smainein, com a significao, isto , com o sentido e com a referncia, e eles so passveis de verdade e falsidade, true/false, althes/pseudos. Logo, pode-se sobrepor sem problemas a descrio que nos d Aris-tteles para enunciado proposicional no incio do De Interpretatione (cap. 1 e 4) e a descrio que nos d Austin para statement no incio do How to do thing with words, descrio rpida mas que ser revista, explicitada ou completada mais de uma vez na sequncia do texto.

    perLoCuCionrio/retriCo, ou o evitAmento dA retriCA

    No muito difcil no aceitar a equivalncia entre perlocucionrio e retrica, dado certo nmero de singularidades. J sublinhamos uma pri-meira diferena quanto apario da noo, como terceiro termo, posterior ao constativo-apofntico e ao performativo. De fato, somente na oitava conferncia oitava de doze, ento no ltimo terovii , intitulada Locu-tionary, Illocutionary, and Perlocutionary Acts, que Austin introduz nossa terceira espcie de ato.

    A retrica como terceira, que seja, apesar de a palavra retrica no aparecer nem nesse captulo nem, salvo erro de minha parte, onde quer que seja em todo o livro. Todas as suas caractersticas a esto, mas no o nome. Ora, Austin, grande conferencista perante a Aristotelian Society, com certeza no desconhecia Aristteles, que, junto com Kant, lhe serviu para desenhar os contornos da filosofia transmitida por uma tradio que ele no considera continental. H a qualquer coisa da ordem do evitamento. Ao que me permitam uma observao. Se tenho tanto prazer em ler Austin, por-que, assim como Aristteles, ele no esconde nada dos pontos que possam contrariar a mquina que ele arquiteta, mas ao contrrio: explicit-los o faz muito frequentemente avanar. tambm por isso que o que ele no cogita dizer quando se espera que o faa, seu ponto cego se preferirmos, algo do mais alto interesse para uma interpretao e uma sequncia.

    28 Os filsofos supuseram por muito tempo que o papel de uma afirmao [the business of a statement] no ia alm de descrever um estado de coisas ou de afirmar um fato qualquer [state some fact], o que ela no poderia fazer sem ser verdadeira ou falsa [which it must do either truly or falsely] (cap. 1, trad. fr. p. 37 /ingl. p. 1). Ou, depois da seachange, remetendo a essa mesma iluso descritiva da primeira conferncia: podemos afirmar que os filsofos reduziram por muito tempo todos os problemas a problemas de uso locucionrio (VIII conf., trad. fr. p. 113, ingl. p. 100).

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    O evitamento da palavra retrica provm, acredito, de um des-conforto definicional ou, mais exatamente, de uma incomensurabilidade. A retrica, bem como a filosofia ou a sofstica, no um statement. Mas necessrio dar mais um passo: se h um statement normal ou prprio filo-sofia, i.e. o constativo em oposio ao performativo, no h statement prprio retrica. Austin no d jamais um exemplo de perlocucionrio, anlogo a o gato est no tapete para o locucionrio tradicional, ou a a sesso est aberta para o ilocucionrio revolucionrio (esse ltimo gnero, porm, d lugar por sua vez a uma srie de levantamentos, distines e taxonomias, tanto voluntrias quanto problemticas, sempre retomadas com energia, e todas atadas a uma srie de exemplos). Para o perlocucionrio, ao invs de um statement passvel de citao, ns encontramos constantemente algo como uma descrio de statements ou, mais exatamente, uma descrio de atos perlocucionrios: Thirdly, we may also perform perlocutionary acts: what we bring about or achieve by saying something, such as convincing, persuading, deterring, and even, say, surprising or misleading29. Embaixo do chapu da distino-chave of saying, in saying, by saying, reencontramos dentro do by saying os traos tradicionais caractersticos da retrica peithous dmiourgos, a operria da persuaso de Grgias e, como tal, capaz de enga-nar, mas incapaz de qualquer enunciado prprio. A impossibilidade de definir por traos intrnsecos um enunciado ou uma enunciao perlocucionria corroborada pelo fato de que claramente, qualquer, ou quase qualquer, ato perlocucionrio, se as circunstncias forem oportunas para tal, suscetvel a ser produzido, com ou sem premeditao, por qualquer enunciao, e em particular por uma enunciao pura e simplesmente constativa (supondo que tal criatura exista)30. Assim, ao observar apofanticamente que l est o leno de sua mulher, eu produzo um efeito perlocucionrio maior: eu lhe persuado que ela est traindo voc.

    Essa instabilidade extensiva est ligada definio complexa dos atos perlocucionrios, que no se reduzem a um nico statement nem ao sta-tement apenas. Eles, na verdade, empregam no apenas uma argumentao e uma discursividade estendida no tempo, mas a recepo por uma audincia: atos que ns provocamos ou realizamos atravs do fato de dizer uma coisa31. Esse ou, que liga um ato (ato que ns realizamos) e uma consequncia sobre outrem (ato que ns provocamos), administra, para o bem e para o mal, a

    29 IX, p. 109, cf. fr. 119: Ns definimos os atos perlocucionrios: atos que ns provo-camos ou realizamos pelo fato de dizer uma coisa. Exemplos: convencer, persuadir, impedir e mesmo supreender ou induzir ao erro (os itlicos em ingls so de Austin) [N.T. citao da autora da traduo francesa].

    30 Ingl. p. 110, traduo da autora, cf. fr. p. 120.31 Trad. fr. p. 119: what we bring about or achieve by saying, ingl. p. 109.

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    diferena entre aquele que fala e aquele que ouve, caracterstica da retrica enquanto falar a, bipolarizada entre um orador e uma audincia. O statement no deve ser, portanto, a unidade de medida que convm retrica.

    O sea-change

    De certa maneira, Austin trata a retrica/o perlocucionrio como faz a filosofia: ele lhe atribui uma vocao para se esvaecer. Observaremos, por outro lado, que o perlocucionrio no aparece (fim da conferncia VII, depois VIII, IX, X) seno para desaparecer (ele no est mais em questo nas duas ltimas conferncias). Contudo, a introduo do perlocucionrio tem um papel essencial: papel de catalisador para o clebre sea-change, a transformao marinha32, que permite acessar a teoria geral dos atos do discurso. Hannah Arendt utiliza s vezes a mesma expresso, em com-parao frase de Ren Char Nossa herana no precedida de nenhum testamento. Tanto Austin quanto Arendt consideram que o fio da tradio se rompeu33. Essa transformao marinha, naturalmente no dialtica, no deixa nada subsistir mas tambm no faz nada desaparecer, como diz Ariel em The Tempest (I, 2): Full fathom five thy father lies / Of his bones are coral made / Those are pearls that were his eyes / Nothing of him that doth fade / But suffer a sea-change / Into something rich and strange34.

    O sea-change designado como tal somente na XII e ltima confe-rncia, e sobriamente definido como aquilo que tem sucesso em passar da distino performativo-constativo para a teoria dos atos do discurso (150, cf. fr. 152). Mas ele remete confuso (tangle) evocada no final da VII confe-rncia, que obriga a adotar um novo comeo (a fresh start to the problem):

    It is time then to make a fresh start on the problem. We want to reconsider more generally the senses in which to say something

    32 p. 150 (cf. fr. p. 152, passage radical). necessrio observar uma primeira ocorrncia da expresso sea-change, acerca do uso

    parasita ou do atrofiamento da linguagem, e em particular do performativo, na repetio ou citao (por um ator, em um poema, mas tambm em geral), claramente apontado por Derrida no artigo mencionado. Para Austin, um enunciado performativo ser cru ou vazio de uma maneira particular se, por exemplo, formulado por um ator em cena ou introduzido em um poema ou proferido em um solilquio. Mas isso se aplica de maneira anloga a qualquer enunciado que seja: trata-se de uma transformao marinha devido circunstncias especiais (ingl. p. 22, cf. fr. p. 55 reviravolta). Veja tambm Stephen Mulhall Sous leffet dune transformation marine: crise, catastrophe et convention dans la thorie des actes de parole, (MULHAL, 2004, p. 305-323).

    33 o movimento de La brche entre le pass et le futur (ARENDT, 1972, p. 12-27).34 H cinco braas de profundidade jaz teu pai, de seus ossos so feitos os corais, as

    prolas so o que eram seus olhos, nada dele se esvai, mas ele sofre uma transformao marinha em algo rico e estranho.

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    may be to do something, or in saying something we do something (and also perhaps to consider the different case in which by saying something we do something). Perhaps some clarification and definition here may help us out of our tangle. For after all doing something is a very vague expression. When we issue an utterance whatsoever, are we not doing something?35

    ento a ltima conferncia, intitulada Locutionary, illocutionary and perlocutionary acts, que opera o sea-change efetivamente. O aspecto nomottico sublinhado: Austin batiza o ato locucionrio (blur, 94/109), nomeia o ato ilocucionrio (call, 98/112)36, e introduz a terceira espcie de ato que ele nomeia perlocucionrio (call, 101/114). Ele distingue ento nesse momento trs, e no duas, entidades, que ele inclui no gnero dos atos de discurso; enfim ele os define de maneira harmoniosa e comensurvel: to say something (94/fr. 109) se torna um act of saying something, um ato de dizer alguma coisa (100/fr. 113), simtrico ao by saying caracterstico do perlocucionrio e ao in saying do ilocucionrio.

    Vejamos abaixo, para organizar os conceitos, uma esquematizao do sea-change.

    1 taxonomia sea-change 2 taxonomia

    Constativo/Performativo Locucionrio/Ilocucionrio/Perlocucionrio

    (cap. 1-8) (cap. 8-12)

    statements, sentences speech-acts

    A transformao marinha

    Contudo, olhando de perto, nada est resolvido. A interveno do perlocucionrio faz somente com que o ilocucionrio, objeto central de Austin, passe de uma dificuldade a outra. A primeira dificuldade distinguir estritamente, luz da primeira taxonomia, entre performativo e constativo.

    35 Fr. p. 107, ingl. p. 91s.36 Notemos que a palavra illocution apareceu uma nica vez anteriormente, em uma

    nota da primeira conferncia, visivelmente adicionada para remeter elaborao posterior (Formular uma enunciao constativa [] proferir uma afirmao. Formular uma enunciao performativa , por exemplo, fazer uma aposta. Ver mais adiante, acerca das ilocues fr. n. ***, p. 41, ingl. n. 2, p. 6). Constatamos que o locucionrio que fornece o epnimo aos demais (il- e per-). Em contraparte, a noo de ato de linguagem, pensada a partir do performativo e no do constativo, que fornecer o gnero comum.

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    Da a insero da terceira espcie de ato, o perlocucionrio, como recurso para resolver a dificuldade e a transformao marinha. Ora essa transfor-mao que produz uma nova taxonomia de trs elementos locucionrio, ilocucionrio, perlocucionrio resulta em uma segunda dificuldade: dis-tinguir estritamente ilocucionrio de perlocucionrio sem mencionar que o locucionrio j no est mais realmente distinto dos demais.

    Ns voltaremos a essas dificuldades.Mas necessrio sublinhar com nfase que, se nada resolvido,

    tudo transformado. Pois o sea-change fez a passagem de uma concepo em termos de statements ns vimos que o statement no convm ao perlocucionrio, e talvez seja a seu efeito autntico de catlise a uma concepo em termos de speech-acts, com um novo foco de interesse. The total speech-act in the total speech-situation is the only actual phenomenon which, in the last resort, we are engaged in elucidating, O ato de discurso integral na situao integral , por fim, o nico fenmeno que procuramos de fato elucidar37.

    speech-acT e perFormAnCe

    Com a passagem para os speech acts, ganhamos um outro ponto de vista sobre a relao entre performance e performativo, e uma apreciao da relao entre ato de linguagem e linguagem enquanto ato. Eu gostaria de sublinhar o que muda ento.

    a) Locucionrio e iLocucionrio: verdade e feLicidade

    Partamos da distino constativo/performativo. Ela retoma a dis-tino verdade/felicidade.

    A verdade da enunciao constativa Ele corre depende do fato de que ele corre. Em contraparte, [] a felicidade da enunciao performativa eu me desculpo que faz com que eu me desculpe [its the happiness of the performative I apologize which makes it the fact Im apologizing]; e depende da felicidade da enunciao performativa Eu me desculpo para que eu obtenha sucesso em me desculpar. Eis um modo de justificar a distino performativo--constativo a distino entre fazer e dizer38.

    37 Incio de XII, p. 148, cf. fr. p. 151. Essa uma das morals a se tirar das anlises austinianas.

    38 Fr. p. 75, ingl. p. 47.

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    Aristteles o formula da mesma maneira para o constativo: porque a neve branca que a neve branca uma proposio verdadeira. Contudo, a diferena nos parece considervel entre a ponta ( porque eu falo eu me desculpo que eu me desculpo), e a logologia sofstica, com a amplitude retrica de seu efeito-mundo; por isso que nos parecia to difcil a analogia stricto sensu entre apofntico filosfico/performance sofstica de um lado, e constativo/performativo de outro.

    Ora, essa diferena que se satisfaz quando a separao entre constativo e performativo se confunde. Como menciona muito adequadamente Cavell39, o que produz a crise da distino dual inicial constativo/performativo o fato de que a distino verdade/felicidade no possa se manter tal e qual. H, em minha percepo, duas maneiras de descrever essa confuso. Aquela de Cavell, que se apoia sobre o que vem antes do sea-change, e faz sobressair a felicidade sobre a condio de verdade: Ns somos desse modo levados a afirmar: para que uma enunciao performativa seja feliz, certas afirmaes devem ser verdadeiras40. Austin constata ento, como aponta Cavell, que existem casos em que h risco de ver se fundir a distino inicial e provisria entre constativos e performativos41. E Cavell transforma essa crise em vitria:

    De minha parte, eu no tenho a inteno de negar essas descries, mas antes sublinhar que esse momento crtico representa para Aus-tin uma vitria significativa, pois ele mostra que os performativos tm a mesma ligao inevitvel com os fatos, que o processo de avaliao o mesmo42.

    Eu gostaria de enxergar a vitria em outro lugar, baseando-me no que vem aps o sea-change. De fato, ns poderamos dizer que realizar um ato locucionrio em geral produzir tambm e eo ipso um ato ilocucio-nrio assim que proponho que o chamemos43. Isso porque a doutrina

    39 Stanley Cavell, La passion (CAVELL, 2001, p. 335). Nesse artigo, Stanley Clavell se prende a uma reavaliao do perlocucionrio. Trata-se, para ele, de pens-lo como enunciao passional [passionate utterance] em contraste ao carter convencional e legal do performativo: Uma enunciao performativa uma oferta de participao ordem da lei. E talvez possamos acrescentar: uma enunciao passional um convite ao improviso no caos do desejo (p. 337). Certamente, paixo e retrica esto associadas, como bastaria atestar com a frase do Elogio de Helena de que partimos. De modo que, diz Cavell, minha ideia de enunciao passional ento, em resumo, um desejo de perfor-mance ( ibid., p. 381). Mas Cavell no demonstra interesse pela diferena performance-performativo que me preocupa aqui.

    40 Austin, fr. p. 73, citado por Cavell, ibid., p. 352.41 Austin, fr. p. 80.42 Cavell, ibid., p. 355.43 Fr. p. 112 (to perform a locutionary act is in general, we may say, also and eo ipso

    to perform an illocutionary act, as I propose to call it, ingl. p. 98). Cavell tambm chama ateno para essa frase.

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    da distino performativo/constativo , com relao doutrina dos atos locucionrios e ilocucionrios luz do ato de discurso total, como uma teo-ria restrita [special] com relao teoria geral44. Eo ipso, o locucionrio tambm um ilocucionrio, porque ele em princpio um ato. Com o ato de discurso integral, a performance que recolhe a aposta. A relao de fora se inverte. A verdade se encontra frente da felicidade, como um caso par-ticular. O que conta, e que surpreende, na relao verdade-felicidade no tanto que a verdade seja necessria para que um performativo possa ser feliz (sim, h um estado de mundo, com condies e inteno, que determina a felicidade), mas que a sesso esteja de fato aberta quando um performativo pronunciado em condies de felicidade. Dito de outra forma, quando o performativo feliz, o constativo em que ele se transforma agora verda-deiro. Parece-me que por a que ns passamos para alm do performativo, indefinvel stricto sensu, para alcanar uma performatividade expandida at a performance. Eu gostaria de deixar isso claro a partir de um exemplo recente e notvel. Yes we can um enunciado formalmente constativo, apofntico de acordo com toda sua aparncia. Mas desde que o consideremos como um ato de linguagem em situao, compreendemos que esse constativo era em princpio e antes de tudo um performativo, at a Chicago Night, em que ele ganhou seu estatuto de constativo conforme o uso habitual. Como diz Grgias, no o discurso que representa o exterior, o exterior que se torna revelador do discurso45. Todo constativo, em certas circunstncias que o exemplo sofstico nos permitir talvez discernir melhor, um performativo feliz que se tornou verdadeiro. Longe do deserto de uma preciso que se quer comparativa (fr.81), ns reconheceremos que a mesma frase pode ser empregada de duas maneiras conforme as circunstncias (fr. 89) e que, eo ipso, a diferena constativo/performativo considerada do ponto de vista do ato de linguagem se alarga at a diferena ontologia/logologia, por meio da diferena verdade/felicidade. Pois a diferena entre os enunciados no uma diferena de natureza, mas uma diferena de uso, com tudo que a noo comporta de fluido e de perigoso para a ontologia, ao modo profundamente sofstico do khrsthai e dos khrmata gregos46.

    44 Incio da XII conf., ingl. p. 148, minha traduo; cf. fr. 151.45 ou)x o( lo/goj tou= e)kto\j parastatiko/j e)stin, a)lla\ e)kto\j tou= lo/gou mhnutiko\n gi/

    netai, Grgias, Tratado do no-ser, citado por Sexto Emprico, Adversus Mathematicos VII, 85 (=82 B 3 D.K., II, p. 282), comentado em LEffet sophistique, (CASSIN, 1995, p. 70 seqq.).

    46 O prprio Austin cita as dificuldades de manter suas distines em face ao uso da linguagem, e noo de uso to vazia e polissmica quanto a de sentido. Assim para a distino locucionrio/ilocucionrio, acerca do eo ipso que no tem nada de misterioso, antes sendo um problema de nmero de significados de so vague an expression as in what way are we using it (ingl. p. 99, fr. p. 112), retomando ingl. p. 100: the different uses of the expression use of language, ou use of a sentence etc: use is a hopelessly ambiguous or wide word, just as is the word meaning, which it has become costumary to deride. E o mesmo para a distino ilocucionrio/ perlocucionrio: We have

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    b) do apofnTico como aTo de dizer aLguma coisa

    Eu acrescentarei que principalmente a felicidade que ganha, com-partilhando com o sofista a satisfao que Austin experimenta ao playviii old Harry47 com o fetiche verdade-falsidade. A verdade um caso particular da felicidade, nesse sentido que a diferena verdadeiro/falso um fetiche mal empregado, e isso que encontraremos na anlise do Poema de Parmnides que Grgias prope. Para retornar filosofia, o que de realmente novo sobre Aristteles na descrio de Austin advm, parece-me, de quando o ponto de vista normal, isto , filosfico, sobre o normal statement, cede ao ponto de vista propriamente austiniano do speech-act generalizado. O constativo se torna assim a segunda taxonomia: act of saying something.

    Disso, ao menos, eu no vejo nenhum equivalente aristotlico possvel. Falar para Aristteles, como para Homero e todos os gregos, sem dvida, um certo tipo de ao, que implica toda uma srie de atos fsicos (fonao, articulao etc.) e mentais (inteno de significar, de designar, comunicar) que os tratados fsicos, lgicos, metafsicos, de Aristteles permitem detalhar48. Porm, taxonomia alguma antes de Austin inscreve

    already seen how the expression meaning and use of a sentence can blur the distinction between locutionary and illocutionary acts. We now notice that to speak of the use of language can likewise blur the distinction between illocutionary and perlocutionary act (ingl. p. 103, cf. fr. p. 113). Sobre o uso e sua relao com a sofstica, eu me permito remeter a LEffet sophistique (CASSIN, 1995), em parte p. 225-236 e 324-326. [N.T. Sugerimos a consulta de O Efeito Sofstico (CASSIN, 2005), p. 65-75]

    47 XII Conferncia, p. 150, cf. fr. p. 153.48 Um trabalho fino de comparao ser necessrio para traar o paralelo entre a

    decomposio aristotlica e a decomposio austiniana dos atos prescritos por le/gein / issuing an utterance (ingl. p. 92) / produire une nonciation (fr. p. 108) / produzir uma enunciao. O vocabulrio austiniano explicitamente grego, mas muda o sentido dos termos, tanto com relao ao seu uso aristotlico quanto ao seu uso lingustico (ns podemos convir, ns chamaremos, diz Austin, fr. p. 108, ingl. p. 92s.). Para Austin, dizer alguma coisa (Aristteles diria legein ti), realizar trs atos, que ele chama fontico, ftico e rtico. Fontico designa a produo de sons (um animal pode operar um ato desse tipo: isso perfeitamente aristotlico); ftico designa a produo de sons de um certo tipo, a saber, do tipo de palavras pertencentes a um vocabulrio e compreendidas em certa gramtica, da produo de frases (h a a conflagrao de mais etapas aristotlicas, conforme uma outra visada alm daquela das etapas do De Interpretatione, j que um exemplo plausvel para Austin seria, concomitantemente a o gato est no tapete, um non-sense (sinloss) gramaticalizado como o atual rei da Frana calvo ou ideias verdes dormem furiosamente, mas no um non-sense agramatical (Unsinn) como gato completamente o se); rtico, por fim, que ele define fazendo sentido e referncia intervirem: the rhetic act is the performance of an act of using these vocables with a certain more-or-less definite sense and reference (p. 95, cf. fr. 110, grifo meu); notaremos que os exemplos rticos se restringem ao discurso indireto (this is the so-called indirect speech, p. 96): Ele disse que o gato estava no tapete de modo que necessrio acentuar o certain para com-preender a tripartio: o sentido e a referncia, nomear e reportar, so os atos ancilares realizados ao realizar o ato rtico (performed in performing the rhetic act, 97; cf. fr. 111 mod.). Austin conclui Ainda que essas consideraes sejam de grande interesse, elas no esclarecem nosso problema de oposio entre enunciao constativa e enunciao performativa (ingl. p. 98, cf. trad. fr. 112 mod.). Por que ele as faz ento? Por enquanto, eu dou a minha lngua para o gato no tapete. [N.T. donner sa langue au chat uma expresso que significa no ter ideia da resposta para a questo. A autora a manipula inserindo uma referncia ao exemplo the cat on the mat utilizado por Austin.]

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    na noo de ato trs tipos de atos distintos em sua relao com o logos, com essa economia preposicional radical, nem coloca o apofntico no nvel comum, em posio no dominante, por esse vis. Embora se deva notar que, a cada senhor sua honra, em primeiro lugar o ato de dizer alguma coisa na plenitude aristotlica de seu significado normal que batizado de performance: The act of saying something in this full normal sense, I call, i.e. I dub, the performance of a locutionary act49.

    assim que a filosofia integrada como uma modalidade, uma tonalidade da performance. A performance se confunde com a fala como ato e se distingue como o performativo, que se constitui como a sua fina ponta. No pode mais se tratar de procurar estabelecer uma lista de verbos performativos explcitos, mas somente a list of illocutionary forces of an utterance, uma lista de foras ilocucionrias de uma enunciao (e no de valores ilocucionrios da enunciao, como na traduo francesa, que essencializa de novo)50. Estamos de retorno retrica: simples diferenciar o valor ilocucionrio do valor perlocucionrio?

    c) iLocucionrio e perLocucionrio: a fora ou o efeiTo?

    Partamos do perlocucionrio e da terceira espcie de ato:

    Comparemos agora o ato locucionrio e o ato ilocucionrio com uma terceira espcie de ato.H ainda um outro sentido (C) segundo o qual performar um ato locucionrio, e nele [therein] um ato ilocucionrio, pode ser tambm performar um ato de uma outra espcie. Dizer alguma coisa produzir frequentemente, ou mesmo normalmente, como consequncias certos efeitos [produce certain consequential effects] sobre os sentimentos, os pensamentos ou as aes da audincia [audience], ou do orador [speaker], ou de outras pessoas [other per-sons que outras?]: e isso pode ser feito com o desejo, a inteno, ou o objetivo de provocar esses efeitos [with the design, intention or purpose of producing them] [] Chamaremos a performance de um ato dessa espcie de ato perlocucionrio, e o ato performado [] de perlocuo51.

    Mais observaes se desencadeiam.

    49 Incio do cap. VIII, p. 95. Eu chamo (eu batizo) o ato de dizer alguma coisa nesse sentido pleno do termo: execuo de um ato locucionrio, trad. fr. p. 109, em que se v claramente a dificuldade de traduzir performance por execuo.

    50 What we need is a list of illocutionary forces of an utterance, p. 150, cf. fr. 152.51 Ingl. p, 101, traduo da autora (cf. fr. p. 114).

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    De incio, a passagem de um tipo de ato a outro (therein, uma primeira maneira de dizer eo ipso) normal e os limites so fluidos. Embora critrios de diferenciao ou marcas de reconhecimento sejam possveis, o sea-change obriga a abandonar todas as dicotomias (e no somente aquela entre constativo/performativo que menciona Austin) e todas as raas pu-ras (a noo de pureza dos performativos no sobrevivera, salvo talvez margem), em benefcio de famlias mais gerais de atos de discurso rela-cionados e em recuperao52. De fato, os exemplos de ato performativos so impuros de incio, misturados tanto locuo: assim He persuaded me to shoot her, batizado Ca, sendo C o perlocucionrio e a remetendo ao A da locuo, que se enuncia em relao a ela He said to me Shoot her! meaning by shoot shoot and referring by her her; quanto ilocuo: He got me to shoot her, batizado Cb, B designando o ilocucionrio que se enuncia em relao a ele He urged (or advisde, ordered etc.) me to shoot her53. , por outro lado, porque nada nos impede de fazer um trao onde queiramos e onde nos seja conveniente54.

    O critrio de diferenciao do perlocucionrio, note-se bem, a produo de efeitos, que devem ser intencionais, voluntrios, no acidentais, em que eles revelam precisamente algo que se parece com a arte retrica. No to frequente na retrica, contudo, dar conta de efeitos produzidos sobre o prprio orador, nem sobre outras pessoas alm da audincia (quais pessoas? os telespectadores, os leitores? ou mesmo as pessoas de que se fala, Helena, por exemplo, enaltecida por Grgias, pessoas que constituem o resto do mundo, e at o prprio mundo atravs delas?). O perlocucionrio vai de encontro ento, por sua vez, a uma performance logolgica de tipo sofstico, descrita pela frase emblemtica de Lyotard: No o destinatrio que seduzido pelo destinador. O destinador, o referente, o sentido no esto menos sujeitos seduo exercida do que o destinatrio55.

    52 Ingl. p. 150, cf. fr. 153. Ns j tnhamos: a straightforward constative utterance (if there is such an animal) p. 110 (fr. 120, uma enunciao pura e simplesmente constativa (supondo que tal criatura exista)), veja acima p. [14].

    53 O comentrio de Austin, que consta do manuscrito de 1958 (relatado em nota por Gillbert Lane, p. 115), parece-se me muito apropriado: 1/ Tudo isso carece de clareza; 2/ em todos os sentidos que importam [A = locucionrio e B = ilocucionrio em oposio a C = perlocucionrio] as enunciaes no so todas performativas?. Essa salada de exemplos ainda mais suspeita quando se imerge na diferena entre as lnguas. Mas a importncia do rema, como discurso indireto, se revela com clareza. Aqui que deveria situar a anlise dos exemplos de perlocucionrio dados por Cavell em seu artigo.

    54 Fr. p. 123. A verso inglesa diz: it does not seem to prevent the drawing of a line for our present purposes where we want one, p. 114, acerca das consequncias do ato ilocucionrio (Nada nos impede de traar uma linha que convenha quilo que ns queiramos fazer, no instante em que queiramos um).

    55 Lyotard, 1983, 148.

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    Os efeitos, justamente. a que a diferena entre perlocucionrio e ilocucionrio constantemente sublinhada e que ela escapa constantemente. Ns fomos prevenidos: a diferena entre ilocues e perlocues parece, mais que tudo, propensa a criar problema56. Lembremo-nos uma ltima vez os critrios. O ilocucionrio faz alguma coisa in saying, ao dizer algo (eu me desculpo), ele tem uma fora e suscetvel a sucesso ou a insucesso (felicity/unfelicity). O perlocucionrio faz alguma coisa by saying pelo di-zer, ele tem um efeito e produz consequncias em que, e isso merece ser observado, ele se coloca em princpio mais do lado da felicidade do que da verdade. Mas a diferena entre ilocucionrio e perlocucionrio, entre fora e efeito, ainda mais instvel proporcionalmente do que o ilocucionrio que, para ser feliz ou realizado, deve ser ligado a efeitos, bound up with effects. O ato ilocucionrio ligado a efeitos, mas sua funo no produzi-los, como o ato perlocucionrio faz. De um lado ento a ligao extrnseca, de outro a produo consequente, deveria se poder fazer a distino.

    Mas isso no simples, decididamente. Pois, ao descrever essa ligao ilocucionria, Austin escreve que um efeito deve ser produzido sobre a audincia para que um ato ilocucionrio possa ser considerado realizado [an effect must be achieved on the audience if the illocutionary act is to carried out, grifo meu]57. Essa a no mnimo ambgua primeira das trs maneiras pelas quais os atos ilocucionrios so ligados a efeitos. Examinemos as trs mais de perto:

    a) securing of uptake (assegurar-se de ter sido bem compreendi-do): Um ato ilocucionrio no ter sido realizado com felicidade, ou com sucesso, se um certo efeito no for produzido. Isso no significa que por isso o ato ilocucionrio seja ele mesmo a produo de um certo efeito. Sim-plesmente, no se pode afirmar que eu adverti minha audincia se ela no compreendeu minhas palavras ou no as tomou em um certo sentido. Um efeito deve ser produzido sobre uma audincia para que um ato ilocucionrio possa ser considerado realizado58. Se ningum compreendeu que a sesso est aberta ou que eu me desculpo, ento como se eu no tivesse dito nada. O papel da audincia proibitivo, tanto quanto na retrica. E a casustica considerada muito importante (podemos batizar quando estamos mudos, ou em lngua estrangeira?).

    56 Fr. 120, ingl. 110.57 Contudo, h [] trs maneiras em que os atos ilocucionrios so ligados aos efeitos:

    e elas todas se distinguem da produo de efeitos que caracteriza o ato perlocucionrio (fr. p. 125) A 2 ed. inglesa traz aqui um resumo mais claro: So here are three ways, securing uptake, taking effect, and inviting a response, in which illocutionary acts are bound up with effects; and these are all distinct from the producing of effects which is characteristic of the perlocutionary acts (p. 118, grifo meu). Isso ser retomado no incio da X conferncia, fr. p. 129, ingl. p. 121.

    58 Ibidem, p. 124 e 125 para tudo isso que se segue [ingl. p. 115-116].

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    b) taking effects (tomar efeito, que no deve ser confundido com produzir consequncias); o exemplo claro o suficiente: Eu batizo este barco de Rainha Elizabeth tem como efeito somente nomear ou batizar o bar-co; e certos atos em seguida como cham-lo de Generalssimo Stalin sero agora nulos e inexistentes. O arbitrrio a claramente reivindicado: nada nos impede de fazer um trao onde queiramos e onde nos seja conveniente, isto , entre a realizao do ato e todas as suas consequncias [between the completion of the illocutionary act and all consequences thereafter]59. Pois, onde exatamente acaba o efeito sobre o mundo?

    c) inviting response (convidar a responder). A diferena com a resposta ao perlocucionrio ainda mais delicada, j que a ao do outro que constitui a resposta. Os exemplos exemplificam tambm as dificuldades ao fazer as distines. A diferena verdadeiramente livresca, uma diferen-a de papel que no me parece remeter a nenhum sentimento lingustico, passa entre Eu ordenei e ele obedeceu [I ordered him and he obeyed], e Eu o fiz obedecer [I got him to obey]60. A segunda formulao implica, se eu compreendi bem, um ato perlocucionrio de persuaso, ligado a modos diversos, de tipo retrico como incitaes, uma presena pessoal, mas tambm, eventualmente, uma influncia que poderia ir em direo contr-ria; e esse conjunto pode conter um ato ilocucionrio diferente da ordem (como quando eu digo: Eu o fiz fazer aquilo ao afirmar x [I got him to do it by stating x]. Eu confesso que essas sutilezas me confundem, a tal ponto que eu no procuro mais traar uma linha entre fora e efeito.

    Os exemplos j nos indicam isso, ns nos daramos mal em nos ater a um critrio gramatical, se fosse frouxo61. Mesmo a diferena ao/pelo (in/by), que definicional e parece particularmente apta a distinguir ilocucionrios e perlocucionrios, no pode nos fornecer um texto confi-vel62. De fato, a singularidade genuna do ilocucionrio, a que eu ainda no fiz jus, a conveno: Os atos ilocucionrios so convencionais, os

    59 Fr. 123, ingl. 114.60 Fr. p. 125s. ingl. p. 117s.61 Deixo de lado a discusso, que devia fazer intervir Benveniste e sua surpresa de que

    Austin no se atenha a esse critrio que o nico certo a seus olhos: Um enunciado performativo porque ele nomeia o ato performado, donde Ego pronuncia uma frmula contendo o verbo na 1 pessoa do singular do presente (BENVENISTE, 1963, p. 274). Esse teste muito simples, empregado com precauo, pode nos dar, afirma Austin, uma lista de verbos da ordem de 10 na terceira potncia, que a lista dos verbos performativos explcitos, sempre ligados a atos ilocucionrios (fr. p. 152, ingl. 149). A dificuldade reside evidentemente no fato de que, aps o sea-change, no se trata mais de enunciados, mas de atos em situao.

    62 In saying I would shoot him I was threatening himBy saying I would shoot him I alarmed himWill these linguistic formulas provide us with a test for distinguishing illocutionary

    from perlocutionary acts? They will not (ingl. p. 122s; fr. p. 130). These formulas are at best very slippery tests (ingl. p. 131, fr. p. 136).

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    atos perlocucionrios no so, O ato no constitudo essencialmente pela inteno ou pelo feito, mas pela conveno (que , sem dvida, um feito)63. ela quem pode esclarecer a diferena entre efeitos e consequncias: H evidentemente uma diferena entre aquilo que tomamos pela produo real de efeitos reais e aquilo que consideramos como simples consequncias convencionais64. Contudo, ainda assim, as coisas no me parecem to simples. Camos no arbitrrio da linha: quando eu digo sim no dia do meu casamento, a simples consequncia convencional (eu me casar) seria separvel dos efeitos reais? E a retrica, por sua vez, se concebe sem convenes, to/poi e e1ndoca, para manipular? No se trata sem dvida de efeito/ consequncia/conveno no mesmo sentido, mas onde passam essas linhas de significado?

    certo que as distines so arbitrarizadas pela transformao marinha. Eu quis simplesmente mostrar aqui como a passagem teoria geral de atos de linguagem mina no somente a diferena entre constativo e perfor-mativo, e no somente a diferena entre locucionrio, ilocucionrio, perlocucio-nrio, mas tambm a diferena entre locucionrio performance e performativo.

    iii. pontos de ApLiCAes soFstiCAs, CrtiCA dA ontoLogiA e poLtiCA

    Austin se vangloria ao fim de suas conferncias por deixar em pedaos dois fetiches (que estou diz ele bastante inclinado, confesso, a maltratar...), a saber: 1) o fetiche verdade/falsidade, e 2) o fetiche valor/fato [value-fact]65. Esse ponto de chegada constitui sem dvida o melhor ponto de partida para uma comparao com a sofstica. Tomarei dois exemplos, que tratarei tanto mais esquematicamente do que eles foram desenvolvidos em outros momentos cada um por si66. Considerar, junto com Grgias, o Poema de Parmnides um speech-act deixar em pedaos o fetiche verdade/falsida-de, e fazer a felicidade primar sobre a verdade. Considerar, com Grgias, o Elogio de Helena uma performance capaz de produzir uma Helena inocente zombar do fetiche valor/fato.

    63 Fr. p. 129, ingl. p. 121; fr. p. 134, ingl. p. 127.64 Fr. p. 112, ingl. p. 103: There is clearly a difference between what we feel to be the

    real production of real effects and what we regard as mere conventional consequences.65 XII e ltima conf., fr. p. 153; ingl. p. 151.66 Para Parmnides, veja LEffet Sophistique, 1re partie, 1, e Parmenide (CASSIN,

    1998). Para Helena, veja LEffet Sophistique, 1re partie, 2, e Voir Hlne en toute femme. DHomre Lacan, (CASSIN, 2000). Mais genericamente, sobre a poltica (sofstica) como efeito de linguagem, veja LEffet sophistique, 2me partie. No que se segue, eu estou condensando as anlises expressas no incio de Sophistique, performance, performatif (CASSIN, 2007), conferncia que abriu a questo performance-performativo, mas para deix-la escancarada. [N.T. Aqui podemos sugerir ao leitor a leitura do primeiro captulo do livro O efeito sofstico (CASSIN, 2005, p. 13-64).]

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    Como grgiAs L o poema de pArmnides enquAnto Ato de LinguAgem

    Na leitura que o tratado de Grgias Sobre o no-ente ou sobre a natureza opera do poema de Parmnides Sobre a natureza ou sobre o ente, tudo gira manifestamente ao redor da maneira em que se ligam o ser e o dizer. De duas coisas, uma, brutalmente separadas. Ou h o ser, esti, es gibt sein, e a tarefa do homem diz-lo fielmente: ontologia apofntica e constativa, descoberta e verdade, de Parmnides a Heidegger e de Aristteles a Austin leitor de filosofia. Ou o ser no e no existe alm de no e pelo poema, o constativo s aparente, porque ele no nada alm do produto de uma performance ilocucionria: o ser um efeito do dizer, um ato de fala bem sucedido, de Grgias a Austin.

    O procedimento de Grgias consiste em simplesmente chamar ateno sobre as operaes e as condies da ontologia, como dizer enquanto produtor do ser. Elas se atm, em princpio, a um certo uso que o poema faz da lngua grega. muito caracterstica a maneira como o Poema faz passar de e1sti a to\ o1n, do verbo ao particpio sujeito-substantivo, jogando com o conjunto disso que sero os significados de e1sti: possvel, verdadeiro que (como se diz: o caso que), no sentido de cpula e identidade, no sentido existencial; fazendo trabalhar, por assim dizer em termos aristotlicos, a homonmia ou, ao menos, o pollaxw=s, e a anfibolia. O ente, o famoso to\ e)o/n do fragmento VIII, foi tecido/tramado pelo poema, um resul-tado e uma constatao. H nisso, parece-me, uma maneira radical de fazer entender o Poema mais como um total speech-act in a total speech-situation do que como uma srie de statements, e de fazer sentir a fora ilocucionria de cada frase constativa. O Poema, ento, enquanto ato de linguagem, com essa nova preciso de que o ato de linguagem , ao menos tambm , isso que eu gostaria de chamar em francs de acte de langue [ato de lngua] e por que esse termo no conviria a um total speech-act? A diferena das lnguas se mantm sem dvida estrangeira a Austin, no tpica, mas ele no aborda essa questo nem mesmo da intimidade e da singularidade da lngua que ele fala e de que ele fala.

    O efeito de limite ou de catstrofe produzido pela crtica sofista da ontologia consiste em mostrar que, se a ontologia rigorosa, isto , se ela no constitui um objeto de exceo com relao legislao que ela instaura, ento uma obra-prima sofstica. O que importa agora no um ser que supostamente j esteja l, mas o ser que o discurso produz. Grgias mede a amplitude da mudana de paisagem: o princpio mais certo de identidade no tem mais como frmula o ser , ou o ente o emte, mas essa uma frase do Tratado aquele que fala fala, e mesmo aquele que diz diz

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    um dizer67. O Poema de Parmnides, como o Tratado de Grgias, um ato de linguagem, sendo a diferena que ele tenta esconder ou se esconder a si mesmo sua terceira dimenso.

    A presena do Ser, a imediatez da Natureza, e a evidncia de uma palavraix que tem a responsabilidade de os dizer adequadamente, dissipam-se juntos: a fsica que a palavra assegurava d lugar poltica que o discurso performa. Donde, graas aos sofistas os mestres da Grcia dizia Hegel alcanamos a dimenso da poltica, como a)gora/ por um a)gw/n: a cidade uma criao contnua da linguagem, da ordem da felicidade e no da verdade.

    epideixis e perFormAnCe: eFeito retriCo e eFeito-mundo

    O status da e)pi/deicij central nessa perspectiva e o termo, que se pode muito justamente traduzir por performance em sentido largo, do que j vimos a legitimidade austiniana merece que nos demoremos um pouco nele.

    )Epi/deicij o nome que a tradio atribui, por excelncia, discur-sividade sofstica. O termo foi consagrado por Plato (por exemplo Hpias maior, 282c, 286a; Hpias menor, 363c; Grgias, 447c68), e designa o discurso seguido por Prdicos, Hpias, Grgias, que, em oposio ao dilogo de per-guntas e respostas que Scrates aprecia, se pode somente repetir, reproduzir expressis verbis a formulao e a enunciao contida.

    Ao remeter dei=cij, a indicao, o dedo apontado, a e)pi/deicij s compreendida em contraste com a a)po/deicij. A a)po/deicij recheada de todos os a)po/ (a)pofai/nesqai, a)po/fansij) caractersticos da fenomenologia69: a arte de mostrar a partir disso que mostrado, apoiando-se sobre ele, a arte de demonstrar; ela assinala o domnio do apofntico/constativo e do descobrimento/verdade. A e)pi/deicij a arte de mostrar diante e de mos-trar ainda mais, seguindo os dois grandes sentidos do provrbio. Mostrar diante, publicamente, aos olhos de todos: uma e)pi/deicij talvez como uma demonstrao de fora (disposio de um exrcito, em Tucdides por exemplo,

    67 Kai\ le/gei o( le/gwn [] a)rxh\n ga\r, ou) le/gei de\ xrw=ma, a)lla\ lo/gon, De MXG (esta a outra verso do Tratado transmitida anonimamente em apndice ao corpus aristotlico), G. 10, 980b (editado e traduzido no Si Parmnide (CASSIN, 1980, p. 540-541)).

    68 verdade que o leitor nem se d conta ao ler as tradues. Assim, encontra-se sucessivamente, no prlogo de Grgias, Clicles: Grgias acaba de nos fazer ouvir uma srie de coisas belas [polla\ ga\r kai\ kala\ Gorgi/aj h(mi=n o)li/gon pro/teron e)pedei/cato], Querefonte: Eu obterei dele uma nova sesso [e)pidei/cetai h(mi=n], Clicles: ele nos dar uma sesso [e)pidei/cetai u(mi=n], Scrates: ele poder, como voc diz, dar-nos esse prazer novamente [th\n de\ a1llhn e)pideicin ei)sau=qij] (Croiset, Paris, Belles Lettres), e encontramos a variao apresentao / demonstrao (Canto, Paris, Flammarion).

    69 Basta se reportar ao 7 de O Ser e o Tempo de Martin Heidegger.

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  • revistA LetrAs, CuritibA, n. 82, p. 11-46, set./dez. 2010. editorA uFpr.issn 0100-0888 (verso impressA); 2236-0999 (verso eLetrniCA)

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    ou demonstrao de multido), uma manifestao, uma exposio70. Mas tambm mostrar ainda mais, mostrar mais de algo na ocasio dessa publicidade: expondo um objeto, servimo-nos disso que mostramos como exemplo ou paradigma, ns o superestimamos fazer de uma mosca um elefante, diz Luciano, em consonncia com a prtica de elogios paradoxais, o da calvcie e como aquele do jarro, contemporneo, por um Francis Ponge reivindicando a hubris tambm para si, sem vergonha. E assim se mostra a si mesmo ainda mais, como orador de talento, capaz de argumentos contrrios, ou como verdadeiro poeta, ou seja: fazedor. Est em jogo, em sentido amplo, uma performance, improvisada ou no, escrita ou falada, mas sempre relacionado ao aparato, audincia, ao pblico; e, em sentido restrito muito precisamente codificado pela retrica de Aristteles, o elogio ou a culpa que diz o que belo ou o que vergonhoso e visa ao prazer, isto , a eloquncia epidtica (diferente da eloquncia do conselho, que diz o que til ou o que nocivo e se apoia no futuro, e do processo que diz o que justo ou injusto e se apoia no passado).

    Com a sofstica, os dois sentidos de performance e de elogio se conjugam e amplificam um ao outro: a mais memorvel epideixis de Grgias (o one man show que o tornou conhecido em Atenas, isto , para sempre e no mundo inteiro) a epideixis do Elogio de Helena, em que louvando o louvvel e culpando o culpvel, ele teve sucesso em inocentar ningum menos que aquela que todos acusam desde Homero. O suplemento da dei=cij que a e)pi/deicij chega a tornar o fenmeno em seu contrrio: o objeto se torna aos olhos de todos, logo objetivamente, o efeito da onipotncia do lo/goj. De outra parte, essa a razo porque todo elogio ao mesmo tempo, e mesmo antes de tudo, um elogio do lo/goj e foi da que partimos: O discurso um grande soberano que, com o menor e mais inaparente dos corpos, performa os atos mais divinos (8).

    Eu gostaria de sublinhar que se trata, alm da logologia sofstica, de um momento de inveno poltica: a performance consiste em passar da comunho em valores da comunidade (a includo a comunho de valores

    70 Uma das ocorrncias mais instrutivas do termo fora da retrica em Aristteles aquela que concerne epideixis do grande ancio Thales, que faz vingana sobre a submissa Trcia: Como se repreende a inutilidade da filosofia por causa de sua pobreza, conta-se que, tendo previsto que haveria uma colheita abundante de olivas graas aos seus conhecimentos em astronomia, ele gastou, ainda no inverno, o pouco dinheiro de que dispunha pagando calo para alugar todas as prensas de azeite de Mileto e Quios; na falta de qualquer licitante, ele as locou a baixo preo. Chegado o momento, como se procurava ao mesmo tempo e sem demora muitas prensas, ele as sublocou ao preo que ele queria; graas grande fortuna que reuniu, ele provou que fcil para os filsofos en-riquecer quando desejam, mas que esse no o seu objeto de zelo (Aristteles, Politique, 1259a 9-18, trad. Aubonnet modificada). Tales, conhecendo a previso e a lei da oferta e da procura, considerando o curso do tempo (e assim o curso dos valores) e no a iminncia do momento presente, inventou o monoplio: ao fazer isso, diz-se fazer epideixis mostrar, provar, expr de sua sabedoria (19). (Aristteles, Poltica, 1259a)

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    partilhados da lngua, por meio do sentido das palavras e das metforas, como sublinha Nietzsche71) para a criao de novos valores.

    Os dois primeiros pargrafos do Elogio de Helena testemunham essa passagem e comeam a produzi-la:

    (1) Ordem, para a cidade, a excelncia dos seus homens, para o corpo, a beleza, para a alma, a sabedoria, para a coisa que se faz, o valor, para o discurso, a verdade. Seu contrrio a desordem. Homem, mulher, discurso, obra, cidade, coisa, preciso, para o que for digno de elogio, fazer a honra de um elogio; para o que for indigno de elogio, destinar-lhe uma culpa; pois culpar o louvvel ou louvar o culpvel do mesmo erro e da mesma ignorncia.(2) Ao mesmo homem prprio dizer com retido o que for necess-rio e contradizer [] esses que culpam Helena, mulher que rene, em uma nica voz e uma nica alma, a crena dos ouvintes dos poetas e o rudo de um nome que carrega lembrana de desgraas. Eu quero, dando lgica ao discurso, fazer cessar a acusao contra essa de quem se ouve tanto mau, demonstrar que os que culpam se enganam, mostrar a verdade e pr fim ignorncia.(82) DK 11 8, t. II, p. 288s.; traduo da autora)

    assim que a liturgia (ko/smoj, ka/lloj, sofi/a, a)rethn, a)lhqei/a) se abre, por meio da maneira pela qual um eu d logismo/n ao lo/goj ve-nham passar de um lado a outro em meu discurso72 , para um espetculo que performa um outro mundo.

    Parece-me que ns estamos mais perto da fronteira instvel entre perlocucionrio, com efeito retrico sobre o outro by saying, subjetivo, poder-se-ia dizer (Austin fala, deve-se lembrar, de atos que ns provocamos ou realizamos atravs do fato de dizer uma coisa, e.g. convencer, persuadir, impedir e mesmo surpreender ou induzir ao erro73), e ilocucionrio, o mais ativo dos atos de linguagem, capaz de mudar diretamente o estado do mundo in saying, e que transborda, em todo caso, o perlocucionrio com

    71 At agora, ns s ouvimos falar da obrigao que a verdade impe para existir: ser verdico empregar as metforas usuais; ento, em termos de moral, ns ouvimos falar da obrigao de mentir conforme uma conveno slida, de mentir gregariamente num modo constrangedor a to-dos. O homem certamente esquece que assim no que lhe concerne; ele mente, portanto, de maneira determinada e segundo costumes centenrios e precisamente graas a essa inconscincia e a esse esquecimento, ele chega ao sentimento da verdade. Sobre esse sentimento de ser obrigado a designar algo como vermelho, uma outra como fria, uma terceira como muda, se revela uma tendncia moral verdade (NIETZSCHE, 1969, p. 183).

    72 Phere d pros allon apallou metast logon, ibid., 9 (82 B 11 DK, II, p. 290, 1. 25): assim que Grgias demarca seu elogio poesia, chamando ateno para o ato de linguagem em vias de se realizar e de operar.

    73 Austin, fr. p. 119.

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    algo como um imediato ou objetivo efeito-mundo, que no absurdo chamar de fora. De toda maneira, de Eurpides a Offenbach ou Hoffmansthal, eu no saberia dizer se a inocncia de Helena doravante um valor ou um fato.

    perspeCtivAs de trAbALho

    Uma genealogia do performativo: Eu te abrao os joelhos / Este o meu corpo / A sesso est aberta

    Eu gostaria de indicar, para concluir, as duas direes que comecei a explorar servindo-me dessa confuso austiniana como de um trampolim.

    A primeira uma genealogia do performativo, em sua relao com a performance e o ato de linguagem total. Austin, apoiando-se em Jespersen e sua concepo muito discutvel de uma linguagem primitiva, sugere que historicamente, do ponto de vista da evoluo da linguagem, o performativo no apareceria seno depois de certas enunciaes mais primrias, sob forma particular de performativos implcitos, includos (enquanto partes de um todo) na maioria dos performativos explcitos [] (eu farei por exemplo teria aparecido antes de prometo que farei)74; com o constativo e o performativo, no se trataria tanto de dois polos, mas de uma evoluo histrica. Proponho se distinguir, de minha parte, trs perodos ou trs modelos de performativos em sentido restrito, que podem evidentemente entrar em descoberta. Um performativo pago, potico e po-ltico, um performativo cristo, religioso e sacramentrio, e um performativo