caso lapoente: da tortura no treinamento militar à violência de estado
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A monografia foi feita a partir de pesquisa bibliográfica e documental sobre a tortura no treinamento militar e suas consequências para a sociedade. Primeiramente, é abordado o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as tradições foram moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito militar – que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Para isso, conceitua-se a tortura, trazendo seu histórico e os espaços e formas em que ela foi empregada na sociedade. Além disso, é analisado o caso do cadete Lapoente, morto em treinamento militar. Para isso, foi relatada a aproximação com o caso, o cenário em que ele se encontra (AMAN – sua história, suas características internas, a formação e o treinamento) e o estudo de caso. Esse estudo permite-nos pensar em como esse tipo de treinamento afeta a sociedade em geral, especificamente, no caso brasileiro, as camadas mais pobres da população, que acabam por ter uma maior dificuldade de acesso à justiça e são crimininalizados por sua pobreza. Dessa forma, é compreendido que a memória é de extrema importância, para que casos como esses não se repitam. No entanto, não repetir não significa somente acabar com a tortura no treinamento, mas romper o ciclo: o tipo de treinamento – violento, desumano e cruel, leva à criação de valores relacionados a ele, que se refletem na sociedade a partir da prática cotidiana desses agentes.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
JOÃO CARLOS PIVATTO LIPKE
CASO LAPOENTE:
da tortura no treinamento militar à violência do Estado
RIO DE JANEIRO
2013
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JOÃO CARLOS PIVATTO LIPKE
CASO LAPOENTE:
da tortura no treinamento militar à violência do Estado
Monografia apresentada ao curso de Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito final para obtenção do Grau de Psicólogo.
Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
RIO DE JANEIRO
2013
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FICHA CATALOGRÁFICA
LIPKE, João Carlos Pivatto
Título: Caso Lapoente: da tortura no treinamento militar à violência do Estado
Rio de Janeiro, UFRJ, 2013.
vi, p.29
Monografia: Graduação em Psicologia.
1. Tortura 2. Treinamento Militar
3. Criminalização da Pobreza 4. Sociedade Disciplinar
iii
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à minha família, que sempre esteve ao meu
lado nos momentos de maiores dificuldades, mas também nos de grandes alegrias. Vocês
sempre me alimentaram com o que há de mais essencial na vida: o amor.
Agradeço com todo o meu amor e carinho a uma menina chamada Rachel. Sem a sua
presença em minha vida essa monografia não teria sido finalizada. Muito obrigado por me
privar o sono em diversos momentos, por me convencer que era melhor insistir na escrita,
mesmo que eu estivesse louco para dormir. Agradeço também, por você não ter me deixado
desistir, por ter me feito mudar de ideia nas diversas vezes que disse que não seria capaz ou
que não queria mais ser psicólogo – o que era uma grande desculpa. Serei eternamente grato
por todo seu esforço, agora não tenho mais “desculpas” para não fazer algo. Te amo, Kell.
Agradeço ao professor Pedro Paulo, que em 2006, me convidou para fazer parte do
que viria a ser o Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania (NIAC) e posteriormente, a
ser monitor de sua disciplina de Criminologia. Obrigado por continuar acreditando em mim e
por me ter feito ficar mais íntimo de Foucault, Lourau, Deleuze e Guattari. Tivemos
momentos incríveis em supervisões, congressos, aulas, festas etc. Agora sinto que posso
voltar a vivê-los.
Não posso deixar de mencionar os meus amigos niaquianos. Bruno, muito obrigado
por me mostrar que não sou o único no mundo a fazer piadas sem graça. Agradeço também,
pelos belos conselhos e pelos momentos de alegria que passei junto de você no NIAC e em
nossos encontros na Ilha do Governador. Agora que terminei poderemos brindar saboreando
um bom vinho. Ana Meza, saudade de nossas conversas e de nossas idas ao japonês da Praia
da Bica, um abraço bem apertado. Ana Marcela, minha marxista favorita. Kely, sempre me
senti cativado com suas belas e potentes falas, me fazia pensar, que quando fosse psicólogo
queria ser que nem você. Anna Thereza, André, Jefferson, companheiros de uma fase muito
feliz. Um super obrigado a todos.
Agradeço à professora Miriam Guindani que em diferentes momentos demonstrou
um carinho e uma preocupação por mim, oferecendo sua ajuda. Quero que saiba que meu
carinho, admiração e gratidão por você são enormes.
Obrigado também à presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e minha eterna
orientadora Cecília Coimbra que foi quem me apresentou o Caso Lapoente e me inspirou na
iv
luta contra a tortura.
Aos meus amigos de Censo Maré João, Gisele e Joelma por fazerem meus dias mais
leves e felizes. E especialmente ao Fernando, que em nossas conversas diárias contribuiu
muito para a construção deste texto. Não falamos só de futebol, viu?!
Por último, mas não menos especial, agradeço à professora Rosinda Oliveira por ter
me acompanhado nesses últimos meses e me dado um voto de confiança. Nossos encontros
me trouxeram potência e foram me mostrando que ainda era possível me tornar psicólogo.
Eternamente grato.
Espero que gostem, risos!
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RESUMO
LIPKE, João Carlos Pivatto. Caso Lapoente: da tortura no treinamento militar à violência do Estado.
Orientador: Pedro Paulo Gastalho de Bicalho. Rio de Janeiro: UFRJ: Instituto de Psicologia: 2013.
Monografia (Graduação em Psicologia).
A monografia foi feita a partir de pesquisa bibliográfica e documental sobre a tortura no treinamento
militar e suas consequências para a sociedade. Primeiramente, é abordado o fenômeno da tortura no
exército, buscando entender como as tradições (HOBSBAWM, 1984 e CASTRO, 2002) foram
moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito militar
(CASTRO, 1990) – que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar (GIBSON &
HARITOS-FATOUROS, 1986) nos moldes atuais. Para isso, conceitua-se a tortura (COIMBRA,
2001, PIOVESAN e SALLA, 2001, ROZA, 2003, BIAZEVIC, 2006), trazendo seu histórico
e os espaços e formas em que ela foi empregada na sociedade. Além disso, é analisado o caso
do cadete Lapoente, morto em treinamento militar. Para isso, foi relatada a aproximação com
o caso, o cenário em que ele se encontra (AMAN – sua história, suas características internas, a
formação e o treinamento) e o estudo de caso. Esse estudo permite-nos pensar em como esse
tipo de treinamento afeta a sociedade em geral, especificamente, no caso brasileiro, as
camadas mais pobres da população, que acabam por ter uma maior dificuldade de acesso à
justiça e são crimininalizados por sua pobreza (WACQUANT, 2001). Dessa forma, é
compreendido que a memória (GAGNEBIN, 2006) é de extrema importância, para que casos
como esses não se repitam. No entanto, não repetir não significa somente acabar com a tortura
no treinamento, mas romper o ciclo: o tipo de treinamento – violento, desumano e cruel, leva
à criação de valores relacionados a ele, que se refletem na sociedade a partir da prática
cotidiana desses agentes.
Palavras-chave: Treinamento Militar – Tortura – Criminalização da Pobreza – Sociedade
Disciplinar.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 1
1. TREINAMENTO MILITAR: PRODUZINDO GUERREIROS OU ASSASSINOS? 6
1.1. Pensando a tortura: uma análise sócio-histórica, 11
1.1.1. Conceituando a prática da tortura, 11
1.1.2. Das atrocidades tribais ao extermínio dos favelados, 14
2. “VERÁS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA”: O LADO MAIS
PERVERSO DO TREINAMENTO, 18
2.1. AMAN: história, características internas, formação e treinamento, 18
2.2. Cadete Lapoente, presente! 21
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS – “ESQUEÇAMOS O LUTO E VAMOS À LUTA”, 26
REFERÊNCIAS, 28
1
INTRODUÇÃO
Meu primeiro encontro com Francisco Mendes aconteceu quando eu cursava a oitava
série do ensino fundamental. Foi em 1995, tinha meus treze anos e posso afirmar com certeza
que este foi o professor que mais despertou meu interesse nos estudos. Tenho que admitir,
estudar não era meu programa favorito – jogar bola e soltar pipa era muito mais divertido.
Quantas aulas faltei para ficar correndo atrás de pipa nas ruas de Jacarepaguá! Mas as aulas
do Chico, como ele gostava de ser chamado, eram diferentes. Não me lembro de ter faltado
nenhuma aula de história, a não ser que estivesse doente. Ele sempre gostou de falar da sua
experiência de vida, falava da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), que eu não sabia
muito bem o que era, mas ouvia fascinado quando ele, após as aulas, contava seus ‘causos’.
Só fui ter aula com o Chico Mendes de novo no terceiro ano do ensino médio, quando
já sabia o que tinha sido a ditadura e todos os seus atos institucionais. Tinha raiva, mas muita
raiva, de tudo que fosse relacionado aos militares. Hoje, isto passou, mas há anos atrás era
impossível ter um sentimento diferente, ainda mais depois de escutar tudo o que meu
professor narrava. Seus personagens favoritos eram seus colegas de militância política - seus
cúmplices, como ele mesmo dizia. Tidos como subversivos1, eram considerados perigosos
pelo regime político vigente. Sendo assim, Chico foi preso e torturado. Cadeira do dragão,
pau-de-arara, sessões de espancamentos, choques elétricos e afogamentos. Como alguém
podia passar por todas essas torturas e continuar vivo? Muitos conseguiram sobreviver a isto,
outros, infelizmente não. O sobrevivente Chico Mendes depois de preso e torturado foi
mandado para o exílio no Chile.
No início dos anos 70, o Chile, governado pelo socialista Salvador Allende, foi destino
de muitos brasileiros exilados. Em 1973, ano em que aconteceu o golpe militar chileno,
Augusto Pinochet toma o poder e instaura mais uma ditadura na América Latina2.Chico
Mendes é preso e torturado novamente. Entendendo o processo político, passei a compreender
seus olhos marejados quando mencionava o Chile. Aprendi que muitos brasileiros e chilenos
1 Segundo Coimbra (1999), subversivo foi uma categoria produzida e muito disseminada nos ‘anos de chumbo’
no Brasil. Era um personagem tido como perigoso, violento, traidor da pátria, contra a moral, a religião, os bons
costumes e a família. Enfim, uma real ameaça política ao que estava posto pela ditadura, tendo assim, que ser
identificado, controlado e, em alguns casos, exterminado. 2Salvador Allende foi presidente do Chile (1970-1973). Fundador do Partido Socialista chileno, sendo o primeiro
governante marxista eleito democraticamente em um país da América Latina. Já Augusto Pinochet era o
comandante das Forças Armadas do então governo Allende. Com um enorme apoio dos Estados Unidos,
Pinochet chega ao poder após um sangrento golpe de estado que acabou com o governo socialista e levou
Allende à morte em 11 de setembro de 1973 no Palacio de La Moneda, sede da presidência do Chile. Ao
assumir o governo, Pinochet estabeleceu uma das mais violentas ditaduras da América Latina, que se prolongou
de 1973 a 1990. (Soto, 1998)
2
tiveram seus sonhos e lutas desqualificadas por regimes de força que também mataram e
desapareceram com vários militantes políticos.
Assim, tive meus primeiros contatos com diversos assuntos e termos recorrentes da
época, tais como: a ditadura civil-militar, o terrorismo de Estado, a censura, o subversivo, a
Doutrina de Segurança Nacional e a tortura. E a partir disso passei a olhar com mais interesse
e carinho para esse triste momento da história da América Latina, em que era proibido
discordar e ser oposição, uma vez que o castigo para esses subversivos era o seqüestro, a
tortura e até a morte.
Passaram-se alguns anos. Em 2005, fui fazer estágio na Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ). Uma nova experiência, e que veio
em um ótimo momento. Estava no quinto período do curso de Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e não me identificava até então com nenhuma área do
mesmo. No sistema prisional fui alocado em uma unidade hospitalar chamada Sanatório
Penal, localizada no Complexo Penitenciário de Gericinó. Esta unidade é voltada para o
tratamento da tuberculose. Isso mesmo, tuberculose. Sanatórios não são para tratar de loucos,
como muitas pessoas pensam, e eu também pensava. Na verdade, são locais para onde pessoas
com tuberculose são encaminhadas para serem tratadas e ficarem completamente isoladas do
restante da sociedade. No caso, os excluídos dos já excluídos.
Os presos do Sanatório Penal são oriundos de outras unidades do sistema e também de
carceragens da Polícia Civil. O tratamento da tuberculose, caso não ocorra nenhum imprevisto
e sendo bem administrado, tem a duração de seis meses. Mas na maioria dos casos os internos
saem da unidade com no máximo quatro meses de tratamento3. Isto ocorre porque existem
poucas vagas no sanatório, então quando o preso não está mais sintomático, ele retorna para a
unidade de origem. Sendo assim, esta unidade tem como principal característica uma grande
transitoriedade dos internos. Como ficavam pouco tempo dentro da unidade, a maior parte dos
atendimentos4 eram voltados para questões que versavam sobre a tuberculose. Estes
aconteciam individualmente e em grupo, mas, após uma decisão da diretora da unidade, os
grupos foram suspensos. O motivo que ela dava era que não existia garantia de segurança para
as equipes de psicologia e enfermagem e, também, para a assistente social. Na verdade, ela
3Normalmente, o preso retorna à unidade de origem com os medicamentos que faltam para o término do
tratamento. Mas, em muitos casos, eles param de tomar os remédios por negligência dos funcionários dos
presídios e carceragens ou pelo simples fato de o paciente não achar mais necessário tomá-los. Por isso, muitos
dos que já estiveram no Sanatório Penal retornam, principalmente, os oriundos das carceragens da Polícia Civil. 4Vale destacar que os atendimentos eram oferecidos aos presos e aos seus familiares.
3
era a única pessoa que acreditava nessa falta de segurança, nem os agentes penitenciários
foram a favor da decisão.
Nos atendimentos ouvi muitas histórias de violência, tanto praticadas como sofridas
pelos presos. Muitos deles foram espancados e torturados quando foram detidos. Segundo
eles, o momento e o local das sessões de tortura é variável, pode ser à noite, de dia – a
qualquer hora do dia - na rua, em casa, na delegacia ou no presídio. Lembro-me de um ter dito
que sofreu tortura para confessar um crime que não tinha cometido. Todos os relatos tinham
uma carga emotiva muito forte, independente de ser sobre violência ou sobre a pobreza com a
qual muitos deles conviviam. Lembro-me ainda de ter ficado vários dias sem dormir, só
pensando naquelas histórias e naquelas pessoas.
Fiquei por lá durante dois anos. Neste período, tive contato com temas como a
violência, a segurança pública, a criminalização da pobreza, a tortura dentro dos presídios e a
tortura imposta a uma parcela da população, entendida como ‘classe perigosa’ em todas as
políticas de segurança pública já postas em prática no estado do Rio de Janeiro.
Meu interesse sobre a prática da tortura só aumentava. Entendi que esta não começou
e nem deixou de existir com o fim do regime autoritário, ela continua existindo contra uma
população rotulada como perigosa. Uma população pobre, que mora em favelas e que
constantemente tem seus direitos violados pelo próprio Estado que deveria garanti-los.
Além das aulas do Chico e da experiência de estágio na SEAP, tive uma terceira
vivência que considero muito importante, e que, na verdade, foi a que mais me influenciou na
idéia de me debruçar sobre a prática da tortura. Em 2006, o professor Pedro Bicalho me
convidou para participar da equipe de psicologia de um programa de extensão universitária da
UFRJ. Este programa ainda não existia, mas se tornou viável após diversas reuniões, que além
de muito divertidas, eram interdisciplinares.
O Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC) foi criado após um ano
de intensas discussões. Em muitos momentos achávamos que o programa não sairia do papel,
mas, em junho de 2007, ele foi inaugurado. Como a própria palavra interdisciplinar, presente
em seu nome, denota, o programa é composto por quatro unidades da UFRJ: o Instituto de
Psicologia; a Escola de Serviço Social; a Faculdade Nacional de Direito; e a Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo.
Quando o programa ainda estava em seu início buscamos várias parcerias com
organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais que militassem sobre
questões como a violência, a segurança pública e os direitos humanos. Entre eles, o Grupo
4
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro5 (GTNM-RJ). Este promove encontros semanais em
sua sede, com discussões sobre a violência e a garantia dos direitos humanos. Em um desses
encontros conheci Sebastião Alves da Silveira6 e Carmen Lúcia Lapoente da Silveira, pais do
cadete do Exército Márcio Lapoente da Silveira, torturado e morto em treinamento militar na
Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no ano de 1990. Eles me contaram como foi
o último treinamento do cadete Lapoente, falaram também sobre como conheceram o GTNM-
RJ e como vinha sendo a luta para que os oficiais responsáveis pelos exercícios militares
fossem responsabilizados criminalmente.
Mais uma vez me vi instigado a pensar sobre o dispositivo da tortura. Decidi, com o
auxílio de Chico Mendes, dos presos da SEAP, dos militantes do GTNM-RJ e dos pais do
cadete Lapoente que falaria sobre a tortura em minha monografia. Era definitivo, não tinha
mais volta. Tortura no Brasil era meu tema.
Minha idéia inicial era falar sobre a tortura no Brasil a partir de uns dos períodos mais
obscuro de nossa história – a ditadura militar, mas não parava por aí. Queria mais, muito
mais! Queria discutir também sobre as torturas realizadas nos dias atuais, em diferentes
lugares: prisões, delegacias, favelas, quartéis, hospitais psiquiátricos etc. Exatamente, ainda
tinha o et cetera.
Contudo, discorrer sobre a tortura em todos esses períodos históricos e lugares citados
acima seria muita coisa para uma tese de doutorado, quanto mais para uma simples
monografia. Tinha que escolher sobre o que falar, fazer um recorte. Definitivamente, não foi
uma escolha fácil. Encontrar um objeto sobre o qual iria me debruçar foi mais sofrido do que
imaginava. Mas, ainda assim, a história do cadete do exército Márcio Lapoente da Silveira foi
a que mais me tocou e me emocionou. E não poderia deixar de escrever sobre isto.
Então, neste trabalho de conclusão de graduação em Psicologia na UFRJ, abordo um
tema que é deixado de lado pela academia brasileira. Nesta pesquisa falo sobre a tortura em
treinamentos militares,utilizando como analisador7 o caso do cadete Lapoente, citado
anteriormente. A partir deste, que não é o único8, tive a intenção de questionar por que
5O GTNM-RJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante
a ditadura militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. 6Sebastião Alves da Silveira, militar reformado da Marinha, faleceu no dia 10 de abril de 2009. Por sua
destacada militância no GTNM-RJ, pela sua apaixonada luta em defesa dos direitos humanos e, principalmente,
pela sua árdua tentativa de responsabilização dos oficiais que mataram seu filho na AMAN, foi homenageado, in
memorian, com a Medalha Chico Mendes de Resistência 2010, oferecido por vários movimentos sociais e
entidades de direitos humanos. 7Segundo Lourau (1996, p.284), analisador é o “que permite revelar a estrutura da instituição, provocá-la,
obrigá-la a falar”, a partir de manifestações de não- conformidade com o instituído. 8Segundo um dossiê entregue pelo GTNM-RJ e o Centro de Justiça Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU,
em maio de 2001. O GTNM-RJ registrou 23 casos de violência institucionalizada entre os anos de 1990 e 2001,
5
acontecem torturas em treinamentos das Forças Armadas brasileiras. Ao pensar em tais
exercícios surgem alguns questionamentos: o que se pretende com estes tipos de treinamentos,
que em quase todos os momentos além de exaustivos e exigentes, são extremamente
violentos? Não seriam uma forma de forjar homens que aceitem as torturas, as violências, as
humilhações como coisas naturais? Homens que ao serem treinados desta forma possam fazer
o mesmo com seus semelhantes?
Neste sentido, o trabalho monográfico foi dividido em dois capítulos.
O primeiro aborda o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as
tradições foram moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do
espírito militar – que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Para
isso, conceitua-se a tortura, trazendo seu histórico e os espaços e formas em que ela foi
empregada na sociedade.
A partir das ferramentas apresentadas no primeiro capítulo, foi possível analisar o caso
do cadete Lapoente, morto em treinamento militar. Para isso, foi relatado a aproximação com
o caso, o cenário em que ele se encontra (AMAN – sua história, suas características internas, a
formação e o treinamento) e o estudo de caso.
em quartéis das Forças Armadas. Entre estes casos estão presentes torturas, suicídios e mortes em treinamentos
exaustivos. Sobre o assunto consultar Tortura nas Forças Armadas (2001).
6
1 TREINAMENTO MILITAR: PRODUZINDO GUERREIROS OU ASSASSINOS?
Para compreender o fenômeno da tortura no exército, é preciso entender como as
tradições foram moldadas de diferentes formas ao longo da história, convergindo para a
construção do “tipo ideal de militar”, ou seja, o espírito militar (CASTRO, 1990), que
alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Nesse sentido, este
capítulo abordará os seguintes conceitos: invenção de tradições (HOBSBAWM, 1984 e
CASTRO, 2002), sociedade disciplinar, docilização dos corpos, hierarquia/disciplina
(FOUCAULT, 2005), espírito militar (CASTRO, 1990), treinamento militar, educação de
torturadores e tortura (COIMBRA, 2001, GIBSON & HARITOS-FATOUROS, 1986,
PIOVESAN e SALLA, 2001, ROZA, 2003, BIAZEVIC, 2006).
Segundo Hobsbawm (1984), as tradições são um
conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente;
uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (p.9).
Dessa forma, elas “são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que
obrigatória” (idem, p.10).
O autor as divide em dois grupos: genuínas e realmente inventadas, sendo o primeiro
nascido quase que naturalmente, sem a necessidade de imposição de determinado grupo,
pessoa etc, já a segunda surgiria a partir de uma imposição para que se consiga atingir
determinados comportamentos que beneficiem alguma ideologia ou grupo. Segundo o autor, o
segundo grupo é forjado e, por isso, menos importante. Castro (2002), no entanto, utiliza-se
parcialmente do conceito de invenção de tradições de Hobsbawm, uma vez que não acredita
existir uma gradação de importância entre os dois tipos, entendendo, então, as tradições
inventadas como um
fenômeno encontrado nos mais diversos países e contextos históricos, podendo
também ser patrocinado por diferentes agentes, desde o Estado nacional até grupos
sociais específicos. Comum a todos os casos, seria a tentativa de expressar a
identidade, a coesão e a estabilidade social em meio a situações de rápida
transformação histórica, através do recurso à invenção de cerimônias e símbolos que
evocam continuidade com um passado muitas vezes ideal ou mítico(p. 10-11).
Concordo com este, ainda que estabelecidas por imposição, elas permanecem sendo fruto de
construções históricas, marcadas pela permanente invenção da cultura humana, assim como as
ditas genuínas.
7
Apesar desse caráter de reinvenção da cultura, os indivíduos reconhecem determinada
prática ao fazerem menção a algo que já conhecem. Ou seja, passam a reconhecer as tradições
a partir de uma cristalização, como se nunca fossem mudar, como se fossem sempre da
mesma forma. Sobre isso, Castro diz: “O passado é recriado por referência a um estoque
simbólico anterior e precisa guardar alguma verossimilhança com o real, sob risco de não
vingar.” (idem, p.11)
O exército é uma instituição que se utiliza da invenção de tradições para impor
determinados comportamentos entendidos como inerentes a ele, através da instituição de
símbolos e criação de cultos, com a finalidade de promover a coesão e homogeneização entre
seus membros para que desapareçam os conflitos. Uma das principais características do
exército é estabelecer uma uniformidade interna, desaparecendo com qualquer tipo de
divergência, a fim de criar uma identidade única. As tradições são criadas, alteradas e
substituídas de acordo com a necessidade de se estabelecer a ordem e a unidade em diferentes
contextos.
Percebe-se isso ao estudar as correlações de forças da instituição ao longo da história.
Para definir a identidade do exército brasileiro adotou-se uma série de novos elementos
simbólicos, a fim de reorganizar esta instituição fragmentada. Havia como ideal a construção
da nação. Um exemplo de tradição inventada é o culto de Duque de Caxias, como patrono do
exército brasileiro. Em 25 de agosto de 1923, dia e mês do aniversário de Caxias, após 43
anos de sua morte, o Ministro do Exército Setembrino Carvalho determinou a oficialização da
data para homenagem ao duque. Em 1925, este dia transformou-se no Dia do Soldado.
Segundo Castro (2002), “a transformação da festa de Caxias para a festa do soldado servia
para vincular, simbolicamente, uma categoria genérica – o soldado brasileiro – a seu guia” (p.
17). Ainda neste ano, surge o termo “patrono” na tradição militar, uma vez que pela primeira
vez um general era homenageado por uma turma de formandos na Escola Militar do
Realengo9. O termo, oriundo do francês patron, ganha um duplo sentido: protetor e
padrão/modelo.
Anteriormente, o grande herói era o general Manuel Luís Osório, comandante das
vitoriosas tropas brasileiras na Batalha do Tuiuti10
(24 de maio de 1866). Carismático, foi
considerado o maior guerreiro do Exército brasileiro e soldado-cidadão – uma vez que
comandou a luta para a derrubada do Império. Era venerado e amado espontaneamente pelos
companheiros da corporação,ao contrário de Caxias, que representava uma figura agregadora,
9 Antigo nome da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
10 A Batalha do Tuiuti foi a maior da Guerra do Paraguai (1864-1870).
8
importante no momento em que a instituição tinha profundas divisões, e rigorosamente
disciplinado11
.
Essa mudança se deu pela necessidade de coibir os protestos e as revoltas instauradas
no interior da instituição, nascidas a partir do questionamento de determinados castigos e
relações hierárquicas abusivas, que poderiam aprofundar o processo de fragmentação da
mesma. Houve uma substituição do modelo ideal de soldado brasileiro. O objetivo a ser
alcançado no culto a Caxias, portanto, era a afirmação do valor da legalidade e o afastamento
do exército de assuntos ligados à política. Este também teve importante papel na fusão do
exército com o país e a forte ligação entre os dois, ou, pelo menos, na tentativa de construção
de um “Estado forte”. Sobre isso, Castro (2002) afirma: “Concordo com José Murilo de
Carvalho quando afirma que, para o projeto militar que veio se tornar hegemônico com o
Estado Novo, Caxias aparecia como símbolo da união militar e, acima disso, da própria
nação”. (p.22)
Além disso, pode-se destacar a instituição do dia do exército na data de 19 de abril, a
partir do decreto presidencial de 24 de março de 1994, referente à Batalha dos Guararapes
ocorrida na mesma data no ano de 1648. A ideia central desta comemoração era que “em
Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o exército brasileiros. A força
simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como
constitutivas do povo brasileiro – o branco, o negro e o índio.” (idem, p.69).
Na exposição de motivos do decreto citado, a justificativa era de que:
Tendo em vista que a gênese da nacionalidade brasileira brotava em Guararapes,
quando, em 1645, as três raças formadoras de nossa gente firmaram um pacto de
honra, assinando célebre proclamação, em que aparece, pela primeira vez, o
vocábulo PÁTRIA, razão pela qual foi constituída, militarmente, uma tropa que
passou a ser chamada de Exército Libertador ou Patriota, e que tal fato consagrou-se
com a 1ª Batalha de Guararapes, travada em 19 de abril de 1648, constituindo
importante fator para a formação do Exército Brasileiro; (...) é de todo interesse para
a Instituição que o dia 19 de abril seja transformado em data máxima para o Exército
Brasileiro, em virtude dos feitos realizados em Guararapes, culminando com o
nascimento do nosso glorioso Exército. (idem, p. 71)
Com o passar do tempo, as datas importantes vão mudando. A instauração desta ligada
à batalha, atualmente, tem relação direta com a defesa da Amazônia contra a cobiça
internacional, representando uma mudança de foco iniciada na Ditadura Militar, em que o
inimigo agora é externo, os estrangeiros – ao contrário dos anteriores que eram os internos,
como os subversivos e os comunistas. Isso remete ao conflito central da batalha dos
Guararapes – luta dos negros, brancos e índios contra um poderoso invasor: os holandeses –
11
Surge, posteriormente, o termo “caxias”, para denominar, então, pessoas corretas, “certinhas”, que se
enquadram nos regulamentos.
9
ressignificado na atualidade conforme exposto anteriormente. Não à toa, as seguintes frases
estão localizadas na entrada do Comando Militar da Amazônia: “Fizemos ontem... faremos
sempre”; “Guararapes... e surgiu o Exército”; “Exemplo e tradição que serão mantidos na
defesa da Amazônia.”.
A atuação do exército atualmente está ligada à Doutrina da Resistência, utilizada em
Guararapes, vista como uma doutrina militar autenticamente brasileira. Constitui-se pela
utilização de estratégias de guerra irregular, de guerrilha, como as emboscadas, contra um
eventual inimigo de maior poderio bélico. Dessa forma, compreende-se que o treinamento
militar não foi sempre da mesma forma, tendo seu atual padrão origem no espírito de
Guararapes, que forma o espírito militar (CASTRO, 1990), entendido como modelo ideal, isto
é, os valores, comportamentos e atitudes apropriados para a vida militar. A busca por ele
implica no formato do treinamento. O treinamento militar atual é baseado em tal doutrina,
significando a produção de soldados aptos a lidar dessa forma: sem regularidade, de acordo
com o movimento do inimigo, surpreendendo-o. Isso implica em um treinamento baseado na
necessidade de resistir, isto é, na aferição dos limites da resistência do recruta. A partir do
discurso oficial sobre o treinamento, em que haveria necessidade de testar e treinar os recrutas
para futuras situações de guerra, havendo a necessidade de aprender a aguentar a fadiga,
passar diversas horas sem alimentação ou sem dormir, justifica-se sua aplicação de forma
violenta e humilhante, sendo exaustivo em muitos momentos, com abusos sendo cometidos,
chegando até à tortura.
No entanto, segundo Gibson e Haritos-Fatouros (1986), esses treinamentos educam
torturadores. E como se consiste essa educação? A resposta pôde ser dada a partir de
depoimentos oficiais de ex-militares do Corpo de Polícia Militar da Grécia durante processos
penais e entrevistas de parte desses durante os julgamentos a que foram submetidos em 1975,
em função de sua participação em torturas e assassinatos na Ditadura do mesmo país (1967-
1974), além de entrevistas com soldados e ex-soldados do Corpo de Infantaria da Marinha e
dos Boinas Verdes do Exército, unidades de elite dos Estados Unidos da América.
Faz parte do treinamento, fundamento da educação, ritos de iniciação com objetivo de
marcar a diferença entre os recrutas e o restante da sociedade12
, a fim de mostrar que eles são
diferentes e superiores, realidade em que é necessário trabalhar outros valores que não os
“mundanos”. Para isso é preciso apresentar bruscamente a diferença entre a instituição militar
e o mundo exterior e testar o recruta no sentido de saber se é aquilo que ele deseja. Dessa
12
Ver também Castro (1990).
10
forma, os treinamentos são fisicamente brutais, onde os soldados são insultados, agredidos,
humilhados, além de serem obrigados a fazer exercícios físicos até o seu esgotamento, sendo
castigados por qualquer tipo de falta. Soma-se a isso a impossibilidade de fazerem
necessidades fisiológicas quando necessário e as poucas horas disponibilizadas para o sono.
Sobre isso, as autoras dizem: “’Aprenderás a amar el dolor’, prometió un oficial a un recluta.
La sensibilidad hacia la tortura embotada em sucesivas etapas. Primero, los hombres tenían
que suportarla en carne propria, como si la tortura fuera um acto normal13
.” (GIBSON &
HARITOS-FATOUROS, 1986, p. 25)
Citam ainda a importância que culpar e desumanizar as vítimas tem nos treinamentos e
ensinamentos, pois assim torna-se menos perturbador violentá-las. A partir de constante
intimidação física e psicológica que impedem o pensamento lógico, são geradas reações
necessárias para realizar crueldades. Há, portanto, uma dessensibilização sistemática a atos
repugnantes, expondo os recrutas a eles, para que lhes pareçam rotineiros e normais. Para
isso, observar outros membros do grupo a cometer atos violentos é bastante comum, a fim de
possibilitar que os observadores façam o mesmo14
. Nesse sentido, Foucault (2005)
compreende o treinamento como um conjunto de práticas que docilizam corpos, ou seja, em
suas palavras: “a disciplina fabrica assim corpos submissos exercitados, corpos ‘dóceis’. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência).” (p. 119).
Foucault diz ainda em seu livro Vigiar e Punir que a partir da
segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica de uma
massa informe, de um corpo inapto, faz-se a máquina de que se precisa; corrigiram-
se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do
corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se
prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos (2005, p. 117).
Ele mostra, portanto, como este corpo pode ser submetido, utilizado e treinado, para assim ser
transformado e aperfeiçoado no que interessa à sociedade capitalista. Entende que os
exercícios militares servem para transformar o soldado em uma máquina que deve ser cada
vez mais aperfeiçoada e lapidada. O corpo do soldado, o corpo dócil, está sendo preparado
para ser utilizado da forma que for mais conveniente.
O poder disciplinar tem como principal função “adestrar”, e esse adestramento serve
para retirar e se apropriar cada vez mais e melhor o que o corpo do outro pode de mais
13
“Aprenderás a amar a dor, prometeu um oficial a um recruta. A sensibilidade fazia a tortura embotada em
sucessivas etapas. Primeiro, os homens teriam que suportar em carne própria, como se a tortura fosse um ato
normal.” (tradução minha) 14
Vale ressaltar que a realidade dos treinamentos citados é muito próxima da brasileira, pois esta sofreu forte
influência dos treinamentos norte-americanos. Ver o documentário Escola das Américas (2003).
11
importante oferecer. Ele diz: “a disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de
um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício” (p. 143).
Fala também da hierarquia, o que fica evidente no trecho abaixo:
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um
aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em
troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se
aplicam. (p.143)
Claramente refere-se à vigilância hierárquica como um dispositivo de controle para o
exercício da disciplina. Esses elementos estão presentes no Estatuto dos Militares (1980) e na
Constituição Federal de 1988 como veremos a diante.
Portanto, apesar da ideologia dominante de que o treinamento pesado é necessário
para produzir militares aptos às adversidades, entende-se que este beira muitas vezes ao
exagero, com o cometimento, inclusive, de tortura. As perguntas que permanecem são: será
que os exageros são desvios ou têm intencionalidade? Se são intencionais, para que servem?
Compreender a tortura, seu conceito e história, se faz necessário neste momento.
1.1 PENSANDO A TORTURA: UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA
1.1.1 CONCEITUANDO A PRÁTICA DA TORTURA
Para começar, como se define o termo tortura? Claro que a resposta não é simples de
ser dada, e não se busca definições de dicionário. Mas, para o início da análise pode-se trazer
algumas definições. Para a Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, tortura é:
a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental
por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de
qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações,
confessar, ou por outra razão qualquer.
O Artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
de 10 de dezembro de 1984 afirma que
o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento,
físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter
dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puní-la por um ato que
ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de
intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em
discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um
funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas,
ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência.
12
A partir destas, pode-se pensar em três elementos essenciais, como os apontados por
Piovesan e Salla (2001):
a) a inflição deliberada de dor e ou sofrimentos físicos ou mentais; b) a finalidade do
ato (obtenção de informações e confissões, aplicação de castigo, intimidação ou
coação, e qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); e
c) a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com o Estado.
(p.31)
A tortura tem o propósito intencional de impor a dor física ou psicológica por
crueldade, intimidação, punição, para obtenção de uma confissão, informação ou
simplesmente por prazer da pessoa que tortura. No entanto, ela deve ser pensada como uma
prática cotidiana, uma prática de toda a sociedade e não só de quem dá o choque elétrico ou
asfixia alguém, mas também dos “amoladores de facas”, conceito cunhado por Baptista
(1999):
O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados,
agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou
personalidade podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver,
modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres,
psicanalistas etc. Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e
enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de
cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva.
Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a
violência da cotidianidade, remetendo-a a particularidades, a casos individuais.
Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. (p.46)
Há uma luta histórica no sentido de acabar com a tortura no cotidiano. A seguir, serão
elencados alguns dos principais avanços, no sentido de reconhecimento público, desta.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, só tratava
da tortura em seu Artigo V, que diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante”. O dia 26 de junho foi escolhido para ser o dia
mundial da ONU em apoio às vítimas de tortura, pois foi nesta data que entrou em vigor na
ordem internacional a Convenção Contra a Tortura, em 1987.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Artigo 5º, inciso
III, diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O
governo brasileiro ratificou a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 1989, e aprovou a lei nº 9.455, que tipifica
a tortura como crime somente em 7 de abril de 1997 (Piovesan &Salla, 2001, p.31). Ao
tipificar esta prática como crime, ela se torna um tipo penal autônomo, deixando de ser punida
simplesmente como lesão corporal ou constrangimento ilegal, mas, ainda assim, a tortura é
um método recorrente nas nossas forças policiais, militares e no cotidiano de nossas prisões.
Todos os Estados-membros que aceitaram as decisões tomadas na Convenção da ONU, citada
13
acima, tem que adotar “medidas capazes de prevenir, punir e erradicar essa prática, que
afronta a consciência ética contemporânea” (Idem, p.31).
O artigo 142 da Constituição Brasileira, em seu caput, diz que:
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica,
são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e
destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por
iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
O Estatuto dos Militares, em seu artigo 2º, lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980, ao
apresentar as funções das Forças Armadas, oferece definição bastante parecida, sendo estas
essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela
Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a
garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais,
permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a
autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.
Pode-se perceber a partir deste recorte do marco legal que os dois principais pilares de
sustentação das Forças Armadas são a hierarquia e a disciplina, conceitos já explorados na
primeira parte deste capítulo.
As Forças Armadas destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes
constituídos, a lei e a ordem. Um dos objetivos da existência da mesma, segundo o documento
supracitado, é garantir a Constituição Federal (inclusive no que concerne à tortura), mas,
infelizmente, sabe-se que ocorreram e ocorrem vários casos de tortura dentro das Forças
Armadas. Instituições estas que foram criadas para proteger, acabam por cometer tais
atrocidades. Segundo um dossiê entregue, em 2001, pelo GTNM-RJ e pelo Centro de Justiça
Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU, no período que vai de 1990 até 2001, foram
publicizados 23 casos de violência institucionalizada nas Forças Armadas brasileiras. Entre
esses casos aparecem: assassinatos, torturas – algumas resultantes em morte, suicídios15
e
mortes em treinamentos militares exaustivos.
Para compreender essa estreita relação entre treinamento militar e tortura na
atualidade, faz-se necessário aprofundar o conhecimento sobre a história da tortura.
15
Entre os casos de suicídio dois chamam mais atenção. O primeiro deles é o de Emerson Santos de Melo
(1992), 20 anos, soldado do Exército que servia no 3° Batalhão Especial de Fronteira (Macapá). Ele tomou uma
mistura de medicamentos e veio a falecer, anteriormente deixou um bilhete dizendo: “como já disse antes esse é
o pior ano de minha vida. Nunca pensei que um dia iria passar por tantas humilhações de uma vez só na vida”. O
outro caso é o do estudante do Colégio Militar do Rio de Janeiro Celestino José Rodrigues Neto (1990), 14 anos,
que, segundo sua mãe, consultou um livro durante uma prova de Geografia, o que acarretou à humilhação
pública diante dos colegas e da mãe no pátio do colégio. Suicidou-se dois dias depois, deixando uma carta com
um pedido de desculpas para a mãe. Aqui, os motivos foram aparentemente as humilhações sofridas por ambos,
mas até nesses casos houve uma pressão do Exército para que os familiares dos rapazes não tornassem estas
histórias públicas. Sempre tentando abafar os casos, chama a atenção de como nossas Forças Armadas fazem de
tudo para não terem suas imagens manchadas, ainda na constatação da violação de direitos.
14
1.1.2 DAS ATROCIDADES TRIBAIS AO EXTERMÍNIO DOS FAVELADOS
A cena é extremamente cruel, e meu punho a transcreve a duras penas; mas se o
calafrio que sinto servir para poupar nem que seja apenas uma vítima, se se deixar
de inflingir uma única tortura graças ao horror que passo a expor, será bem
empregado o doloroso sentimento que me toma, e essa esperança é minha
recompensa. (Verri, 2000)
A tortura deixou, para sempre, de existir. (Victor Hugo, 1874)
Há notícias de prática de tortura desde a Antiguidade. Segundo Gonzaga (1993), o
relato mais antigo sobre este dispositivo é um “fragmento egípcio relativo a um caso de
profanadores de túmulos” (p.32). A tortura se encontra presente em toda a história da
humanidade. Como já foi dito, desde a antiguidade com os egípcios, persas, gregos e
romanos, passando pela Idade Média com os suplícios públicos e a Inquisição, depois com os
grandes descobrimentos e, mais tarde, com o advento do capitalismo industrial. Escravidão,
guerras, regimes ditatoriais, punição aos criminosos ou uma forma de controle para uma
determinada parcela da população, a tortura aparece em diferentes momentos e contextos
sempre com a intenção de intimidar, silenciar e reprimir.
Segundo os historiadores Alec Mellor e Ryley Scott (apud MATTOSO, 1986), pode-
se dividir a história da tortura em três fases. A primeira fase seria a das atrocidades tribais da
dita tortura pré-clássica. A segunda é a chamada tortura institucionalizada das tiranias e
impérios antigos, medievais e modernos. E por último, temos a tortura tida como clandestina
nas repúblicas e nas ditaduras contemporâneas. É importante frisar que qualquer forma de
classificação e divisão da história desta prática é muito limitada.
A fase das atrocidades tribais nos apresenta diversas modalidades de tortura que
atingem a diferentes objetivos. Um deles é entender esta violência como uma provação, como
um ritual de iniciação à vida adulta e à religião. O futuro guerreiro tinha o dever de aguentar
com bravura e firmeza, sem gritar e sem implorar piedade, marcando o início de outra etapa
da vida. Nesta fase temos alguns exemplos de castigos catalogados e classificados em
códigos: código de Dungi; código de Hamurabi; Tora e Pentateuco; código turiano; tortura
probatória na Grécia; e a tortura probatória em Roma: o quaestio.
Segundo Verri (2000), o uso sistemático da tortura, na Europa, ocorreu após o século
XI, atingindo seu apogeu entre os séculos XIII e XVIII, com a Inquisição, período histórico
em que a segunda fase da tortura é diretamente relacionada. Alguns fatos exemplificam a fase:
os cristãos perseguidos e torturados no Império Romano, e posteriormente, a Igreja Católica
15
levando à frente a Santa Inquisição. A perseguição dos seguidores de Cristo ilustra a tortura
probatória: “em vez da confissão de um crime, o que se exigia era a regeneração da fé”.
(MATTOSO, 1986; ROZA, 2003; BIAZEVIC, 2006). Ela era entendida como um
“instrumento de salvação de almas”. Pode-se compreender isto a partir do caso espanhol: a
rainha Isabel recebeu permissão do papa para “purificar seus súditos”. Entre 1481 e 1517,
estima-se que 13 mil pessoas tenham sido queimadas vivas e outras 17 mil condenadas a
diversos tipos de punição (CHINELLI e VITURINO, 2004) pela Inquisição. A tortura não era
um monopólio da Igreja, estava presente nos Estados europeus, tanto com viés probatório,
quanto com viés punitivo (ROZA, 2003), além de servir como intimidação.
É importante destacar que o direito criminal clássico dava uma grande importância à
confissão do acusado. O modelo inquisitorial de interrogatório colocava a tortura como um
dos dois métodos utilizados – o outro era o juramento – de busca da verdade. A verdade era
arrancada a partir da violência física, e depois repetida diante do juiz. Assim, se chegava a
uma confissão "espontânea". Foucault nomeou este funcionamento do interrogatório como
"suplício da verdade". A tortura era legal, estava presente nos códigos jurídicos, isto é, era
uma prática regulamentada. (FOUCAULT, 2005; VERRI, 2000)
Dessa forma, o suspeito que sofria a tortura ordenada pelo juiz era submetido a uma
série de provas, que vão tendo sua severidade aumentada. Segundo Foucault (idem), o
torturado ganha enquanto está suportando as sevícias e perde quando confessa. Se o acusado
não confessasse, o juiz, ou se via obrigado a retirar as acusações, ou o acusado, pelo menos,
não seria condenado à morte. Por isso, quando se tinha muitas provas contra alguém que teria
cometido um crime bárbaro existia a recomendação de que o acusado não fosse submetido ao
suplício do interrogatório, pois, caso ele resistisse, não seria condenado à pena capital. Temos
assim, com a tortura legal, além do fato de fazer confessar, um quê de duelo entre juiz e
acusado. (FOUCAULT, 2005 e VERRI, 2000)
Nesse sentido, um ato de instrução e um elemento de punição encontram-se
misturados num mesmo momento. O castigo é utilizado como método investigativo. Como
poderia o fim ser utilizado como meio? Isso pode se explicar pelo fato de todo suspeito, já ser
considerado como um pouco criminoso. Então, o suplício no interrogatório era uma forma
parcial de punição. Usando as palavras de Foucault (2005, p. 38)
a tortura judiciária, no século XVIII, funciona nessa estranha economia em que o
ritual que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O
corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de
extorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um
elemento de inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura é
ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução.
16
O mesmo autor acredita que o suplício é uma técnica balizada por normas legais. O
suplício, como pena,
deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa
quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar,
comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é
simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma
graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação — que reduz todos os
sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o
esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira
e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida
no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’ [...] O suplício repousa na arte
quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz
correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos
sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas
vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate
sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras
detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de
agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente
imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de
piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua
furados) [...] um longo saber físico-penal [...] Além disso, o suplício faz parte de um
ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em
relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no
corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua
vítima; o suplício, mesmo se tem como função ‘purgar’ o crime, não reconcilia;
traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não
devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da
exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. E pelo
lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por
todos, um pouco como seu triunfo. (idem, p. 31-32)
A redução dos suplícios públicos, ainda segundo Foucault (2005), ocorre com a grande
transformação política – emtoda a Europa – de 1760-1840. A execução passou a ser um
segredo entre a justiça e o condenado. Mas não chegou totalmente ao fim, as torturas
persistiram, em diferentes lugares.
No fim do século XVIII, Beccaria (2005) e Verri (2000) denunciaram a tortura como
sendo o resto das barbáries de uma outra época e em 1874, Victor Hugo chegou a dizer que "a
tortura deixou, para sempre, de existir".
No entanto, no Brasil, a tortura é um dispositivo presente desde o início da
colonização. Os índios, que não eram considerados humanos pelos colonizadores portugueses,
sofriam todos os tipos de suplícios e violências. Os escravos negros vindos da África eram
comercializados como mercadorias. Os “perigosos”, criminosos e perseguidos pela
Inquisição, também eram torturados. Os trabalhadores na década de 1930, no Estado Novo,
quando reivindicavam seus direitos sofriam represálias físicas e emocionais. Durante a
Ditadura Militar (1964 – 1985), os “subversivos” que lutavam contra o regime foram
violentamente perseguidos.
17
Observa-se que a tortura só foi oficialmente condenada a partir do artigo 5º da
Constituição Federal de 1988, afirmando que “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a
penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”, a partir da luta de movimentos
sociais na Constituinte.
Ao longo do século XX, portanto, a tortura permanece de diversas formas na
sociedade brasileira. O espírito militar, tendo sua lógica de treinamento como uma de suas
facetas, e amplamente relacionado com a primeira fase da tortura apontada acima, contribui
para que o dispositivo da tortura continue a ser utilizado. A polícia militar, reconhecendo o tal
espírito como fundante de sua natureza, entende-se no papel de guerreiro em batalha contra os
“diferentes”, “criminosos”, “marginais”, “perigosos”, “desclassificados sociais” e opositores
políticos (COIMBRA, 2001), vistos em muitos momentos como não humanos e por isso
passíveis a sofrer torturas diversas.
Isto exposto, é possível analisar o caso Lapoente, em que a tortura foi empregada no
treinamento militar chegando à sua morte.
18
2 “VERÁS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA”: O LADO MAIS
PERVERSO DO TREINAMENTO
Até o ano de 2008, a equipe de Psicologia do NIAC, então composta por cinco alunos
de graduação e um coordenador, concentrava suas atividades ao atendimento interdisciplinar
às diversas demandas que se apresentavam ao Programa. As demandas relativas a
atendimento psicológico e avaliação neuropsicológica eram encaminhadas ao Programa
Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão em Avaliação, Diagnóstico e Intervenção
Psicológica (PROIPADI). Com o desligamento deste da Divisão Integração Universidade
Comunidade (DIUC), divisão que concentra programas e projetos de extensão na UFRJ, e o
aumento desta demanda, a equipe decidiu reformular sua prática. Neste momento, evidenciou-
se a necessidade de qualificar-se para também realizar atendimento psicoterápico.
Neste momento, aproximou-se do GTNM. Tal entidade possui uma equipe clínica que
realiza atendimentos individuais e em grupo para pessoas e familiares de quem sofre ou
sofreu algum tipo violência. O contato com psicólogos e psicanalistas que trabalhavam no
projeto, ajudou-nos a compreender o dispositivo grupo como um potente instrumento para se
pensar outras maneiras de lidar com o sofrimento.
Concomitantemente a este processo, passei a freqüentar as reuniões semanais do grupo
que tem como finalidade discutir questões referentes à violência. Em uma dessas, conheci os
pais de Márcio Lapoente, cadete da AMAN, morto em 1990, aos 18 anos, em decorrência de
violência em treinamento militar. O caso tocou-me profundamente, por isso utilizo-o como
analisador para pensar os treinamentos.
Neste sentido, discorrerei sobre o treinamento realizado por Lapoente e seu grupo no
dia 09/10/1990 na AMAN e sobre seus desdobramentos. Mas, antes disso, faz-se importante
apresentar questões relativas à Academia em questão, pontuando brevemente sua história,
características internas e a formação oferecida, para compreender o caso do cadete estudado,
como também a estrutura do fenômeno, uma vez que esta não é a única morte ocorrida em
treinamento. Infelizmente, elas se repetem.
2.1 AMAN: HISTÓRIA, CARACTERÍSTICAS INTERNAS, FORMAÇÃO E
TREINAMENTO
A Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), primeira escola militar das
Américas, foi criada em 1792, com o nome de Real Academia de Artilharia, Fortificação e
19
Desenho, na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, está localizada no município de Resende,
estado do Rio de Janeiro, que dista cerca de 170 km da capital fluminense. Esta é responsável
pela formação básica dos oficias do Exército brasileiro16
, ou seja, a AMAN é a primeira etapa
para a formação dos oficiais do Exército. Os alunos são oriundos da Escola Preparatória de
Cadetes do Exército (EsPCEx)17
.
Ao entrar na academia os alunos recebem o título de cadetes. São quatro anos de
curso, em que estes recebem instruções militares e fazem diversas disciplinas acadêmicas, que
são divididas em fundamentais e profissionais. Existe esta divisão nas disciplinas porque as
primeiras têm conteúdos que poderiam ser aprendidos fora da academia, definido por Castro
(1990) como o “embasamento cultural necessário para o prosseguimento na carreira” (p.11),
já as outras são estritamente militares, definidas pelo mesmo autor como de “conhecimento
técnico necessário para atuar até o posto de capitão” (idem). As instruções militares são
constituídas de treinamentos diversos – físico, sobrevivência e aptidões, além de marchas e
conhecimento de regulamentos.
A partir desse espaço, é possível observar como o conceito de invenção de tradições
(HOBSBAWM, 1984; CASTRO, 2002), a partir dos ritos de iniciação e dos treinamentos,
carregados por abusos e tortura, levantados no primeiro capítulo, se dá na prática. Para isso,
será analisada a realidade da AMAN no final da década de 1980 e início da década de 1990,
recorte temporal onde se encontra a morte do cadete Márcio Lapoente da Silveira, utilizado
neste trabalho como analisador do treinamento militar. Apesar de o caso estudado datar de
duas décadas atrás, a maior parte dos aspectos referentes à Academia não apresentou
mudanças significativas em relação aos dias de hoje. Explica-se assim a mudança de tempo
verbal (passado/presente) utilizada no texto.
No período de adaptação, anterior à matrícula, os novos alunos ainda não são
considerados cadetes e sim candidatos a cadetes. Constituído por treinamento coletivo de
marchas, continências, posturas militares, educação física, entre outros, tem como objetivo
levar à desistência os que não têm “vocação” para a carreira militar. Além disso, de 6 às 22h
do dia são ocupadas com atividades, entre elas o “exercício de vivacidade” que são ordens
dadas em sequência rápida por oficiais, geralmente tenentes, sem uma finalidade aparente,
como, por exemplo, subir e descer escadas carregando peso ou montar e desmontar
16
A AMAN é a primeira etapa para se atingir o generalato. O cadete após este curso se torna aspirante-a-oficial.
Alguns anos depois, no posto de capitão, o oficial tem a possibilidade de cursar a Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO). E quando atingir a patente de coronel poderá aspirar uma vaga na Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército (ECEME). Assim, podendo chegar a ser general. 17
Localizada na cidade de Campinas, estado de São Paulo.
20
equipamentos. Nesse período, os candidatos não têm licenciamento, ou seja, não podem ir
para suas casas nos finais de semana – em torno de duas semanas a um mês, o que faz parte da
aferição da vontade e possibilidade deles de transcenderem as vidas “comuns”. Terminado
este período, os remanescentes são matriculados, passando a ser cadetes, e participam da
solenidade de passagem pelo Portão Monumental, que separa física e simbolicamente a
academia e o mundo exterior. Na entrada, encontra-se escrito: “Entrada dos novos cadetes”, já
na saída, encontram 4 anos depois “Saída dos novos aspirantes”.
O curso básico, à época de Lapoente, de duração de um ano, foi integralmente pensado
no sentido de homogeneizar os cadetes o mais rapidamente possível em relação ao nível de
formação militar, uma vez que os cadetes ingressantes vinham de diferentes origens escolares
podendo ser Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), Colégios Militares e
concurso de admissão (oriundos de colégios civis)18
. Isso acontecia em função da disparidade
das experiências: os alunos da EsPCex já estavam acostumados e conheciam várias rotinas
militares e viviam em sistemas de internato, os de Colégios Militares conheciam algumas
rotinas, mas o regime era externato, já os de colégios civis não tinham experiência alguma
com a vida militar.
Os trotes, terminantemente proibidos pelo regulamento e passível de punições
disciplinares, começam a partir da matrícula, quando inicia o contato entre a nova turma e o
restante do corpo discente. Tradicionalmente, constituem-se de imitação de animais, limpeza
de alojamentos, contação de histórias, corrida, flexão por longos períodos de tempo. Sobre o
mesmo, um recruta relata “é aquele negócio: aqui na academia é lugar para homem, não é
lugar pra criança e nem viadinho” (CASTRO, 1990, p.29), essa fala permite entender o trote
como uma “prova de fogo” (idem) de que o cadete é “homem” e merece ser militar. Alguns
cadetes e oficiais apresentam outras explicações, uns dizem que o trote é uma tradição, já
outros acreditam que o trote tem uma função pedagógica porque o “bicho” (o aluno do 1°
ano) aprende a obedecer e o aspirante19
(4° ano) a ordenar/comandar. Além disso, os alunos
relatam a importância deste para gerar uma aproximação entre os cadetes.
A noite de São Bartolomeu marca o trote coletivo mais famoso e de longa tradição na
academia, uma vez que antecede a cerimônia de entrega dos espadins de Caxias. Esta se dá na
metade do primeiro ano e é quando os bichos passam a ser considerados oficialmente cadetes.
Os trotes diminuem, mas a pressão dos oficiais, principalmente dos tenentes e capitães,
permanece.
18
Atualmente, os cadetes só são oriundos da EsPCex. 19
Os alunos do 2° ano são chamados de calouros e os do 3° de afins.
21
De acordo com Castro (1990),
no curso básico da AMAN o novato passa pelos rituais que levam à passagem da
condição de bicho à de cadete, que coincide com a passagem de condição de paisano
à de militar. A distinção entre militares e paisanos é o passo primordial, instaurador,
do espírito militar. Mas não é o único (...) Ao terminar o curso básico, o cadete já
não é mais considerado paisano, mas é um militar ainda ‘em estado bruto’, que tem
de ser ‘lapidado’ pela Arma. (p. 51)
O Exército brasileiro é composto por cinco Armas: infantaria, cavalaria, artilharia,
engenharia, comunicações; além disso, há também o serviço de intendência e o quadro de
material bélico. Os cadetes da AMAN não fazem essa distinção – Arma, serviço e quadro,
sendo todos entendidos como Arma no dia-a-dia da instituição.
A escolha da Arma (a depender da classificação escolar dos alunos no 1º ano, ou seja,
os melhores alunos escolhem primeiro e assim sucessivamente, o que significa que os últimos
classificados passam a não ter mais direito de escolha) determina o tipo de soldado que será
formado, isto porque os diferentes subgrupos têm seu espírito, conformado a partir da
formação, da atuação e das formas de se colocar no mundo.
O treinamento militar é transversal a todo processo de lapidação do espírito militar, ou
seja, acontece do início ao fim da estadia na Academia. No entanto, a forma e a exigência do
treinamento são diferentes de acordo com a Arma escolhida. Por exemplo, a infantaria é a
Arma que tem os treinamentos mais violentos, mais pesados e mais exigentes fisicamente,
pois é composta pelos soldados que estão mais à frente do combate, mais próximos ao
“inimigo”, justifica-se, então, que os infantes são os que devem ter mais resistência física para
suportar as adversidades que aparecem. Nesse sentido, o treinamento instrui para capacitá-los
a longas caminhadas com obstáculos naturais, a corridas, a rastejar para “escapar dos tiros
inimigos” (CASTRO, 1990, p. 59). Além disso, são treinados para suportar a falta de sono, a
fome, a falta de conforto, o cansaço. Todos esses elementos conformam o que Castro (1990)
chama de vibração, que é o que totaliza, o que faz pensar no grupo como uma coisa só. Nesse
sentido, entende-se que os infantes representam a “caricatura” da formação do espírito militar,
uma vez que, através do treinamento mais pesado, desenvolvem características fiéis do que é
entendido por militar.
2.2 CADETE LAPOENTE, PRESENTE!
Márcio Lapoente da Silveira nasceu em 1972, no Rio de Janeiro. Filho de militar da
marinha, mudou-se aos sete anos para Florianópolis, voltando para a cidade natal poucos anos
22
depois. Morou com sua família dentro da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa
Catarina, onde, assistia os treinamentos e, inclusive, aprendeu a nadar. O esporte sempre foi
muito caro a ele, já no Colégio Militar do Rio de Janeiro participou dos times de futebol,
handebol e esgrima. A música também era sua paixão, participando, pois, da banda da escola.
Sempre foi um aluno brilhante, os pais nunca foram chamados para receber nenhum tipo de
reclamação do garoto.
Aos dezessete anos, entrou na AMAN. Apesar da saudade que sentia, Carmem Lúcia,
sua mãe, acreditava que, na Academia, o filho estaria protegido da insegurança da rua, pois
temia que ele fosse vítima de assaltos e da violência. Em suas palavras, eternizadas no
documentário Cadete Lapoente (2009), Márcio
foi para a academia e a gente sentia muita falta dele. Eu lembro que às vezes eu
mesma dizia para ele: ‘pô, Márcio, você vai lá para a academia’. Ele ia para a
academia domingo à noite e só voltava na 6ª feira. Aí quando a gente deixava ele na
rodoviária e dizia: ‘poxa, Márcio, você vai pra lá e eu vou morrer de saudade, mas a
única coisa de bom que tem é que lá eu acho que você está seguro.
Infelizmente, não estava.
Márcio sempre comentava em casa sobre os treinamentos. Dizia que, apesar de serem
rigorosos, era possível fazê-los. No entanto no primeiro fim de semana do mês de outubro de
1990, Márcio estava temeroso. Sua mãe relata que ele estava tenso, pois o instrutor que iria
comandar o treinamento era tido como “mau” e “perverso”.
Na terça-feira, dia 09 de outubro, segundo o jornal O Dia de 26 de agosto de 1991
(TANCREDO, 2010), a turma de cadetes do primeiro ano acordou às três e meia da manhã
para se preparar para a realização de uma marcha acelerada – exercício convencional no
treinamento. Seus materiais contavam com fuzil, mochila carregada de apetrechos pesando
aproximadamente treze quilos. A marcha tinha como fim o campo de exercícios militares que
ficava a 4,5 quilômetros do alojamento. De imediato, já impressiona a distância e o tempo
para percorrê-la.
Às sete horas, o responsável pela instrução, tenente Antônio Carlos de Pessoa - apesar
de não ser o único oficial a participar do treinamento - sentindo a falta de alguns cadetes,
refaz o caminho a fim de encontrá-los e estimulá-los a chegar ao campo de exercícios. Vários
estavam exaustos, alguns já se arrastavam e Lapoente, por sua vez, era carregado por outros
dois colegas. O tenente, ao se deparar com tal cena, se enfurece e manda os dois que
carregavam o rapaz a largá-lo e seguirem. Após depreciá-lo, obrigou-o a ir sozinho até o fim
do percurso.
23
Ao chegar ao campo de exercícios, Lapoente cai ao chão. De Pessoa, passa a desferir
uma enxurrada de xingamentos ao cadete, dizendo que ele estava fazendo "corpo mole" e que
era fraco. Neste momento, o tenente obriga-o a descer e subir diversas vezes uma rampa e
iniciar exercícios de solo. Após a repetição sucessiva do exercício, o cadete, ainda munido de
fuzil e mochila, cai e, por isso, passa a receber chutes nas costas, nas pernas e na cabeça –
lugares fatais. Ainda assim, é obrigado a continuar. Ao cair de novo, é socorrido por seus
colegas que logo foram repreendidos. Após uma nova sessão de pontapés, Lapoente é
obrigado a realizar flexões. Não tendo mais forças para continuar, desmaia. Durante este
processo, embora outros cadetes também tenham passado mal, o tenente-instrutor De Pessoa
usa o episódio como exemplo para que os outros alunos entendam que isto é o que acontece
com os recrutas que não querem treinar, ou, novamente, em suas palavras, com os que fazem
"corpo mole".
É importante salientar que as falas de reprovação dos outros alunos para com o que
estava ocorrendo, eram silenciadas pelo medo e pelo respeito à hierarquia. O Capitão Leal, o
médico e os demais tenentes, também presentes, não se posicionaram, se mostrando
completamente negligentes. Os abusos no treinamento podem ser entendidos, portanto, como
uma prática comum naquele espaço.
A já conhecida sessão se repete. Chutes, pontapés e xingamentos são proferidos ao
rapaz, mas é aprimorada: desta vez, ele recebe diversos golpes desferidos por fuzil em sua
mão esquerda. Ao recuperar, minimamente, os sentidos, Capitão Novaes diz a ele que "a sua
cara é de quem vai morrer". Mais uma vez, desfalece e De Pessoa realiza diversos cortes em
seu braço com uma faca e joga terra por cima, com o intuito de, segundo o próprio, simular
um formigueiro para que o cadete se reanimasse. Isto não aconteceu, o que fez com que os
instrutores pedissem para que o médico presente o socorresse. Após examiná-lo, o médico diz
que não tem o que fazer naquelas condições e que o rapaz deve ser mandado imediatamente
ao hospital da AMAN.
No entanto, Lapoente só é retirado do campo de exercícios uma hora após o veredicto
do médico. Neste meio tempo, ele ficou exposto ao sol aguardando a chegada da ambulância.
Já no hospital local, averiguou-se que o cadete deveria ser transferido para o Hospital Central
do Exército (HCE), em Triagem, Rio de Janeiro, a mais de 180 quilômetros do local do
ocorrido, uma vez que ali não se teria condições de tratá-lo.
Com a chegada de Márcio ao HCE, a família é avisada. No entanto, é proibida a visita
dos mesmos ao cadete, pois, segundo os responsáveis pelo cuidado médico, o momento não
era apropriado, pois ele estaria com meningite. Após duas horas, é dada a notícia do
24
falecimento de Lapoente. Neste momento, a mãe desesperada invade o quarto em que o filho
estava e vê diversas marcas em seu corpo. A mão, disforme pelos golpes de fuzil, é o que
mais chama sua atenção. Apesar de afirmarem que o rapaz tinha morrido no HCE, o laudo
apresenta que a morte aconteceu na Via Dutra, ou seja, horas antes do informado aos pais.
A transferência foi alvo de muitas críticas à época. A ambulância que fez o translado
do cadete era muito velha e, devido à falta de ventilação e ao calor muito forte, fez-se
necessário viajar com as portas traseiras abertas. Além disso, os envolvidos no caso,
afirmavam que o hospital local não tinha condições estruturais de atender tal problemática e
por isso era necessária a transferência para o HCE. Contudo, a cidade de Resende possuía
hospitais que eram adequados para atender o cadete.
A partir do ocorrido, a família buscou a Justiça Militar a fim de averiguar o que
realmente tivera ocorrido e para que os responsáveis respondessem criminalmente por tal ato.
Em um primeiro momento, decretou-se a absolvição de De Pessoa, por supostamente não ter
culpa no ocorrido, uma vez que o rapaz morrera de meningite. Não satisfeitos com a decisão,
os familiares recorrem e um novo inquérito militar culpabiliza o tenente, pois considera que
houve negligência, abusos e excessos no treinamento. No entanto, segundo a instituição
militar, em nenhum momento, o caso é entendido como tortura.
Os familiares dos recrutas que eram testemunhas, começam a fazer pressão para que
os pais do cadete deixem o caso ''pra lá'', considerando que isto não traria a vida de Lapoente
de volta. Segundo fala de Carmen, mãe do cadete, "[a luta] não trará a vida de Márcio de
volta, mas poderá evitar que outros morressem". Esta posição das famílias dos colegas de
Marcio pode ser entendida como uma resposta ao medo que sentiam a partir das ameaças que
estavam sofrendo. A família de Lapoente também sofria, no entanto, significava a luta de
outra maneira.
A família de Lapoente luta por anos para a condenação dos autores da violência que o
mesmo sofreu. Entre idas e vindas nos trâmites da justiça brasileira, após absolvições e
recursos à responsabilização do oficial De Pessoa – condenado pelo Superior Tribunal Militar
à pena por “maus tratos à inferior hierárquico” – em sede criminal, somente em 2006 ocorreu
o julgamento com a condenação da União e do oficial a pagarem uma pensão mensal, a contar
da morte até a data em que Lapoente completaria 71 anos, mais o pagamento de danos morais
(TANCREDO, 2010). Decisão, mais uma vez, contestada pelos réus. Importa destacar que
foi formulado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA), pedido de condenação do Estado
brasileiro pela não punição criminal do causador direto do evento criminoso, bem
como pela injustificada demora na solução das ações, o que remeteu a investigação
sobre a morte do Cadete Lapoente para a Corte Internacional. (idem)
25
A partir da luta, o caso, apesar de não ser o único, foi o que mais teve repercussão na
mídia. Ainda assim, poucos espaços foram abertos para esta discussão. Fritz Utzeri, colunista
do Jornal do Brasil, à época, escreveu diversos artigos a fim de publicizar o ocorrido e cobrar
uma resposta dos responsáveis, para que, segundo suas próprias palavras, ''o corporativismo
não acobertasse, mais uma vez, esses casos". Ele considerava que o episódio não era fruto de
uma fatalidade, mas sim um ato recorrente que constituía tortura. Além disso, Fritz, baseado
em relatos de outros recrutas, publicou que Lapoente não foi o único a passar mal naquele dia,
mas foi a "bola da vez".
Outro canal de divulgação foi o programa Sem Censura da TV Brasil, apresentado por
Leda Nagle. Os pais de Lapoente foram convidados para uma entrevista de relato e discussão
do ocorrido. Mas durante o programa, um capitão e um tenente do exército chegaram para
ouvir o que eles tinham a dizer. Colocaram-se em um ponto do estúdio em que era possível a
observação sem que fossem filmados. A apresentadora, então, avisou aos pais sobre a
presença deles e perguntou se eles se sentiam intimidados e eles disseram que sim, mas que
iriam continuar a entrevista. Além disso, os mesmos foram ameaçados por diversas vezes. A
mãe conta no documentário (2009) que certa vez, logo após ter sido capa do Jornal do Brasil,
foi questionada se não tinha medo de ser “atropelada” na rua. A todo momento tentava-se
censurar verdades, silenciar suas vozes, interromper a luta.
Em 2012, o Exército Brasileiro pediu, oficialmente, desculpas aos familiares de
Márcio pela tortura e maus tratos durante a formação da AMAN. Em seu discurso, de acordo
com matéria da revista Caros Amigos do dia 09 de outubro do mesmo ano, disposta em seu
sítio na internet,
antes de descerrar uma placa alusiva ao filho e demais cadetes mortos, Marcia
Lapoente da Silveira lembrou que a sua família adotou o lema “Esqueçamos o luto e
vamos à luta“ que resultou no reconhecimento oficial do excesso cometido pelo
Exército. A mãe do cadete morto na Aman, em seu discurso exortou os militares a
respeitarem os direitos humanos e darem ênfase a essa matéria nos currículos de
formação dos oficiais militares.
A revista aponta ainda que, “apesar de informados sobre a cerimônia na Aman,
nenhum órgão de imprensa cobriu o ato de pedido de desculpas do Exército.”
26
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS – “ESQUEÇAMOS O LUTO E VAMOS À LUTA”
Este trabalho permite-nos pensar em como esse tipo de treinamento afeta a sociedade
em geral. A partir das ferramentas utilizadas ao longo da pesquisa, os questionamentos feitos
no texto, puderam ser analisados mais profundamente.
Várias entidades de direitos humanos alertam à sociedade para a importância quanto à
gravidade, persistência e conseqüência da tortura no país. Especificamente, o GTNM/RJ, a
partir da aproximação com o caso Lapoente e, consequentemente, sua família, passa a
questionar além da tortura, a formação, nesse caso, militar, de quem as comete.
“Esqueçamos o luto e vamos à luta” tornou-se o lema da família Silveira, significa não
esquecer o que aconteceu, lutar para que a história não caia no esquecimento, mesmo que haja
a dor, deve-se mostrar a verdade, buscar a justiça. Para isso, é necessário publicizar a história,
contar os fatos, conquistar mais uma testemunha, que segundo Gagnebin (2006)
também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num
revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas
porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento
indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-
lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.
(p.56)
A testemunha não é só a que vê algo acontecer, essa seria a “testemunha direta”, mas
também a que fora dos lugares de algoz e vítima, recebe, se apropria e repassa a história,
dando “novamente um sentido humano ao mundo” (p. 56), para que nunca se esqueça e nem
se repita.
Não repetir não significa somente acabar com a tortura no treinamento, mas romper o
ciclo: o tipo de treinamento – violento, desumano e cruel, leva à criação de valores
relacionados a ele, que se refletem na sociedade a partir da prática cotidiana desses agentes. É
importe salientar que no mundo atual, fica cada vez mais evidente um novo papel para as
Forças Armadas, que as colocam em ligação muito próxima com a população. Cada vez mais
os militares, principalmente os do Exército, envolvem-se com questões vinculadas à
segurança pública. Essa relação não é direta a todo o momento, mas ela existe e intensifica-se
em determinados eventos e operações, como a Rio+20, a Eco92, e também a ocupação do
Alemão e a implementação das Unidades de Polícia Pacificadoras, ainda que no treinamento
não haja conteúdos voltados para isso. Isto quer dizer: atualmente, os militares são treinados
para guerras, mas quando não estão em batalha desenvolvem atividades junto à população,
mesmo que tenham sido treinados para combater o inimigo.
27
Um caso emblemático foi o da morte de três rapazes moradores do Morro da
Providência, em 2008. A favela encontrava-se ocupada pelo exército em função das obras do
projeto Cimento Social, monitoradas pelos militares, e do estabelecimento da segurança no
local. Segundo os militares, o tenente Vinícius Ghidetti comandava uma operação em que os
jovens, que voltavam de um baile funk, foram abordados e teriam desacatado os oficiais e por
isso foram levados para a base militar recém-instalada no bairro de Santo Cristo. Mesmo com
a ordem do capitão Laerte Ferrari para que fossem liberados, Ghidetti, achou que deveria “dar
uma lição” nos rapazes, levando-os para o Morro da Mineira, controlado por uma facção
criminosa rival ao do morro de origem.
O caso, apesar de dramático, aponta a direção em que o exército atua com a
população, principalmente com as parcelas mais pobres. Julgam-se superiores, uma vez que
segundo Gibson e Haritos-Fatouros (1986), o treinamento marca a diferença entre os militares
e o restante da sociedade. Dessa forma, seria um absurdo contestá-los, uma vez que
possuiriam valores superiores, cabendo-lhes o suposto lugar de modelo de ordem. Essa lógica
não se resume só ao exército, ela ocorre também nas polícias militares, principalmente nos
batalhões especiais, onde o treinamento se baseia nos pressupostos valorativos e físicos do
treinamento dos militares. Este ensina a ver o outro como não-humano, o que possibilita que
este seja tratado com violência, sem que haja qualquer arrependimento ou culpa.
Os indivíduos que sofrem, em geral, essa violência são advindos das camadas mais
pobres da população, que acabam por ter uma maior dificuldade de acesso à justiça. Estas
pessoas são vistas por boa parte da sociedade, pelos governos e pela polícia, como possíveis
criminosos, tendo constantemente seus direitos violados. Os chamados “favelados”, que
criminalizados por sua pobreza (WACQUANT, 2001), são os que mais sofrem violência
policial, tanto em suas casas, quanto em delegacias e prisões.
28
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