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8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 1/57 MARTA MARIA CHAGAS DE CARVALHO A ESCOLA E  A REPÚBLICA  E OUTROS  ENSAIOS  ESTUDOS CDAPH Série Historiografia CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - CDAPH

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MARTA MARIA CHAGAS DE CARVALHO

A ESCOLA E 

A REPÚBLICA 

E OUTROS 

ENSAIOS

 ESTUDOS CDAPH S é r ie H is t o r io g r a f ia

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA 

EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - CDAPH

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UNIVERSIDA DE SÃO FRANCISCOReitor: Gilberto Gonçalves Garcia, OFM

Programa de Estudos Pós-Graduados em EducaçãoCoordenação: Alexandrina Monteiro

Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação -CDAPHCoordenação: Maria Cristina Cortez Wissenbach

Conselho Editorial:Ana Waleska Mendonça Luciano Mendes de Faria Filho

Carlos Roberto Jamil Cury Luis Felipe Serpa

Clarice Nunes Marcos Cezar de FreitasEliane Marta Teixeira Lopes Marta Maria Chagas de Carvalho

Helena M. B. Bomeny Rogério Fernandes

 José Gonçalves Gondra Zaia Brandào

Lúcia Lippi Oliveira

371.2 Carvalho. Marta Maria Chagas de.

C325e A escola e a República e outros ensaios / Marta MariaChagas de Carvalho. -- Bragança Paulista : EDUSF, 2003.

355 p. (Estudos CDAPH. Série historiografia)

1. Educação. 2. República. 3. Política educacional.

4. Escola nova. 5. Brasil. 6. Modernidade pedagógica.

1. Título. II. Série.

Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de Processamento

Técnico da Universidade São Francisco

Correspondências para:Núcleo de Distribuição e Divulgação -EDUSFAv. São Francisco de Assis, 218CEP 12916-900 Bragança Paulista - SPE-mail: [email protected]://www.saofrancisco.edu.br/publicacoes

Tel.: ( I I ) 4034-8092 Fax: ( I I ) 4034-8044

Todos os direitos autorais são reservados à Editora Universitária São Francisco - EDUSF

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne trabalhos de história da educação produzidos 

entre 1988 e 2002. Tem 4 partes e, com exceção do capítulo 42 da  

Parte 4, texto inédito, reúne dois tipos de publicação. Artigos 

publicados em periódicos especializados (com exceção de dois deles,  

publicados originalmente como capítulos de livros) compõem as 

partes 2, 3 e 4. Um livrinho publicado em 1989 pela Editora 

Brasiliense, na coleção Tudo é História,  A Escola e a República, 

compõe a lâ Parte. Produzido para integrar uma coleção dirigida a um 

público não especializado, está esgotado há muitos anos, mas vem 

sendo muito utilizado em cursos universitários de Graduação e Pós-  

Graduação por estudantes que se têm valido de cópias xerográficas 

dele. Considerando a sua forte articulação temática com o restante dos 

ensaios desta coletânea, resolvi integrá-lo nesta publicação. Por causa da 

sua grande aceitação pelo público universitário, optei por reproduzi-lo 

sem outra alteração senão aquela resultante de sua republicação em  

uma coletânea. Assim disposto, o livrinho funciona com o espécie de 

enquadramento temático e referencial periodizador do recorte que 

presidiu à seleção dos ensaios que integram a 2~  parte do livro.

Nesses ensaios, figuras muito conhecidas como Fernando de  

Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho são personagens que insistentemente protagonizam o relato e invadem a cena de outros  

protagonistas, figuras menos célebres, como Vicente Licínio Cardoso, Edgar Süssekind de Mendonça, Sampaio Dória, Oscar Thompson,

 

João Hippolyto de Azevedo e Sá, Everardo Backeuser, Alba Canizares 

Nascimento, Femando de Magalhães e muitos outros. Como 

personagens, todos eles dramatizam temas, levantam questões e 

tensionam a narrativa. Mas, se a expectativa do leitor for a de 

encontrar nos ensaios aqui reunidos qualquer tipo de conhecimento 

biográfico, sua leitura será certamente deceptiva. A montagem da 

cena, a aparição dos personagens e a dramatização de seus discursos 

obedecem, no caso, a outra lógica: a de reconstituição de um campo de  

consenso atravessado por tensões em que o personagem funciona  

como ponto de condensação de temas pojêmicos e recurso analítico de 

explicitação de diferenças, de elucidação de significações e de

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INTRODUÇÃO

H f e p A Escola e a República e Outros Ensaios  11

A escola foi, no imaginário republicano, signo da instauração 

da nova ordem, arma para efetuar o Progresso. Na sociedade excludente 

que se estruturou nas malhas da opção imigrantista, nos fins do século 

XIX e início do XX, a escola foi, entretanto, facultada a poucos. Nos 

anos 20, na avaliação da República instituída feita por intelectuais que  

se propõem a  pensar   o Brasil, a política republicana é acusada de ter 

relegado ao abandono “milhões de analfabetos de letras e de ofícios”, 

toda uma massa popular, núcleo da nacionalidade. Esta legião de 

excluídos da ordem republicana aparece então como freio do Progresso, a  

^ impor sua presença incômoda no cotidiano das cidades. A escola foi, em 

conseqüência, reafirmada como arma de que dependia a superação dos 

entraves que estariam impedindo a marcha do Progresso, na nova ordem 

que se estruturava. Passa, no entanto, a ser considerada “arma perigosa”, exigindo a redefinição de seu estatuto como instrumento de dominação.

Este texto realiza um percurso por esse processo de  

redefinição do estatuto da escola na ordem republicana. Centra-se, 

pira isto, na elucidação do projeto político-pedagógíco formulado nos 

anos 20, ao calor do chamado entusiasmo pela educação. A partir da 

avaliação da República instituída, que informou este projeto, o texto se 

detém numa leitura da ação reformadora de Caetano de Campos, no 

fim do século, para, em seguida, registrar o deslocamento que sofre a 

questão educacional no final da década de 1910. Finalmente, exibe o 

novo deslocamento que se produz no discurso pedagógico a partir de 

meados da década de 20, interpretando-o como repolitização do  

campo educacional, expresso num ambicioso projeto de reforma 

moral e intelectual.Em seu percurso, o texto recusou a doutrina do transplante

 

cultural, acionada com freqüência na historiografia sobre educação 

no Brasil, para explicar o abismo que efetua - pelo confronto entre 

ideolog ias e fatos - entre projetos lidos com o propostas de 

democratização da sociedade pela escola e a realidade educacional.

Descartando essa doutrina por sua capacidade de tudo explicar e, 

portanto, nada  explicar, o texto deixa como sugestão a novas  

investigações em história da educação brasileira uma perspectiva de

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12  Marta Maria Chagas de Carvalho

análise que descarte a tentação, sempre recorrente, de entender a 

importação de idéias estrangeiras como mimetismos inconseqüentes 

que atestariam a fragilidade das classes dominantes ou de fração delas 

na formulação e imposição de projetos políticos de seu interesse.

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CAPÍTULO 1

 A Escola e a República e Outros Ensaios 13

A DÍVIDA REPUBLICANA1

Sedimentou-se nos anos 20, entre intelectuais que se 

aplicavam a pensar o Brasil e a avaliar a República instituída, a crença 

de que na educação residia a solução dos problemas que identificavam. Esse entusiasmo pela educação condensava expectativas diversas de 

controle e modernização social, cujajbrmulação mais acabada se deu 

no âmbito do nacionalismo que contamina a produção intelectual do 

período. Nesse âmbito, o papel da educação foi hiperdimensionado: tratava-se de dar forma ao país amorfo, de transformar os habitantes

 

em povo, de vitalizar o organismo nacional, de constituir a nação. Nele 

se forjava projeto político autoritário: educar era obra de moldagem de 

um povo, matéria informe e plasmável, conforme os anseios de Ordem 

e Progresso de um grupo que se auto-investia como elite com 

autoridade para promovê-los. jxPerpassava fortemente o imaginário desses entusiastas da 

educação o tema da amorfia. Referido ao país, marcava-o como 

nacionalidade em ser   a demandar o trabalho conformador e 

homogeneizador da educação. Referido às populações brasileiras, 

proliferava em signos da doença, do vício, da falta de vitalidade, da degradação e da degenerescência. O trabalho é, nessas figurações, 

elemento ausente da vida nacional. As imagens de populações doentes, 

indolentes e improdutivas, vagando vegetativamente pelo país, somam-se 

às de uma população urbana resistente ao que era entendido como 

trabalho adequado, remunerador e salutar. Imigrantes a fermentar de 

anarquia o caráter nacional e populações pobres perdidas na vadiagem  

impunham sua presença incômoda nas cidades e comprometiam o que se propunha como “organização do trabalho nacional”.

1O texto que compõe esta primeira parte do livro foi originalmente publicado 

em 1989, na coleção Tudo é História da editora Brasiliense, com o lítulo A 

Escola e a República. Cf. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A Escola e

a República. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Col. Tudo é História, 127).

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14  Marta Maria Chagas de Carvalho

 Regenerar   as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se 

esperava da educação, erigida nesse imaginário em causa cívica de 

redenção nacional. Regenerar o brasileiro era dívida republicana a ser 

resgatada pelas novas gerações.

A questão da organização do trabalho nacional formulava-se 

em termos diversos daqueles que haviam predominado no fim do 

século. As teses racistas, que haviam sido articuladas em defesa da 

imigração, embasando práticas excludentes da participação do liberto 

no mercado de trabalho dos setores mais dinâmicos da economia 

nacional, são agora reformuladas. Se a cor da pele permanecia 

assombrando os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos 

anos 20, ganhava força entre eles a idéia de que a educação era fator 

mesológico determinante no aperfeiçoamento dos povos, sobrepujando 

os fatores raciais. As imagens do negro e do mestiço como “vadio” 

continuam a inquietar esse imaginário, mas deixam de ser o signo de 

uma incapacidade inamovível para o trabalho livre. O liberto e seus 

descendentes permanecem estigmatizados como criaturas primitivas e 

por isso propensas à vadiagem. Mas esta passa a ser também o 

resultado da incúria política de abolicionistas e republicanos que não 

os teriam adestrado para as imposições da liberdade. Era o que, em 

193 I, Fernando Magalhães - ilustre médico carioca que desde os anos 

20 se engajara na campanha de regeneração nacional pela educação -  

lastimava, ao escrever que o país não se preparara

 para o dia seguinte da liberdade que despovoaria os campos 

 pelo delírio dos libertados, meio inconscientes, cujo 

 primitivismo os manteria na escravidão social, ainda hoje não 

abolida. A displicência dos governos despreocupou-se de 

defender o trabalho livre, garantia da produtividade nacional, 

no momento em que a alucinação da alforria houvesse, como houve, de se encaminhar para a vadiagem. A palavra dos 

 pregadores da abolição, se proclamou criaturas livres, não as 

adestrou para as imposições da liberdade.  (A Escola Regional)

Por sua vez, o imigrante não era mais marcado no imaginário 

dessas novas elites pelos signos da operosidade, vigor e disciplina que

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haviam enleado os promotores da imigração no fim do século XIX, ^Iil^efitando-lhes os sonhos de Progresso. Tais sonhos, articulados

 

^ política de exclusão do liberto, na expectativa racista e jizadora de que a tão decantada operosidade do imigrante 

isse por erradicar a vadiagem nacional, ruíam agora. As greves 

^operárias marcavam a figura do imigrante como presença também 

mpômoda a “fermentar de anarquia o caráter nacional”, como 

lastimava o mesmo Magalhães:

 Parecia o Brasil pagar duramente o pecado da 

escravidão prolongada. Ao cabo de quase 50 anos, permanece 

a preocupação angustiosa pelo destino da massa popular, 

núcleo da nacionalidade e da democracia, incapaz de servir  

as suas responsabilidades e arriscada de se falsificar nas 

correntes imigratórias fermentadas de indisciplina.{  ibidem)

A preocupação angustiosa pelo destino da massa popular 

encenava, no discurso de Magalhães, a crítica ao citadismo e ao 

industrialismo de importação, conseqüências de mentalidade verbalista 

cega ao país real e fascinada com fórmulas e costumes estrangeiros:

O exemplo de outros países de costumes e tradições 

diferentes contaminou de suntuosidade o regime, criando o 

novo problema, o Citadismo, atraindo para os centros de  grande torvelinho provincianos e sertanejos, crentes no 

milagre da vida fácil,  (ibidem)

A industrialização era “fenômeno de importação onde a terra 

definha de emigração”. O antídoto desses males era a “educação do povo  

sertanejo desprotegido”, que o fixasse no campo. Não são apenas, dizia,

as riquezas materiais que se ocultam no interior do país: são 

as suas forças vivas, as suas forças morais, únicas capazes de 

dominar a dissolução dos centro, urbanos ostentosos e 

anarquizados.  (ibidem)

[e a República e Outros Ensaios  15

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16  Marta Maria Chagas de Carvalho

Desta perspectiva, organizar o trabalho nacional era, sobretudo- com o concurso de uma escola que disseminasse “não o perigoso 

conhecimento exclusivo das letras, mas a consciência do dever  

domiciliário” - fixar o homem no campo, de modo a conter os fluxos, 

migratórios para as cidades e a vitalizar a produção rural. Neste caso, o 

resgate do que se considerava uma dívida republicana fazia-se como 

proposta agrarista: “o que não foi feito oportunamente sê-lo-á agora e 

o trabalhador rural, livre, criará o cidadão útil, votado à propriedade do 

seu-recanto” (ibidem).

Outro era o teor da dívida republicana a ser resgatada, segundo 

Vicente Licínio Cardoso, intelectual que cunhou a expressão  pensar o 

 Brasil   nos anos 20. Propunha que se revisse a historiografia 

estabelecida sobre o advento do regime republicano, criticando-lhe a 

desconsideração dos fenômenos sociais e econômicos, postos em jogo 

com a emancipação dos escravos. No seu entender, tal desconsideração 

não somente impedia a compreensão adequada do processo que conduzira à Proclamação da República, como também induzia a uma percepção  

equivocada dos problemas que barravam a efetiva republicanização do 

país. Entendendo democracia como organização social do trabalho livre e 

república como a forma política de tal organização, Licínio julgava 

que a República brasileira não se havia ainda efetivamente implantado, 

dado o estado de desorganização do trabalho nacional. Desorganizada 

a economia rural com a Abolição, teria havido “um verdadeiro êxodo 

dos emancipados para os centros urbanos”, determinando a oferta do 

“braço operário barato”. Disto teria decorrido “uma organização 

urbana artificial”, que funcionava como “uma válvula de descarga 

aberta, atraindo continuamente o elemento rural emancipado para os 

bairros fabris das grandes capitais”. O fenômeno se lhe afigurava 

como conseqüência de um processo inadequado de transição da 

economia agrícola fundada na escravidão para a fase industrial do 

operário urbano livre:

Sem capitais fáceis como a França e a Inglaterra, sem 

o artificio técnico em abundância como a Alemanha e outros 

 países, sem carvão na medida de suas necessidades e sem a 

indústria de ferro organizada, o Brasil, como a Rússia, não 

 podia resolver o problema gravíssimo da transição agrícola,

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18  Marta Maria Chagas de Carvalho

crescimento industrial, de modernização agrícola, de reordenação política, de saneamento e educação.

A seção “A Defesa Nacional”, publicada de julho de 1927 a 

agosto de 1928 em  A Bandeira,  era uma publicação militar já existente  

desde 1911.0 grupo militar ligado à revista tivera origem em 1906, na 

política do Marechal Hermes da Fonseca de modernizar o exército 

enviando jovens oficiais para servirem arregimentados no exército 

alemão. Com a vinda da Missão Francesa, em 1920, os militares 

ligados à revista ampliaram sua concepção de defesa nacional. 

Segundo José Murilo de Carvalho, o que “existia na área se baseava 

num conceito estreito de defesa que se limitava quase que só à 

proteção de fronteiras do Sul e do Sudoeste”. Com a vinda da Missão,  amplia-se a noção, “incluindo a mobilização de recursos humanos, técnicos e econômicos” que abrangiam “todos os aspectos relevantes

 

da vida do país, desde a preparação militar propriamente dita até o  

desenvolvimento de indústrias estratégicas como a siderúrgica” (“Forças Armadas na Primeira República”).

Os signos de progresso de  A Bandeira  estavam a serviço de 

um projeto de modernização nacional articulado com essa concepção 

de defesa nacional. E neste quadro que a educação ganha estatuto de 

peça fundamental de uma política de valorização do homem como 

fator de produção e de integração nacional. A superação do isolamento  

das diversas regiões brasileiras pelo desenvolvimento dos meios de 

comunicação e transporte; sua integração num circuito que garantisse a 

circulação dos bens materiais e culturais constituindo um grande 

mercado nacional; a modernização da agricultura; o desenvolvimento  

industrial com ênfase na indústria de base; a dinamização do homem 

como fator de produção por políticas sanitárias e educacionais 

integram-se num projeto de maximização e integração dos recursos 

nacionais subordinados à concepção de defesa nacional referida.

Vicente Licínio Cardoso não integrava os órgãos técnicos e diretores do Club,  como Ferdinando Labouriau, Mário de Brito e Paulo 

Ottoni de Castro Maya, seus companheiros da Escola Politécnica e de 

campanha educacional. Foi, entretanto, por ocasião de sua posse como 

professor naquela escola, festejado por  A Bandeira  como figura- 

símbolo da mentalidade H.B. (Homem Bandeirante) nela propagandeada. 

Suas formulações sobre o Brasil coadunavam-se com o nacionalismo

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 19

da revista, pela larga utilização que fazia de metáforas energéticas e pela valorização de medidas de organização e integração nacioi-ais. O 

processo de transição para o trabalho livre aparecia-lhe marcado por 

“perdas sociais de energias gastas em atritos passivos violentíssimos”, 

abalando, por isso mesmo, “a saúde da própria sociedade”. Nesse  

diagnóstico, a educação era o instrumento que permitiria “transformar, sem coação, a energia potencial do homem em energia cinética”. “Trabalho”, escrevia Licínio, “é um complexo: energia, ação e

 

produção. Complexo é o conjunto de condições que uma sociedade 

deve satisfazer para o estabelecimento desta organização do trabalho  

livre do homem: Instrução (Energia); Liberdade (Ação); Ordem 

(Produção).” (ibidem) O papel da instrução nas sociedades era o “do 

condutor, do transmissor pelo qual é possível a transformação da 

energia potencial do homem em energia cinética”. Insuflando, 

despertando, desenvolvendo as energias potenciais dissimuladas pela 

ignorância, a instrução era o “veículo que permite a transformação deles em energias atuais, cinéticas, donde consequentemente, em 

resultado, o próprio trabalho amplificado” (ibidem).

Pensando o Brasil com apoio em modelos organicistas, 

Vicente Licínio Cardoso concluía faltar-lhe “coesão, densidade social 

(...) peças de ligação imprescindíveis, tecidos sociais econômicos 

fundamentais (...) órgãos aparelhados que (...) pudessem facilitar a 

unidade nacional almejada jje um organismo de flex ibilidade social escassa, perdendo energias - já de sinal cultivadas - em atritos e 

resistências passivas formidáveis” (ibidem). O Brasil era um “organismo 

de vida estéril”, sem “continuidade de seiva”, “ritmo de vida”, 

“seqüência de energia”. Os “milhões de analfabetos de letras e ofrios”, 

que “vegetavam”, desamparados, nos “latifúndios enormíssimos do país”, 

eram “peso morto” a consumir as escassas energias do incipiente 

organismo nacional, retardando perigosamente a marcha do Progresso.Um catastrofismo semelhante sobressalta o imaginário dos

 

entusiastas da educação. Ressoa nele, como um alarma, o lema de 

Euclides da Cunha: “Progredir ou desaparecer”. Fala-se insistentemente 

em crise, em horas gravíssimas, significando-se algum enorme perigo que 

ameaça o país se suas elites não superarem o pessimismo, a passividade e 

a indiferença, lançando-se à campanha de regeneração nacional pela 

educação. “Vitalizar pela educação e pela higiene” - prescrevia Miguel

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20  Marta Maria Chagas de Carvalho

Couto, personagem-símbolo do entusiasmo pela educação - “toda essa 

gente reduzida pela vérmina a meio homem, a um terço de homem, a um 

quarto de homem” era a única “salvação” (No Brasil só há um problema 

nacional - a educação do povo). A incumbência de educar os “sub- 

homens” era alçada por Fernando Magalhães à missão sagrada a ser 

executada “à beira do abismo, ante o precipício”.

Cobrava-se então o preço da incúria política dos republicanos: 

a massa popular, o núcleo da nacionalidade, esses milhões de analfabetos 

de letras e ofícios relegados a condições subumanas de vida maculav am a assepsia burguesa de que vinham sendo tecidos os sonhos de Progresso na 

República. O pesadelo pode ser descrito citando-se o higienista 

Belisário Penna, que em 1912 fora encarregado por Oswaldo Cruz de  

fazer um inventário das condições de saúde de populações sertanejas e 

que se integrara na campanha educacional nos anos 20:

3/4 dos brasileiros vegetam miseravelmente nos 

latifúndios e nas favelas das cidades, pobres párias que, no 

 país do nascimento, perambulam como mendigos estranhos, 

expatriados na própria pátria, quais aves de arribação de 

região em região, de cidade em cidade, de fazenda em 

 fazenda, desnutridos, esfarrapados, famintos, ferreteados com 

a preguiça verminótica, a anemia palustre, as mutilações da 

lepra, as deformações do bócio endêmico, as devastações da 

tuberculose, dos males venéreos e da cachaça, a inconsciência 

da ignorância, a cegueira do tracoma, as podridões da bouba, 

da leishmaniose, das úlceras fragedêmicas, difundindo sem 

 peias esses males.  (A Escola Regional)

Regenerar essa massa popular era tarefa compartilhada por 

agraristas, como Magalhães, e industrialistas, como Vicente Licínio, 

típicos defensores do velho  e do novo,  que alguns historiadores têm afirmado estarem em total polarização no período. As diferenças de 

diagnóstico e de terapêutica eram unificadas por sua subordinação a 

um interesse comum: o de minimizar os efeitos, tidos como perniciosos, 

dessa massa popular no cotidiano das cidades. Deter os fluxos 

migratórios para a cidade, promovendo política agrarista de fixação do 

homem no campo por intermédio da escola, ou dinamizar a economia

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 21

de base industrial, por medidas educacionais que incorporassem levas de 

ociosos ao sistema produtivo, eram projetos com um denominador 

comum: o equacionamento da questão urbana, a estruturação de esq jemas 

de controle que viabilizassem, no espaço da cidade e no tempo da 

produção-expropriação capitalista, o disciplinamento das populações 

resistentes, na vadiagem ou na anarquia, à nova ordem que se 

implantava.

A empresa regeneradora não era fácil. O balanço feito da 

República instituída era, para Licínio e para a autodenominada 

“geração dos homens nascidos com a República”, a que ele pertenceu, 

pessimista:

 A grande e triste surpresa de nossa geração fo i sentir  

que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na 

certeza de que já tínhamos vencido certas etapas. A educação, 

a cultura ou mesmo um princípio de experiência, nos tinham 

revelado a pátria como uma terra em que a civilização já resolvera de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a 

tragédia da nossa alma fo i sentir quanto de falso havia nessas 

 suposições. O tempo nos preparava uma volta implacável à 

realidade. E essa realidade era muito outra, muito outra, do 

que aquela a que o nosso pensamento nos preparara e que a 

imaginação delineara.

 Encontramo-nos bruscamente, ao abrir os olhos da 

razão, perante uma pá tria ainda por faze',', ainda informe, 

ainda tolhida em sua ação e sem vitalidade, sem alma, sem 

ideal, uma pátria que o lirismo tinha decantado em cores 

 fa lsas e de que a indiferença agora sorria ou o pessimismo 

negava grosseiramente.  (A Margem da República)

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 AEscola e a República e Outros Ensaios 23

CAPÍTULO 2

A ESCOLA MODELAR 

Proclamada a República, a escola foi, no Estado de São Paulo, 

o emblema da instauração da nova ordem, o sinal da diferença que se 

pretendia instituir entre um passado de trevas, obscurantismo e 

opressão, e um futuro luminoso em que o saber e a cidadunia se entrelaçariam trazendo o Progresso. Como signo da instauração da 

nova ordem, a escola devia fazer ver. Daí a importância das 

cerimônias inaugurais dos edifícios escolares. O rito inaugural repunha  

o gesto instaurador. A fala de Cesário Mota na inauguração do edifício  

da Escola Normal Caetano de Campos, em 1894, é paradigmática:

... o historiador, fitando o passado inteiro de nossa pátria, 

querendo sopesar o grandioso progresso de nosso Estado, 

 precisando de avaliar a sua extensão, conhecer-lhe a base, os 

lados, os vértices, há de forçosamente tomar como ponto 

culminante, ponto de prova, ponto de triangulação, ponto que  

denote a reunião de todos os lados do polígono social, no 

início da República em São Paulo, a Escola Normal que ora 

 se inaugura.

E prosseguia:

 Não porque tenha este palácio as grandes cintilações 

artísticas que orgulham os arquitetos, os pintores de todos os tempos”, mas porque no edifício celebrado “a grandeza, a majestade do

 

 simples” simbolizava a ‘fo rça de uma idéia elevaaa'1'’:  a instrução do 

povo. “ Ponto culminante de nossa arquitetônica", o edifício revelava “a 

altura em que a República colocou desde o início o problema da 

instrução”. A “nobreza” das suas linhas demonstrava a crença de que 

não haveria mais nobre profissão que aquela que se incumbe de 

“preparar cidadãos para a sustentação, defesa e engrandecimento de 

uma pátria livre”. Sua “vastidão” denotava o gesto do Governo, 

convidando utodas as aptidões, todas as fortunas, todas as idades, 

todos os sexos, todas as vocações para virem sagrar-se aqui sacerdotes

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da religião do saber, em que nós democratas fundam os as nossas 

ardentes esperanças de prosperidade da pútria e de glória para a 

 República.

A visão do luminoso templo laico levantado com recursos que 

o Império havia destinado à construção de uma catedral, contrapunham-se 

visões tenebrosas da escola na velha ordem: “casas sem ar e luz, 

meninos sem livros, livros sem método, escolas sem disciplina, mestres 

tratados como párias”. No retrato da educação no Império, a falta de 

recursos “trazia a de estímulos, o desânimo, e a escola pública era, em 

 geral, a penitenciária do menino, e o ganha-pão do mestre”. Dessas 

escolas não se poderia obter nem educação cívica, nem “preparação 

 para satisfazer as necessidades da vida ou para desempenhar as 

 funções sociais, que o regime representativo exige”, nem “ preparo da 

mentalidade infantil para receber as idéias que por ampliação se lhe 

deveriam incutir nos anos superiores”.  Por isso, resolvido o problema 

econômico, o social e o político, o governo republicano ter-se-ia 

voltado para o da instrução. O edifício que então se inaugurava era a 

resposta dos governos republicanos a uma sociedade inteira que, 

cansada de enviar os filhos ao estrangeiro “ para mendigar o saber que   vi aqui não se podia obter ”, e entristecida em ver os cárceres repletos,

 

teria bradado com Goethe: “Luz! Luz! Mais Luz\”Para fazer ver, a escola devia se dar a ver. Daí os edifícios

 

necessariamente majestosos, amplos e iluminados, em que tudo se 

dispunha em exposição permanente. Mobiliário, material didático, trabalhos executados, atividades discentes e docentes - tudo devia ser 

dado a ver de modo que a conformação da escola aos preceitos da 

pedagogia moderna evidenciasse o Progresso que a República instaurava.

Aquilo que num imaginário fortemente impregnado pelo 

positivismo era tido como dogma da constituição dos povos modernos

- conhecer para vencer   - era o desafio lançado à República. Sem 

preparo intelectual, ponderava Caetano de Campos em documentos 

compilados por João Lourenço Rodrigues, nenhum povo estaria apto 

para as conquistas do Progresso. Facultadas à Humanidade pela 

Ciência, tais conquistas desembocavam na revolução “ prodigiosa” que 

o século vinha realizando.

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 2.S

Educar era a aspiração uníssona que se levantava em todos os 

países. Não bastava, contudo, ensinar: era preciso saber ensinar. Não 

poderia haver ensino produtivo sem a adoção de métodos que estariam transformando em toda a parte o destino das sociedades. A educação  

do homem moderno exigiria uma soma de conhecimentos que 

resultavam “ sinteticamente das noções enciclopédicas hauridas em 

diversos ramos de estudo”. Como era impossível “ensinar às crianças 

tudo quanto pode ser necessário à vida”, tornava-se praticável dar à 

inteligência um grau de maturidade que preparasse suficientemente o 

homem novo para entrar na vida social “cow  seguros capitais para o 

êxito”.  Dos métodos bem entendidos e bem praticados é que poderia 

sair “o cérebro adaptado à conquista da verdade”. Por isso, insistia 

Caetano de Campos em discurso aos professores, em 1890:

... quando um país quer dar a medida de seu progresso, do 

alcance de suas instituições, do valor de sua raça, aponta o 

número de suas casas de ensino e abre-lhes as portas como 

que dizendo: Vede como se aprende!

A montagem do sistema público de ensino paulista no início 

da República, sob a ação reformadora de Caetano de Campos' levou às 

últimas conseqüências o primado da visibilidade. E que, fazendo a 

educação do homem novo depender de novos métodos e processos de 

ensino e o domínio desses métodos e processos da experiência de vê- 

los em execução, essas iniciativas republicanas organizaram-se em  

tomo da instituição da Escola Modelo. A escola em que se aprende a 

ensinar, dizia Caetano de Campos em Carta à Imprensa, “é  

necessariamente uma escola prática e longa”, pois não seria possível “ser mestre em tais assuntos sem ter visto faze r e sem ter fe ito por si”.

 

Toda erudição seria de pouco proveito para os mestres se não fossem 

“ver como as crianças eram manejadas e instruídas”.

Na Escola Modelo, instituição que deveria ser o “coração do 

 Estado”, revelar-se-ia, “aos olhos dos futuros professores, o mundo, novo para eles, do ensino intuitivo”.  Os processos intuitivos, que 

estariam em constante aperfeiçoamento na Alemanha, na Suíça e nos  

Estados Unidos, eram a base do ensino moderno. Seu merito, “a 

cultura intensiva do espírito, o aproveitamento de todos os detalhes,

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cada cousa em cada hora, o alimento intelectual o mais completo, 

dado na proporção da receptividade psicológica” (Discurso aos 

 professorandos).  Disciplina do espírito pela seleção e dosagem 

adequada dos “fatos que devem ser explicados” à psicologia infantil, o 

ensino intuitivo repetia “o processo que instruiu a humanidade inteira 

em sua vida intelectual - a intuição” (Memória apresentada em 1891 

ao Governo do Estado).  Marcava-se com o signo do novo opondo-se 

aos processos que haviam caracterizado a educação na velha ordem:

 Dantes, enchia-se a cabeça do aluno com uma série 

interminável de definições por meio duma instrução imbuída 

na memória à força de repetições, tantas vezes reproduzidas 

quantas eram necessárias para que o fato aí permanecesse 

(...) Modernamente, o pedagogo atua de outro modo. 

Coleciona previamente os fatos que devem ser explicados, 

coordena-os tacitamente em seu gabinete, numa sucessão 

lógica que é muitas vezes o segredo de todo o sucesso do 

ensino; apresenta-os depois à apreciação do aluno, atendendo 

 sempre à sua capacidade atual, à sua idade, à sua agudeza de 

espírito e outras condições psicológicas que ele, professor , 

estuda em cada aluno,  (ibidem)

Formar o pedagogo moderno consistia em fazê-lo ver os novos 

métodos em funcionamento, pois seria “inútil pensar em adquirir sem 

ter visto p r a t i c a r  Mas como fazê-lo sem mestres que já tivessem 

visto fazer e feito por si? A solução era mandar vir do estrangeiro 

mestres hábeis nessa especialidade e, com eles, profuso material 

didático adequado às exigências da “modernapedagogia”.

A importação de mestres foi resolvida pela contratação de 

professoras já radicadas no Brasil, mas formadas nos Estados Unidos. 

A importação de material didático foi possibilitada pelo Governo e suplementada por alguns empréstimos feitos à Escola Americana. Um 

então aluno da Escola Normal, João Lourenço Rodrigues, deixou seu 

depoimento:

O edifício constava de dois corpos ligados por um 

corredor, mas, a princípio, dele só fo i aproveitado o

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 27

 pavimento superior. O corpo da frente fo i ocupado pela seção 

masculina, a cargo de Aíiss Browne; no corpo do fundo fo i 

instalada a seção feminina, confiada a D. Maria Guilhermina. 

Completa a instalação das classes e bem encaminhado o 

trabalho de sua organização, os alunos e alunas do 3a ano  

 puderam enfim começar os exercícios práticos de ensino. A 

 princípio deviam limitar-se a observar e a anotar as suas 

observações. Entre o que lhes fo i dado a ver e as suas 

reminiscências, ainda recentes, da escola régia tradicional, o contraste não podia ser mais flagrante. A mobília, cedida pela  

 Escola Americana, era nova e envernizada; o aspecto das 

classes, munidas do material necessário para a prática do 

ensino intuitivo, causava excelente impressão. Notava-se por  

toda a parte ordem, asseio e não faltava nem mesmo i nota 

artística de algumas jarras de flores, alinhadas sobre as 

mesas. O ambiente não podia ser mais sugestivo. As crianças, 

que outrora fugiam com horror da escola, eram agora as 

 primeiras a chegar. Pudera! A imobi'idade de outrora, que as 

 fa zia morrer de tédio, sucediam agora, alternando com lições 

curtas, exercícios de marcha e canto, que imprimiam à vida  

escolar um tom.  (Um Retrospecto)

Exímias na arte de ensinar, as professoras contratadas para a 

Escola Modelo não tiveram, entretanto, muito êxito na exposição dos 

princípios que norteavam sua prática aos alunos da Escola Normal. O 

mesmo João L. Rodrigues recordava:

 As aulas das escolas modelos não podiam começar  

desde logo, em razão das obras que estavam sendo executadas 

no prédio da Rua do Carmo. (...) O Dr. Caetano de Campos 

entendeu que as duas professoras poderiam aproveitar  utilmente o seu tempo dando às duas classes do terceiro ano 

algumas aulas teóricas, que serviriam para traçar a 

orientação do ensino nas esperadas escolas modelos. No dia 

marcado para o primeiro encontro, os alunos, reunidos numa 

das salas de aula, as esperavam com grande curiosidade. 

 Depois do toque da sineta, as duas entraram, acompanhadas

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do Diretor, muito 'sorridentes, a desfazerem-se em mesuras e 

cortesias. Feita a apresentação, o Dr. Campos retirou-se e D. 

 Maria Guilhermina iniciou sua exposição inaugural. Estava 

visivelmente intimidada e, talvez por isso, não conseguiu dar a 

essa exposição a clareza que fora para desejar. Os ouvintes 

ansiavam por conhecer as diretrizes essenciais da nova 

 pedagogia e D. Maria Guilhermina, perdendo-se em minúcias, 

deixou essas diretrizes na penumbra. Por muito bem informada 

que se revelasse em processos de ensino, parecia ser dessas  pessoas que não sabem elevar-se da noção da árvore à noção 

da floresta: era dispersiva. ( ... ) Miss Browne fo i mais feliz: 

não conhecendo bem a língua, ficou dispensada de fa lar e mal  

 se aventurou a alguns monossílabos,  (ibidem)

A inépcia das professoras não era, contudo, relevante para os 

propósitos republicanos de Caetano de Campos. O sistema público de 

ensino paulista montava-se, como já foi sublinhado, sob o primado da 

visibilidade. Ver para reproduzir os procedimentos vistos e dar a ver sua 

prática como modelo de outras era o que se propunha aos futuros mestres. 

E que a Pedagogia dos “ processos intuitivos” era uma arte da minúcia, 

da dosagem, da gradação, que se queria fundada na observação de cada 

aluno, na experiência de cada situação, na concatenação minuciosa dos  

conteúdos de ensino pacientemente isolados e colecionados no cultivo de 

cada faculdade da criança numa ordenação que se pretendia fundada na 

natureza. Seria por meio desses processos, “sem o descuido de um 

instante, que a criança, graças à sua natural atividade”, tornava-se 

“produtiva em vez de vadia, amiga da verdade e induzida a procurá-la 

 por hábito, porque tudo o que sabe deve a seu próprio esforço, muito 

apta para a conquista das noções, porque aperfeiçoaram-lhe os 

 sentidos e com eles a aquisição de i d é i a s tornava-se também “hábil e 

 fecunda, porque só se lhe deu o que ela podia receber; porque o que  se lhe deu tinha a medida na sua própria psicologia, e tudo o que 

adquiriu estava baseado na formação do seu caráter, na justiça das 

coisas...” (Carta à Imprensa).

Colhendo nas ciências naturais “os elementos de disciplina 

menta\” que fez seus, a “intuição como método pedagógico” era a 

pedra de toque na organização do sistema de ensino paulista. Era, como já

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se observou aqui, a possibilidade de recapitular, no indivíduo, “o  

 processo que instruiu a humanidade inteira em sua vida intelectuaF\ Era, por isso, a possibilidade de conquistar para o indiviVuo os 

benefícios que a Ciência trouxera para a Humanidade e, por meio 

deles, as condições para o exercício da cidadania. Já que a mudança ae 

regime havia entregue “cro povo a direção de si mesmo”, nada era mais 

urgente, ponderava Caetano de Campos em  Memória  apresentada ao 

Governador Jorge Tibiriçá, que “cultivar-lhe o espírito, dar-lhe a 

elevação moral de que ele precisa, formar-lhe o caráter para que  saiba querer ”. Num regime em que “o  príncipe é o p o \o” e em que 

não haveria porque zelar pelo “interesse de uma fam ília privilegiada”, 

o povo só poderia guiar-se pela “convicção científica”, tomando 

realidade o  self-government.  Para o Governo, educar o povo era um 

dever e um interesse. Interesse “ porque só é independente quem tem o 

espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a posse da 

liberdade”. Tal interesse não se restringia ao ensino primário. Se este 

era importantíssimo por desenvolver na criança “o hábito de refletir  

antes de enunciar, a ciência de aproveitar o tempo (...) e sobretudo o 

amor ao trabalho”, isto não seria suficiente para formar cidadãos. Para 

tanto se impunha que o ensino fosse, tanto quanto possível, “completo, 

inteiro em todos os conhecimentos indispensáveis à vida, enciclopédico 

 por assim dizer, já que nosso viver social na atualidade envolve-nos 

em contingências oriundas de toda sorte de noções científicas”. Não 

era admissível “apagar o facho que deve conduzir a criança para o  grande templo da vida”, terminado o ensino primário. Não quando os 

primeiros anos de escolaridade já tivessem desenvolvido na criança o 

hábito de pensar e sua curiosidade já houvesse sido despertada. Os 

conhecimentos científicos ministrados na escola secundária deveriam 

ser a base da educação. O conhecimento do mundo físico constituía-se  

na “melhor disciplina mental ”, assim como o hábito de experimentar 

era garantia de “ formação de um homem apto em todos os sentidos”.Fornecer tal ensino inteiro, completo, de base científica, 

condição efetiva da cidadania plena, é o que se entendia como tarefa  

republicana. Isto porque era a redenção da Ciência que a República 

devia trazer ao povo:

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 No século em que vivemos, todas as liberdades foram 

conquistadas pela ciência. Só esta desvenda a realidade das 

coisas, só esta separa o jo io do trigo, só esta nobilita o 

homem, só esta combate, resiste e vence.  (Discurso aos 

professorandos)

Era preciso “afastar o sofisma, rechaçar o preconceito, fustigar o 

obscurantismo, seja qual fo r sua p r o c e d ê n c ia O que implicava o 

povo ser “instruído largamente, proficientemente, como quem precisa  governar-se a si, e poder governar outros povos, se a ocasião o 

exigir ” (Memória apresentada ao Governador). A disseminação desse 

ensino de base científica, entretanto, demandava o estabelecimento 

prévio de novas escolas-modelo, de 22 e 32 graus, anexas à Escola 

Normal, em que pudessem ser vistos os novos processos de ensino. 

Antes de criar as escolas secundárias adequadas a esses graus escolares 

superiores, era preciso preparar os professores, familiarizando-os com “os 

 processos que os naturalistas empregam para a obtenção da verdade 

c i e n t í f i c a Havia “muito que fazer na criação de bons moldes, muito 

livro a escrever, muita noção a a d q u i r i r A cidadania efetiva dos 

brasileiros ficava postergada para o futuro, na tessitura dos moldes 

pedagógicos com que a República se anunciava. Caetano de Campos  

dizia: “Epreciso não perder tempo porque devemos andar devagar 

*

* *

As profissões de fé dos republicanos paulistas não podem 

deixar de ser referidas à opção política da grande lavoura cafeeira pela 

imigração. Só desta forma os projetos de um Caetano de Campos e de 

tantos outros republicanos que, eloqüente e reiteradamente, afirmaram 

com palavras e atos sua fé no poder liberalizador e democratizador da educação podem ter sua extensão aquilatada. A pergunta que fica ao 

nos depararmos com o imaginário pedagógico republicano é: Quem, 

nesse imaginário, é o cidadão que a República tem o dever   e o 

interesse de educar?

Em estudo sobre o negro no imaginário das elites brasileiras 

no século XIX, Célia Azevedo mostra como se consolidou na

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Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, no início da década  

de 80, o imigrantismo. Acompanhando os debates parlamentares nos 

anos 70 e 80, a autora mostra como o

imigrantismo, bem como a formulação correspondente de seu 

ideário racista, emerge tal qual uma arma ou insirvmento 

 político manejada contra os negros, adversários temidos do 

cotidiano passado, presente e futuro, e cuja resistência 

disseminada, e por isso mesmo difícil de ser coibida, objetivava-se de alguma forma neutralizar, substituindo-os por  

uma massa de imigrantes brancos.  (Onda Negra Medo Branco)

As medidas tomadas para sustar a “onda negra” - “ imagem 

vívida do temor suscitado pela multidão de escravos transportados do 

norte do país para a província no decorrer das décadas de 1860 e 

1870” (ibidem) -   bem como para promover a imigração eram 

veementemente defendidas nos debates parlamentares por insistente 

caracterização do negro como raça inferior, incapaz para o trabalho, 

propensa ao vício, ao crime e inimiga da Civilização e do Progresso. A 

partir do início da década de 80, quando o imigrantismo se consolida, 

o tema do aproveitamento do nacional, intensamente debatido dentro e 

fora do Parlamento durante todo o século, é posto de lado. A 

imigração européia é, então, a alternativa escolhida, ''''dando vazão aos 

 sonhos de trocar o negro pelo branco, de transformar a ‘raça brasileira’ 

e, no caso de São Pàulo, de valorizar as tão decantadas qualidades 

’viris’ dos paulistas, tornando-a, no futuro, uma província branca, 

capacitada, conseqüentemente, para um franco progresso e 

desenvolvimento” (ibidem). Assim, o imigrantismo propunha não 

somente a troca do negro pelo branco nos setores fundamentais da 

produção, como também arquitetava um projeto de regeneração e 

capacitação para trabalho, cujo instrumento era a miscigenação de que se esperava um desejado branqueamento moralizador das populações negras.

É dominante na historiografia educacional o recurso à figura  

do transplante cultural   como um lugar-comum, que explica um abismo 

alegado entre os bons propósitos ilustrados de uma elite convencida do 

poder democratizador e liberalizador da educação e os resultados  

efetivos desses propósitos. Os projetos dessas ilustres elitçs não se

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universos - o dos cidadãos e o dos sub-homens - funcionando como 

dispositivo de produção/reprodução da dominação social. Se a 

cidadania plena só era para Caetano de Campos facultada por um 

ensino inteiro, completo, de base científica e se a generalização deste 

ensino ficava postergada para um futuro remoto na dependência de 

morosas providências pedagógicas, fica a questão: o que tornava 

possível este vagar?

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CAPÍTULO 3

O FREIO DO PROGRESSO

O vagar com que Caetano de Campos marcava seu paciente 

trabalho de reformador não tem lugar na linguagem de cifras e na 

urgência das metas que caracterizam o relatório apresentado em 1918 

por Oscar Thompson, Diretor-Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, ao Secretário do Interior, Rodrigues Alves:

 A evolução do ensino público paulista, j á no que toca 

aos seus métodos educativos, já no que se refere à sua difusão 

 por todos os 196 municípios do Estado, acresceu ao estudo 

 grandes e importantes problemas que exigem solução pronta e 

rápida: 232.621 crianças freqüentaram escolas em 1918; 

247.543 em idade escolar não freqüentaram escolas públicas 

ou particulares conforme atesta a estatística.

Que fazer para educar esses milhares de menores que, 

crescendo analfabetos, constituirão elementos negativos do 

nosso progresso?

O analfabetismo passava a ser a marca da inaptidão para o 

Progresso. Era ele a causa da existência das populações que “mourejavam no Estado, sem ambições, indiferentes, de todo em todo, 

às cousas e homens do Brasir   (ibidem). Produz-se, assim, um 

deslocamento no discurso educacional: um novo personagem irrompe, 

um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a frear o Progresso, 

substitui a figura do Cidadão abstrato, alvo das luzes escolares. O novo 

cidadão não é mais invocado para oficiar no augusto templo da 

Ciência. Basta-lhe agora o manejo cívico do alfabeto.A pergunta formulada pelo Diretor-Geral é respondida por 

Sampaio Dória em carta aberta. O futuro reformador da instrução 

pública paulista em 1920 justificava as medidas que preconizava,  

reiterando as razões para a extinção do analfabetismo:

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36   Marta Maria Chagas de Carvalho

 Hoje não há quem não reconheça e não proclame a 

urgência salvadora do ensino elementar às camadas  populares. O maior mal do Brasil contemporâneo é a sua 

 porcentagem assombrosa de analfabetos. (...) O monstro 

canceroso, que hoje desviriliza o Brasil, é a ignorância crassa 

do povo, o analfabetismo que reina do norte ao sul do país, 

esterilizando a vitalidade nativa e poderosa de sua raça.

A alfabetização do povo apresentava-se para Sampaio Dória 

como “a questão nacional por excelência”. É que o imigrante de que 

os republicanos históricos haviam esperado o aprimoramento da “raça 

brasileira” era visto agora como ameaça ao “caráter nacional”. Só 

resolvendo o problema do analfabetismo é que o Brasil poderia 

“assimilar o estrangeiro que aqui se instala em busca da fortuna 

esquiva".  Não haveria como fugir ao dilema: ou o Brasil manteria “o 

cetro dos seus destinos, desenvolvendo a cultura dos seus filhos”, ou 

seria “dentro de algumas gerações absorvido pelo estrangeiro que  para ele aflui”.  Reintroduzia-se, assim, a questão do aproveitamento 

do chamado elemento nacional. Em estudo sobre a formação do  

mercado de trabalho livre em São Paulo, Lúcio Kowarick observa que 

o tema da valorização da desacreditada mão-de-obra nacional é 

retomado num momento em que, com a Primeira Grande Guerra, os 

fluxos imigratórios contínuos sofrem brusco corte. Além disso, as 

greves operárias do fim da década de 10 destroem os mitos da tão decantada operosidade do imigrante que haviam embalado o imaginário 

das elites paulistas no fim do Império e início da República.

O programa educacional desta revalorização concentrou-se  

inicialmente na alfabetização. A partir de meados da década de 20, 

esse programa é redefinido ao calor da campanha de regeneração 

nacional promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE), 

fundada no Rio de Janeiro, em 1924. Para os entusiastas da educação que 

nela se aglutinaram, era preciso combater o ‘ fetichismo da alfabetização 

intensiva”, valorizando-se o que se entendia por “educação integral”. 

Em ambas as formulações, entretanto, o mesmo deslocamento discursivo. 

A figura do Cidadão abstrato, dominante na retórica dos republicanos  

históricos, é substituída pela imagem de um brasileiro improdutivo, 

doente e ignorante, que urge regenerar com o recurso da escola.

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 37

0 projeto de Sampaio Dória, ideólogo da Liga Nacionalista de 

São Paulo, não se limitava, contudo, à alfabetização. A escola primária de objetivos modestos e de duração reduzida que sua reforma implantou 

em São Paulo deveria, enfatiza Heládio Antunha, funcionar como:

1- instrumento de aquisição científica, como aprender  

ler e escrever; 2a educação inicial dos sentidos, no desenho, 

no canto e nos jogos; 3a educação inicial da inteligência, no 

estudo da linguagem, da análise, do cálculo e nos exercícios 

de logicidade; 4~ educação moral e cívica, no escotismo, 

adaptado à nossa terra e no conhecimento de tradições e 

 grandezas do Brasil; 5a educação fís ica inicial, pela ginástica, 

 pelo escotismo e pelos jogos.  (A Reforma de 1920)

Mesmo a Liga Nacionalista, cujas campanhas de alfabetização se 

atrelavam à luta pelo alistamento eleitoral e pelo voto secreto, não 

descurava de iniciativas de educação cívica  de modo a garantir a qualidade do voto e, concomitantemente, a propalada regeneração 

do caráter nacional.

Apesar disto, a prioridade da difusão do ensino sobre questões 

atinentes à sua qualidade é legível na urgência das metas e no roteiro 

das cifras que determinam a lógica da Reforma. O sistema escolar era  

racionalizado de modo a conciliar a alegada exigüidade de recursos 

financeiros governamentais'às metas democráticas de generalização dos benefícios escolares. No confronto dos números, era construído o 

dilema: dar uma escola de 4 anos a alguns, excluindo os outros, ou 

generalizar o ensino elementar de 2 anos a todos. A Reforma opta pela  

segunda via. As medidas que adota para erradicar o analfabetismo são 

arroladas por Heládio Antunha:

(a) a radical modificação efetuada nos níveis inferiores do 

ensino público (art. Ia), com a redução do ensino primário a 

dois anos e a conseqüente criação do ensino médio de dois 

anos de duração, correspondendo aos 3a e 4a anos primários, 

então extintos;

(b) a redução da obrigatoriedade e gratuidade da freqüência 

escolar primária. As crianças legalmente obrigadas a

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38  Marta Maria Chagas de Carvalho

 freqüentar o curso primário de dois anos passam a ser apenas 

as de 9 e 10 anos de idade;

(c) a taxação do curso médio;

(d) a unificação das escolas isoladas ao tipo único de dois 

anos;

(e) a redistribuição de professores de 3~ e 41 anos, que 

 ficavam em disponibilidade, para as novas classes 

alfabetizadoras de 1~ e 2~ anos a serem formadas;

(f) o desdobramento das escolas isoladas e também do trabalho do professor das escolas em que fosse excessiva a 

matrícula e no caso de não haver condições para a existência 

de dois professores;

(g) isenção dos pobres das taxas em todos os graus do ensino;

(h) a  “proscrição  ” escolar às crianças de 7 e 8 anos. As 

crianças dessa idade deixavam de ser obrigadas à freqüência 

escolar e, mais do que isso, não lhes seria permitido o ingresso 

nas escolas públicas antes de completarem 9 anos de idade;

(i) a criação de duas mil escolas isoladas.  (A Reforma de 1920)

Estas medidas foram acompanhadas de outras, voltadas para o 

que era entendido como nacionalização do ensino. A questão 

comportava dois aspectos distintos, embora solidários: tratava-se, por 

um lado, de “abrasileirar os brasileiros” mediante a alfabetização e a 

educação moral e cívica e, por outro, de integrar o imigrante estrangeiro. Neste segundo aspecto, o escotismo foi incentivado, 

 juntamente com outras medidas de formação cívica. Mas a iniciativa 

mais relevante neste caso foi a intervenção nas escolas estrangeiras. 

Novas disposições legais prescreviam que respeitassem os feriados 

nacionais, ministrassem o ensino em vernáculo, incluíssem no 

currículo o ensino de Português, Geografia e História do Brasil por 

professores brasileiros natos e ensinassem os cantos nacionais nas classes infantis. Além disso, essas escolas deveriam abrir-se à inspeção 

do Estado e fornecer-lhe os dados estatísticos solicitados.

Com a derrogação da Reforma em 1925, a reorganização do 

ensino paulista fez-se sob o signo da volta ao passado, de retomada 

dos padrões que haviam prevalecido no início da República e que a 

Reforma mutilara. Era reabilitado o modelar sistema de ensino paulista

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 AEscola e a República e Outros Ensaios 39

montado a partir das meticulosas providências de Caetano de Campos 

e dos que imediatamente sucederam a ele. O primado da qualidade 

impunha-se à prioridade concedida à difusão do ensino. Será uma 

mudança de ênfase como esta que permeará o discurso educacional 

dominante na segunda metade da década de 20. Nesta redefinição de 

prioridades, teve importantíssimo papel a Associação Brasileira de 

Educação (ABE), fundada, como já foi dito, em 1924.

Sediada originalmente no Rio de Janeiro, a ABE foi projetada 

como organização nacional. Seus organizadores esperavam que em cada Estado brasileiro fossem criados núcleos similares ao instalado 

no Distrito Federal. A ação local desses núcleos deveria ser integrada 

por Conferências Nacionais realizadas anualmente, de forma que o 

debate e a troca de informações pudessem constituir a Associação 

como “órgão legítimo de opinião das classes cultas” em matéria 

educacional. Embora tenha malogrado o objetivo de organizar os 

núcleos es+aduais, a ABE consolidou-se com o entidade nacional quando, a partir de 1927, passou a promover as projetadas Conferências 

Nacionais. Isto é testemunhado por Fernando de Azevedo que, ao 

descrever o movimento educacional na década de 20, põe em relevo o 

papel da ABE em sua dinamização e expansão, afirmando que sua 

importância residiu em ter funcionado como “força de aglutinação” 

dos esforços esparsos dos educadores que se vinham empenhando na 

reforma dos sistemas estaduais de educação:

Congregando os educadores do Rio de Janeiro, pondo- 

os em contacto uns com os outros, abrindo oportunidades 

 para debate largo sobre doutrinas e reformas, freqüentemente 

de um conteúdo intelectual confuso e contraditório, e 

convocando para congressos ou conferências de educação ”,  a 

ABE teria sido "um dos instrumentos mais eficazes de difusão 

do pensamento pedagógico europeu e norte-americano e um dos mais importantes, se não o maior centro de coordenação e 

de debates para o estudo e solução de problemas educacionais, 

ventilados por todos as formas, em inquéritos em comunicados 

à imprensa, em cursos de fér ias e nos congressos que 

 promoveu nas capitais dos Estados.  (A Cultura Brasileira)

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40  Marta Maria Chagas de Carvalho

Em especial, as Conferências Nacionais, aproximando 

educadores de todos os Estados e congregando-os em diferentes centros culturais do país, teriam propiciado o que chamou dz^m archa resoluta 

 para uma política nacional de educação.''''  (ibidem)

Em discurso-programa da Associação Brasileira de Educação, 

Heitor Lyra da Silva, apontado como principal idealizador e organizador 

da entidade, afirmava em 1925:

Creio interpretar a maioria senão a totalidade dizendo 

que não temos o fetichismo da alfabetização intensiva e que 

estamos convictos, salvo pequenas divergências secundárias, de 

que o levantamento do nível popular tem que repousar sobre 

tríplice base: moral, higiênica e econômica, o que significa que 

 sem a cultura das qualidades do caráter, sem a melhoria das 

condições de saúde da massa da população e sem uma racional  

organização do trabalho é utopia esperar que a alfabetização 

rápida e quase instantânea, se possível, viesse a transformar  

 para o bem as atuais condições do nosso país.  (Discurso)

Para os organizadores da ABE, era necessário, como pontuava 

Azevedo Sodré em conferência por ela promovida em 1925:

... convencer a nossa gente de que, ao contrário do que 

habitualmente se afirma, não cabe ao analfabetismo a culpa 

do atraso, do desgoverno, da anarquia e dos muitos males que 

ajligem nosso país.

Antes seriam ...

mais nocivas, culpáveis e condenáveis as elites mal  

 preparadas que nos governam e as legiões sempre crescentes 

de semi-alfabetos que as sustentam.

Segundo Sodré, os analfabetos eram “obreiros pacíficos e 

conformados ao progresso nacionaT\  Se era verdade que “produziriam 

mais, com menos esforço”, se fossem instruídos, era entretanto 

“preferível que fossem analfabetos”, porque “os iletrados adultos que

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 41

trabalham, produzem, não fazem revoltas, não perturbam, nem 

anarquizam o nosso meio”.  A solução apresentada pretendia-se estritamente pedagógica, propondo-se como ampliação do âmbito 

formativo da escola. Era preciso, ao invés de “apressadamente ensinar  

a ler, escrever e contar aos adultos iletrados” - coisa de má pedagogia - 

“cuidar seriamente de educar-lhes os filhos fazendo-os freqüentar  

uma escola moderna que instrui e moraliza, que alumia e civiliza”.

A partir do trabalho de Jorge Nagle,  Educação e Sociedade na 

 Primeira República,  tornou-se impossível referir-se ao movimento 

educacional do período sem utilizar a nomenclatura que criou para 

expressar os momentos distintos desse movimento com suas 

características: entusiasmo pela educação e otimismo pedagógico.

O entusiasmo pela educação caracterizar-se-ia pela importância 

atribuída à educação, constituída como o maior dos problemas nacionais, 

de cuja solução adviria o equacionamento de todos os outros. O 

otimismo pedagógico manteria, do entusiasmo,  a crença no poder da 

educação, não de qualquer tipo de educação, enfatizando a importância 

da nova pedagogia na formação do homem novo. Na passagem do 

entusiasmo para o otimismo se teria produzido no movimento uma 

crescente dissociação entre problemas sociais, políticos e econômicos 

e problemas pedagógicos. , .

Existe para Nagle uma anterioridade temporal do entusiasmo  

pela educação em relação ao otimismo pedagógico. Entretanto, n?o 

considera relevante o critérío cronológico na distinção entre os dois movimentos. Exemplo disto é que toma o discurso de Miguel Couto na 

ABE, em 1927,  No Brasil só há um problema nacional, a educação do 

 povo,  como caso mais típico do entusiasmo pela educação. A leitura 

que Vanilda Paiva faz do texto de Nagle estabelece um limite temporal 

rígido: até 1925, estaríamos diante do entusiasmo pela educação; a 

partir de então, do otimismo. Leia-se o que escreve:

Com o nacionalismo dos anos 10 voltam à baila os 

ideais republicanos e democráticos, aos quais se ligim os 

anseios de universalização do ensino elementar e de ampliação 

das oportunidades educacionais para o povo. Organizam-se 

as 'lig as”, em cujos programas sempre estão presentes 

reivindicações relativas à instrução popular... Este nacionalismo

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42  Marta Maria Chagas de Carvalho

educacional que se manifesta na luta pela democratização do 

ensino, está ligado ao problema da ampliação das bases de 

representação eleitoral, pois na medida em que grupo 

industrial urbano pretende a recomposição do poder político 

dentro do marco da democracia liberal o caminho mais 

 seguro era o da difusão do ensino.(...)

O entusiasmo pela educação que se manifesta através 

da mobilização em favor da difusão do ensino elementar e que 

está ligado às tentativas de recomposição do poder político através da ampliação do número de votantes, iniciada em 

meados da década de 10, não sobrevive com o mesmo caráter  

logo após os primeiros anos da década seguinte, quando fo i se 

tornando claro para os grupos em luta pelo poder que, através 

da educação, a  , conquista da hegemonia política era 

 problemática e demandava muito tempo... Os políticos 

efetivamente interessados na conquista do poder abandonam 

este campo de luta, deixando-o aos diletantes da educação e 

entregando-se às conspirações de revolta armada.  (Educação 

Popular e Educação de Adultos)

Em Vanilda, Miguel Couto é o principal representante desse 

diletantismo. Paralelamente a essa sobrevivência do entusiasmo como 

diletantismo, teriam surgido os profissionais em educação, representantes 

do otimismo pedagógico. Tais profissionais

reuniram-se numa Associação Brasileira de Educação (ABE), 

 fundada por Heitor Lyra em 1924, a fim de defender seu 

campo de trabalho... Era a primeira sociedade de 

 profissionais da educação com caráter nacional e sua 

atuação, principalmente através das Conferências Nacionais 

de Educação promovidas a partir de 1927, contribuiu no  sentido da difusão dos ideais e princípios da Escola Nova e do 

“otimismo pedagógico” em geral. (...) Durante os anos vinte, 

 passada a fase do "entusiasmo pela educação ”, dominam as 

idéias de tecnificação pedagógica de form a quase absoluta e 

uniforme em todo o país, graças à ABE.  (ibidem)

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 43

0 texto de Vanilda Paiva amarra o “entusiasmo pela 

educação” às “tentativas de recomposição do poder político através da 

ampliação do número de votantes iniciada em meados da década de 10”. 

Ter-se-ia aí um momento em que educação e política estavam vinculadas. A partir de meados da década de 20, esse vínculo desapareceria, dando

 

lugar a um enfoque técnico da questão educacional.Questiona-se aqui esta tese de Vanilda Paiva. Primeiramente, 

porque o grupo que compunha os órgãos diretores da Associação  

dificilmente pode ser qualificado de  profissionais  em educação. Nele predominaram médicos, advogados e sobretudo engenheiros, professores 

da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cujos interesses e campo de 

trabalho abrangiam questões de siderurgia, urbanismo, economia  

política, finanças, política, astronomia, física etc. Em segundo lugar, 

porque tal grupo guardou do entusiasmo  a priorização da educação 

como grande problema nacional, cuja solução transformaria política, 

social e economicamente o país. Em terceiro - razão principal - porque a ênfase do grupo na qualidade do ensino em detrimento da 

simples difusão da escola - o que faria deles otimistas -   não foi 

decorrente de razões pedagógicas, mas  políticas.  Dependendo de sua 

qualidade,  a educação foi explicitamente valorizada, como 

instrumento político de controle social.Depois de realçar a vinculação original das preocupações

 

educacionais “com as tentativas de recomposição do poder político 

através da ampliação do número de votantes”, Vanilda Paiva apresenta 

o que considera uma causa da dissociação progressiva entre as 

preocupações políticas e educacionais: é que “foi se tornando claro 

para o grupo em luta pelo poder que, através da educação, a conquista 

da hegemonia política era problemática e demandava muito tempo”. 

Os “políticos efetivamente interessados na conquista do poder” teriam 

abandonado o “campo de luta” educacional, “entregando-se às 

conspirações de revolta armada”, como já se leu.A história da fundação e da organização da Associação

 

Brasileira de Educação não confirma essas afirmações. Sua fundação 

resultou do malogro na organização de um partido político, por causa 

da precipitação de um dos organizadores que, em julho de 1924, 

acreditando no sucesso da revolução paulista, chegou a entrar em 

contato com os revolucionários. Além disso, parcela significativa dos

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fundadores da Associação - a se crer na veracidade das acusações que 

determinaram a prisão de alguns deles - esteve envolvida em 

movimentos militares. Finalmente, cerca de metade dos integrantes 

dos órgãos diretores da Associação foram os fundadores e organizadores 

do Partido Democrático do Distrito Federal, tendo composto a cúpula  

do partido nos anos de 1927 e 1928. Dois deles chegaram mesmo a 

eleger-se intendentes municipais nas eleições de 1928 e, segundo 

informação de Paulo Nogueira Filho, estreitamente vinculado ao grupo, 

foi o desaparecimento deste, num desastre de aviação em 1928, que inviabilizou o Partido Democrático do Distrito Federal.

A significação disso não extrapolaria a simples retificação do 

relato de Vanilda Paiva se fosse possível sustentar que o grupo aglutinado 

na ABE na década de 20 era apenas um grupo remanescente do 

entusiasmo pela educação, convencido da importância da simples 

difusão do ensino sem qualquer restrição ao conteúdo da educação a 

ser difundida. Este não é o caso, como já se afirmou. A crítica ao que 

Heitor Lyra da Silva chamara de “fetichismo da alfabetização 

intensiva” era mesmo um dos pontos consensuais entre os integrantes 

da Associação, constituindo-se, ao que parece, como um dos mais 

importantes móveis da fundação da entidade.

Muito esclarecedora, a respeito, é a informação de Mattos 

Pimenta. Pertencia à Comissão Executiva de Partido Democrático do 

Distrito Federal em 1927 e 1928 e era muito identificado com 

intelectuais do Conselho Diretor da ABE, participantes, nesses anos, daquela Comissão. Segundo ele, o Partido fora organizado a partir da 

avaliação de que a Revolução de 1924 em São Paulo falhara em razão 

da inexistência de uma opinião pública que desse sustentação à tomada 

do poder pelas armas. Isto implicava, a seu ver, deslocar a ênfase que  

vinha caracterizando as campanhas de alfabetização no período - 

ampliação do número de eleitores - para questões de organização  do 

eleitorado. Estas abrangiam a formação de uma opinião pública e, para tanto, partido e sistema educacional eram propostos como instrumentos 

principais. Isto sugere que o abandono da ênfase na difusão do ensino, 

registrado por Vanilda Paiva, não significou uma despolitização do 

campo educacional mas, ao contrário, sua politização em novos 

termos. Compreender este desdobramento requer que se compreenda o 

aparecimento do entusiasmo pela educação e sua transformação no

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otimismo pedagógico em termos que possibilitem evidenciar o sentido 

da repolitização operada.A ampliação do número de eleitores, a erradicação da

 

ignorância como instrumento de qualificação do voto consciente, a 

formação e organização de uma opinião pública são objetivos que, em  

maior ou menor grau, aglutinam na ABE os intelectuais dedicados ao 

estudo e à propaganda da causa  educacional. Mas o que os aglutinava 

era, fundamentalmente, o projeto político de uma  grande reforma de 

costumes  que ajustasse os homens - com o afirmaria Lcurenço Filho em 1935, referindo-se à trajetória da ABE - “a novas cond ições e 

valores de vida, pela pertinácia da obra de cultura, que a todas as  

atividades impregne, dando sentido e direção à organização de cada 

povo”. A proposta de uma educação integral , resultante da subordinação 

da difusão do ensino a razões técnicas ou estritamente pedagógicas 

que determinassem sua qualidade, era uma das respostas políticas 

ensaiadas por setores da intelectualidade brasileira na redefinição dos 

esquemas de dominação vigentes.

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CAPÍTULO 4

 A Escola e a República e Outros Ensaios 47

A REFORMA MORAL E INTELECTUAL

As principais iniciativas que notabilizaram a Associação  

Brasileira de Educação nos anos 20 foram marcadas como 

acontecimentos cívicos: a propaganda que se fez de'as, os rituais que 

as constituíram colocaram a Associação como obra cívica de que dependia a redenção do país. As Conferências Nacionais não foram 

somente instâncias de debate, mas eventos que funcionaram como 

propaganda da causa educacional. Nelas, discursos e rituais 

representaram a ABE como congregação de homens de elite, 

esclarecidos, bem intencionados e devotados ao equacionamentu das 

mais graves questões nacionais. Nesta prática, operavam mecanismos 

de constituição e validação da campanha educacional. Divergências 

eram relativizadas ou mesmo apagadas na generalidade das 

proclamações em que o civismo era o campo consensual de atuação. 

Amalgamando ou diluindo divergências, atraindo adeptos, a campanha 

cívica tinha importância em si mesma, sendo ela própria parte  

essencial do projeto de reforma moral e intelectual em que se engajava 

a ABE. Produzindo o que se entendia como uma taineana temperatura 

moral,  era processo em curso de erradicação do que se identificava  

como uma das principais eausas da crise nacional: o ceticismo, o 

individualismo, a apâtia das elites políticas, cegas à importância da 

educação. Promover uma reforma da mentalidade dessas elites, 

convencendo-as da necessidade de regenerar pela educação as 

populações brasileiras, moldando-as como povo saudável e produtivo, 

era o que se esperava da campanha educacional.

Máquina persuasiva, o discurso cívico da ABE opera  

maniqueistamente, produzindo imagens da realidade brasileira que opositivamente se interqualificam. O presente é reiteradameníe 

condenado e lastimado, sendo caracterizado de modo a fundamentar 

temores de catástrofes iminentes, que atingirão o país se a 

campanha educacional não obtiver os resultados desejados. Ao 

futuro insistentemente se alude como dependente de uma política 

educacional: futuro de glórias ou de pesadelos, na dependência da ação

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diretora de uma elite que direcione, pela educação, o processo de 

transformação do país. Na oposição construída por imagens de um país 

presente condenado e lastimado e de um país futuro desejado é que se 

constitui a importância da educação como espécie de chave mágica 

que viabilizará a passagem do pesadelo para o sonho. Neste espaço é 

que se inscreve o entusiasmo pela educação de que a ABE é ao mesmo 

tempo conseqüência e principal foco de irradiação.No discurso cívico da ABE, a figura de um brasileiro doente e

 

indolente, apático e degenerado, alegoriza os males do país. Transformar essa espécie de Jeca Tatu em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e 

produtivo era o que se esperava da escola.

As práticas discursivas das organizações cívico-nacionalistas 

que proliferam no país nos anos 10 e 20 têm merecido pouca atenção 

dos historiadores. Interpretado como palavrório vazio, ausência de 

ideologia, ritual esvaziado, o discurso cívico não é analisado enquanto 

prática. Com isto, perde-se a possibilidade de identificar não somente 

estratégias organizacionais de grupos interessados em ampliar seu 

campo de atuação, como também os objetos de intervenção constituídos 

por tais estratégias. E muito tênue a diferença entre a prática dessas 

organizações cívicas e a que caracterizou as associações de profissionais,  

como médicos, educadores, engenheiros e higienistas, que na década 

de 20 se organizaram por meio de inúmeros congressos e conferências 

em tomo de questões eleitas como pontos privilegiados de intervenção. 

Nelas, inúmeros rituais, conformavam tais questões como causas cívicas, validando objetos e técnicas de intervenção e credenciando 

seus agentes. Nesta situação é que se dá a montagem de diversos 

dispositivos de controle, ordenação, regulação e produção do cotidiano  

das populações pobres. O reformador social - cuja presença mercante 

na década de 20 só recentemente tem sido registrada e analisada - tem 

nessas organizações o seu lugar de emergência. Nelas é que tais 

reformadores se credenciam como colaboradores indispensáveis e eficientes na invenção e no aprimoramento de dispositivos de dominação.

A Associação Brasileira de Educação foi uma dessas 

organizações. Nela, um grupo de intelectuais se auto-representou 

como elite que deveria dirigir por intermédio da educação o processo de 

transformação do país. Sua prática constituiu como objetos de 

intervenção política a ignorância, o vício, a doença e a indolência das

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 49

populações brasileiras. E, no processo de debates desencadeado nas 

Conferências Nacionais, tal prática credenciou os agentes e as ,técnicas 

de intervenção preconizadas. A ABE funcionou assim como instância 

de organização e credenciamento de reformadores sociais, produzindo 

um espaço de ação política - o do técnico - que seria gradativamente 

alargado no interior da burocracia estatal, principalmente a partir de 

1930. Mas funcionou também como instância de disseminação de um 

 saber   sobre o social, de marcada configuração autoritária, em que o 

povo brasileiro é figurado como matéria informe e plasmável pela ação de uma elite que projetava conformá-lo a seus anseios de Ordem e Progresso.

A implantação de hábitos de trabalho e o cultivo da operosidade 

como valor cívico eram pontos essenciais da “ grande reforma de 

costumes” referida por Lourenço Filho. Segundo ele, deveria ajustar os  

homens a “novas condições e valores de vida”. O ajustamento dependia  

de uma remodelação e reestruturação do aparelho escolar. Mas dependia 

também do que Gustavo Lessa entendia como “organização da 

resistência” na cidade invadida pela fábrica. Referindo-se a Londres, dizia 

ele em 1930:

 Há mais de um século, quando a cidade começou a se 

industrializar, nela despertaram os mesmos valores que hoje 

vemos afluir no Rio de Janeiro: miséria em vasta escala, 

 superlotação nas habitações, facilidade de contágios em 

doenças, degradação dos padrões de moralidade. Mas a raça inglesa soube suscitar então os leaders enérgicos que ela tem 

 produzido em todas as emergências, não só religiosos como 

leigos. Foi-se organizando a resistência, foram-se constituindo 

inúmeras sociedades privadas para lutar contra a miséria física 

e moral   ...  Está claro que os males não foram extintos, mas 

opôs-se à sua violenta invasão a muralha de aço da solidarie

dade humana.  (“O papel dos grupos familiares na educação”)

A remodelação e a reestruturação do sistema escolar era tema 

dos debates que se constituíram como objetivo central da ABE, com 

vistas à formulação e implementação de uma política nacional de 

educação. Mas a organização da resistência nos termos descritos por 

Gustavo Lessa era o que definia a atuação da entidade no Rio de

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Janeiro. Nesta espécie de cruzada moral, inúmeros rituais cívicos, 

propostos como iniciativas que expandiam o raio de influência da 

escola na moralização dos costumes da cidade, absorviam os intelectuais 

engajados na ABE. Cuidados com a formação cívica apareciam a eles 

como garantia do “trabalho metódico, adequado, remunerador e salutar”, de “disciplina consciente e voluntária e não apenas automática e

 

apavorada”, como também da “ordem sem necessidade do emprego da 

força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade.” (Solução de 

um problema vital)  Tais cuidados deveriam necessariamente incorporar- se ao que se preconizava como educação integral,  em oposição ao que 

se entendia por instrução pura e simples.  Amplamente forjada por rituais 

de constituição de corpos saudáveis e de mentes e corações 

disciplinados, a educação cívica era garantia de que a educação não 

viesse a tomar-se fator de desestabilização social. Porque a instrução  

pura e simples era, como a entendia Heitor Lyra da Silva, “uma arma” 

e, “como toda arma”, “perigosa”. Colocá-la nas mãos da população 

requeria medidas que preparassem quem a recebesse “para manejá-la 

benfazejamente para si e para os outros” (Missão Educacional). 

Educação do sentimento, dos gestos, do corpo e da mente, assim se 

diferenciava a educação integral preconizada da instrução pura e 

simples, arma perigosa. Era esse poder disciplinador atribuído à 

educação prescrita que fazia com que a questão da organização do 

trabalho no país - tema que avulta, como já se viu no primeiro 

capítulo, nas avaliações que a geração de 20 faz da República 

instituída - dependesse fundamentalmente dos recursos educacionais.

O tema da organização do trabalho é sempre referido no 

discurso da ABE como questão incontroversa, cuja estrita nomeação é 

dotada da magia da argumentação irrecusável na defesa da importância 

da educação. Embora seja por isso difícil precisar o que se entendia 

pela formulação, é possível afirmar que significava um conjunto de 

dispositivos que distribuem, integram, dinamizam, aparecendo com referenciais diversos. Referida à escola, a expressão designa medidas 

de racionalização do trabalho escolar sob o modelo da fábrica, tais 

como: tecnificação do ensino, orientação profissional, testes de 

aptidões, rapidez, precisão, maximização dos resultados escolares etc. 

Designa também o funcionamento da escola na hierarquização dos 

papéis sociais, formando elites condutores e povo produtivo. Referida

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 51

ao país, a expressão designa um conjunto de dispositivos de integração 

nacional (como os propostos pelo Club  dos Bandeirantes do Brasil) e de 

distribuição ordenada das populações por diversas atividades produtivas. 

Referida às populações pobres, aparece como disciplinamento, pela 

distribuição regrada das populações em espaços adequados, pela 

regulamentação controlada do lazer e do trabalho. Nesta acepção, 

englobava medidas destinadas a atenuar conflitos de classe e a aumentar a 

produtividade do trabalhador, envolvendo questões de saúde e de moral, 

com o objetivo de adequar a vida cotidiana do operário às exigências do trabalho industrial na ordem capitalista.

O tema deve sua circulação na ABE à predominância de 

engenheiros. Defendendo medidas de organização do trabalho de que 

seriam os executores, eles se auto-representavam como “desejosos do 

bem moral e material dos seus auxiliares” (leia-se “operários”, mas, ao 

mesmo tempo, “cuidadosos da finalidade dos empreendimentos 

entregues à sua direção.” (O Mundo Contemporâneo e a Engenharia) 

O trabalho organizador do engenheiro implicava observação minudente e 

apontava para um grande número de providências que extrapolavam a 

vida no interior da fábrica. O engenheiro deveria

notar o homem que está fatigado ou mal empregado, para lhe 

dar um trabalho menos penoso ou mais conveniente; o homem 

que está doente e vai contaminar seus camaradas para dirigi- 

lo ao dispensário; cr homem sem teto, e facilitar-lhe a casa decente para sua família; o homem que se quer instruir e, 

 para tanto lhe dar os meios; o homem que desejasse aproveitar  

 seus momentos de fo lg a e lhe propiciar um jardim,  (ibidem)

Representando seu papel como o de “conduzir homens”, os 

engenheiros deveriam ser “os bons irmãos dos jovens operários e, por 

isso, velar não só pela higiene do corpo, suas vestes, seus costumes, como pelas funções morais” (ibidem).

A referência ao tema traduziu-se, em alguns casos, na 

valorização dos métodos da chamada pedagogia moderna enquanto 

possibilidade de realização, no meio escolar, das novas máximas 

organizadoras do trabalho industrial. A idéia de que aqueles motodos 

permitiriam conseguir melhores resultados com menos esforços, à

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52  Marta Maria Chagas de Carvalho

semelhança dessas máximas, determinou o crivo principal de valorização 

das inovações pedagógicas: sua maior eficiência comparativamente à chamada pedagogia tradicional. Providências como testes, organização 

de classes homogêneas, atendimento aos interesses e habilidades 

individuais dos alunos eram, dessa perspectiva, valorizadas. Lourenço 

Filho, por exemplo, em artigo de 1929 sobre “A Escola Nova”, 

apontava duas tendências principais na pedagogia moderna, referindo- 

se a uma delas como “taylorismo na escola”: abrangendo “inovações 

ou sistemas que visam dar maior rendimento escolar do ponto de vista 

da organização das classes ou cursos”, essa tendência encararia a 

escola “como a produção das modernas indústrias, que deve ser rápida, 

precisa, com perdas mínimas de energia e pessoal”. As propostas 

pedagógicas de Claparède, por exemplo, eram interpretadas como 

reflexo da “necessidade de classificação menos empírica dos alunos”, 

decorrente da dificuldade que no ensino escolar comum representava a 

“heterogeneidade da classe entregue a um só professor”. Para 

Claparède, segundo Lourenço Filho, não seria apenas necessário respeitar a diferenciação quantitativa: “O menino não é só mais capaz 

ou menos capaz em relação à idade. Cada criança apresenta capacidades 

específica: é observadora ou reflexiva; intelectual ou técnica”. Disto 

decorreria a “correspondente necessidade de especialização do trabalho 

e conseqüente classificação escolar”. A escola sob medida de Claparède  

seria a expressão desta necessidade, propondo-se não somente a 

hierarquizar, mas a diferençar também.A concepção da escola como meio a ser organizado por máximas

 

similares às da racionalização do trabalho industrial não significou 

apenas valorização de providências do tipo aludido. Tal concepção 

também funcionou como crivo de avaliação do alcance pedagógico de 

propostas mais globais que visavam redefinir o processo mesmo do 

ensino, a natureza da relação professor-aluno. Valorizando a liberdade 

do educando, Barbosa de Oliveira, por exemplo, prescrevia-lhe 

limites, de modo que ela não resultasse em “ um esforço inútil e um 

tempo perdido”. Para ele, o trabalho infantil nas escolas deveria ser 

organizado de modo a “ guiar a liberdade para que o máximo de 

 frutos” fosse “obtido com um mínimo de tempo e esforço perdidos .” (A 

Unificação da Escola Normal)  Isto significava não somente prescrever 

normas de organização das atividades escolares, mas também postular

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54  Marta Maria Chagas de Carvalho

proposta, como fez a Segunda Conferência, tentando preservar a 

autonomia estadual e aprovando a realização de um acordo entre os  

governos estaduais e Federal que assentasse um “ plano de educação moral teórica e prática em todas as escolas normais brasileiras, 

integrando as mesmas finalidades humanas e nacionais.” (Anais da 

Segunda Conferência Nacional de Educação)  O que importava era 

assegurar que “um espirito comum, um estado de ânimo acionar’’''  

impregnasse, pela ação desses “organizadores da alma popular ”, o 

trabalho escolar.

O tema da organização do trabalho condensava também 

expectativas de fixação do homem ao campo, “organizando” desta forma 

as populações. Nesta acepção, a máxima “O homem certo no lugar certo” 

significava não a adequação do trabalhador a uma determinada ocupação 

industrial, mas expectativas quanto a uma distribuição “racional” da 

população pelas atividades rurais e urbanas. Assim pensada, a questão 

traduzia-se na valorização da chamada Escola Regional. Nesta acepção, o 

tema tinha conotações românticas de idealização utópica da vida 

campestre. Imagens da honradez, da simplicidade, da saúde figuravam 

virtudes rurais, por oposição idílica a representações da cidade como 

vício, corrupção e insalubridade. A escola rural era uma espécie de 

antídoto largamente receitado contra o “congestionamento das cidades” 

e “o  pauperismo urbano com seus perniciosos efeitos.” (A Educação 

Rural) Abrir-se ao influxo da vida campestre era o que se propunha 

como recurso disciplinar da escola rural. Quanto à escola adaptada ao 

meio urbano, era comum a expectativa de que viesse “combater, ou 

 pelo menos atenuar em seus efeitos morais, essa vida tumultuosa, 

corrosiva, ávida de prazeres”, com os recursos oferecidos pela 

moderna pedagogia (A Escola Ativa nos Centros Urbanos).

A regionalização como instrumento de alteração que Fernando 

Magalhães entendia por “distribuição humana desordenada” não poderia, 

entretanto, comprometer a função homogeneizadora da escola. No  

programa nacionalista a ela reservado, era necessário conciliar vantagens 

da regionalização com o que se propunha como função essencial da 

escola primária: “a homogeneização necessária dos indivíduos como 

membros de uma comunhão nacionaP\  na formulação de Lourenço 

Filho. A escola de civismo deveria garantir a unidade política do país 

inculcando “em todas as crianças brasileiras idéias e sentimentos

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 55

necessários à própria existência da nacionalidade” (A Uniformização 

do Ensino no Brasil).

A nostalgia romântica da sociedade agrária que perpassa o 

discurso dos apologistas da escola rural não era partilhada por todos os 

organizadores da ABE. Para o grupo de Vicente Licínio Cardoso e 

Ferdinando Labouriau, a cidade não se apresentava como signo da 

dissolução, mas, ao contrário, como emblema do Progresso. Foi, 

entretanto, aquela nostalgia que imprimiu sua marca na atuação da ABE 

na cidade do Rio de Janeiro. Essa nostalgia não deve iludir: ao formular- 

se como valorização de determinados comportamentos, funcionava como 

proposta de disciplinamento adequada ao mundo da fábrica. Idealizações 

utópicas das virtudes moralizadoras da vida campestre equivalem, desta  

perspectiva, aos signos futuristas de dinamismo com que se enaltecia o 

modo de vida moderno de que a cidade é o palco. O bucolismo era 

encenado articulando projeto de disciplinamento das populações urbanas 

sob o "molde das virtudes “higiênicas” de que o trabalhador rural 

idealizado era o protótipo. Asseio, Temperança, Laboriosidade - virtudes 

higiênicas que, nessas idealizações, somente a vida rural poderia propiciar

- eram virtudes capazes de produzir corpos e mentes disciplinados no 

mundo da fábrica. Equivaliam, como se disse, aos signos modemizadores  

com que um novo ritmo de vida era proposto, ritmo de que a máquina 

era a metáfora e o modelo a regular o cotidiano das populações urbanas.

A atuação da ABE na cidade do Rio de Janeiro modulou-se 

principalmente como resistência moralizadora ao mal urbano. Pregações, 

festas pedagógicas, comemorações cívicas, controle do lazer por 

procedimentos vários, constituição de Círculos de Pais destinados a 

ampliar o raio de influência da escola, medidas de proteção à Infância

- tais iniciativas tinham com o denominador comum o empenho na 

moralização dos costumes citadinos. A elas somente se contrapunham 

as promovidas pela Seção do Ensino Superior do Departamento 

carioca da AB E - seção em que se aglutinava o grupo de Labouriau - 

em que a tônica era a promoção de cursos e conferências de alta 

cultura, numa tentativa de demonstração prática da viabilidade do 

ensino universitário no país. Mas a presença de expressivo número de 

militantes católicos na Associação deu à entidade o caráter de 

resistência moral referido. É por isso interessante reter a especificidade  

do caráter que esse grupo dava à sua atuação.

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56  Marta Maria Chagas de Carvalho

Em julho de 1929, Fernando Magalhães, líder do grupo católico 

sediado na ABE carioca, submete ao Conselho Diretor da Associação 

um projeto de organização social   cometido por D. Amélia de Rezende 

Martins, a ser desenvolvido como A ção Social Brasileira. A autora já  

fizera sentir sua presença'no círculo da ABE propondo, em 1927, na 

Primeira Conferência Nacional de Educação, que o ensino religioso 

fundado na doutrina católica integrasse o programa das escolas  

oficiais. Mais tarde, em 1931, D. Amélia também seria a responsável pela 

área social da Liga de Defesa Nacional, a convite do mesmo Fernando Magalhães, então presidente do órgão. D. Amélia, contudo, não integrava 

os órgãos diretores da Associação, nem se destacava como sócia atuante.

Submetido à apreciação do Conselho, o projeto foi agraciado 

com um voto de apoio à idéia “ generosa e útiP\  A maior parte do 

Conselho subscreveu, em agosto de 1929, os estatutos da Ação Social 

Brasileira, sociedade civil por eles instituída com sede no Rio de Janeiro, 

"tendo por objetivo coordenar e desenvolver toda a Ação Social no 

 Brasil, aproveitando, auxiliando, ampliando e completando as iniciativas 

 já existentes, especialmente em beneficio da educação e da assistência”.Mesmo que se tenha em conta uma provável condescendência

 

do Conselho às boas intenções de D. Amélia, o projeto referido 

interessa aqui por hiperbolizar o tipo de redução de cunho moralista  

operada na identificação do que é nomeado questão social   e na 

constituição concomitante de um campo de ação educacional, permitindo 

elucidar o significado das práticas da ABE na cidade do Rio de Janeiro.Montado como enumeração e exemplos de ação benemérita, o 

documento pretendia estar apresentando uma solução global para a 

chamada questão social. Curiosamente, entretanto, justapunha sugestões 

de divertimentos “sociais” e “populares”, com os quais D. Amélia, apaziguando sua aflição de observadora preocupada, esperava solucionar 

o ócio inoperante do operário e a dissolução dos costumes da alta  

sociedade. Desta maneira, a leitura do projeto produz um efeito de 

incongruência, na medida em que não obedece a um princípio 

hierárquico de ordenação e adequação discursivas: D. Amélia dispõe  

seu texto quase que por livre associação, de modo que um enunciado 

como “As mães não sabem que divertimentos proporcionar aos 

rapazes para afastá-los das mesas de jogo, dos bilhares públicos, do 

cabaret, do mau cinema, de tudo mais que não preciso citar, de todas

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 57

as diversões, enfim, verdadeiras escolas do vício...”  coexiste ccm 

as sarjetas continuam cheias de folhas e papéis que vão entupir os 

raios com a primeira chuva”, “é impraticável e esfalfante, a meu ver, 

 para o professorado daqui, com o nosso clima deprimente, levar  

turmas de alunos a visitar fábricas, museus, jardins zoológicos, 

observatórios etc”  e “Os literatos enchem as nossas livrarias de uma 

literatura perversa”  ou, ainda, “A Ação Social terá em vista ampliar  

 sempre os seus fins, cuidará da questão dos prisioneiros, onde o 

 problema não estiver ainda resolvido, e auxiliará, por exemplo, com  seus films, as Academias Superiores de Ciências e Artes e também a 

Saúde Pública”.Na dispersão desses objetivos, configura-se uma proliferação

 

de questões que estariam a exigir solução urgente, segundo D. Amélia. 

A organização da Ação Social Brasileira pretendia superar a situação 

de impotência em que se encontravam as senhoras beneficentes:

 As festa s de caridade caíram em desuso, ninguém 

mais se interessa por essas miscelâneas, que dão um trabalho 

insano para serem organizadas e estão irremediavelmente 

 sujeitas à mais severa crítica. Os chás já estão cansando, 

muita gente deles se esquiva, e muita gente lamenta não poder  

 fazer outro tanto. A festa da flor já está muito explorada, 

apresentando grandes desvantagens, e vai caindo, pela sua 

repetição, na antipatia do público, que se enerva de ter que  parar, em seu caminho, e abrir a carteira. As tômbolas e as 

quermesses já fizeram seu tempo e hoje só dão resultado em 

centros menores. 0 que resta para fazer viver as obras sociais?

Em sua falta de coesão e efeito ridículo, o documento oe D.  

Amélia exibe-se à leitura como espécie de rata de um bom tom 

discursivo presente nos mecanismos de censura de discursos mais 

elaborados. Nestes, a disposição do que se diz prevê adequação à 

recepção, impedindo que, nesta, a “verdade” do discurso possa ser  

comprometida ao evidenciar-se em sua mera particularidade. Desta 

maneira, espécie de lapso discursivo cuja inépcia faz ver o recalcado 

de outros discursos mais elaborados, o documento de D. Amélia  

permite ler o que se pretendia apto.  Por seu caráter de coisa secundária,

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58  Maria Maria Chagas de Carvalho

explicita seus limites não só de coisa mal feita e mal conseguida mas, 

principalmente, os limites dos vários elementos de que se apropria e 

que, articulados sem inépcia, constituíam ajusta medida, o tom certo e 

verossímil do bom senso educacional.

Na apresentação que fez do projeto ao Conselho, D. Amélia de 

Rezende Martins iniciava atribuindo à Associação Brasileira de Educação 

o caráter de organização de finalidade similar à da que pretendia criar:

O empreendimento que apresento ao vosso estudo não é mais uma fundação para cuidar das mesmas coisas d 2 que já 

 se ocupam algumas das nossas organizações sociais, entre as 

quais avulta, com brilho intenso, a A.B.E. (...) As Senhoras 

 são as mesmas que trabalham na A.B.E., como nas escolas, 

como nas demais obras sociais de caráter particular, como em 

instituições de caridade ... A A.B.E., que reúne a nata da 

nossa intelectualidade, está no seu papel, levantando planos 

 soberbos, que já se vão realizando aos poucos. (...) Mas o que 

 prega a Associação Brasileira de Educação tem que ser  

realizado em grande escala. E 0  que pretende fazer a Ação 

Social Brasileira...

Atribuindo à ABE finalidade similar à do seu projeto - que 

pretendia propor meios mais eficientes que chás, quermesses, tômbolas, 

rifas, festas da flor e atividades congêneres na prestação de serviços de 

benemerência - D. Amélia evidenciava 0  caráter de obra assistencial 

que, segundo ela, algumas de suas integrantes emprestavam à Associação.  

Suas palavras confirmam impressão, que fica da leitura das atas do 

Conselho Diretor, dos Boletins da ABE e da revista Schola, órgão 

oficial da Associação em 1930-1931, de que a atuação de um grupo 

significativo de mulheres na entidade se fez como ação assistencial.

Prosseguindo sua exposição ao Conselho, D. Amélia encarregava-se de interpretar algumas das iniciativas da Associação, 

apresentando uma leitura possível de uma dessas iniciativas: seu 

compromisso com a chamada questão social.

 A A.B.E., por exemplo, guiará a educação social do 

operariado, pelo seu Círculo de Pais: a Ação Social Brasileira

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I

 proporcionará um teto aos infelizes que vegetam nas favelas, 

em casas de caixas de querosene, cobertas de folhas de zinco, 

verdadeiros aglomerados de tocas ignóbeis, torpes espeluncas, 

verdadeiros antros de miséria física e moral, onde pululam as 

crianças enfezadas e imundas  ... O Círculo de Pais, em boa 

hora lembrado pela A.B.E. e posto em prática por i/iuitas 

escolas do Distrito Federal, acordará nos pais de família seus 

deveres para com os filhos, interessá-los-á nos trabalhos 

escolares, tornando prestigiados os professores. Poderemos, entretanto, acreditar que o Círculo de Pais proporcionará  

ocupação aos filhos para as horas de lazer ? Pais e mães têm 

 seus dias tomados pelas ocupações que lhes garantem a 

 subsistência, e o que farão crianças fora do horário escolar? 

Será essa a hora, será esse o lugar da Ação Social Brasileira, 

que proporcionará diversões inocentes, jogos recreativos e 

instrutivos ou brinquedos profissionais, organizando, também, 

 para os operários, o que lhes distrairá o espírito, afastando-os 

das tavernas, uma vez terminadas as horas serviço, o que se 

dá ainda com o sol de fora.

Voltada para obra caritativa que objetivava contemplar o 

operariado com formas outras de lazer, desviando-o da taverna e 

quantos outros espaços perniciosos houvesse, à proposta de D. Amélia 

não faltava o interesse de realizar tanta obra com a finalidade de evitar 

o que temia como iminente acirramento da questão social : “Não temos 

ainda organizada entre nós a questão sociar.  Parecia-lhe que, em 

outros países, havia “tanta perturbação" porque não teriam acordado 

"em tempo para cuidar problema tão temeroso”  antes que este se 

avolumasse mais. A questão se lhe afigurava como “um formigueiro 

que atacamos aqui e ele irrompe mais longe”.  Era necessário, por isso, 

reunir forças num momento em que “o mundo, convulsionado pelo 

espírito de desordem, sente o angustioso desejo de organização”.  Era 

preciso, dizia enfeixando Mussolini na ordem do discurso, imitá-lo: 

"pelo seu prestígio pessoal, diretamente encaminha toda a atividade, 

toda a iniciativa italiana”.  Por isso, propunha que se cuidasse de 

“nossa organização social antes que o descalabro, que nos ameaça, 

chegue a ponto de perturbar a nossa vida econômica, como está

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60  Marta Maria Chagas de Carvalho

 sucedendo em outras terras, com as greves sucessivas”. Era necessário, 

por isso, antecipar-se ao “ perigo”: "Se temos levantes gastamos rios de dinheiro para sufocá-los”. Seria “mais fácil prevenir do que remediar 

Calculando que a diferença entre a obra caritativa que se 

antecipava ao perigo e a repressão armada era, talvez, apenas uma questão 

de economia doméstica do país, D. Amélia deslocava abruptamente o 

referencial de seu discurso para a enumeração de “descalabros” de 

todo tipo: crianças gritando pelas ruas e quebrando vidraças; varredores 

que não sabem o seu serviço; crianças da alta sociedade sem diversões 

interessantes; moças de boa família que se degradam a cada dia; 

adolescentes que se perdem nas mesas de jogo ou na cocaína; operários 

que trocam família pela taverna; crianças a dizer inconveniências e a sujar 

calçadas; vitrines, postais e manequins, “tudo exposto com o maior 

atrevimento”; filmes imorais; artistas perversos; professores que 

ganham menos que porteiros; tarjetas postais imorais que vêm da 

Espanha; lares desfeitos; escolas sem material didático adequado; 

circos de cavalinhos com palhaços repugnantes... Contra tão proliferante 

perigo, D. Amélia propunha um rol de medidas do tipo: “publicação de 

 jogos escolares, instrutivos e recreativos, e de livros de caráter 

educativo em geral”; “publicação de revista para a mocidade escolar”; 

“museu escolar”; “cinema escolar e instrutivo”; “centro de investigação  

pedagógica, científico e artístico”; “diversões para crianças e mocidade, 

para operários e suas famílias”; “exercícios de educação física pela 

ginástica e jogos esportivos”; “música por artistas, amadores e crianças”; “cursos de artes plásticas”; “comemorações das datas nacionais e festas 

tradicionais”; “feira de diversões”; “colônias de férias”, “vida ao ar 

livre”; “banhos de mar”; “práticas higiênicas” e “todos os ramos das 

obras sociais, educacionais e de assistência”.

Tais prescrições são risíveis, apresentando-se como um 

amontoado heteróclito. Não são inocentes: na sua minuciosa 

insignificância, evidenciam forte expectativa de disciplinamento 

abrangente do cotidiano, na medida em que se exibem como recursos 

de controle da ocupação do tempo livre do operário e do ócio da “alta 

sociedade”, no espaço da cidade.

Reordenação do espaço e redistribuição do tempo, intervenção 

no cotidiano, as receitas de D. Amélia não dispensavam o recurso 

sensibilizador, persuasivo,, de gosto naturalista, que constituía o

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 61

operariado como animalidade e seu modo de vida como sujeira, doença  

e vício. Erradicar “formigueiros pululantes”, “torpes espeluncas”, “antros de miséria física e moral”, “tocas ignóbeis”, “infelizes que 

vegetam nas favelas”, “crianças enfezadas e imundas” era a missão 

que se propunha à beneficência, sem dispensar, evidentemente, o 

concurso da escola e da polícia. Operando por justaposição de 

referências e por sua livre associação, o discurso de D. Amélia produz 

um efeito de expansão do significado dessas imagens para a cidade 

como um todo. Prisioneiro do imaginário paturalista, o discurso cpera 

uma interpretação em que toda a sociedade é contaminada pela sujeira, 

pela doença e pelo vício. Nela, a imoralidade da “alta sociedade” 

aparece como sintoma da contaminação da sujeira e da doença operária. 

A imoralidade dos costumes citadinos passa a ser, desta maneira, o  

ponto de incidência principal do “ projeto de organização sociaF'1de 

Amélia de Rezende Martins. Proporcionar bons “divertimentos 

populares” fornecendo “exemplos de trabalho, de educação e de 

morar    e organizar “divertimentos sociais” para os filhos da “alta 

 sociedade” eram, neste sentido, medidas que se equivaliam na 

tentativa de “evitar que rios de dinheiro corram para dominar  

levantes e rios de sangue brasileiro encharquem nosso solo”.

Nas iniciativas que marcaram a presença da ABE na cidade do 

Rio de Janeiro na década de 20, evidencia-se propósito similar ao de 

D. Amélia: o de tornar mais abrangente e eficiente a ação escolar no 

disciplinamento do cotidiano- citadino. Tais iniciativas, de que são exemplares as Semanas de Educação dos anos 20, consistiram em  

práticas comemorativas diversas que foram montadas como celebração 

de condutas ideais na escola, no lar, no trabalho, postulando a 

necessidade da Higiene, da Aplicação, do Devotamento, da Ordem.A eficiência pedagógica das comemorações festivas escolares

 

era, no circulo educacional, a razão de existência de tais práticas, uma 

vez que, na esteira de Gustave Le Bon, entendia-se a educação como 

mecanismo de fazer passar atos do domínio do consciente para o do 

inconsciente.O valor educativo das festas era, por exemplo, enfatizado por

 

Lourenço Filho que, na qualidade de Diretor da Instrução Pública do 

Ceará, determinava em instrução aos professores:

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62  Marta Maria Chagas de Carvalho

 As simples comemorações, as festas só valem pelo 

caráter educativo de que se revistam, isto é, pela influência 

que possam ter sobre a alma infantil, antes de tudo, e pela 

influência que possam ter sobre o meio social em que 

 funcionar a escola.

Educando “ pela representação ou evocação de fa tos dignos de 

 ser imitados”, as festas forneciam às crianças “oportunidade para gravar, 

indelevelmente, muitas lições proveitosas”. Nelas, a criança começaria a “ sentir o efeito da sanção social sobre seus atos, pelos aplausos ou 

 sinais de enfado e de críticg que percebe: sente que há um público, um 

conjunto de pessoas que louvam ou reprovam”. Em muitos casos, as 

festas poderiam “ter também uma influência direta sobre o espírito 

dos pais".  Quando isto não ocorresse, as festas teriam pelo menos 

influência indireta sobre eles, “elevando a escola e o papel do professor ”.

Como lições vividas,  pelas quais o aluno teria o maior iníeresse, 

as comemorações festivas, como as Semanas de Educação, eram incorpo

radas na prática do círculo da ABE ao repertório de medidas inovadoras 

com que se pretendia assegurar maior eficiência ao trabalho escolar.

A introdução de inovações pedagógicas não era dissociável 

dos padrões de etiqueta que modulavam a vida social da ABE. Freqüentar 

ou proferir conferências sobre modernos métodos de ensino, visitar 

exposições pedagógicas, participar de palestras nas quais se relatavam 

inúmeras viagens ao Exterior, recepcionar visitantes estrangeiros, manter 

correspondência com organizações internacionais, promover espetáculos 

eram acontecimentos sociais equivalentes aos inúmeros jantares 

promovidos pela ABE no Jockey Club Rio ou aos muitos chás dançantes 

e sessões festivas incluídos nos programas das Conferências Nacionais.A programação das Semanas de Educação na década de 20 

consagrava a cada dia um tipo de celebração: do Mestre, do Lar, do 

Trabalho, da Saúde, da Fraternidade e outros arquétipos. Assim, palestras, festas, prêmios, competições, inaugurações, exposições eram 

organizados em diversas escolas e locais públicos, cultuando signos de  

autoridade e hierarquia e ritualizando, no espetáculo cívico, modelos  

de comportamento exemplar. Valores burgueses encenados como 

normas disciplinadoras do corpo e do espírito sacralizavam o Lar, a 

Escola, o Mestre, o Dever, a Saúde, fazendo dessas essências objetos

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 A Escola e a República e Outros Ensaios 63

de comemoração programados para dias inteiros. A formação de 

hábitos saudáveis era objeto de atenções especiais. A saúde não era somente um dos temas preferidos das preleções cívicas nas festividades, 

como também objeto de celebração em inúmeras competições esportivas 

oferecidas em espetáculos como modelos exemplares de comportamento. 

O esporte e a vida saudável simbolizavam a energia, o vigor, a força, a 

operosidade, signos de progresso inscritos no corpo que conhece o 

movimento adequado e útil para cada ato. Preceitos de higiene eram 

divulgados em palestras e folhetos ou constituídos, ainda, pelo incentivo à organização de Pelotões de Saúde, em preceitos cívicos de 

bom comportamento. O escotism o - fusão exemplar de vida saudável 

e moralizada - era iniciativa que contava com todo o apoio da A3E .

Dar publicidade a modelos de comportamento estabelecendo- 

se padrões que incidiam sobre a vida familiar, as relações de trabalho e 

o lazer no cotidiano urbano foi o denominador comum das práticas 

comemorativas da ABE carioca. Nelas, como um museu, os objetos 

expostos são ações modelares. Seu campo de recorte, a pluralidade dos 

comportamentos humanos. A coleção exposta, um conjunto restrito de 

comportamentos tipificados. O efeito geral dessas práticas é, assim, a 

exposição de ações exemplares de uma norma da excelência.

A exposição de ações exemplares dá-se como programação de  

festividades, como roteiros de visitações a objetos oferecidos em 

espetáculo. A ação pode ser diretamente exposta - é o caso, por 

exemplo, da montagem de espetáculos de ginástica, de que participam 

crianças de diversas escolas - ou indiretamente exposta, quando se 

tematiza, em discursos dados em espetáculo, o que é agir bem na 

escola, no trabalho ou no lar.As ações expostas à visitação nas programações festivas 

promovidas pela Associação são construídas como objetos exemplares 

pela abstração de todo elemento particularizante que as possa relativizar 

enquanto comportamento simplesmente possível e/ou desejável em determinada situação e/ou sob certas condições. Sua referência ao 

vivido dá-se como operação de confinamento do cotidiano em espaços 

idealizados: o Lar, a Escola, o Trabalho, objetivados e expostos também, no caso, como sínteses ideais das ações que harmonicamente os

 

constituem. A operação é hábil: o espectador eventualmente cativo dos 

modelos oferecidos é instado a localizar-se num desses espaços, i<eles

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64  Marta Maria Chagas de Carvalho

encontrando a cena indispensável para o sentido de suas ações. 

Constituídos como lugares de inclusão do indivíduo, o Lar, a Escola e 

o Trabalho o são, também, pela mesma operação, como instâncias 

excludentemente formadoras do social. Produz-se uma representação 

do social como idealidade reguladora: lugares sociais têm sua 

configuração delineada idealmente, de modo que neles possam ser 

situados os indivíduos particulares, como adequação a um tipo, e de 

modo que outros lugares - com o a rua ou o botequim, por exem plo - 

sejam expurgados na representação que simultaneamente os inclui.

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PARTE 2

O TERRITÓRIO DE CONSENSO 

E A DEMARCAÇÃO DO 

PERIGO: LIMITES POLÍTICOS 

DA INOVAÇÃO