cartografias do desejo

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Deste livro, Cartografias do Desejo.

Micropolítica e produção de subjetividade:

Micropolítica não está na representação, mas na produção de subjetividade, que não é

individual nem linguística ou significante. Uma semiótica mista - toda semiótica é mista

( MP ):

A problemática micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da

 produção de subjetividade. Ela se refere aos modos de expressão que passam não só pela

linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos. Então, não se trata de elaborar 

uma espécie de referente geral interestrutural, uma estrutura geral de significantes do

inconsciente à qual se reduziriam todos os níveis estruturais específicos. Trata-se, sim, de

fazer exatamente a operação inversa, que, apesar dos sistemas de equivalência e de

tradutibilidade estruturais, vai incidir nos pontos de singularidade, em processos de

singularização que são as próprias raízes produtoras da subjetividade em sua pluralidade.

 p.28

Subjetividade capitalística: p.50 e 67.

Todos os devires singulares, todas as maneiras de existir de modo autêntico chocam-se contra

o muro da subjetividade capitalística. Ora os devires são absorvidos por esse muro, ora

sofrem verdadeiros fenômenos de implosão. E preciso construir uma outra lógica diferente da

lógica habitual - para poder fazer coexistir esse murocom a imagem de um alvo que uma

força seria capaz de perfurar. Isso, sabendo o quanto esse muro pode ser terrível, e como sua

demolição implica encontrar meios difíceis e organizados (sem por isso cair no fascismo

total) e, ao mesmo tempo, continuar a desenvolver agenciamentos e territórios onde as

 pessoas se sintam bem. A meu ver, se não conseguirmos preservar essas duas dimensões,

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estaremos sempre correndo o risco de cair num destes inconvenientes: deixar o poder a essas

imensas máquinas estatais que controlam tudo, ou retomar em nossa própria ação cotidiana

todos esses esquemas de poder, todos esses sistemas de liderança, tal como são manipulados

 pela mídia. Nesses dois casos, somos igualmente levados à impotência. p.50

O que é produzido pela subjetividade capitalística, o que nos chega através da mídia, da

família , enfim, de todos os equipamentos que nos rodeiam, não são apenas idéias; não sao a

transmissão de significações através de enunciados significantes; nem são modelos de

identidade ou identificações com pelos maternos, paternos, etc. São, mais essencialmente,

sistemas de conexão direta, entre, de um lado, as grandes máquinas produtoras e de controle

social e, de outro, as instancias psíquicas, a maneira de perceber o mundo... p.67

Molar e molecular: e micropolítica

 A questão micropoliíica - ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no

campo social - diz respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais

amplas (que chamei de "molar"), comaquele que chamei de "molecular". Entre esses dois

níveis, não há uma oposição distintiva, que dependa de um princípio lógico de contradição.

Parece difícil, mas é preciso simplesmente mudarde lógica. Na lógica quântica, por exemplo,

foi necessário que um dia os físicos admitissem a matéria é corpuscular e ondulatória, ao

mesmo tempo. Da forma, as lutas sociais são, ao mesmo tempo, molares e

moleculares...P.127

Teatro dos afetos:

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Basta tirar os olhos, um instante, das representações da politica que a mídia proporciona e

examinar o que se passa no teatro dos afetos -que não querem saber de nada, que não fazem

senão seguir os gestos, o movimento dos lábios, as caretas, a falta de graça dos corpos - basta

isso para descobrir que, na maior parte do tempo, os campeões da liberdade são tão

desprezíveis quanto os outros, os defensores do conservadorismo. E quando essa ronda

começa a funcionar ao nível mais baixo,  grass-root, rasteiro, é que entramos num processo

 possível de validação das práticas sociais moleculares. Como um pintor, que se desprende da

 primeira visão para reaver os elementos de referência que constituem a verdadeira trama de

sua tela. É sombrio, é perto, é quente, é granuloso, acaba nos longes ... Com a política, é a

mesma coisa. Trata-se de uma cena de representação analítica - no sentido do teatro da

crueldade de Artaud - na qual devemos apreender o lastimável que temos diante de nós, mas

também â nossa volta, e até dentro de nós. É através da cartografia das formações subjetivas

que podemos esperar nos distinguir dos investimentos libidinais dominantes. P.134.

Martim! Culpabilidade e micropolítica ao que ele está entregue:

Se desse para apontar a regra n 01 da micro política (n 0 1 e única), uma espécie de parâmetro

do analítico das formações do inconsciente no campo social, eu diria o seguinte: estar alerta

 para todos os fatores de culpabilização; estar alerta para tudo o que bloqueia os processos de

transformação no campo subjetivo. Esses processos de transformação que se dão em

diferentes campos da experimentação social podem ser, às vezes, mínimos e, no entanto,

constituir o início de uma mutação muito maior. Ou não...

Tais processos têm sempre um começo problemático e, por isso, é freqüente tentarmos

encontrar parâmetros externos a nossa própria experiência, ou conferi-la com outras

experiências. Esse tipo de atitude é, justamente, conseqüência dos sistemas de culpabilização,

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que funcionam como fator de inibição de tudo aquilo que foge das redundâncias dominantes.

Ora, essas tentativas sempre começam em condições difíceis, com objetivos relativos e

limitados a curto prazo. O importante é captar o campo de possíveis de que elas são

 portadoras (...), pois é através desse tipo de metabolismo que se formam os verdadeiros

vetores de transformação social. É por essa razão que me parece fundamental a prática de

uma analitica social da culpabilidade. p.135

Suely Rolnik fala sobre Nelson Rodriques, e serve muito bem para os dois tipos de

derrocada. Para ela, na obra de Nelson Rodrigures,

Os planos [ molar e molecular] nunca são trabalhados um pelo outro: no molar,

 permanecemos, inflexíveis, no desumano da submissão; no molecular, no subumano de um

devir animal. A lógica da relação entre os planos é a de uma oposição binária entre ordem e

caos, inconciliáveis. Nesse tipo de economia, a vida, oscilando entre os dois pólos, só pode

mesmo acabar derrotada. Impossibilitada a criação de territórios de desejo, a vida se perde

em becos sem saída. No plano molar, a transgressão, único movimento imaginável, gera

culpa e, consequentemente, mutilação, crime ou suicídio; no plano molecular, o

desmanchamento, que não desemboca em coisa alguma, gera enlouquecimento. p. 138.

JÁ EM CL QUASE SEMPRE OS PLANOS SE CONTAMINAM. OTÁVIO JOANA E ETC.

Muito bom sobre o 'texto' e conceito na obra de D+G. Nenhum privilégio ao texto como

interioridade magnífica, nem ao conceito como transcendência que, dialeticamente, se

relaciona com o mundo como ' palavra de ordem', explicando-o e ordenando -o para nossa

compreensão e guia de conduta. Um texto, nesse caso, mais do que tematizar, realiza na

escrita os conceitos. Assim,

 p. 158, 159.

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O texto nunca é uma construção conceitual coerente e fechada sobre si mesma, consistindo

numa constituindo-se numa representação ou numa abstração, em cuja interioridade residiria

o sentido, e na qual cada conceito encontraria seu lugar. O texto nunca é essa toca, onde,

aninhados, teríamos a impressão de que, dialeticamente ou não, tudo sempre esteve, está e

estará sobre controle. [ desenhos com ' palavras e imagens ' ou foto ou outro. O CSO da arte]

É exatamente essa tradição que a dupla " Deleuze e Guattari" tenta romper. Ao mofo desse

confinamento na representação em seu estatuto imaginário, e no conceito em seu estatuto de

abstração, eles contrapõem um procedimento pelo qual o conceito tem sempre seu sentido

definido no campo da experimentação onde se encontra articulado. O sentido vem sempre de

fora. Ele é uma necessidade, necessidade do atual. É uma questão de sobrevivência: o atual

vem fazer vibrar o texto, a cada leitura É uma escrita arejada, exposta ao ar livre do mundo -

 já que não há por que dele se proteger: ao contrário, há que experimentá-lo. Na verdade, tudo

o que Deleuze escreve sobre o aforismo em Nietzsche valeria para sua própria obra, solitária

ou com Guattari ( ou com Parner, ou com Bene, etc.). O conceito deixa de ser globalizante:

em si mesmo, ele nunca quer dizer nada, e seu significado varia em função de sua relação

com a exterioridade. p. 158.

[ quero que a página seja fechada como um ovo mas que fuja em todas as direções. acho que

é em diálogos ou conversações]

É assim que a dupla " Deleuze e Guattari " trata as palavras, as noções, os conceitos. A

escrita é um campo de vibração onde partículas juntam-se, formando palavras, e depois se

separam, para formar outras, ao sabor dos fluxos com os quais o texto está conectado. O texto

é fíuxo. Seu movimento é físico. Como disse Deleuze certa vez numa entrevista: "Félix trata a

escrita como um fluxo esquizo que arrasta toda espécie de coisas. A mim, interessa-me que

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diagramática. Exemplo de semiótica a- significante: a escrita musical, o corpus matemático,

as sintaxes informáticas, as dos robôs, etc. 318

Enunciação coletiva: embora a língua seja, por essência, social e, além disso, conectada

diagramaticamente em realidades contextuais, as teorias linguísticas da enunciação centram a

 produção lingüística nos sujeitos individuados ao invés de discernir o que são os "

agenciamentos coletivos de enunciação ". ( " Coletivo aqui não deve ser entendido somente

no sentido de agrupamento social: ele implica também a entrada de diversas coleções de

objetos técnicos, de fluxos materiais e energéticos, de entidades incorporais, de idealidades

matemáticas, estéticas, etc. ) 319

Fluxo: os fluxos materiais e semióticos " precedem" os sujeitos e os objetos. O desejo,

 portanto, não é, de início, nem subjetivo, nem representativo: ele é economia de fluxos. 319

Molecular/ Molar: os mesmos elementos existentes nos fluxos, nos estratos, nos

agenciamentos, podem organizar-se segundo um modelo molar ou segundo um modelo

molecular. A ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos,

representações e seus sistemas de referência. A ordem molecular, ao contrário, é a dos fluxos,

dos devires, das transições de fases, das intensidades. Essa travessia molecular dos estratos e

dos níveis, operada pelas diferentes espécies de agenciamento, será chamada de "

transversalidade". 321

DESEJOFélix Guattari e Suely Rolnik Cartografias do Desejo.

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Desejo como caos

Tanto faz se as pulsões são diretamente remetidas a instintos do tipo etológico, ou definidas

como pulsões muito mais elaborados do ponto de vista semiótico na perspectiva freudiana, oudeterminadas em sistemas estruturalistas que situam o imaginário em relação ao simbólico,ou ainda situadas em relação a sistemas de coação no sistemismo. Em qualquer um dessescasos, sempre voltamos para esta mesma idéia: opor, necessariamente, a esse mundo bruto dodesejo um universo de ordem social, um universo de razão, de julgamento, de ego, etc. É precisamente esse tipo de oposição que não podemos senão recusar, a partir do momento emque decidimos levar em consideração os verdadeiros componentes criadores da subjetividade.Se há algo de fundamentalmente novo, de fundamentalmente válido na fenomenologiafreudiana, em seu nascimento, é exatamente o ter descoberto que, a nível dos supostos processos primários - quaisquer que sejam as teorizações posteriores, nas quais Freud seutilizou de categorias energéticas de equivalência, como a de libido -sempre se está lidandocom processos altamente diferenciados. O mundo dos sonhos, o mundo da loucura, assemióticas da infancia, as semióticas das sociedades ditas primitivas não têm absolutamentenada de indiferenciado. Ao contrário, esses mundos supõem funcionamentos de agencia-mento, de sintaxe, de modos de semiotização altamente elaborados, os quais não implicamnecessariamente a existência de metalinguagens e de sobrecodificações a interpretá-los,dirigi-los, normalizá-los, ordená-los.

Essa problemática tem incidências micropolíticas e políticas imediatas. Nos movimentos deemancipação social, fora dos quadros tradicionais de organização, encontramos, quase quesistematicamente, a importação desses modelos maniqueístas (por exemplo, a oposiçãocentralismo democrático versus espontaneismo). Penso haver uma homeostase entre essedebate existente a nível político e social e todas as outras referências teóricas que seencontram na psicologia, na psicologia social, na psicanálise, etc. Sempre se volta para aidéia de que há necessariamente uma modelização simbólica, uma primazia de linguagens bem ordenadas, de modos de estrutura bem diferenciados, os quais teriam, necessariamente,de assumir e [214]sobrecodificar uma economia supostamente indiferenciada do desejo e daespontaneidade.

215:

O desejo aparece como algo flou, meio nebuloso, meio desorganizado, espécie de força brutaque precisaria estar passando pelas malhas do simbólico e da castração segundo a psicanálise,ou pelas malhas de algum tipo de organização de centralismo democrático fala-se, por exemplo, em "canalizar" as energias dos diferentes movimentos sociais segundo outras perspectivas. Poder-se-ia enumerar uma infinidade de tipos de modelização que se propõem,cada um em seu campo, a disciplinar o desejo.

Essa noção de caos me deixa sempre constrangido, pois, toda vez que ela é mencionada, está-se adotando os óculos da modelização dominante. Até os sociólogos americanos, queanalisaram a realidade da comunicação entre a mídia e os indivíduos, perceberam que não se

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trata absolutamente de uma comunicação direta. Ela se dá através de toda uma rede, do queeles chamaram de grupos primários, com filtros de liderança, perfeitamente  grass-root,rasteiros, que tanto podem funcionar no sentido da aceleração do sistema de modelizaçãodominante, quanto de sua inibição. Então, a idéia de que haveria órgãos centrais projetando-se sobre um caos, idéia paralela aos diferentes modos de teorização da pulsão, não me parece

ser uma boa "grade" de leitura. O fato de agenciamentos de enunciação não terem acesso aosmicrofones, à televisão ou aos jornais, não os transforma automaticamente em caos.

Em outras palavras, a problemática dos agenciamentos singulares de enunciação não sai ex-nihil de uma realidade caótica: há milhares de esboços, milhares de elementos catalisadores,altamente diferenciados, suscetíveis de se articularem uns aos outros para ou se engajaremnum processo criador, ou entrarem em fenômenos de implosão, de autodestruição, demicrofascismo - o que, ainda assim, não os transforma em caos.

215:

Quando tento colocar o problema do desejo enquanto formação coletiva, evidencia-se logoque o desejo não é forçosamente um negócio secreto ou vergonhoso como toda a psicologia emoral dominantes pretendem. O desejo permeia o campo social, tanto em práticas imediatasquanto em projetos muito ambiciosos. Por não querer me atrapalhar com definiçõescomplicadas, eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontadede criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção domundo, outros sistemas de valores. Para a modelização dominante - aquilo que eu chamo de"subjetividade capitalistica," - essa concepção do desejo é [216] totalmente utópica eanárquica. Para esse modo de pensamento dominante, tudo bem reconhecer que "a vida émuito difícil, que há uma série de contradições e de dificuldades", mas seu axioma de base éque o desejo só poderia estar radicalmente cortado da realidade e que haveria sempre umaescolha inevitável, entre um princípio de prazer, um princípio de desejo, de um lado, e deoutro, um princípio de realidade, um princípio de eficiência no real. A questão consiste emsaber se não há uma outra maneira de ver e praticar as coisas, se nao há meios de fabricar outras realidades, outros referenciais, que não tenham essa posição castradora em relação aodesejo, a qual lhe atribui toda uma aura de vergonha, toda essa espécie de clima deculpabilização que faz com que o desejo só possa se insinuar, se infiltrar secretamente,sempre vivido na clandestinidade, na impotência e na repressão.

216:

Há uma problemática teórica que me parece importante para a reflexão de todos aqueles quetrabalham na psicologia, na psicanálise, no trabalho social em geral. Como consideramos odesejo? Todos os modos de elaboração do desejo e, antes de mais nada, todos os modosconcretos pragmáticos de desejo, identificam essa dimensão subjetiva a algo da ordem doinstinto animal, ou de uma pulsão funcionando segundo modos semióticos totalmenteheterogêneos em relação aos de uma prática social. Podemos nos referir tanto às teoriasclássicas da psicanálise, quanto às estruturalistas, nesse ponto pelo menos dá na mesma. Paraqualquer uma dessas teorias "o desejo é legal, tudo bem, é muito util", mas é preciso que eleentre em quadros - quadros do ego, quadros da família, quadros sociais, quadros simbólicos

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(pouco importa como se chame isso) . E, para isso, são necessários certos procedimentos deiniciação, de castração, de ordenação das pulsões.

Para mim, trata-se de uma teoria profundamente questionável. O desejo, em qualquer dimensão que se o considere, nunca é uma energia indiferenciada, nunca é uma função de

desordem. Não há universais, não há uma essência bestial do desejo. O desejo é  sempre omodo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de construção de algo. É  por isso queconsidero muito importante desmontar esse tipo de teorização. Estou convencido de que nãoexiste um processo de formação genética na criança que desemboque numa maturação daeconomia desejante. Uma criança, por menor que seja, vive sua relação com o mundo e suarelação com os outros de um modo extremamente produtor e criativo. É a modelização desuas semióticas, através da escola, que a conduz a uma espécie de processo deindiferenciação.

216:A concepção dominante de ordem social implica uma definição de desejo (das formaçõescoletivas de desejo) bastante nefasta: fluxo que [217] terá de ser disciplinado, de modo que se possa instituir uma lei para estabelecer seu controle. Até as sofisticadas teorias estruturalistasdesenvolvem a premissa de que se deve aceitar a castração simbólica, para que não só asociedade seja possível, mas também a própria fala, o próprio sujeito. Penso que essaconcepção do desejo corresponde, e muito bem, a uma determinada realidade: é o desejo talcomo é construído, produzido pelo CMI. É o CMI em sua desterritorialização, que produz essa figura bestial do desejo. Aliás, essa imagem nem é apropriada, pois a economia animaldo desejo não corresponde tampouco a esse modelo. Basta ler um pouco o testemunho dosetólogos para ver que o instinto, a pulsão, o desejo pouco importa o nome que se use - noreino animal, não tem absolutamente nada a ver com uma pulsão bruta. Ele corresponde, aocontrário, a modos de semiotização altamente elaborados, espécies de micropolíticas doespaço e de inter-relações entre os animais, as quais implicam toda uma estratégia e até,segundo os etólogos, uma certa economia estética.

Assim sendo, essa oposição - de um lado desejo-pulsão, desejo-de-desordem, desejo-morte,desejo-agressão, e de outro, interação simbólica, poder centralizado em funções de Estado - parece-me ser um referencial totalmente reacionário. É perfeitamente concebível que umoutro tipo de sociedade se organize, a qual preserve processos de singularidade na ordem dodesejo, sem que isso implique uma confusão total na escala da produção e da sociedade, semque isso implique uma violência generalizada e uma incapacidade de a humanidade fazer agestão da vida. É muito mais a produção de subjetividade capitalística - que desemboca emdevastações incríveis a nível ecológico, social, no conjunto do planeta- que constitui um fator de desordem considerável, e que, aí sim, pode nos levar a catástrofesabsolutamente definitivas.

Guattari - Penso que não. Acredito que os modos de referência de Freud que dizem respeitoao conflito psíquico introduzem noções energéticas que não são compatíveis com a realidadedos processos semióticos em pauta. Então, a necessidade que se coloca é a de articular 

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modelos de compreensão dessa produção de subjetividade, que saiam principalmente detodas as

227:

A noção de agenciamento pode comportar: l.o) movimentos de fluxos de toda natureza e quenão são da ordem de um ato (fluxos demográficos, fluxos de sangue, de leite, de hormônio,de eletricidade, de ou sabe-se lá o quê); 2.o) dimensões territoriais, que até são um certo tipode ato, mas um ato de proteção, de circunscrição, de subjetivação que busca se situar enquanto tal; 3.o) dimensões processuais, dimensões maquínicas, que, estas sim, seriam,efetivamente, do registro de um ato; 4.o) dimensões de universos que, ao contrário, não sãoabsolutamente da natureza de uma vontade, seja ela qual for - vontade processual ou vontadede territorialização -, mas que são uma espécie de encontro com outras dimensões deexistência.

230: Não mais estamos no nivel da representação e sim no da produção: o nível da produção

 subjetiva coletiva, individuada, maquínica, que diz respeito a modos de expressão que

 passam tanto pela linguagem quanto pelas mais variadas semióticas. Então, de que se trata,afinal? Certamente não de elaborar uma espécie de referente geral interestrutural, que estariareduzindo todos os níveis estruturais específicos a uma estrutura geral de significante doinconsciente. Trata-se, sim, de fazer a operação exatamente inversa, que, apesar dos sistemasde equivalência e de tradutibilidade estruturais, vai incidir nos pontos de singularidade, nos processos de singularização, que são as próprias raízes produtivas da subjetividade em sua pluralidade.

230:

Se há uma interpretação a ser feita a partir de uma análise do inconsciente, ela consistiria

em detectar o que são os esboços, os índices, os cristais de produtividade molecular. Se háuma micropolítica a ser praticada, ela consistiria em fazer com que esses níveis molecularesnão caíssem sistematicamente em sistemas de recuperação, em sistemas de neutralização, em processos de implosão ou de autodestruição. Ela consistiria ainda em apreender como outrasmontagens de produção de vida, de produção de arte, de produção do que vocês quiserem, poderiam encontrar sua plena expansão fazendo com que fossem respondidas as problemáticas do poder. Isso, certamente, implica modos de resposta de uma nova natureza.

Clarice Lispector:

O TERREMOTO ADDM 154

Ela estava muito ocupada: viera das compras de casa, deu vários telefonemasinclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, foi à

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cozinha ver se o almoço dos meninos se adiantava, eles não podiam atrasar-se naida à escola, riu de uma graça de uma das meninas, recebeu um telefonemaconvidando-a para um chá de caridade, preparou a merenda das crianças, e afinalfechou a porta à saída delas.

Então - então do ventre mesmo, como de um longínquo estremecer de

terra que mal se sabe ser o sinal do terremoto, do ventre o estremecimentogigantesco de uma forte torre abalada, do ventre vem o estremecimento e emcaretas não só de rosto mas de corpo vem com uma dificuldade de petróleoabrindo terra dura vem afinal o grande choro, um choro quase mudo, só a torturaseca do choro mudo entrecortado de soluços, o choro secreto até para elamesma, aquele que ela não adivinhou, aquele que ela não quis nem previusacudida como uma árvore que é sempre mais sacudida que a fraca e afinalrebentados canos e veias e tendões pela grossura da água salgada do choro. Sódepois que passa percebe que nenhuma lágrima a molhou. Foi o seco terremotode um choro.

Produção de subjetividade: a subjetividade não está sendo encarada aqui, como coisa em si,

essência imutável. Existe esta ou aquela subjetividade, dependendo de um agenciamento de

enunciação produzi-la ou não. ( Exemplo: o capitalismo moderno, através da mídia e dos

equipamentos coletivos, produz, em grande escala, um novo tipo de subjetividade). Atrás da

aparência da subjetividade individuada, convém procurar situar o que são os reais processos

de subjetivação. 322.

Ver lindo sobre fios, Ulisses e Penélope, perigos e grudes, p. 284 em diante.  

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