capitulos 1 e 2 fundamentosmetodologia-cientifica jose carlos koche-pdf

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5/21/2018 Capitulos1e2FundamentosMetodologia-CientificaJoseCarlosKoche-PDF- ... http://slidepdf.com/reader/full/capitulos-1-e-2-fundamentosmetodologia-cientifica-jose-car Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Índices para catálogo sistemático: 1. Metodologia científica 501 Köche, José Carlos Fundamentos de metodologia científica : teoria da ciência e iniciação à pesquisa / José Carlos Köche. Petrópolis, RJ : Vozes, 201 . Bibliografia ISBN 85.326.xxxx-x - Edição digital 1. Ciência – Metodologia 2. Pesquisa – Metodologia I. Título.

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  • DadosInternacionaisdeCatalogaonaPublicao(CIP)(CmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)

    ndicesparacatlogosistemtico:

    1.Metodologiacientfica 501

    Kche,JosCarlos

    Fundamentosdemetodologiacientfica:teoriadacinciaeiniciaopesquisa/JosCarlosKche.

    Petrpolis,RJ:Vozes,201.Bibliografia

    ISBN85.326.xxxx-x-Ediodigital

    1.CinciaMetodologia2.PesquisaMetodologiaI.Ttulo.

  • Jos Carlos Kche

    FUNDAMENTOS DEMETODOLOGIA CIENTFICA

    Teoria da cincia e iniciao pesquisa

    EDITORA

    VOZES

    Petrpolis

  • PRIMEIRA PARTE:TEORIA DA CINCIA

  • 1 O CONHECIMENTO CIENTFICO

    ... o esprito cientfico essencialmente uma retificao do saber, umalargamento dos quadros do conhecimento. Julga seu passado histrico,condenando-o. Sua estrutura a conscincia de suas faltas histricas.Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificao histrica de umlongo erro, pensa-se a experincia como a retificao da iluso comum eprimeira. Toda a vida intelectual da cincia move-se dialeticamente so-bre este diferencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. Aprpria essncia da reflexo, compreender que no se compreendera(BACHELARD,1968,p.147-148).

    O homem um ser jogado no mundo, condenado a viver a sua existncia. Por serexistencial, tem que interpretar a si e ao mundo em que vive, atribuindo-lhes signifi-caes. Cria intelectualmente representaes significativas da realidade. A essas re-pre-sentaeschamamosconhecimento.

    O conhecimento, dependendo da forma pela qual se chega a essa representaosignificativa, pode ser, em linhas gerais, classificado em diversos tipos: mtico, ordi-nrio,artstico,filosfico,religiosoecientfico.

    As duas formas que esto mais presentes e que mais interferem nas decises davida diria do homem so o conhecimento do senso comum e o cientfico. Por issoelesseroobjetodessaanlise.

    1.1CONHECIMENTODOSENSOCOMUM

    A forma mais usual que o homem utiliza para interpretar a si mesmo, o seu mun-do e o universo como um todo, produzindo interpretaes significativas, isto , co-nhecimento, a do senso comum, tambm chamado de conhecimento ordinrio,comum ou emprico.

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  • 1.1.1Soluodeproblemasimediatoseespontaneidade

    Esse conhecimento surge como conseqncia da necessidade de resolver proble-mas imediatos, que aparecem na vida prtica e decorrem do contato direto com os fa-tos e fenmenos que vo acontecendo no dia-a-dia, percebidos principalmente atravsda percepo sensorial. Na idade pr-histrica, por exemplo, o homem soube fazeruso das cavernas para abrigar-se das intempries e proteger-se da ameaa dos animaisselvagens. Progressivamente foi aprendendo a dominar a natureza, inventando a roda,meios mais eficazes de caa e de pesca, tais como lanas, redes e armadilhas, canoaspara navegar nos lagos e rios, instrumentos para o cultivo do solo e tantos outros. Ouso da moeda, o carro puxado por animais, o uso de remdios caseiros utilizando er-vas hoje classificadas como medicinais, os instrumentos artesanais utilizados para aconstruo de moradias e para a confeco de tecidos e do vesturio, a fabricao deutenslios domsticos, o estabelecimento de normas e leis que regulamentavam aconvivncia dos indivduos no grupo social, so exemplos que demonstram como ohomem evoluiu historicamente buscando e produzindo um conhe- cimento til gera-dopelanecessidadedeproduzirsoluesparaosseusproblemasdesobrevivncia.

    O conhecimento do senso comum, sendo resultado da necessidade de resolveros problemas dirios no , portanto, antecipadamente programado ou planejado. medida que a vida vai acontecendo ele se desenvolve, seguindo a ordem natural dosacontecimentos. Nele, h uma tendncia de manter o sujeito que o elabora como umespectador passivo da realidade, atropelado pelos fatos. Por isso, o conhecimentodo senso comum caracteriza-se por ser elaborado de forma espontnea e instintiva.No dizer de Buzzi (1972, p. 46-47) ... um conhecer e um representar a realidadeto colado, to solidrio prpria realidade, que o homem quase no se distanciadela; quase pura vida, de modo que, tomado isolado do processo da vida (...) dequem o elaborou, resulta incngruo, descabido, a-lgico. (...) um viver sem co-nhecer. Isso demonstra que esse conhecimento , na maioria das vezes, vivenciale, por isso, ametdico.

    1.1.2Carter utilitarista

    Esse conhecimento permanece num nvel superficialmente consciencial, sem umaprofundamento crtico e racionalista. Sendo um viver sem conhecer significa que osenso comum, quando busca informaes e elabora solues para os seus problemasimediatos, no especifica as razes ou fundamentos tericos que demonstram ou jus-tificam o seu uso, possvel correo ou confiabilidade, por no compreender e no sa-ber explicar as relaes que h entre os fenmenos. No senso comum se utiliza, geral-mente, conhecimentos que funcionam razoavelmente bem na soluo dos problemasimediatos, apesar de no se compreender ou de se desconhecer as explicaes a res-

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  • peito de seu sucesso. Esses conhecimentos, pelo fato de darem certo, transformam-seem convices, em crenas que so repassadas de um indivduo para o outro e de umagerao para a outra. H quanto tempo o homem usa ervas medicinais para a cura desuas doenas? Usa-as h sculos. A marcela, por exemplo, utilizada para aliviar osmales do estmago, digesto, tosse e outros fins. Se se perguntar, no entanto, s pes-soas que a usam quais as propriedades que a marcela tem, que componentes qumicosesto presentes e como eles atuam no organismo, que doses devem ser ingeridas, quepossveis efeitos colaterais podem advir com o seu uso indiscriminado, dificilmentealgum saber responder. Sabem que faz bem, mas no sabem por qu. O acarcristal, utilizado para a cicatrizao de ferimentos, tambm outro exemplo. Nin-gum, a no ser quem tenha obtido alguma informao de fonte cientfica, sabe dizerpor que ele tem esse poder bactericida e cicatrizante altamente eficaz. Na maioria doscasos as pessoas conhecem apenas os efeitos benficos do seu uso. Semelhantes a es-ses exemplos, milhares de outros poderiam ser citados, mostrando um conhecimentoque valoriza a percepo sensorial, fundamentado na tradio e limitado a informa-espertinentesaoseuuso.

    1.1.3Subjetividadeebaixopoder decrtica

    O conhecimento do senso comum tem uma objetividade muito superficial e limita-da por estar demasiadamente preso vivncia, ao e percepo orientadas pelo in-teresse prtico imediatista e pelas crenas pessoais. Os aspectos da realidade ou dos fa-tos que no se enquadram dentro desse enfoque de interesse utilitrio, geralmente soexcludos, ocasionando uma viso fragmentada e, alguma vezes, distorcida dessa reali-dade. um conhecimento que est subordinado a um envolvimento afetivo e emotivodo sujeito que o elabora, permanecendo preso s propriedades individuais de cada coisaou fenmeno, quase no estabelecendo, em suas interpretaes, relaes significativasque possam existir entre eles. Essas interpretaes do senso comum so predetermina-das pelos interesses, crenas, convices pessoais e expectativas presentes no sujeitoque as elabora, fazendo com que as explicaes e informaes produzidas tenham umforte vnculo subjetivo que estabelece relaes vagas e superficiais com a realidade.Dessa forma no consegue sistematicamente buscar provas e evidncias que as testemcriticamente. No senso comum, a reviso e a crtica dessas crenas acontecem apenasquando evidncias espontneas proporcionam uma correo da interpretao anterior,permanecendo acrtico enquanto tal no ocorrer (BUNGE, 1969, p. 20).

    O motivo mais srio, portanto, que faz com que o conhecimento do senso comumse torne subjetivo e inseguro, essa incapacidade de se submeter a uma crtica siste-mticaeisentadeinterpretaessustentadasapenasnascrenaspessoais.

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  • Duas so as dificuldades que geram essa incapacidade e que merecem umaanlise.

    1.1.4Linguagemvagaebaixopoder decrtica

    A primeira, apontada por Nagel (1978, p. 20-23) se refere indeterminao dalinguagem presente no conhecimento do senso comum. A linguagem utilizada no co-nhecimento do senso comum contm termos e conceitos vagos, que no delimitam aclasse de coisas, ideias ou eventos designados e no designados por eles, ou o que includo ou excludo na sua significao. Os termos so utilizados por diferentes suje-itos sem haver previamente uma definio clara e consensual que especifique as con-dies desse uso. Como que se atribui, ento, um conceito a um determinado fato,fenmeno, objeto ou ideia? A significao dos conceitos, no senso comum, produtode um uso individual e subjetivo espontneo que se enriquece e se modifica gradual-mente em funo da convivncia num determinado grupo. As palavras adquirem sen-tidos diferenciados de acordo com as pessoas e grupos por quem forem utilizadas.No h, portanto, condies ou limites convencionais definidos especi- ficamentepara a validade de seu uso. A significao dos termos fica dependente do uso em umdado momento ou contexto, do nvel cultural e da inteno significativa de quem osutiliza. Observe-se, por exemplo, o que significa a palavra marginal no seu uso di-rio: algumas vezes empregada para indicar o vagabundo que no trabalha; outras omoleque que fica fazendo desaforos ao vizinho; outras ainda o ladro, o assaltante, oviciado em txicos, o bbado ou o assassino. Dependendo das circunstncias de seuuso,adquireumaououtraconotao.

    Essa vaguidade, essa falta de especificidade da linguagem que dificulta a delimi-tao da significao dos conceitos, impossibilita a realizao de experimentos con-trolados que permitam estabelecer com clareza quais manifestaes dos fatos ou fe-nmenos se transformam em evidncias que contrariam ou que corroboram determi-nado juzo de uma crena, uma vez que no esto explicitadas quais manifestaesempricasdosfatosoudosfenmenoslhesoatribudos.

    Observe-se, no exemplo relatado por Nagel (1968), a afirmao: a gua quandoesfriada suficientemente, se torna slida. No senso comum a palavra gua tem umsignificado muito amplo. Pode-se indicar, dependendo do contexto e uso, a gua dachuva, do mar, dos rios, o orvalho, o lquido de uma fruta, o suor que escorre pela tes-ta e, genericamente, outros lquidos que aparecerem com identificao indefinida.Alm disso, o termo suficientemente impreciso nos limites de sua significao equantificao emprica. At quantos graus centgrados dever chegar o esfriamentoda gua para ser considerado suficiente? + 2, 0, 15 ou 50? O enunciado acima,

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  • portanto, no especifica com preciso nem o que se entende por gua e nem a quanti-ficao do grau de esfriamento que dever apresentar. A que tipo de teste e em quecondies de testagem deve ser submetido esse enunciado para fornecer informaesempricas que sirvam para lhe atribuir valor de falsidade ou de veracidade? Qualquerque seja o resultado da testagem jamais haver respostas falseadoras dos dados emp-ricosporquesempresepoderafirmarqueaindanofoiesfriada suficientemente.

    No senso comum, portanto, a vaguidade da linguagem utilizada1 conduz a umbaixo poder de discriminao entre os confirmadores e os falseadores potenciais deseus enunciados. Torna-se, assim, difcil, quase impossvel, o controle e a avaliaoexperimental.

    A utilizao, por cada indivduo, dessa linguagem vaga com significaes impre-cisas e arbitrrias e atreladas ao seu uso cultural, resulta em outra grande dificuldade,que refora o carter subjetivo do senso comum: a da impossibilidade de dilogo cr-tico que avalia o valor das convices subjetivas e que proporciona o caminho para oconsenso. Aausncia de um acordo, que d uma significao comum linguagem uti-lizada, no permite que os interlocutores saibam se esto ou no se referindo ao mes-mo objeto quando dialogam, mantendo-os num permanente isolamento subjetivo. Aobjetividade, no entanto, requer, retomando a sua definio kantiana, a possibilidadede um enunciado submeter-se a uma discusso crtica, de proporcionar o controle ra-cional mtuo. A objetividade deve oferecer ao sujeito a oportunidade de desvenci-lhar-se da convico subjetiva expondo-a crtica intersubjetiva (POPPER, 1975, p.46)embuscadeumacordoconsensual.Issonoacontecenosensocomum.

    O poder de reviso e de crtica objetiva do senso comum, portanto, muito fraco,contribuindo para elevar a sua dependncia das crenas e convices pessoais, res-tringindo-o a uma subjetividade significativa. Por isso, pelo baixo poder de crticaque dificulta a localizao de possveis falhas, as crenas do senso comum so aceitaspor longos perodos de tempo e apresentam uma durabilidade e estabilidade muitasvezessuperiorsdaprpriacincia.

    1.1.5Desconhecimentodoslimitesdevalidade

    A segunda dificuldade que demonstra a incapacidade crtica do senso comum dizrespeito inconscinciadoslimitesdevalidade dassuascrenas.

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    1. interessanteanalisaralinguagemutilizadanoshorscopos.

  • O conhecimento do senso comum til, eficaz e correto quando as informaesacumuladas pela tradio aplicam-se ao mesmo tipo de fatos que se repetem e setransformam em rotina e quando as condies e fatores determinantes desses fatosforem constantes. Muitas vezes, no senso comum, apesar de se modificarem as con-dies determinantes de um fato, continua-se ingenuamente a utilizar as mesmastcnicas, procedimentos e conhecimentos. Esse uso indiscriminado deve-se ao fatode no saber distinguir e precisar os limites que circunscrevem a validade de suascrenas, por desconhecer as razes que justificam tanto o xito quanto o insucessode sua aplicabilidade. Na maioria das vezes as tcnicas e as informaes so utiliza-das desconhecendo as razes que justificam a sua correta aplicao ou aceitao2. Aeficincia e o xito no desempenho dos conhecimentos do senso comum so eleva-dos para aquelas situaes que se repetem com um padro regular. Fica-se, porm,sem saber explicar as causas do insucesso ao se modificarem algumas de suas cir-cunstncias ou condies.

    Se analisarmos os enunciados do conhecimento do senso comum, verificaremosque se referem experincia imediata sobre fatos ou fenmenos observados3. Essetipo de conhecimento possui grandes limitaes. Por ser vivencial, preso a convic-es pessoais e desenvolvido de forma espontnea, torna-se na maioria das vezes im-preciso ou at mesmo incoerente. Gera crenas arbitrrias com uma pluralidade deinterpretaes para a multiplicidade de fenmenos. Essa pluralidade fruto do visutilitarista e imediatista, voltado para assuntos e fatos de interesse prtico e com vali-dade aplicvel somente s reas de experincia rotineira. O conhecimento do sensocomum no proporciona uma viso global e unitria da interpretao dos fenmenos. um conhecimento fragmentado, voltado soluo dos interesses pessoais, limitados convices subjetivas, com um baixo poder de crtica e, por isso, com tendncias aser dogmtico. Apesar da grande utilidade que apresenta na soluo dos problemasdirios ligados sobrevivncia humana, ele mantm o homem como espectador de-masiadamente passivo da realidade, com um baixo poder de interferncia e controledosfenmenos.

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    2. Observe-se, como exemplo, com que critrios ou em que circunstncias o agricultor leigo, sem conhe-cimento tcnico, utiliza o sistema de poda, enxerto, adubao, e relao do plantio com as fases da lua.Pode-se tambm constatar de que forma as pessoas, a partir da tradio, utilizam o acar cristal na ci-catrizao dos ferimentos e como fazem a previso do tempo pela colorao do cu ao amanhecer ouanoitecer.

    3. Exemplos: O ch de mel e guaco faz bem para a tosse. Ir chover, pois o tempo est muito mido eocunublado.Quandoossaposcantam(coaxam)nobanhado,chove.

  • 1.2OCONHECIMENTOCIENTFICO

    1.2.1Buscadeprincpiosexplicativosevisounitriadarealidade

    O conhecimento cientfico surge da necessidade de o homem no assumir umaposio meramente passiva, de testemunha dos fenmenos, sem poder de ao oucontrole dos mesmos. Cabe ao homem, otimizando o uso da sua racionalidade, pro-por uma forma sistemtica, metdica e crtica da sua funo de desvelar o mundo,compreend-lo,explic-loedomin-lo.

    O que impulsiona o homem em direo cincia a necessidade de compreendera cadeia de relaes que se esconde por trs das aparncias sensveis dos objetos, fa-tos ou fenmenos, captadas pela percepo sensorial e analisadas de forma superfici-al, subjetiva e a crtica pelo senso comum. O homem quer ir alm dessa forma de ver arealidade imediatamente percebida e descobrir os princpios explicativos que servemde base para a compreenso da organizao, classificao e ordenao da natureza emque est inserido. No a simples organizao ou classificao que caracterizam umconhecimento cientfico, mas a organizao e classificao sustentadas em princpiosexplicativos. O catlogo de um bibliotecrio, como cita Nagel (1968, p. 17), um tra-balhodegrandevaloreutilidade,sem,contudo,poderserchamadodecincia.

    Atravs desses princpios, a realidade passa a ser percebida pelos olhos da cinciano de uma forma desordenada, esfacelada, fragmentada, como ocorre na viso sub-jetiva e a crtica do senso comum, mas sob o enfoque de um critrio orientador, de umprincpio explicativo que esclarece e proporciona a compreenso do tipo de relaoque se estabelece entre os fatos, coisas e fenmenos, unificando a viso de mundo.Nesse sentido, o conhecimento cientfico expresso sob a forma de enunciados queexplicam as condies que determinam a ocorrncia dos fatos e dos fenmenos rela-cionados a um problema, tornando claros os esquemas e sistemas de dependncia queexistementresuaspropriedades.

    1.2.2Dvida,investigaoeconhecimento

    O conhecimento cientfico um produto resultante da investigao cientfica.Surge no apenas da necessidade de encontrar solues para problemas de ordem pr-tica da vida diria, caracterstica essa do conhecimento do senso comum, mas do de-sejo de fornecer explicaes sistemticas que possam ser testadas e criticadas atravsde provas empricas e da discusso intersubjetiva. produto, portanto, da necessida-de de alcanar um conhecimento seguro. Pode surgir, como problema de investiga-o, tambm das experincias e crenas do senso comum, mesmo que muitas vezes serefiraafatosoufenmenosquevoalmdaexperinciavivencialimediata.

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  • A investigao cientfica se inicia quando se descobre que os conhecimentosexistentes, originrios quer das crenas do senso comum, das religies ou da mitolo-gia, quer das teorias filosficas ou cientficas, so insuficientes e impotentes para ex-plicar os problemas e as dvidas que surgem. A investigao cientfica a construoe a busca de um saber que acontece no momento em que se reconhece a ineficcia dosconhecimentos existentes, incapazes de responder de forma consistente e justificvels perguntas e dvidas levantadas. o reconhecimento das limitaes existentes nosaber j estabelecido e da necessidade de produzi-lo para esclarecer e proporcionar acompreenso de uma dvida. Nesse sentido, iniciar uma investigao cientfica re-conhecer a crise de um conhecimento j existente e tentar modific-lo, ampli-lo ousubstitu-lo,criandoumnovoquerespondaperguntaexistente.

    A investigao cientfica se inicia, portanto, (a) com a identificao de uma dvi-da, de uma pergunta que ainda no tem resposta; (b) com o reconhecimento de que oconhecimento existente insuficiente ou inadequado para esclarecer essa dvida; (c)que necessrio construir uma resposta para essa dvida e (d) que ela oferea provasde segurana e de confiabilidade que justifiquem a crena de ser uma boa resposta(depreferncia,quesejacorreta)4.

    O conhecimento cientfico, na sua pretenso de construir uma resposta segurapara responder s dvidas existentes, prope-se atingir dois ideais: o ideal da racio-nalidadeeoidealdaobjetividade.

    O esquema a seguir, proposto por Moles (1971, p. 53), com adaptaes, auxiliaracompreensodessesideais:

    FIGURA 1Pensamentoerealidade

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    4. VerexemplosdeGalileu,NewtoneEinstein.Queproblemasdesencadearamassuasinvestigaes?

  • No plano horizontal, dos juzos a priori, cria-se um encadeamento de enunciadosque tendem a ser coerentes entre si, dentro de um processo lgico e racional. No planovertical, que liga o pensamento com a realidade, busca-se a correspondncia dessesenunciados com a realidade fenomenal. O conhecimento o produto do encadeamen-to desses dois planos, pela oscilao cclica do esprito entre tais juzos e a posiodarealidadefenomenal(MOLES,1971,p.552).

    1.2.3Idealdaracionalidadeeaverdadesinttica

    O ideal da racionalidade est em atingir uma sistematizao coerente do conhe-cimento presente em todas as suas leis e teorias. O conhecimento das diferentes teori-as e leis se expressa formalizado em enunciados que, confrontados uns com os outros,devem apresentar elevado nvel de consistncia lgica entre suas afirmaes. O prin-cpio da no-contradio requer que se corrija ou elimine as contradies que porven-tura existam entre as diferentes explicaes que compem o corpo de conhecimentos,quer seja numa determinada rea ou entre diferentes reas de conhecimento. A cin-cia, no momento em que sistematiza as diferentes teorias, procura uni-las estabele-cendo relaes entre um e outro enunciado, entre uma e outra lei, entre uma e outrateoria, entre um e outro campo da cincia, de forma tal que se possa, atravs dessa vi-soglobal,perceberaspossveisinconsistnciasecorrigi-las.

    Essa verificao da coerncia lgica entre os enunciados, ou entre teorias e leis, um dos mecanismos que fornece um dos padres de aceitao ou rejeio de uma teo-ria pela comunidade cientfica: os padres da verdade sinttica. Os enunciados cien-tficos devem estar isentos de ambigidade e de contradio lgica. uma dascondies necessrias, embora no suficiente. Esse critrio de verdade refere-se ex-clusivamente forma da dos enunciados e serve para avaliar o acordo que existe entreas diferentes teorias utilizadas pela comunidade cientfica, permitindo o seu dilogointersubjetivo e possvel consenso. No plano sinttico no se decide conclusivamentesobre a falsidade ou veracidade a respeito do contedo emprico de um enunciado.Apenas se verifica o grau de logicidade interna ou externa que possui e at que pontosuas afirmaes concordam ou discordam de outras, principalmente do paradigmadominante5.

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    5. Compare-se, como exemplo, as divergncias que h entre o modelo cosmolgico geocntrico, com aTerra imvel, finito e fechado de Aristteles, o heliocntrico, com a Terra girando em torno do seuprprio eixo, no fechado e finito de Galileu e o totalmente aberto, com centro desconhecido, sem li-mites e em expanso, decorrente das teorias de Einstein. Veja-se o desacordo que h entre as concep-es de tempo e espao absolutos de Aristteles e Galileu e a relatividade de tempo e espao deEinstein.

  • 1.2.4Idealdaobjetividadeeaverdadesemntica

    O ideal da objetividade, por sua vez, pretende que as teorias cientficas, como mo-delos tericos representativos da realidade, sejam construes conceituais que re-pre-sentem com fidelidade o mundo real, que contenham imagens dessa realidade que sejamverdadeiras, evidentes, impessoais, passveis de serem submetidas a testes experi-mentais e aceitas pela comunidade cientfica como provadas em sua veracidade. Esseomecanismoutilizadoparaavaliara verdadesemntica.

    A objetividade do conhecimento cientfico se fundamenta em dois fatores, inter-dependentes entre si: (a) a possibilidade de um enunciado poder ser testado atravs deprovas fatuais e (b) a possibilidade dessa testagem e seus resultados poderem passarpelaavaliao crticaintersubjetiva feitapelacomunidadecientfica.

    1.2.5A verdadepragmtica

    Acincia exige o confronto da teoria com os dados empricos, exige a verdade se-mntica, como um dos mecanismos utilizados para justificar a aceitabilidade de umateoria. Esse fator, por si s, porm, no garante a objetividade do conhecimento cien-tfico. Apesar de a cincia trabalhar com dados, provas fatuais, ela no fica isenta deerros de interpretao dessas provas. Por mais que se esforce, o cientista, o investiga-dor, estar sempre sendo influenciado por uma ideologia, por uma viso de mundo,pela sua formao, pelos elementos culturais e pela poca em que vive. H uma ex-pectativa que orienta a sua viso de mundo e a busca de explicaes. Para minimizaros possveis erros decorrentes de uma expectativa subjetiva, que a cincia exige aintersubjetividade, isto , a possibilidade de a comunidade cientfica ajuizar consen-sualmente sobre a investigao, seus resultados e mtodos utilizados. A intersubjeti-vidade o terceiro mecanismo utilizado no conhecimento cientfico e que pro- porcio-naa verdadepragmtica.

    Popper (1977, p. 93) nos fornece essa interpretao ao afirmar que um enunciadocientfico objetivo quando, alheio s crenas pessoais, puder ser apresentado crti-ca, discusso, e puder ser intersubjetivamente submetido a teste. Para ele (1975, p.46), objetivo significa que o conhecimento cientfico deve ser justificvel, indepen-dentemente de capricho pessoal; uma justificativa ser `objetiva se puder, em princ-pio, ser submetida prova e compreendida por todos. (...) ... a objetividade dos enun-ciados cientficos reside na circunstncia de eles poderem ser intersubjetivamentesubmetidosateste.

    Ao contrrio do senso comum, portanto, o conhecimento cientfico no aceita aopinio ou o sentimento de convico como fundamento para justificar a aceitao deuma afirmao. Requer a possibilidade de testes experimentais e da avaliao de seus

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  • resultados poder ser feita de forma intersubjetiva. Se o conhecimento permanecessesomente no plano horizontal, avaliado apenas no nvel da coerncia lgica dos seusenunciados (plano sinttico), estaria sujeito a se tornar alienado, marginalizado deuma realidade capaz de lhe proporcionar testes empricos para correo, e distante dareviso crtica e da experincia intersubjetiva. O que proporciona a consecuo doideal da objetividade o fato de os enunciados construdos mediante hipteses fun-damentadas em teorias poderem ser contrastados com as manifestaes dos fen-menos da realidade (plano semntico), poderem ser submetidos a testes, em qualquerpoca e lugar e por qualquer sujeito (plano pragmtico). Esse o aspecto que denota auniversalidadeeaobjetividadedoconhecimentocientfico.

    A investigao cientfica estimulada a criar fundamentos mais slidos para seus co-nhecimentos e a testar permanentemente suas hipteses de uma forma mais rgida e severa.

    Essa preocupao da cincia constatada atravs de dois aspectos: o uso de enun-ciados com elevado poder de discriminao de testagem e o uso de mtodos de inves-tigaoomximoconfiveis.

    1.2.6Linguagemespecficaepoder decrtica

    Ao contrrio do que costuma acontecer no senso comum, a linguagem do conhe-cimento cientfico utiliza enunciados e conceitos com significados bem especficos edeterminados. A significao dos conceitos definida luz das teorias que servem demarcos tericos da investigao, proporcionando-lhes, dessa forma, um sentido un-voco, consensual e universal. A definio dos conceitos, elaborada luz das teorias,transforma-os em construtos, isto , em conceitos que tm uma significao unvocaconvencionalmente construda e dessa forma universalmente aceita pela comunidadecientfica6. O uso de construtos, na cincia, reduzindo ao mximo a ambigidade e va-guidade dos conceitos, permite aumentar o poder de teste dos seus enunciados, tor-nando possvel prever e discriminar com maior preciso e nitidez quais manifesta-es empricas devem ser observadas e aceitas como possveis confirmadores ou fal-seadorespotenciais,numaobservaoouexperimento7.

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    6. Vercaptulo4,item4.6:Definiodosconceitos.

    7. Pode-se afirmar que medida que aumenta o grau de determinao da linguagem diminui o grau decompatibilidade com uma classe de fatos, tornando os enunciados mais falseveis, mais sujeitos re-futao, aumentando o seu poder de teste; por outro lado, medida que diminui o grau de determina-o da linguagem aumenta o grau de compatibilidade com uma classe de fatos, tornando os enuncia-dos menos falseveis, com menor poder de teste. Compare-se os seguintes enunciados: a) Chover ou

  • Como conseqncia, pode-se constatar que a cincia desenvolve testes mais rigo-rosos do que os do senso comum para aceitar uma teoria. Essas provas rigorosas, almde proporcionar condies mais confiveis para a localizao e correo dos possveiserros, lhe permitem tambm estabelecer maior confiabilidade nas predies, tais comoas de terremotos, eclipses, percurso e localizao de planetas, cometas e outros fen-menos astrofsicos, reaes qumicas, efeitos na biosfera, reaes no comportamentohumanoetantasoutrasemtodasasreasdoconhecimento.

    No entanto, esse elevado poder de teste que est presente no conhecimento ci-entfico no lhe confere maior estabilidade ou dogmatismo de suas teorias. Ao con-trrio, elas se tornam cada vez mais vulnerveis localizao dos erros, assumindoum carter hipottico, de aceitao provisria, mais suscetveis de reformulao ousubstituio.

    1.2.7Historicidadedoscritriosdecientificidade

    Essa natureza do conhecimento cientfico decorrente da forma como produzi-do e justificado. Um conhecimento, para ser aceito como cientfico pela comunidadecientfica dever, necessariamente, satisfazer a critrios que justifiquem a sua aceita-o.Equaissoessescritrios?

    Tradicionalmente se responde a essa questo afirmando que um conhecimento aceito como cientfico quando segue o mtodo cientfico8. Isso pressupe que devahaver um mtodo, um procedimento dotado de passos e rotinas especficas, que indi-ca como a cincia deva ser feita para ser cincia. Pressupe que deva haver um cami-

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    ou no chover; b) Amanh chover; c) Amanh chover em Porto Alegre; d) Amanh chover, emPorto Alegre, s 14 horas; e) Amanh, em Porto Alegre, s 14 horas, chover torrencialmente. Oenunciado a) impossvel de ser testado, pois tautolgico: como permite qualquer acontecimento,no proibindo coisa alguma, nada poderia refut-lo no nvel emprico. um enunciado vazio de con-tedo informativo. O enunciado e), ao contrrio, por ser o de maior contedo informativo, o quemais probe e o que mais consegue discriminar entre as possveis situaes de sua rejeio. o quepossui o maior poder de teste e o que mais interessa cincia. Os outros enunciados podem facilmentecontornar situaes de possvel rejeio. Para o c), por exemplo, tanto faz se chover torrencialmenteou apenas uma garoa leve, se for s 8, s 14, s 15 ou 23 horas. O b) amplia ainda mais as situaes desua aceitao: basta chover, torrencialmente ou no, a qualquer hora e em qualquer parte para que noseja rejeitado. Conseqentemente, no um enunciado com informaes que interessaria a algumquenecessitassesaberasprevisesdotempo!Enunciadosdessetiponointeressamcincia.

    8. Ver no captulo 2 as questes pertinentes ao mtodo cientfico: induo, empirismo, funes das teori-as,daimaginaoedashipteses,papeldaintersubjetividadeedostestescrticos.

  • nho prprio para se chegar a esse fim, diferente dos outros, que necessariamente devaserseguidopelopesquisadorparaqueoseuresultadosejacientfico.

    Essa ideia, por demais linear, coloca o fazer cientfico como um fazer separado davida do homem, como uma atividade mecnica, produto da aplicao independentede um conjunto de passos e regras rotineiras que invariavelmente conduzem a umasoluocorreta.

    Se observarmos a histria do fazer cientfico no apenas a histria dos seus pro-dutos veremos que os critrios de cientificidade esto atrelados cultura das dife-rentes pocas. So histricos os critrios utilizados para julgar que procedimentos soou no corretos para serem encarados como mtodos ideais. No h uma racionalida-de cientfica abstrata, autnoma, que independa dos fatores culturais de cada poca.Observa-se, principalmente entre os indutivistas, empiristas e justificacionistas emgeral, a proposta de uma caricatura de mtodo cientfico apresentada como uma se-qncia de regras prescritivas ou como um conjunto de tcnicas de investigao dis-ponveis para serem aplicveis a qualquer problema, uma espcie de frmula mgicae garantida de eliminar o erro e garantir a verdade. Essa imagem ingnua de mtodocientfico, vendida principalmente pelos positivistas, uma deturpao grosseira doprocesso de investigao cientfica. No h regras padronizadas para a descoberta ci-entfica de suas teorias, como no as h para a sua justificao confirmadora que lhesgaranta a veracidade. Em relao descoberta, a cincia se assemelha arte, pois tra-balha no nvel da imaginao e da criatividade para produzir suas teorias e modelosexplicativos9. Em relao s garantias de segurana dos seus resultados, a cincia sevale da crtica persistente que persegue a localizao dos erros de suas hipteses e te-orias, atravs de procedimentos rigorosos de testagem que a prpria comunidade ci-entfica reavalia e aperfeioa constantemente. O conhecimento cientfico se orientaconscientemente na direo da localizao e eliminao do erro, atravs da discussoobjetiva (intersubjetiva) de suas explicaes, dos seus enunciados, e de suas teorias.Por isso, na cincia, a explicao ser sempre provisria reconhecendo o carter per-manentementehipotticodoconhecimentocientfico.

    O que se deve chamar de mtodo cientfico, portanto, aquele conjunto de proce-dimentos no padronizados adotados pelo investigador, orientados por postura e ati-tudes crticas e adequados natureza de cada problema investigado. O que se aceitachamar de mtodo cientfico a forma crtica de produzir o conhecimento cientfico,

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    9. Sobre cincia, imaginao e criatividade, ver Bronowski: As origens do conhecimento e da imagina-o (1985); Magia,cinciaecivilizao (1986); Umsentidodofuturo (s.d.).

  • que consiste na proposio de hipteses bem fundamentadas e estruturadas em suacoerncia terica (verdade sinttica) e na possibilidade de serem submetidas a umatestagem crtica severa (verdade semntica) avaliada pela comunidade cientfica (ver-dadepragmtica).

    Como se pode constatar, no h apenas um critrio de verdade a ser adotado, mastrs: o sinttico, o semntico e o pragmtico. Mesmo assim, a soma dos trs no su-ficiente para demonstrar a verdade de um determinado enunciado e justificar a suaaceitaocomoumresultadoinquestionvel.

    1.2.8Carter hipotticodoconhecimentocientfico

    O conhecimento cientfico, portanto, assim como o do senso comum, emboraseja mais seguro do que este ltimo, tambm falvel. Pode o investigador, por exem-plo, luz do seu referencial terico, elaborar hipteses inadequadas, excluindo fato-res significativos relacionados com a situao-problema, no planejar corretamente oprocesso de testagem de suas hipteses, no prever a utilizao de instrumentos e tc-nicas de observao e de medida adequados, vlidos ou fidedignos, no perceber pro-vas contrrias ou ainda, influenciado pela sua subjetividade, que jamais eliminadaou anulada, ou levado pela precipitao e por um raciocnio incorreto, extrair umaconclusoimprpria.

    Por se reconhecer a natureza hipottica do conhecimento cientfico, ele deve serconstantemente submetido a uma reviso crtica, tanto na consistncia lgica internadas suas teorias, quanto na validade dos seus mtodos e tcnicas de investigao. His-toricamente percebe-se que isso ocorre10.Os conhecimentos de hoje se sustentam, em

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    10. Na cosmologia, por exemplo, que recebe a contribuio das teorias metafsicas, fsicas e da astrono-mia, aconteceram mudanas nos modelos tericos que explicam a concepo de universo. No perododa viso grega, com o predomnio do modelo aristotlico, concebia-se o universo como uma grandeesfera com a Terra imvel no seu centro, como um sistema com astros dotados de movimentos circu-lares perfeitos, fechado, finito, eterno e imutvel em sua forma e limitado pela ltima esfera, a das es-trelas.Aps dominar por mais de 2000 anos, por volta do sculo XVII, esse modelo foi substitudo por outro:o heliocntrico. No heliocentrismo a Terra no estava mais imvel e no era mais o centro do univer-so: o centro estaria em torno do Sol. Os movimentos circulares perfeitos dos astros foram substitudospelos elpticos. O universo passou a ser considerado aberto, com a possibilidade de existir estrelas ougrupos de estrelas formando outros sistemas solares com outros mundos bem alm do limite at entovisvel. A metfora utilizada para entender esse universo era a de uma grande mquina. Haviam leisque regiam os movimentos fsicos de seus corpos. Apesar do movimento de eterno retorno de seus e-lementos,esseuniversotambmeraestvel,imutvel.

  • grande parte, no aperfeioamento, na correo, expanso ou substituio dos conhe-cimentos do passado. Como afirma Bunge (1969, p. 19), o conhecimento cientfico aquele que obtido pelo mtodo cientfico e pode continuamente ser submetido prova, enriquecer-se, reformular-se ou at mesmo superar-se mediante o mesmo m-todo. O que se observa, no conhecimento cientfico, uma retomada constante das te-oriaseproblemasdopassadoedopresente,atravsdacrticaseveraesistemtica.

    O que distingue o conhecimento cientfico dos outros, principalmente do sensocomum, no o assunto, o tema ou o problema. O que o distingue a forma especialque adota para investigar os problemas. Ambos podem ter o mesmo objeto de conhe-cimento. A atitude, a postura cientfica que consiste em no dogmatizar os resultadosdas pesquisas, mas trat-los como eternas hipteses que necessitam de constante in-vestigao e reviso crtica intersubjetiva que torna um conhecimento objetivo e ci-entfico. Ter esprito cientfico estar exercendo essa constante crtica e criatividadeem busca permanente da verdade, propondo novas e audaciosas hipteses e teorias eexpondo-as crtica intersubjetiva. O oposto ao esprito cientfico o dogmtico, queimpede a crtica por se julgar auto-suficiente e clarividente na sua compreenso darealidade.

    O conhecimento cientfico , pois, o que construdo atravs de procedimentosque denotem atitude cientfica e que, por proporcionar condies de experimentaode suas hipteses de forma sistemtica, controlada e objetiva e ser exposto crticaintersubjetiva, oferece maior segurana e confiabilidade nos seus resultados e maiorconscinciadoslimitesdevalidadedesuasteorias.

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    No final do sculo XIX e incio deste sculo inicia-se novamente a construo de um novo paradigmacosmolgico, influenciado pelos avanos das novas teorias da astrofsica. As novas teorias e os instru-mentos criados a partir delas mostram um universo diferente dos modelos anteriores. Mostram umuniverso que tem um momento singular de seu nascimento o big bang que inicia a dilatao da ma-tria, gerando o espao e o tempo e que se apresenta em expanso permanente, numa evoluo e movi-mentos contnuos, criando e recriando constantemente bilhes de galxias com quasares, pulsares,buracos negros e outros tantos bilhes de estrelas. Nem o nosso Sol e nem a nossa galxia esto no seucentroe,conseqentemente,avisodesseuniversodeixadeserantropocntrica.Estamos no final de um sculo e iniciando o outro e a evoluo dessas teorias nos faz perceber algunsproblemas at agora sem respostas convincentes: Esse universo o nico ou h outros iguais a este?Para onde caminha esse universo? H um fim que orienta ou determina o seu desenvolvimento ou elese processa ao acaso? Onde est o seu centro? H outros planetas com seres semelhantes ao homem oucom outras formas de vida e de inteligncia? O que existia antes do big bang? De onde ele vem? Quemocriou?Comoseroseudestinoouoseufim?Qualserofuturodohomem?

  • Leiturascomplementares

    A experincia cientfica , portanto, uma experincia que contradiz a experincia comum.Alis, a experincia imediata e usual sempre guarda uma espcie de carter tautolgico, de-senvolve-se no reino das palavras e das definies; falta-lhe precisamente esta perspectiva deerros retificados que caracteriza, a nosso ver, o pensamento cientfico. A experincia comumno de fato construda; no mximo, feita de observaes justapostas, e surpreendente quea antiga epistemologia tenha estabelecido um vnculo contnuo entre a observao e a experi-mentao, ao passo que a experimentao deve afastar-se das condies usuais da observao.Como a experincia comum no construda, no poder ser, achamos ns, efetivamente veri-ficada. Ela permanece um fato. No pode criar uma lei. Para confirmar cientificamente a ver-dade, preciso confront-la com vrios e diferentes pontos de vista. Pensar uma experincia ,assim,mostraracoernciadeumpluralismoinicial(BACHELARD,1996,p.14).

    Uma explicao algo sempre incompleto: sempre podemos suscitar um outro porqu. Eesse novo porqu talvez leve a uma nova teoria, que no s explique, mas corrija a anterior(POPPER,1977,p.139).

    ... errnea a suposio de que o conhecimento cientfico seja uma espcie de conheci-mento conhecimento no sentido comum de que, se eu sei que est chovendo, h de ser verda-de que est chovendo, de sorte que conhecimento implica verdade. (...) o que chamamosconhecimento cientfico hipottico e, muitas vezes, no verdadeiro, j para no falar emcertamenteverdadeiroouprovavelmenteverdadeiro(POPPER,1977,p.118).

    O que pode ser descrito como objetividade cientfica baseado unicamente sobre umatradio crtica que, a despeito da resistncia, freqentemente torna possvel criticar um dog-matismo dominante. A fim de coloc-lo sob outro prisma, a objetividade da cincia no umamatria dos cientistas individuais, porm, mais propriamente, o resultado social de sua crticarecproca, da diviso hostil-amistosa de trabalho entre cientistas, ou sua cooperao e tambmsuacompetio(POPPER,1978,p.23).

    Para o cientista, o conhecimento sai da ignorncia como a luz sai das trevas. O cientistano v que a ignorncia um tecido de erros positivos, persistentes, solidrios. No percebeque as trevas espirituais tm uma estrutura e que, nessas condies, toda experincia objetivacorreta deve sempre determinar a correo do erro subjetivo. Mas no fcil destruir os errosum por um. Eles so coordenados. O esprito cientfico s se pode construir destruindo o esp-rito no-cientfico. Muito freqentemente, o cientista se entrega a uma pedagogia fracionada,ao passo que o esprito cientfico deveria visar a uma reforma subjetiva total. Todo progressorealnopensamentocientficoprecisadeumaconverso(BACHELARD,1977,p.114).

    Portanto, temos de escolher entre pensar e imaginar. Pensar com Galileu, ou imaginarcom o senso comum. Pois o pensamento, o pensamento puro e sem mistura, e no a expe-rincia e a percepo dos sentidos, que constitui a base da nova cincia de Galileu Galilei(KOYR,1982,p.193).

    Duvido que haja uma grande diferena, neste ponto, entre a cincia e a arte. A imaginaono mais nem menos livre numa do que na outra. Todos os grandes cientistas usaram livre-mente sua imaginao, deixando-a chegar a concluses absurdas. Albert Einstein fazia expe-rimentos imaginrios desde rapaz, e s vezes ignorava absolutamente os fatos relevantes.Quando escreveu o primeiro dos seus belos ensaios sobre o movimento dos tomos, no sabia

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  • que os movimentos brownianos podem ser observados em qualquer laboratrio. Tinha dezes-seis anos quando inventou o paradoxo que resolveria dez anos mais tarde, em 1905, com a teo-ria da relatividade, e que o interessava mais do que a experincia de Albert Michelson eEdward Morley (que derrubara as concepes de todos os outros fsicos, desde 1881). Durantetoda a sua vida Einstein se divertiu em propor quebra-cabeas como o de Galileu, sobre a que-da de elevadores e a deteno da gravidade; quebra-cabeas que contm a essncia dos proble-masdarelatividadegeral,emqueeleestavatrabalhando(BRONOWSKI,s.d.,p.27).

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  • 2 CINCIA E MTODO:UMA VISO HISTRICA

    ... ser sempre questo de deciso ou de conveno saber o que deveser denominado cincia e quem deve ser chamado cientista (POPPER,1975, p. 55).

    ... um discurso sobre o mtodo cientfico ser sempre um discurso decircunstncia, no descrever uma constituio definitiva do espritocientfico (BACHELARD, 1968, p. 121).

    A f nos fatos uma caracterstica do mundo moderno. Esta f exige como qualquer outra que o crente se incline perante o que criado,portanto, ela lhe diz: Inclina-te perante os fatos! O fato considera-secomo algo de absoluto, que fala compulsivamente por si mesmo; a ex-perincia compara-se assim a um tribunal, onde se procede a um inter-rogatrio e se emite um juzo. E, como todo tribunal, tambm este seconsidera como uma instncia objetiva. Mas o domnio que sobretudose cr estar sujeito a esta objetividade a cincia; e, por isso, ela olha-da como a guardi e a descobridora da verdade (HBNER, 1993, p. 37).

    O sbio deve organizar; fazemos cincia com fatos assim como cons-trumos uma casa com pedras, mas uma acumulao de fatos no cincia assim como no uma casa um monte de pedras (POINCAR,1985, p. 115).

    A humanidade testemunhou, em nosso sculo, em dois momentos inesquecveis,a presena marcante da cincia. O primeiro despertou sentimentos de orgulho; o se-gundoodeterroremedo.Jaspers(1975,p.15-16)osnarraeanalisa.

    O primeiro ocorreu em 1919, quando um grupo de cientistas, no Hemisfrio Sul,durante um eclipse solar, conseguiu testar com xito uma das conseqncias da teoriade Einstein: a de que o espao no reto, mas encurvado em direo concentraode massa existente. Na poca, a teoria da relatividade especial e a da relatividade ge-

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  • ral, divulgadas nos peridicos cientficos a partir de 1905, eram julgadas por muitoscomo especulaes interessantes e coerentes, mas destitudas de valor, uma vez que,alm de contrariar vrios princpios da fsica newtoniana, considerada ainda comoparadigma da exatido e da certeza cientfica, no tinha nenhuma evidncia empricafavorvel obtida em testes experimentais. Havia ainda um descrdito em torno das te-orias de Einstein. No teste de 191911, porm, as equipes de observao de um eclipsesolar, chefiadas por Eddington, constataram que os raios luminosos, vindos de estre-las distantes, ao passarem prximos ao Sol, sofriam um desvio de em mdia 1,7 emsua trajetria, encurvando-se em sua direo, tal como havia predito Einstein. Essaconstatao, obtida atravs do confronto de sucessivas fotos de estrelas, tiradas du-ranteoeclipse,eraumaprovafavorvelteoriadoespaocurvo.

    O segundo aconteceu em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, quando Hi-roxima e Nagasqui foram destrudas pelas bombas atmicas. Embora se conhecesseteoricamente o poder destruidor que teria a liberao da energia do tomo, ningumacreditava que o homem soubesse construir um artefato que pudesse utiliz-la. Abomba sobre Hiroxima e Nagasqui demonstrou que o homem pode com o conheci-mento cientfico conhecer e dominar as foras da realidade para estabelecer um con-trole prtico sobre a natureza e sobre o prprio homem. E, nesse segundo momento,temeuohumanidadeperanteoprogressodacincia.

    O que essa cincia que ao mesmo tempo admirada e temida, condenada e glo-rificada,ouatmesmotransformadaemmito?

    2.1CINCIA:CONTROLEPRTICODA NATUREZA EDOMNIOSO-BREOSHOMENSOUBUSCA DOSABER?

    O leigo, influenciado principalmente pelos meios de comunicao de massa, con-cebe a cincia como a fonte miraculosa que resolve todos os problemas que a huma-

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    11. Em 20 de maio de 1919, durante um eclipse total do Sol, duas equipes de astrnomos de Greenwich ede Oxford, chefiadas por Eddington, uma em Sobral, no Brasil, e outra na Ilha do Prncipe, no Golfode Guin, fotografaram durante cinco minutos, com dezenas de fotos, as estrelas localizadas numa de-terminada regio do cu. Dois meses mais tarde, a mesma regio dessas estrelas foi visvel noite e foifotografada com os mesmos instrumentos, para confronto. Em 21 de setembro de 1922, na Austrlia,foi feita mais uma observao semelhante, obtendo-se um desvio de 1,74. Esses resultados estavamde acordo com os clculos previstos por Einstein que afirmara que um raio luminoso, vindo de umaestrela distante, ao passar prximo ao Sol sofria um desvio em sua trajetria em funo do encurva-mentodoespaoocasionadopelamassasolar.

  • nidade enfrenta, quer sejam tericos ou prticos, sem mesmo distinguir o produtocientficodoprodutotcnico.

    De fato, uma das preocupaes permanentes que motivam a pesquisa cientfica de carter prtico: conhecer as coisas, os fatos, os acontecimentos e fenmenos, paratentar estabelecer uma previso do rumo dos acontecimentos que cercam o homem econtrol-los. Com esse controle pode ele melhorar sua posio em face ao mundo ecriar,atravsdousodatecnologia,condiesmelhoresparaavidahumana.

    Acincia utilizada para satisfazer s necessidades humanas e como instrumentopara estabelecer um controle prtico sobre a natureza. Somam-se os benefcios aufe-ridos pelo homem em todos os campos, produzidos pela aplicao prtica da desco-berta cientfica. A eletricidade, a telefonia, a informtica, o rdio, a televiso, a avia-o, as aplicaes tecnolgicas no campo da medicina, das engenharias e das viagensespaciais, o uso da gentica na agricultura e na agropecuria e tantos outros relaciona-dos psicologia, sociologia, e aos mais diferentes campos do conhecimento mostrama evoluo crescente do uso do conhecimento cientfico na vida diria do homem, atal ponto que dificilmente se desvincula a produo do conhecimento do seu benef-cio tecnolgico e pragmtico. Os prprios cientistas, ao justificarem seus pedidos derecursos financeiros para custear as despesas de suas investigaes, junto aos gruposde interesses econmicos e polticos, tendem a dar demasiada nfase relevncia dosresultadosprticosauferidospelassuaspesquisas.

    Gradativamente, o conhecimento cientfico toma conta das decises e aes dohomem, a tal ponto que, no fim do segundo e incio do terceiro milnio, vivemos nachamada sociedade do conhecimento. A riqueza e a fora blica, outrora considera-dos elementos chaves e fontes do poder, hoje cedem seu lugar para o conhecimento.Quem tem conhecimento tem poder, a fora e a riqueza, e o domnio sobre a naturezaesobreosoutroshomens.

    Essa nfase exagerada, porm, no carter prtico do uso do conhecimento cient-fico, pode proporcionar uma distoro da compreenso do que seja cincia, ocultan-do, principalmente, os seus principais objetivos. Nagel (In: Morgenbesser, 1971, p.15-16) incisivo quando alerta para o perigo que essa concepo pode trazer, pois ocientista acaba sendo visto como aquele homem milagreiro que capaz de encontrarsoluesinfalveisparaqualquerproblemahumanooudanatureza.

    Essa compreenso cientificista e reducionista errnea e limitada. A cincia nose reduz atividade de proporcionar o controle prtico sobre os fenmenos da nature-za. Esse poder de controle o homem o consegue por decorrncia das funes e objeti-vos principais da atividade cientfica. A causa principal que leva o homem a produzircincia a tentativa de elaborar respostas e solues s suas dvidas e problemas equeolevemcompreensodesiedomundoemquevive.

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  • O motivo bsico que conduz a humanidade investigao cientfica est em suacuriosidade intelectual, na necessidade de compreender o mundo em que se insere ena de se compreender a si mesma. To grande essa necessidade que, onde no hcincia,ohomemcriamitos.

    2.2CINCIA EMTODO:SUASCONCEPES

    No existe uma nica concepo de cincia. Podemos dividi-la em perodos his-tricos, cada um com modelos e paradigmas tericos diferentes a respeito da concep-o de mundo, de cincia e de mtodo. Pretende-se, de uma forma mais simplificada,analisar a cincia grega, que abrange o perodo que vai do sculo VIII aC at o finaldo sculo XVI, a cincia moderna, do sculo XVII at o incio do sculo XX, e acinciacontempornea quesurgenoinciodestesculoatnossosdias.

    2.2.1Cinciaemtodo:avisogrega

    Se, erroneamente, a cincia encarada por muitos como um fantstico instru-mento miraculoso ou estarrecedor, capaz de resolver todos os problemas da humani-dade, na Antigidade, na Grcia, a partir do sculo VIII aC e alcanando a culminn-cia no sculo IV aC, conhecida como filosofia da natureza, tinha como nica preocu-pao a busca do saber, a compreenso da natureza das coisas e do homem. O conhe-cimento cientfico era desenvolvido pela filosofia. No havia a distino que hoje seestabeleceentrecinciaefilosofia.

    2.2.1.1Ospr-socrticos

    A filosofia, ao surgir no mundo ocidental com os filsofos pr-socrticos Talesde Mileto, Anaximandro, Pitgoras, Herclito, Parmnides, Empdocles, Anaxgo-ras e Demcrito iniciou o estabelecimento gradual de uma ruptura epistemolgicacom a mitologia. Os pr-socrticos comearam a substituir a concepo de mundocatico concebido pela mitologia pela ideia de cosmos. Na concepo mitolgica eantropomrfica, os fenmenos que aconteciam no mundo ocorriam de forma catica,pois eram desencadeados por foras espirituais e sobrenaturais comandadas pela von-tade arbitrria e imprevisvel dos deuses. Na viso pr-socrtica foi inserida a ideia daexistncia de uma ordem natural no universo, despida da influncia ou interfernciada vontade imprevisvel das divindades. O universo era ordem, era cosmos. E ele es-tava ordenado por princpios (arch) e leis fixas e necessrias, inerentes prpria na-tureza. Seus fenmenos estavam relacionados a causas e foras naturais que podiamserconhecidaseprevistas.

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  • O principal problema abordado pelos pr-socrticos foi o de responder se, debai-xo das aparncias sensveis e perenes dos fenmenos que estavam em contnua trans-formao, existia algum princpio permanente ou realidade estvel, isto , se haviauma natureza, uma essncia eterna, universal e imutvel que determinava a exis-tncia das coisas. O que so, de que so feitas, como so feitas e de onde vm as coisasque so percebidas? Essas eram as perguntas que os filsofos pretendiam responder.

    Os pr-socrticos distinguiam o que pode ser percebido pelos sentidos os fen-menos, as aparncias mutveis das coisas, que fundamentam as opinies, a doksa eo que pode ser percebido pela inteligncia o ser, as essncias que definem a naturezadas coisas, seus princpios comuns e imutveis, que fundamentam o conhecimento, acincia,afilosofia.

    O procedimento usado pelos filsofos os que desejam a sabedoria o da espe-culao racional. Por julgar que a experincia, que utiliza o testemunho dos sentidos, fonte de erros, preocuparam-se em elaborar teorias racionais. Segundo eles, os prin-cpios ordenadores da natureza das coisas, por estarem debaixo das aparncias, nopodiam ser percebidos pelos sentidos, mas apenas pela inteligncia. Cabia inteli-gncia a tarefa de elaborao e esclarecimento da possvel ordem que havia por trsdaaparentedesordemdosfenmenossensveiseperceptveis.

    O corte epistemolgico que os filsofos pr-socrticos comearam a estabelecer,portanto, na busca de um conhecimento acerca da natureza do universo, rompeu como vnculo estabelecido com as crenas mitolgicas e com as opinies sustentadas naexperincia dos sentidos. Iniciaram, dessa forma, a escalada da histria ocidental naconstruo do conhecimento, que permaneceu por mais de 2000 anos, como uma ati-vidade filosfica, racional, especulativa, de abertura ao inteligvel, na tentativa deumacompreensoracionaldocosmos.

    2.2.1.2A abordagemplatnica

    O outro modelo que se apresenta aps os pr-socrticos o platnico12. Nele oreal no est na empiria, nos fatos e fenmenos percebidos pelos sentidos. O verda-deiro mundo platnico o das ideias, que contm os modelos e as essncias decomo as aparncias devem se estruturar. Para Plato (429-348/7 aC), a forma, aces-svel aos sentidos, apenas nos mostra como as coisas so; mas no o que elas so.

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    12. As concepes de Plato a respeito de opinio, conhecimento, dialtica e cincia esto expostas, prin-cipalmente,nasobras: Crtilo,Repblica,Fdon,Sofista,Grgias,Filebo e Fedro.

  • Os sentidos so apenas a fonte de opinies e crenas sobre as aparncias do real.O que nos fornece o que so as coisas, o seu verdadeiro conhecimento, a cincia, ainteligncia, o entendimento, que o conhecimento racional intuitivo, desenvolvi-do atravs da dialtica intuio dos princpios universais, anlise e sntese , con-cebido por Plato como um mtodo cientfico racional. A essncia do mundo s acessvel ao entendimento, pois as Ideias, os modelos de todas as coisas, enquantoentidades reais, eternas, imutveis, imateriais, perfeitas e invisveis, no esto nestenosso mundo de aparncias sensveis e mutveis, mas num mundo superior e eter-no. Nesta interpretao platnica, de desvalorizao dos sentidos, a percepo sen-sorial apenas tem a funo de confundir, de proporcionar as sombras da realidade,que enganam, ludibriam. Para Plato, o real o pensado, o intudo. Nem a imagi-nao e nem a razo discursiva, que so os que possibilitam trabalhar com os conce-itos de nmero e quantidade, nos proporcionam o verdadeiro conhecimento. Platodestri o valor da experincia emprica como fonte e critrio de julgamento do co-nhecimento, da verdade, e valoriza a intuio racional como mecanismo para seapropriar da essncia do real, do Ser.

    2.2.1.3Aristteles:entendimentoeexperincia

    Aristteles (384-322 aC), discpulo de Plato, em sua Metafsica, o primeiro asuprimir o mundo platnico das ideias. Para ele, a cincia produto de uma elabora-o do entendimento em ntima colaborao com a experincia sensvel. resultadode uma abstrao indutiva das sensaes provenientes dos sentidos e da iluminaodo entendimento agente que abstrai as particularidades individualizadas dessas sen-saes e constri a ideia universal que representa a essncia da realidade. Desde o s-culo IV aC at o sculo XVII, predominou essa concepo aristotlica de demonstra-o cientfica, atravs de um duplo processo. De acordo com Aristteles, no primeiromomento, devia-se iniciar pelo que vinha em primeiro lugar no conhecimento, queseriam os fatos percebidos pelos sentidos13 e, depois, agrupar as observaes, peloprocesso de induo, em uma generalizao que proporcionasse a forma universal,isto , a substncia, a identidade inteligvel e real que permanecia independente dasmudanas. O objetivo desse processo indutivo de abstrao, e da ao do entendi-mento agente iluminador, era o de definir as formas e efetuar a passagem progressivados dados materiais e mutveis para os imateriais e imutveis. O segundo momento

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    13. A expresso aristotlica afirma: Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu (Nada est nointelectoseantesnopassoupelossentidos).

  • consistia em demonstrar que os efeitos observados derivavam dessas definies, isto, de um princpio mais universal que era sua causa. Nenhum efeito ou atributo pode-ria existir se no estivesse ligado a alguma causa, a alguma substncia. Demonstra-va-se a causa de um efeito quando o efeito pudesse ser predito como um atributo deuma determinada substncia. Para Aristteles, a cincia fsica era uma cincia da na-tureza. Physis significava natureza. Physis era o princpio ativo, a fonte intrnseca na-tural do comportamento de cada coisa. A natureza de uma coisa era a substncia quelhe era inerente, o seu princpio intrnseco que determinava naturalmente o seucomportamento. A natureza essencial de uma substncia era determinada pela suamatria e forma. Esse processo indutivo consistia num processo de abstrao a partirdosdadosproporcionadospelossentidos.

    O mtodo aristotlico consiste em analisar a realidade atravs de suas partes eprincpios que podem ser observados, para, em seguida, postular seus princpios uni-versais, expressos na forma de juzos, encadeados logicamente entre si. Dessa formao modelo aristotlico prope uma cincia (episteme) que produz um conhecimentoque pretende ser um fiel espelho da realidade, por estar sustentado no observvel epelo seu carter de necessidade e universalidade. Desenvolve um conhecimento daessncia das coisas e das suas causas, respondendo s perguntas o que ? e por que ?A cincia aristotlica manifesta-se com uma cincia do discurso, qualitativa14, queproporciona um conhecimento universal, estvel, certo e necessrio, tal qual propu-nham os pr-socrticos. O conhecimento verdadeiro deve satisfazer os critrios dajustificao lgica: deve ser demonstrado com argumentos que sustentam a certeza etornam evidente a sua aceitao em funo da coerncia lgica de suas afirmaescomosprincpiosuniversalmenteaceitos(verdadesinttica).

    2.2.1.4Cinciagregaavisodeuniverso

    Apesar do corte epistemolgico que a filosofia efetuou com a mitologia, algumasanalogias foram ainda mantidas, principalmente as do antropomorfismo, que compa-ravaaorganizaodouniversocomaformahumanadeorganizao.

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    14. A cincia aristotlica descreve os fenmenos utilizando conceitos que contm suas caratersticas em-pricas. No pressupe uma relao quantitativa entre as propriedades dos fenmenos. antimatem-tica, pois os fatos qualitativos apenas podem ser determinados pela experincia e pela perceposensvel e no por uma abstrao geomtrica. Observe-se que, para Aristteles, movimento um pro-cesso de mudana de um corpo que passa de um estado em que se encontra para outro (atualizao oucorrupo) e no como diferentes estados inerciais de repouso ou de movimento de um mesmo corpo,comopregaram,posteriormente,GalileueDescartes.

  • Prevaleceu, na viso grega de cincia, o modelo cosmolgico de Aristteles, alia-do s concepes da astronomia de Ptolomeu. Esse universo era geocntrico, finito,de forma esfrica, limitado s estrelas visveis e fechado, com princpios organizado-resprprios,talqualumorganismovivo,dotadodeintelignciaprpria.

    Aristteles dividia os seres desse universo em trs grandes planos, de acordo comonveldeperfeio:

    l O mundo fsico terrestre, o sublunar, que est no centro do universo, compos-to das substncias fsicas imperfeitas, perecveis, sujeitas mudana, ao movimento,gerao e degenerao, divididas em seres vivos os vegetais, os animais e o homem e no vivos a matria e a forma, os quatro elementos: gua, ar, terra e fogo, e osmistos;

    2 O mundo fsico celeste, o supralunar, composto pelos astros e esferas celestesperfeitas. Os astros so substncias mveis, eternas, incorruptveis e dotadas de for-mas vivas, inteligentes e perfeitas, girando em movimento esfrico em torno da terra;

    3 A substncia divina supraceleste, eterna, incorruptvel, imvel, destituda dematriaesituadaforadouniversofsico:Deus.

    Os gregos viam o mundo dotado de uma ordem e estrutura natural que governavao cosmos e que regia todos os acontecimentos, na qual todo o ser adquiria sentido. filosofia e cincia cabia buscar essa ordem, apreend-la, compreend-la e demons-tr-la. Toda racionalidade da cincia grega estava sustentada nessa ideia que interpre-tava os fatos particulares, mutveis e perecveis, a partir do sentido que adquiriamcomo parte de um todo, de uma essncia universal incorruptvel e eterna. Na cinciagrega, portanto, no se d destaque ao processo de descoberta. Havia um processo dedemonstrao, de justificao dos princpios universais. Conhecimento cientficoera o demonstrado como certo e necessrio atravs dos argumentos lgicos. Ovalor de uma explicao estava no seu poder argumentativo que justificava sua acei-tao e plausibilidade. A cincia grega era uma cincia do discurso, em que no ha-via o tratamento do problema que desencadeia a investigao, e sim a demonstraoda verdade racional no plano sinttico. Sob esse enfoque que nasceram e se desen-volveram a fsica, a biologia, a tica, a aritmtica, a metafsica, a esttica, a poltica, algica,acosmologia,aantropologia,amedicinaetantasoutrascincias.

    A filosofia da natureza, ou a cincia grega, chega Europa principalmente atra-vs dos rabes e dos cristos. Estudada pelos cristos, adotada e ensinada nos con-ventos e universidades europeias. Proporcionou ao Ocidente, por vrios sculos, osfundamentosdeumconhecimentoracional,tidocomocertoeseguro.

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  • 2.2.2Cinciaemtodo:aabordagemdacinciamoderna(Bacon,GalileueNewton)

    Esses dois caminhos, o platnico e o aristotlico, depois de coexistirem por maisde 2000 anos, foram duramente atacados a partir do sculo XV e, principalmente, nosculo XVII, durante o Renascimento, pela revoluo cientfica moderna, que intro-duz a experimentao cientfica, modificando radicalmente a compreenso e concep-otericademundo,decincia,deverdade,deconhecimentoedemtodo.

    O conhecimento produzido segundo o modelo aristotlico manifestava-se atra-vs de proposies de sujeito-predicado, que expressavam os atributos qualitativosinerentes aos fenmenos observados. Esta cincia qualitativa, no entanto, era inade-quada para tratar daquelas questes que necessitavam de uma relao numrica, co-mo, por exemplo, a da velocidade da mudana e do movimento na fsica. SegundoCrombie (1985), foi a partir do sculo XIII, por influncia do uso da matemtica, daobservao e da experimentao na tecnologia latente da Idade Mdia, que a exign-cia de mtodos precisos de investigao e explicao no campo das cincias naturaisconduziram tentativa de uso de mtodos matemticos experimentais. Essa passa-gem era uma mudana da teoria da cincia que culminou com a revoluo cientficadosculoXVII.

    Opondo-se cincia grega e ao dogmatismo religioso que imperava na poca, osrenascentistas, principalmente Galileu (1564-1642) e Bacon (1561-1626), rejeitaramomodeloaristotlico.

    2.2.2.1Bacon:induoeempirismo

    Conforme Bacon (1979), os preconceitos de ordem religiosa, filosfica, ou decor-rentes das crenas culturais, deveriam ser abandonados pois distorciam e impediam averdadeira viso do mundo, que deveria ser resultado da interpretao da natureza.

    Bacon (1979, p. 33) criticou severamente o aristotelismo e o empirismo ingnuo:

    A escola emprica de filosofia engendra opinies mais disformes e monstruosasque a sofstica ou racional. As suas teorias no esto baseadas nas noes vulga-res (pois estas, ainda que superficiais, so de qualquer maneira universais e, dealguma forma, se referem a um grande nmero de fatos), mas na estreiteza deunspoucoseobscurosexperimentos.

    O empirismo ingnuo criticou principalmente a leviandade com que os observa-dores se deixavam levar pelas impresses dos sentidos e concluam generalizaesutilizando indevidamente a induo (induo por enumerao). A experincia vulgar,segundoele,conduziaaenganos.

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  • Aps rejeitar tanto o empirismo ingnuo quanto o velho rganon de Aristteles,Bacon props a necessidade de se inventar um novo instrumento, um mtodo de in-veno e de validao que desse maior eficcia investigao. Para ele, o mtodo si-logstico e da abstrao no ofereciam um conhecimento completo do universo. Paraisso seriam necessrias a observao sistemtica e a experincia dos fenmenos e fa-tos naturais. Cabia experincia confirmar a verdade. Somente ela seria capaz de pro-porcionar uma verdadeira demonstrao sobre o que verdadeiro ou falso. A autori-dade (do conhecimento religioso e dogmtico) podia fazer crer, porm, no facultavaa compreenso da natureza das coisas em que se acreditava. A razo (no conhecimen-to filosfico) poderia completar a autoridade; no teria, porm, condies de distin-guirentreoverdadeiroeofalso.

    Props um mtodo que chamou de interpretao da natureza, oposto aos outrosque denominou de antecipaes da natureza. Seus passos esto sustentados na crenavigorosa, que Bacon possua, de que a natureza a grande mestra do homem. Para do-min-la era necessrio obedec-la. Seu princpio fundamental afirmava que o homemdeveria libertar seu intelecto dos pr-conceitos (dola) que impediam a correta visodas formas (leis) que organizavam a natureza. Livre da viso distorcida da realidade,poderia dedicar-se exaustiva, metdica e sistematicamente observao dos fenme-nos. O verdadeiro caminho era o da induo experimental. Porm, no a induo pue-ril, da simples enumerao de alguns casos observados, mas a induo sistematizadaem que se deve cuidar de um sem nmero de coisas que nunca ocorreram a qualquermortal (...) procedendo s devidas rejeies e excluses e, depois, ento, de posse doscasosnegativosnecessrios,concluirarespeitodoscasospositivos(p.69).

    Esse mtodo se tornou conhecido como mtodo cientfico e deveria ser utilizadopara se atingir um conhecimento cientfico. Para Bacon (1979), o mtodo cientficodeveriaseguirosseguintespassos:

    a) experimentao: a fase em que o cientista realizaria os experimentos sobre oproblema investigado, para poder observar e registrar metdica e sistematicamentetodasasinformaesquepudessecoletar(experimento lucfero);

    b) formulao de hipteses fundamentadas na anlise dos resultados obtidosdosdiversosexperimentos,tentandoexplicararelaocausaldosfatosentresi;

    c) repetio da experimentao por outros cientistas ou em outros lugares,com a finalidade de acumular dados que pudessem servir para a formulao de hip-teses(experimentos frutferos);

    d) repetio do experimento para a testagem das hipteses, procurando obternovosdadosenovasevidnciasqueasconfirmassem;

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  • e) formulao das generalizaes e leis: pelas evidncias obtidas, depois de se-guir todos os passos anteriores, o cientista formularia a lei que descobrir, generalizan-dosuasexplicaesparatodososfenmenosdamesmaespcie.

    Bacon foi o pregador da necessidade do controle experimental. Ciente das falhasda induo, procurou acercar-se de cuidados que oferecessem confiabilidade aos re-sultados:

    Na constituio de axiomas por meio dessa induo, necessrio que se procedaa um exame ou prova: deve-se verificar se o axioma que se constitui adequadoe est na exata medida dos fatos particulares de que foi extrado, se no os exce-de em amplitude e latitude, se confirmado com a designao de novos fatosparticulares que, por seu turno, iro servir como uma espcie de garantia (p. 69).

    Com esse controle e repetio dos experimentos, tentava Bacon impedir a formu-lao de generalizaes que extrapolassem os limites de validade dos resultados al-canados. Atravs desse mecanismo, adotou como critrio de verdade a corres- pon-dncia dos enunciados com os fatos (verdade semntica), tentando oferecer cinciameios de conhecer os limites de confiabilidade dos seus resultados. Como dizia: no de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e peso para que lhe sejam coibidos o salto evoo(p.68).

    Esse mtodo, no entanto, no teve o mrito de atingir os objetivos a que Bacon sepropunha. Com ele Bacon nada produziu. O que chamou de experimentos, destitu-dos da mensurao e controle quantitativos, no passaram de meras experincias.Bacon no conseguiu dar o salto do qualitativo para o quantitativo, como fez Galileu,verdadeiropaidarevoluocientficamoderna.

    No entanto, foi grande a influncia do empirismo e do indutivismo de Bacon so-bre a vulgarizao do pensamento cientfico moderno. E tambm no foram poucosos cientistas que reafirmaram a ideia de que a cincia deveria fundamentar-se na puraobservao dos fatos e no se deixar levar por hipteses apriorsticas para alcanar aobjetividadenoconhecimento.EentreelesesteveNewton.

    2.2.2.2Galileu:oexperimentoearevoluocientfica

    Galileu, contudo, trilhou um caminho diferente do de Bacon. Para Galileu, a ex-plicao deveria ser buscada na leitura do livro da natureza. A certeza da validaoda explicao no poderia ser fornecida atravs da simples demonstrao utilizandoargumentos lgicos (verdade sinttica), de acordo com o modelo aristotlico, mas pe-las provas construdas e elaboradas de forma matemtica com as evidncias quantita-

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  • tivas dos fatos produzidas pela experimentao. O critrio da verdade, para a cinciamoderna, passaria a ser o da correspondncia entre o contedo dos enunciados e aevidncia dos fatos (verdade semntica). O mtodo silogstico grego foi substitudopelo mtodo cientfico-experimental. O conhecimento produzido segundo o mode-lo aristotlico manifestava-se atravs de proposies de sujeito-predicado, que ex-pressavam os atributos qualitativos inerentes aos fenmenos conhecidos pela expe-rincia e percepo sensorial. Esta cincia qualitativa, no entanto, era inadequadapara tratar daquelas questes que necessitavam de uma relao numrica, como porexemplo,adavelocidadedamudanaedomovimentonafsica.

    O responsvel pela chamada revoluo cientfica moderna foi Galileu, ao intro-duzir a matemtica e a geometria como linguagens da cincia e o teste quantitati-vo-experimental das suposies tericas como o mecanismo necessrio para avaliar averacidade das hipteses e estipular a chamada verdade cientfica, mudando radical-mente a forma de produzir e justificar o conhecimento cientfico. Com Galileu se es-tabelece a nova ruptura epistemolgica que desenvolve a ideia de se traar um cami-nho do fazer cientfico mtodo quantitativo-experimental desvinculado do ca-minho do fazer filosfico emprico, especulativo-racional. Foi atravs da revoluogalileana, como nos demonstra Koyr (1982), que comea a exploso da cincia mo-derna, estabelecendo o corte epistemolgico com a concepo de universo e de co-nhecimento aristotlico, e iniciando um novo paradigma que culminaria com o suces-sodafsicanewtoniana.

    Galileu estabelece o dilogo experimental como o dilogo da razo com a reali-dade, do homem com a natureza15. Galileu tomou como pressuposto que os fenmenosda natureza se comportavam segundo princpios que estabeleciam relaes quantitati-vas entre eles. Os movimentos dos corpos eram determinados por relaes quantitati-vas numericamente determinadas. A viso de universo de Galileu era de um mundoaberto, mecnico, unificado, determinista, geomtrico e quantitativo, contrria quelaconcepo aristotlica de cosmos, ainda impregnada pelos resqucios das crenas mti-cas e religiosas, que apresentava um mundo qualitativo e organizado hierarquicamenteem um espao finito e fechado. Caberia, ento, razo apresentar para essa natureza,organizada geomtrica e matematicamente, suas perguntas inteligentes, manifestadasatravs de hipteses quantitativas, para que ela lhe respondesse quando forada por um

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    15. De acordo com Burtt (1983, p. 65), no mtodo de Galileu se destacam trs etapas: intuio ou resolu-o,demonstraoeexperincia.

  • experimento16. Na concepo de Galileu, a razo construiria uma armadilha experi-mental capaz de forar a natureza a fornecer respostas concretas, mensurveis quanti-tativamente. Essas respostas seriam utilizadas para avaliar a veracidade emprica domodelo hipottico-quantitativo racionalmente construdo. A realidade poderia, comoresposta, atravs de seus nmeros, dizer um sim ou um no.

    Com este procedimento Galileu estabeleceu o domnio do dilogo cientfico, odilogo experimental, que era o dilogo entre o homem e a natureza, intermediadopelo pressuposto de que o real era geomtrico e os fenmenos da realidade se com-portavam de acordo com relaes e princpios quantitativos. Ao homem competiria,com sua razo, teorizar e construir a interpretao matemtica do real e naturezacaberia responder se concordava ou no com o modelo sugerido. A scientia, o conhe-cer, se reduzia forma experimental de desenvolv-la, como uma interrogao hipo-ttica endereada natureza a respeito das relaes quantitativas existentes entre aspropriedadesdosfenmenoseaanlisedesuasrespostas.

    A partir de Galileu, as principais verdades defendidas pela concepo aristo-tlica de cincia, principalmente as da fsica e as da cosmologia, foram questiona-das e rejeitadas. O modelo cosmolgico que afirmava ser o universo eterno, geo-cntrico, fechado na ltima esfera das estrelas visveis a olho nu, finito, dotado demovimentos circulares, fundamentado em uma fsica dualista, uma para explicar osmovimentos terrestres dos corpos corruptos e imperfeitos e outra para os movi-mentos celestes dos corpos eternos e perfeitos , foi posto em dvida juntamentecom a forma de produzir e justificar a validade desses conhecimentos. O significado

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    16. Convm destacar a distino que h entre experincia, no sentido do senso comum e do empirismoaristotlico, e experimento, no sentido galileano, apresentada por Koyr (1982, p. 271-300; 1985, p.144). A distino fundamental que aponta reside no tratamento terico que utilizado no experimentopara conhecer os fatos. O experimento trabalha com hipteses, isto , com elaborao tericaquantitativa a priori que orienta a observao e o questionamento dos fatos. Nesse sentido a cin-cia operativa, com a razo assumindo uma funo ativa e no passiva ou contemplativa perante osfatos. Este empirismo da cincia moderna, que trabalha com modelos geomtricos e hipteses a pri-ori que se expressam em conceitos matemticos que necessitam de medida e preciso, se distingue doempirismo do modelo aristotlico que usa conceitos semiqualitativos e abertos e daquele da experin-cia do senso comum que caracteriza o mundo do mais ou menos. A noo de experimento pressupe aaceitao da geometrizao da realidade e, portanto, a sua abordagem quantitativa. Fazer cincia se-ria, da para a frente, estabelecer as relaes quantitativas que poderiam estar presentes por trs dos fe-nmenos ou dos fatos e test-las. O experimento pressupunha, portanto, pensamento terico,elaborado aprioristicamente, expresso em linguagem matemtica e acrescido de teste. O labo-ratrio que Galileu utilizou para realizar aprioristicamente o seu experimento, portanto, foi o seupensamento.

  • dos conceitos fundamentais da fsica o de repouso e movimento foram modifica-dos17. Nem mesmo o endosso do cristianismo a essas teorias, impregnadas que fo-ram pelo dogmatismo e radicalismo religioso e teolgico da poca, conseguiu con-ter a revoluo cientfica que comeava a se instaurar e a destruir as concepes an-teriores. O cosmos grego e o mundo qualitativo aristotlico, explicado pela analo-gia do organismo biolgico, foram substitudos por uma concepo mecanicista edeterminista. Coprnico (1473-1543), Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1642) eNewton (1642-1727) completam um ciclo que apresenta e consolida essa nova vi-so de universo construda pela cincia moderna. Essa cincia, elaborada por enge-nheiros e matemticos, parte do princpio que o universo teve um grande engenhei-ro e arquiteto Deus que o criou como uma mquina perfeita, dotada de leis preci-sas que comandam seus movimentos, que podem ser descobertas utilizando-se pro-cedimentos experimentais e matemticos.

    2.2.2.3Newton:omtodoindutivoeosurgimentodopositivismo

    Foi com o surgimento desta cincia que comeou a se concretizar a esperana deque o homem poderia ter, finalmente, o conhecimento total e fiel da realidade. Foicom Galileu e, posteriormente, com Newton e Kant que essa esperana tomou mat-riaeforma.

    A partir deste momento o homem comea a trabalhar, tendo como modelo deacesso realidade o procedimento do experimento cientfico, que estipula critriospara julgar quando esse acesso realmente alcanado e quando no. Isto , este proce-dimento estipula quando o homem acessa plenamente realidade a tal ponto de di-

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    17. Em 1632, em Florena, na Itlia, foi publicado o Dilogo sobre os dois maiores sistemas do mundo,de Galileu. Os conceitos ali emitidos, principalmente o de movimento e o da geometrizao do univer-so, alm de estabelecer a ruptura com a fsica aristotlica, serviram para fundamentar as teorias dosdois maiores fsicos que se seguiram a Galileu: Newton, com suas leis expressas nos Principios mat-maticos da filosofia natural, e Einstein, com suas teorias sobre a relatividade geral e restrita, modifi-cando a concepo de espao e tempo. De acordo com Aristteles, os corpos estariam em um estadode repouso natural. O movimento de um corpo, segundo a fsica aristotlica, seria decorrente do impe-tus, de uma fora motora que deveria estar constantemente impulsionando esse corpo para no voltarao seu estado natural de repouso. Galileu modifica radicalmente essa concepo. Para ele, o movi-mento tambm um estado natural, estvel e permanente tanto quanto o de repouso, no necessitandoda fora impulsionadora constante. O princpio da inrcia, pressuposto por Galileu, afirma que umcorpo abandonado a si mesmo permanece no estado em que estiver, quer seja de movimento ou de re-pouso,enquantonoforsubmetidoaodeumaforaexteriorqualquer.

  • zer e descrever com exatido quantitativa como que ela funciona e como ela serelaciona: se o acesso verdadeiro, ou, quando no a acessa plenamente, se o aces-soforneceumaimagemfalsa.

    Esse procedimento passou a se chamar mtodo cientfico e obteve vrias inter-pretaes, principalmente a positivista e empirista, decorrente da fsica newtoniana,expressa na obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687), de Newton.

    A interpretao newtoniana de mtodo cientfico, de acordo com Duhem (1914),era indutivista e positivista, prxima interpretao de Bacon. Newton, dando umainterpretao diferente de Galileu, se recusava a admitir que trabalhava com hipte-ses apriorsticas. No Scholium generale, que est no final dos Principia Mathemati-ca, Newton (1987, p. 705) afirma no aceitar nenhuma hiptese fsica que no possaser extrada da experincia pela induo. Afirmava que suas leis e teorias eram tiradasdos fatos, sem interferncia da especulao hipottica18. Isto : em fsica, toda propo-sio deveria ser tirada dos fenmenos pela observao e generalizada por induo.Esse seria o mtodo ideal, o experimental, atravs do qual se poderia submeter pro-va, uma a uma, as hipteses cientficas. cincia caberia aceitar apenas as que evi-denciassem a certeza confirmada pelas provas empricas produzidas pelo mtodoexperimental. Com esse mtodo estaria se propondo uma espcie de rganon experi-mentalpretensamenteuniversal,quesubstitusseo rganon aristotliconalgica19.

    O modelo popularizado de mtodo cientfico, o indutivo-confirmvel, sofrendoas influncias do empirismo baconiano e da induo confirmabilista newtoniana, quefoi tomado como padro e divulgado entre os diferentes campos das cincias naturais,

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    18. Textualmente,nos PrincipiaMathematica,Newton(1686)afirma:La gravedad hacia el Sol se compone de las gravedades hacia cada una de las partculas del Sol, y se-parndose del Sol decrece exactamente en razn del cuadrado de las distancias hasta ms all de la r-bita de Saturno, como se evidenca por el reposo de los afelios de los planetas, y hasta los ltimosafelios de los cometas, si semejantes afelios estn en reposo. Pero no he podido todavia deducir a par-tir de los fenmenos la razn de estas propiedades de la gravedad y yo no imagino hiptesis. Pues, loque no se deduce de los fenmenos, ha de ser llamado Hiptesis; y las hiptesis, bien metafsicas,bien fsicas, o de cualidades ocultas, o mecnicas, no tienen lugar dentro de la Filosofa experimen-tal. En esta filosofa las proposiciones se deducen de los fenmenos, e se convierten en generalespor induccin. As, la impenetrabilidad, la movilidad, el mpetu de los cuerpos e las leyes de los mo-vimientosedelagravedad,llegaronaseresclarecidas(op.cit.,p.785).

    19. Tem sentido, sob esse prisma, o ttulo dado por Francis Bacon sua obra Novum Organum (1620), te-orizandosobreomodelometodolgicoempiristaeindutivistaqueacinciadeveriater.

  • principalmente atravs dos manuais universitrios, se apresentaria, com algumas pe-quenasvariaes,comoseguinteformato:

    FIGURA 2Mtodocientficoindutivo-confirmvel

    MTODOCIENTFICOINDUTIVO-CONFIRMVEL

    Observaodoselementosquecompemofenmeno

    Anlisedarelaoquantitativaexistenteentreoselementosquecompemofenmeno

    Induodehiptesesquantitativas

    Testeexperimentaldashiptesesparaaverificaoconfirmabilista

    Generalizaodosresultadosemlei

    De acordo com esse modelo, o sujeito do conhecimento deveria ter a mente lim-pa, livre de preconceitos, para que recebesse e se impregnasse das impresses senso-riais recebidas pelos canais da percepo sensorial. As hipteses seriam decorrentesdo processo indutivo da meticulosa observao das relaes quantitativas existentesentre os fatos e o conhecimento cientfico seria formado pelas certezas comprovadaspelasevidnciasexperimentaisdealgunscasosanalisados.

    Hypotheses non fingo era a atitude empirista correta. Como diz Duhem (1993, p. 89),

    enquanto durasse a experincia, a teoria deveria permanecer porta do laborat-rio, guardar silncio e, sem perturb-lo, deixar o experimentador face a face comos fatos. Estes ltimos deveriam ser observados sem ideias preconcebidas, reco-lhidos com a mesma imparcialidade minuciosa, quer confirmassem as previsesda teoria, quer as contradissessem. O relato que o observador daria de sua expe-rincia deveria ser um decalque fiel e escrupulosamente exato dos fenmenos;no deveria nem mesmo deixar suspeitar em qual sistema o experimentador ti-vesseconfiana,nemdequaleledesconfiasse.

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  • Para Newton e seus discpulos, tais como Laplace, Fourier e Ampre20, estariaclaro que uma proposio fsica seria ou uma lei, obtida pela observao e generaliza-o indutiva, ou um corolrio deduzido matematicamente desse tipo de lei. Em am-bos os casos, as teorias sempre seriam proposies confiveis e destitudas de dvidaoudearbitrariedade,poisseriamumdecalquefieleobjetivodarealidade.

    2.2.2.4Odogmatismoeocientificismodacinciamoderna

    O paradigma newtoniano, impregnado pelo indutivismo e empirismo, gerou umacega confiabilidade na cincia, sem dvida alguma, sustentada na certeza e exatidodos resultados das teorias obtidas por um procedimento julgado perfeito: pensou-seque se poderia, sem interferncias de ordem subjetiva, terica, ou metafsica, desco-brir as leis ou princpios que comandavam os fenmenos da realidade. A exatido dosresultados dos experimentos newtonianos e o acordo perfeito de suas provas com asteorias facilitou a aceitao da crena de que a fsica newtoniana, construda com ouso de um mtodo cientfico-experimental indutivista e confirmabilista, estava pro-porcionando ao homem um conhecimento comprovado, confirmado definitiva-mente, inquestionvel e desprovido de interferncias subjetivas. Era, portanto, umconhecimento que havia alcanado a objetividade, isto , era um espelho fiel darealidade, fundamentado nos fatos e no nas suposies da subjetividade humana. Oexperimento da fsica, seguindo a teorizao coerente com o paradigma newtoniano,passou a ser o modelo ideal que deveria ser copiado por todas as outras reas de co-nhecimento.

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    20. Ampre (1775-1836), matemtico, qumico e fsico francs, discpulo do mtodo newtoniano, queconstri a teoria do eletromagnetismo, em sua obra Thorie mathematique des Phnomnes lec-trodynamiquesuniquementdduitdelexprience afirma:Newton esteve longe de pensar que a lei da gravidade universal pudesse ser inventada partindo deconsideraes abstratas mais ou menos plausveis. Ele estabeleceu que ela deveria ser deduzida dosfatos observados, ou melhor, de suas leis empricas que, como as de Kepler, so resultados generaliza-dosdeumgrandenmerodefatos.Observar primeiro os fatos, modificando-se as circunstncias tanto quanto possvel, acompanhar esseprimeiro trabalho de medir com preciso para da inferir as leis gerais, independentemente de qual-quer hiptese sobre a natureza das foras que produzem os fenmenos, o valor matemtico dessas for-as, isto , a frmula que as representa, tal o caminho que Newton seguiu. Ele foi por todos adotadona Frana, pelos cientistas aos quais a fsica deve os imensos progressos que ela fez nesses ltimostempos, e foi ele que me serviu de guia em todas as minhas pesquisas sobre os fenmenos eletrodin-micos. Eu tenho consultado unicamente a experincia para estabelecer as leis desses fenmenos, e de-les deduzir a frmula que pode sozinha representar as foras para as quais eles so devidos (apudDUHEM,1993,p.297-298nossatraduo).

  • Esse novo paradigma de verdade e do fazer conhecimento, que chegou sua ple-nitude com Newton, racionalmente justificado por Kant que, na sua Crtica da ra-zo pura (1787), expe os argumentos que fundamentam a crena nessa forma deacesso realidade, no de um acesso total, do em si, dos nomena, mas dos fain-mena. A cincia experimental newtoniana, para Kant, se transforma no modelo deconhecimento. Segundo ele, o homem constri um conhecimento dos fenmenos,captados a partir dos conceitos fundamentais a priori de tempo e espao, universais eabsolutos, condicionantes de toda a apreenso sensvel, e agregados pelas categoriasintelectuais, tambm universalmente presentes no homem. A partir de Newton eKant, o conhecimento verdadeiro dado pela cincia. O pensar com a razo pura cincia,quepeohomememcontatocomoreal,enquantofenmeno.

    O dogmatismo, antes presente nas teorias aristotlicas divulgadas sob a proteodo cristianismo, manifesta-se, agora, com intensidade no interior da prpria cincia,no final do sculo XIX, motivado por esta pregao positivista do modelo cientficodominante como ideal do conhecimento, que no admitia outras formas vlidas de seatingirosaber,anoseratravsdomtodocientfico-experimental.

    O sucesso das aplicaes tericas e prticas da fsica newtoniana no decorrer detrs sculos gerou uma confiabilidade cega nesse tipo de cincia, fazendo com que asoutras reas de conhecimento, no apenas das cincias naturais mas tambm das soci-ais e das humanas, procurassem esse ideal cientfico e o aplicassem para obter resul-tados tericos comprovados experimentalmente. Todas queriam gozar do status decientificidadegranjeadopelafsica.

    Finalmente, pensava-se, o homem havia descoberto o caminho do conhecimentocerto e verdadeiro. Esse caminho era o da cincia. E na cincia, conhecer significavaexperimentar, medir e comprovar. A cincia, orientada pelo poderoso mtodo cient-fico-experimental indutivo, poderia chegar s verdades exatas, verificadas e confir-madas pelos fatos. O crescimento da cincia seria acumulativo, atravs da super-posio de verdades demonstradas pelas provas fatuais geradas pelas observaesparticulares e pelos experimentos. Foi o incio do surgimento do cientificismo, isto ,da crena de que o nico conhecimento vlido era o cientfico e de que tudo poderiaser conhecido pela cincia. Todo o conhecimento, para ter valor, deveria ser verific-velexperimentalmenteeapresentarprovasconfirmadorasdesuaveracidade.

    2.2.3A visocontemporneadecinciaemtodo:aincertezaearupturacomocientificismo

    no interior da prpria fsica, no entanto, que se inicia a ruptura com o dogmatis-mo e a certeza da cincia. Um dos primeiros a denunci-la foi Pierre Duhem (1861-1916). Para ele o cientista constri instrumentos, ferramentas suas teorias para seapropriar da realidade, estabelecendo com ela um dilogo permanente. Aaceitao da

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  • validade dos instrumentos de observao e