capÍtulo i 1 a trajetória histórica do serviço social no brasil

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CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil O estudo da imagem profissional deve recuperar a trajetória histórica que o Serviço Social desenvolveu no país, uma vez que é neste percurso que a imagem social se constrói. O Serviço Social, enquanto profissão institucionalizada, emergiu em um momento histórico determinado, em termos histórico-universais, em fins do século XIX e início do século XX, na passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista, quando o Estado passou a assumir novos papéis e funções. Netto afirma que uma destas novas funções assumidas pelo Estado foi a de promover a reprodução material e ideológica dos trabalhadores: “a preservação e o controle contínuos da força de trabalho ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem” (NETTO, 2005a, p. 26). Com este intuito, passou a formular e implementar políticas sociais e, com isso, criou-se o espaço sócio-ocupacional para os assistentes sociais, que passaram a se inserir na divisão sócio-técnica do trabalho. De seu surgimento enquanto profissão assalariada até os dias atuais, várias mudanças ocorreram no interior do Serviço Social, trazendo novos desafios, que devem ser enfrentados sempre buscando decifrar a realidade em que estamos inseridos. A partir dessas considerações, pretende-se neste trabalho de conclusão de curso, relacionar o desenvolvimento do Serviço Social e das políticas sociais com a imagem que este detém entre os

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Page 1: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

O estudo da imagem profissional deve recuperar a trajetória histórica

que o Serviço Social desenvolveu no país, uma vez que é neste percurso que a

imagem social se constrói. O Serviço Social, enquanto profissão

institucionalizada, emergiu em um momento histórico determinado, em termos

histórico-universais, em fins do século XIX e início do século XX, na passagem

do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista, quando o Estado

passou a assumir novos papéis e funções. Netto afirma que uma destas novas

funções assumidas pelo Estado foi a de promover a reprodução material e

ideológica dos trabalhadores: “a preservação e o controle contínuos da força

de trabalho ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem”

(NETTO, 2005a, p. 26). Com este intuito, passou a formular e implementar

políticas sociais e, com isso, criou-se o espaço sócio-ocupacional para os

assistentes sociais, que passaram a se inserir na divisão sócio-técnica do

trabalho. De seu surgimento enquanto profissão assalariada até os dias

atuais, várias mudanças ocorreram no interior do Serviço Social, trazendo

novos desafios, que devem ser enfrentados sempre buscando decifrar a

realidade em que estamos inseridos. A partir dessas considerações, pretende-

se neste trabalho de conclusão de curso, relacionar o desenvolvimento do

Serviço Social e das políticas sociais com a imagem que este detém entre os

próprios usuários dos serviços sociais. concebemos que a forma como a

profissão se desenvolveu no país e o modo como são tratadas as

manifestações da “questão social”2, são os fatores que, além de lutros,

influenciam nesta imagem.1.1 Serviço Social: suas protoformas e seu

processo de profissionalização

O advento do Serviço Social no Brasil ocorreu na década de 30,

juntamente com o início da intervenção estatal nas manifestações da “questão

social” no país. Esta se constitui no objeto de intervenção da profissão, visto

que o Estado demanda que assistentes sociais atuem nas manifestações da

“questão social” via políticas sociais. Segundo Guerra (2005, p. 250), “o Estado

enfrenta a “questão social” em momentos historicamente determinados visando

à manutenção da ordem burguesa”. A "questão social" funda-se na exploração

do trabalho pelo capital, na sociedade

capitalista. Segundo Iamamoto:

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A questão social não é senão as expressões do processo de formação e

desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da

sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do

empresariado e do Estado. (...) É a contradição fundamental que expressa a

desigualdade inerente à organização vigente dessa sociedade: o trabalho

social e a apropriação privada das condições e dos frutos do trabalho, que se

traduz na valorização crescente do capital e na miséria relativa do

trabalhador. (IAMAMOTO, in: IAMAMOTO e CARVALHO, 1983, pp. 77-79).

Segundo Netto (2005a, p. 153), o termo “questão social” começou a ser

utilizado a partir de 1830 para designar o fenômeno que passou a

ocorrer quando a “pobreza crescia na razão direta em que aumentava a

capacidade social de produzir riquezas” (NETTO, 2005a, p. 153), na fase

monopólica do capitalismo. Foi resultante da passagem do proletariado de sua

condição de classe em si a classe para si, no2 O termo “questão social” foi colocado

entre aspas seguindo as orientações de Netto (2005a,p.154-156), que afirma que este termo foi

tomado pelo pensamento conservador, o qual naturalizou a“questão social” e a moralizou: “No

âmbito do pensamento conservador, a “questão social”, numa operação simultânea à sua

naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora. E, em ambos os casos, o

enfrentamento das suas manifestações deve ser função de um programa de reformas que

preserve, antes de tudo e mais, a propriedade privada dos meios de produção. [...] A

partir daí, o pensamento revolucionário passou a identificar na expressão “questão social” uma

tergiversação conservadora, e a só empregá-la indicando este traço mistificador ”. (NETTO,

2005a, p. 155-156, grifos do autor). pós-1848, momento em que os trabalhadores

adquirem consciência política, uma vez que ficaram claros os interesses

antagônicos entre proletariado e burguesia no interior da sociedade capitalista.

O conjunto dos trabalhadores passou a deter a possibilidade de compreender

que apenas a supressão desta sociedade poderia sucumbir com a “questão

social”, pois esta é imanente àquela. Sabemos que a “questão social” é anterior

à ordem monopólica do capital; mas foi somente com a transição à fase

monopolista do capital, a qual foi acompanhada de um salto organizativo nas

lutas dos trabalhadores, que se criaram as bases para que o Estado passasse

a intervir nas suas manifestações. Sendo assim, Netto (2005a, p.18) afirma que

“as conexões genéticas do Serviço Social profissional não se entretecem com

a “questão social”, mas com suas peculiaridades no âmbito da sociedade

burguesa fundada na organização monopólica”. Neste estágio do capitalismo,

o Estado, ao tentar obter legitimação política, absorveu algumas demandas e

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reivindicações das classes subalternas, passando a intervir sistematicamente

nas manifestações da “questão social” através de políticas sociais, que se

constituíram como o espaço sócio-ocupacional dos assistentes sociais.

Destaca-se, então, que o surgimento do Serviço Social no mundo

ocorreu na passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista,

e a profissão se constituiu como tal quando o Estado passou a atuar sobre as

manifestações da “questão social” através de políticas sociais.

O início da profissão no Brasil foi marcado por uma forte influência das

escolas de trabalho social franco-belgas. Ao falar sobre o surgimento do

Serviço Social na França, Verdes-Leroux (1986) aponta para a vinculação entre

Igreja Católica e as protoformas da profissão. No Brasil, segundo Iamamoto (in:

IAMAMOTO e CARAVALHO, 1983, p. 83), foram as ações da Igreja Católica,

no início do século, visando à qualificação do laicato, que impulsionaram o

surgimento da profissão no país. Essas ações se voltavam, principalmente,

para a população feminina e tinham como objetivo principal promover o

“apostolado social” junto às classes subalternas. Consideramos que não

ocorreu um processo linear de passagem da filantropia ao Serviço Social

enquanto profissão, como se houvesse a simples incorporação de um

referencial teórico e de instrumentos técnico-operativos pela filantropia. O

Serviço Social emergiu como profissão na década de 30, a partir da criação de

um espaço sócio-ocupacional, que demandava a atuação do assistente social.

Esse espaço foi criado através do estabelecimento de condições históricas e

sociais que passaram a demandar a intervenção deste profissional. Não se

tratava, então, de uma “evolução da ajuda” ou de uma “racionalização da

filantropia”. Todavia, de acordo com Netto (2005a, p. 70), o Serviço Social

mantém uma relação de continuidade e ruptura com suas protoformas. Quanto

à relação de continuidade, há a persistência do pensamento conservador,

pautado em bases confessionais, aliada a práticas interventivas com caráter de

caridade. Essa relação de continuidade é possibilitada principalmente pela

influência que a Igreja Católica exerce dentro da “assistência organizada” e

dentro da profissão. Pode ser justificada, primeiramente, pelo fato de que a

criação de um profissional só é possível através da refuncionalização de

referências e práticas que já existem. Além disso, essa refuncionalização traz

consigo elementos institucionais e organizativos da estrutura anterior, não

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sendo possível superá-la de imediato. Por outro lado, o Serviço Social rompe

com suas protoformas ao se inserir na divisão sócio-técnica do trabalho,

passando a fazer parte de uma relação de assalariamento. Esta relação de

ruptura, segundo Netto (2005a, p. 71), “se instaura como decisiva na

constituição do Serviço Social enquanto profissão” e ocorreu quando os

agentes passaram a se inserir em atividades de intervenção que independiam

de sua intencionalidade, sendo definidas por organismos diferentes daqueles

em que se desenvolveram as protoformas. Esse deslocamento altera a

condição do agente, passando este a se inserir em uma relação de

assalariamento, e a significação social de sua ação também é alterada, pois

sua prática passou a ter um novo sentido na reprodução das relações sociais.

(NETTO, 2005a, p. 72). O espaço sócio-ocupacional criado, que demandou

a atuação do assistente social, foi no âmbito das políticas sociais, mais

especificamente, para a implementação e execução destas.Segundo Netto

(2005a, p. 78), as políticas sociais conformam um campo de tensões, ao se

constituírem “como respostas tanto às exigências da ordem monopólica como

ao protagonismo proletário, elas se mostram como territórios de confrontos nos

quais a atividade profissional é tensionada pelas contradições e

antagonismos que as atravessam enquanto respostas”. Através delas, o

Estado recuperou algumas formas tradicionais de intervenção nas expressões

da “questão social”, visando preservar e controlar a força de trabalho, além de

fornecer respostas a algumas demandas postas pelos trabalhadores, e de se

legitimar diante dos mesmos. As protoformas da profissão se ligavam

claramente ao desenvolvimento da Ação Social, exercida pela Igreja Católica.

Esta, com o objetivo de recristianizar aclasse trabalhadora, passou a assumir o

enfrentamento da “questão social”. No entanto, considerava-a como uma

questã o moral e religiosa, sem relacioná-la à luta de classes, que é, na

verdade, a base de sua existência. A estreita relação entre as protoformas do

Serviço Social e a Igreja fez com que fosse predominante dentro da profissão o

pensamento conservador pautado na corrente neotomista:

O pensamento neotomista reconhece que o homem é um ser dotado de

razão, o que lhe permite refletir sobre seus atos e superar suas limitações.

Assim, deverá o homem superar seus instintos e paixões para viver em

sociedade com os outros homens, colaborando para a construção do bem

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comum; caso contrário, deverá este homem se submeter a um tratamento

capaz de devolvê-lo a serenidade e a tendência de progresso e

perfectibilidade. A reforma moral, portanto comportamental, faz parte desse

processo de adequação e ajustamento do homem à sua verdadeira

naturalidade e destino. (ORTIZ, 2007, p. 132).

Sendo assim, apesar de ter sido demandada a partir da implementação

de políticas sociais por parte do Estado, a profissão é dotada de uma origem

confessional, que lhe imprime um caráter missionário. De acordo com

Ortiz (2007, p. 38), este caráter será responsável por incutir no imaginário

social a idéia de que o assistente social seria profissional bem-educado, de aparência

simples e despojada, capaz de adentrar às intimidades privadas de seus “clientes” com a

seriedade e a ternura que fazem dele um “profissional da ajuda”, do “cuidado”, do

aconselhamento e da indulgência. Os primeiros cursos de Serviço Social na

França exigiam, mais do que determinado nível de cultura e conhecimento, um

“espírito de engajamento social” VERDES-LEROUX, 1986, p. 13), e no

decorrer da formação, valorizava-se a constituição de um código de apreensão

e de respostas para sua intervenção. O fornecimento de conhecimentos

técnicos era deixado em segundo plano, enquanto priorizava-se o ensino de

como educar a classe operária através da atuação em seus hábitos e condutas

morais. No Brasil, em 1932, surgiu o Centro de Estudos e Ação Social de São

Paulo (CEAS), cujo objetivo principal era o de fornecer conhecimento dos

problemas sociais através de estudo da doutrina social da Igreja.

(CARVALHO, in: IAMAMOTO e CARVALHO, 1983, p.173). Em 1936, foi

fundada a primeira Escola de Serviço Social, em São Paulo, e em 1937, no

Rio de Janeiro, as quais faziam algumas exigências: o candidato deveria “ter

18 anos completos e menos de 40, [apresentar - FLBVM] comprovação de

conclusão do curso secundário, apresentação de referências de 3 pessoas

idôneas, [e] submeter-se a exame médico” (CARVALHO, in: IAMAMOTO e

CARVALHO, 1983, p. 228). Os primeiros cursos focalizavam quatro aspectos

principais: científico, técnico, prático e pessoal, havendo uma forte valorização

dos atributos morais do agente. Isto porque se acreditava que:

O assistente social deveria, assim: ser uma pessoa da mais íntegra formação

moral, que a um sólido preparo técnico alie o desinteresse pessoal, uma

grande capacidade de devotamento e sentimento de amor ao próximo; deve

ser realmente solicitado pela situação penosa de seus irmãos, pelas injustiças

sociais, pela ignorância, pela miséria, e a esta solicitação devem

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corresponder as qualidades pessoais de inteligência e vontade. Deve ser

dotado de outras tantas qualidades inatas, cuja enumeração é bastante

longa: devotamento, critério, senso prático, desprendimento, modéstia,

simplicidade, comunicatividade, bom humor, calma, sociabilidade, trato fácil e

espontâneo, saber conquistar a simpatia, saber influenciar e convencer, etc.

(CARVALHO, in: IAMAMOTO e CARVALHO, 1983, p. 227).

Tais características eram atribuídas ao perfil feminino, e eram totalmente

adequadas às primeiras profissionais, as quais eram exclusivamente

mulheres. De acordo com Barroco (2001, p.78): a mulher é potencialmente formada

para profissões que se legitimam socialmente como “profissões femininas”, das quais se exige

mais um perfil adequado a padrões morais conservadores, do que propriamente qualidades

técnicas e intelectuais. Através da valorização destes padrões morais

conservadores, foi possível ao Estado realizar o projeto do capitalismo

monopolista de enfrentamento das expressões da “questão social”, qual seja,

um enfrentamento moralista, que visa a despolitização desse fenômeno. O

conservadorismo moral presente na sociedade (na formação profissional das

primeiras assistentes sociais, no projeto social da Igreja e na cultura do país,

através do ideal positivista) contribuiu para legitimar esse tipo de intervenção

do Serviço Social. Assim, os usuários do Serviço Social, os trabalhadores das

fábricas e suas famílias, são vistos por uma ótica de desajustamento, e por

isso, a atuação profissional deveria “evitar o desequilíbrio da ordem” 3. Então,

moraliza-se a “questão social”, considerando que o desemprego, a miséria,

entre tantas outras expressões da “questão social” seriam conseqüência da

conduta moral desajustada do indivíduo.

Os promotores da assistência social reconhecem (...) a existência das classes

opostas e das “diferenciações sociais”. O conflito é, no entanto, reduzido a

uma oposição estática entre abastados e desfavorecidos, à qual se dá uma

interpretação psicológica: a classe operária, ignorante e depravada, não é

capaz nem de assegurar a si mesma o bem-estar teoricamente acessível a

todos, segundo os princípios do liberalismo, nem de assumir, por falta de

estrutura moral, sua condição própria, pela adesão realista à ordem

estabelecida; e nem mesmo de resistir aos agitadores que procuram desviála.

(VERDES-LEROUX, 1986, p.14).

Ademais, identificam-se as lutas políticas como sinais de “desordem”, e

estas deveriam ser evitadas e combatidas. A “questão social” era tomada como

“problemas sociais” de ordem moral, responsabilizando-se os indivíduos pela

sua existência e persistência. A burguesia e as forças conservadoras

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aderiram a este projeto políticoideológico, na tentativa de combater a

organização dos trabalhadores e o movimento socialista. Além do Estado

burguês e da Igreja Católica, o Serviço Social também faz parte desse grupo. A

atuação moral do Estado visava promover um consenso social, controlar e

garantir a reprodução da força de trabalho, criando para isso, mecanismos de

intervenção para além da esfera econômica. Passou a incorporar uma parte

das demandas dos trabalhadores, sem deixar de responder às 3 Percebemos em

nossa pesquisa que essa concepção está presente ainda hoje. Conforme será apresentado no

Capítulo 3, há a cobrança por esse tipo de intervenção profissional por parte de um dos

usuários entrevistados no Hospital Universitário. necessidades do capital. E, segundo

Barroco, o faz escamoteando suas funções coercitivas e burocráticas,

estabelecendo uma mediação ético-moral entre os indivíduos e a sociedade:

Através de um discurso ético universalizante, fragmenta as necessidades das

classes trabalhadoras, transforma seus direitos em benefícios do Estado,

subordina os indivíduos a várias formas de discriminação, responsabiliza-os

pela sua condição social, despolitiza suas lutas, restringe suas escolhas,

contribuindo para a reprodução de uma moralidade subalternizada e alienada.

(BARROCO, 2001, p. 86). Quanto à Igreja, esta tinha a intenção de se

apresentar como uma “terceira via”, enquanto alternativa ao liberalismo e ao

comunismo. Para realizar sua reforma cristã, tentava disseminar a aceitação da

condição de classe como se isto decorresse de funções naturais, e devido a

isto, negava a luta de classe, preconizando um consenso entre trabalho e

capital.

Já o Serviço Social, em suas origens, tem, segundo Barroco (2001, p.

91) sua formação ética vinculada exclusivamente às disciplinas de Ética e

Filosofia das Escolas de Serviço Social, as quais são fundadas no neotomismo,

no positivismo e no pensamento conservador. Barroco (2001) afirma que o

neotomismo subordina as “leis naturais” às “leis divinas”, e a cada ser humano

atribuía funções necessárias para promover a “harmonia” e o “bem comum”.

Sendo assim, é necessária uma educação moral dos trabalhadores para que

eles aprendam a realizar suas funções e a fazer o “bem”, se libertando de seus

“vícios”, e dominando suas “paixões”. O ethos profissional instituído é traduzido

em seu primeiro Código de Ética profissional que data de 1945 e afirma que o

assistente social deve ser um exemplo de “integridade moral”, dotado de

“qualidade inatas”. (BARROCO, 2001, p. 93). O Serviço Social se reconhece,

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então, como um promotor do “bem comum” que intervém de forma

moralizadora, individualista e psicologizante nas seqüelas da “questão social”,

concebendo-as como “problemas sociais” numa perspectiva de desajustamento

(BARROCO, 2001, p. 94). Assim, ao ocultar os elementos que fundam a

“questão social”, o profissional transforma a moral em um instrumento de

alienação, moralizando o comportamento da classe trabalhadora, fazendo com

que a moral perca seu caráter emancipatório de espaço de realização de

escolhas através da liberdade. Essa noção de moral persiste nos Códigos de

Ética de 1965 e de 1975. 1.2 O Movimento de Reconceituação

A década de 60 significou um momento histórico que favorecia o

questionamento4, salientando os conflitos e abrindo a possibilidade de os

indivíduos realizarem novas escolhas. Foi nesta época que a ruptura dos

papéis sociais tradicionais ganhou força, principalmente entre as mulheres e os

jovens. A mulher passou a inserir-se no mercado de trabalho e em outras

esferas da vida pública, como o ensino superior, deixando de estar “destinada”

apenas ao espaço doméstico. A juventude, por sua vez, assumiu uma atitude

ética crítica e rompeu com padrões morais de várias gerações. No interior da

profissão, esse processo de ruptura com o tradicionalismoiniciou-se no final da

década de 50, momento marcado pela política desenvolvimentista. Esse

período, segundo Barroco (2001), foi favorecedor para que quadros jovens da

profissão questionassem a sua subalternidade, buscando a formulação de

novas bases teóricas e culturais para o Serviço Social. O início da4 “Na década de

60 e primeiros anos de 1970, dezoito nações africanas alcançaram sua independência. O

triunfo da guerra de independência da Argélia e o estrondoso fracasso dos Estados Unidos no

Vietnã nos colocavam frente a uma perspectiva certa de um mundo novo. Todos falavam de

revolução na América Latina. Cuba se converteu em símbolo da marcha ao socialismo. Em

muitos países se formavam movimentos guerrilheiros que tiveram grande impacto, e no Chile,

foi eleito como presidente Salvador Allende, com um programa de transição ao socialismo. Em

nosso país [Argentina] crescia a mobilização social com dois atores privilegiados: o movimento

operário e a juventude, e destes últimos, particularmente, o movimento estudantil”. (AQUÍN,

2005, p. 24 apud ORTIZ, 2007, p. 220) década seguinte é marcado por uma forte

mobilização democrática e popular, abrindo um campo de alternativas críticas à

profissão. No entanto, esses processos são interrompidos pela instauração da

ditadura militar no Brasil, a qual teve início em 1º de abril de 1964. É

fundamental notar que este período da história brasileira representou para o

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Serviço Social um período de grandes mudanças, dotado de entraves

ideológicos e políticos, chamado Movimento de Reconceituação5. Netto

(2005b, p. 131) identifica o processo de Renovação do Serviço Social no Brasil

com as novas características articuladas pela profissão no âmbito da

autocracia burguesia, as quais buscaram reorganizar o Serviço Social

tradicional,visando atribuir à profissão uma legitimação prática e uma validação

teórica. Para isso, foi necessária a construção de um pluralismo profissional, o

qual significa o embate respeitoso entre perspectivas diferenciadas.Além disso,

o esforço pela validação teórica contribuiu para dar início a um processo de

superação da subalternidade do Serviço Social em face das Ciências Sociais.

E, para atingir esse fim, a profissão investiu na pesquisa e foi além: ela própria

se constituiu um objeto de pesquisa, tendo início uma série de pesquisas sobre

a história do Serviço Social no Brasil.

A ditadura militar instaurada no país apenas precipitou a ocorrência do

processo de renovação profissional. Desde o final da década de 50, a

política 5 O Movimento de Reconceituação latino-americano recusava o tradicionalismo

profissional. “A Reconceituação questionava o papel dos assistentes sociais no processo de

superação da condição de subdesenvolvimento dos países latino-americanos em um cenário

no qual os projetos nacionais de corte democrático-liberal davam claros sinais de ineficácia e

incompatibilidade com os reais interesses e necessidades da população”. (ORTIZ, 2007, p.

220). Os reconceituadores, no entanto, se dividem em dois grupos divergentes: “Enquanto um

grupo defendia a adequação da profissão conforme as demandas sócio-ocupacionais vigentes,

numa clara perspectiva reformista; outro propunha a refundação da profissão sob novas bases,

quer seja, de caráter anticapitalista, antiimperialista e afinada com o protagonismo e interesses

da classe trabalhadora. Para este, a Reconceituação se iniciou nos marcos da Renovação do

Serviço Social, mas tendia a ultrapassá-la à medida que colocava como horizonte uma nova

profissão, comprometida com outros valores e empenhada na transformação social”. (ORTIZ,

2007, p. 221). desenvolvimentista já havia implantado um quadro econômico e

social que demandava novas práticas interventivas por parte do assistente

social. Sendo assim, o profissional precisou atentar para a perspectiva

macrossocial, além de se inserir em equipes multiprofissionais, nas quais seu

conhecimento não podia ser subalterno. Este processo de renovação foi então

acelerado na década seguinte, a qual,segundo Netto, impulsionou uma crise do

Serviço Social tradicional, mediada pór quatro caminhos:

O primeiro remete ao próprio amadurecimento de setores da categoria

profissional, na sua relação com outros protagonistas (profissionais: nas

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equipes multiprofissionais; sociais: grupos da população politicamente

organizados) e outras instâncias (núcleos administrativos e políticos do

Estado). O segundo refere-se ao desgarramento de segmentos da Igreja

católica em face do seu conservantismo tradicional; a emersão de “católicos

progressistas” e mesmo de uma esquerda católica, com ativa militância cívica

e política, afeta sensivelmente a categoria profissional. O terceiro é o espraiar

do movimento estudantil, que faz seu ingresso nas escolas de Serviço Social

e tem aí uma ponderação muito peculiar. O quarto é o referencial próprio de

parte significativa das ciências sociais do período, imantada por dimensões

críticas e nacional-populares. (NETTO 2005b, pp.139-140).

Como resultante disso, desenvolveram-se três tendências no interior da

profissão. A primeira delas, denominada pelo autor como “perspectiva

modernizadora”, se desenvolveu nos seminários promovidos pelo

CBCISS6 , dentre eles, os que mais se destacaram foram o de Araxá, em 1967,

e o de Teresópolis, em 1970. Esta vertente compreendia o Serviço Social como

“um instrumento profissional de suporte a políticas de desenvolvimento”

(NETTO 2005b, p.165). A perspectiva modernizadora embasava-se

principalmente no funcional-estruturalismo norteamericano e tinha como

conceitos-chave a noção de desajustamento e de adaptação, conforme se

pode ler no Documento de Araxá: “O Serviço Social se caracteriza pela ação

junto a indivíduos com desajustamentos familiares e sociais. 6 O CBCISS (Centro

Brasileiro de Comunicação e Intercâmbio de Serviço Social) teve sua origem embrionária no

final dos anos 40 e, segundo Netto (2005b, p.134) se organizou efetivamente no período de

1961 a 1962. Tais desajustamentos muitas vezes decorrem de estruturas sociais

inadequadas”.(CBCISS apud NETTO 2005b, p. 167). Netto afirma que esta

tendência renovadora viveu um período de tensão entre o tradicional e o

moderno, em que este, mais tarde (no Documento de Teresópolis), subsumiria

aquele. Na verdade, o que ocorreu foi a captura do tradicional sob novas

bases: a atuação microssocial (Caso, Grupo e Comunidade) passou a ocorrer

num marco macrossocietário, integrando o Serviço Social à política

desenvolvimentista governamental. O profissional que mais se destacou foi

Lucena Dantas, que enfatizava a metodologia da ação profissional e buscava

atribuir à profissão um determinado nível de cientificidade. O autor contribuiu

para promover a adequação do Serviço Social à política desenvolvimentista da

autocracia burguesa. No que diz respeito ao campo ético, a perspectiva

modernizadora ainda abarcava um eticismo abstrato e a-histórico, dotando de

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postulados neotomistas e se colocando como uma “superprofissão a bem da

verdade” (BARROCO, 2001:128). A segunda tendência foi chamada por Netto

de “reatualização do conservadorismo” e tinha como objetivo básico:

Deter e reverter a erosão do ethos profissional tradicional e todas as suas

implicações sociotécnicas e, ao mesmo tempo, configurar-se como uma

alternativa capaz de neutralizar as novas influências que provinham dos

quadros de referência próprios da inspiração marxista. (NETTO 2005b, p.

203) Para isso, criticava o pensamento positivista, afirmando que a única

maneira de superar o dualismo sujeito-objeto inerente a ele, seria através da

“compreensão” proposta pela fenomenologia. Esta compreensão se daria

através da entrevista, do diálogo com o cliente, em que se valorizaria a intuição

e a sensibilidade. A introdução do pensamento fenomenológico no âmbito

profissional trouxe consigo a idéia da ajuda psicossocial como forma de

intervenção. Todavia, segundo Netto (2005b, pp. 211-214), não se recorreu às

fontes originais deste pensamento,havendo um empobrecimento teórico e

crítico das categorias fenomenológicas.A reatualização do conservadorismo

claramente tentou recuperar valores do tradicionalismo, os quais estariam

ameaçados por uma erosão que deveria ser contida e revertida. Seus

principais autores consideraram que um dos princípios básicos do Serviço

Social seria o princípio de autodeterminação, o qual é fundado no neotomismo

e considera a liberdade um “direito inerente ao homem”. Uma das profissionais

que mais se destacou foi Anna Augusta de Almeida, a qual procurou

redimensionar o Serviço Social tradicional, apresentando tal

redimensionamento como uma alternativa mais adequada à profissão. A autora

apresentou como nova proposta de atuação profissional a tríade

“diálogo, pessoa e transformação social cuja articulação e implementação

constituem propriamente a metodologia profissional, posto o Serviço Social no

escaninho da ajuda psicossocial”. (NETTO 2005b, p. 241) A terceira tendência

apresentada por Netto, a “intenção de ruptura”, teve sua emergência no quadro

da estrutura universitária brasileira, mais especificamente,formado pelo grupo

de docentes da Universidade Católica de Minas Gerais. Na vigência da

autocracia burguesa, os espaços profissionais estavam submetidos a

rígido controle e, apesar de a universidade não poder ser considerada

um “território livre”, era nesse espaço que os assistentes sociais podiam se

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dedicar à pesquisa sem a preocupação de atender às requisições

institucionais. Foi neste local que no primeiro lustro da década de 70 formulou-

se o Método BH7.7 O Método BH, implementado por jovens profissionais que “[elaboraram]

uma crítica teórico-prática ao tradicionalismo profissional e [propuseram] (...) em seu lugar uma

alternativa global: uma alternativa que procura romper com o tradicionalismo no plano teórico-

metodológico, no plano da A intenção de ruptura buscava romper com o

tradicionalismo profissional tanto no que se refere às suas bases teórico-

metodológicas, quanto ao que diz respeito à prática profissional. Esse projeto

ganhou força com o início da crise da autocracia burguesa, quando se tornou

possível que o Serviço Social estabelecesse maior aproximação com a classe

trabalhadora, o que era necessário para que de fato se alcançasse o

rompimento com o tradicionalismo. Como principais frutos da vertente de

intenção de ruptura estão: a formulação do Método BH e a reflexão de

Iamamoto. O Método formulado em Minas Gerais constituiu-se numa

verdadeira crítica ao tradicionalismo na profissão, tanto em relação ao seu viés

ideopolítico (criticava a aparente neutralidade profissional), aos seus aspectos

teórico-metodológicos (criticava a visão microscópica, a qual dicotomiza sujeito

e objeto), quanto em sua dimensão operativo-funcional (criticava a falta de

clareza quanto ao objeto profissional e o fato de atuar na perspectiva de

“disfunção”, “desadaptação” dos indivíduos). (NETTO, 2005b, p. 278).

A reflexão realizada por Marilda Vilela Iamamoto buscava romper com a

análise endógena do Serviço Social, analisando a profissão no âmbito

da ordem burguesa. A autora empenhou-se em compreender o significado

social da práticaprofissional, entendendo que o surgimento do Serviço Social

está totalmente imbricado à consolidação do capitalismo e ao advento da

“questão social” no Brasil. (NETTO, 2005b, p. 290).

Esta vertente renovadora realizou uma aproximação com o marxismo, o

que significou uma ruptura com o tradicionalismo profissional. Todavia, tratava-

se de uma aproximação incipiente, muito mais voltada à militância política, e

que não buscava Marx em suas fontes originais, mas trabalhava com textos

secundários. Este fato deve-se à conjuntura por que passava o país, a qual

impediu que fosse concepção e da intervenção profissionais e no plano da formação”.

(NETTO, 2005b, pp. 262-263). realizada uma apropriação ontológica do pensamento

de Marx. Sendo assim, havia várias interpretações equivocadas da obra

Page 13: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

marxiana bem como a incorporação pelo assistente social de um ethos

militante, em que o profissional “milita no Serviço Social”. Assim, de acordo

com Barroco (2001, p. 176), a nova ética profissional que foi sendo construída

estava subordinada à opção política da categoria. Barroco (2001, pp. 144-145)

afirma que a cultura de esquerda que se introjetou no Serviço Social

possibilitou a emersão de novos papéis militantes, fossem eles socialistas ou

católicos progressistas, ambos negando o Serviço Social tradicional. Disso

decorreu a necessária tomada de posição diante da desigualdade social e dos

“oprimidos”.Entre a vertente católica progressista, contribuiu para a negação do

tradicionalismo profissional a Teologia da Libertação, a qual emergiu na

década de 70 e articulava marxismo e cristianismo. A Teologia da Libertação

passou a possibilitar que os pobres fossem vistos como “sujeitos de sua própria

libertação”, e não mais como “oprimidos” ou “objeto de caridade e assistência”.

(BARROCO, 2001,p. 147).Em relação ao ethos socialista instituído na

profissão, Barroco (2001, p. 150)afirma que muitas vezes os valores socialistas

foram apreendidos de forma mecânica, sem a reflexão necessária acerca do

seu significado histórico, e isso fez com que ocorressem vários equívocos.

Contudo, na década de 80, houve um amadurecimento teórico-político

da vertente de intenção de ruptura, sendo que a produção teórica começou a

superar os equívocos iniciais, pois se passou a estudar Marx em suas fontes

originais. O processo de redemocratização da sociedade brasileira possibilitou

que mudanças significativas ocorressem no interior do Serviço Social. Uma

delas foi que o assistente social começou a se perceber como trabalhador

assalariado, cuja atividade estava inserida na divisão social e técnica do

trabalho. Além disso, foi implantado no âmbito da formação profissional um

novo currículo, o de 1982, o qual orientava uma formação crítica e

comprometida com os trabalhadores. O Código de Ética de 1986 expressou a

construção de uma nova moralidade para o Serviço Social, que ia de encontro

à moralização da “questão social”, e que se posicionava claramente em favor

das classes subalternas. Essa tendência conquistou uma consolidação

acadêmica, e no início dos anos 80, começou a se espraiar pela categoria

profissional, sendo favorecida pela transição democrática pela qual passava o

Brasil. Na década de 90, com o seu aprofundamento teórico e político, a

vertente de intenção de ruptura alcançou a hegemonia no interior do Serviço

Page 14: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

Social, a qual se expressa no atual Projeto Ético- Político da profissão. Este é

resultante da Lei de Regulamentação da Profissão de 1993, das Diretrizes

Curriculares da ABEPSS, de 1996, e do Código de Ética Profissional, de 1993.

1.3 O Serviço Social na contemporaneidade A passagem dos anos 70

aos anos 80, período de crise da ditadura militar, foi um momento histórico

favorecedor do início da construção de um projeto profissional de recusa e

crítica do conservadorismo no Serviço Social. A década de 80 foi marcada por

mobilizações de diversos atores sociais como trabalhadores urbanos e rurais,

movimento estudantil, de mulheres, das minorias, entre outros. A participação

de grande parcela da categoria em movimentos em prol da

redemocratização do país foi o que impulsionou a articulação do Serviço Social

com as classes subalternas. De fundamental importância foi o III Congresso

Brasileiro de Assistentes Sociais, o qual ficou conhecido como “Congresso da

Virada“, ocorrido em 1979. Nele, setores importantes do Serviço Social

articularam-se ao movimento social dos trabalhadores e conseguiram enfrentar

a hegemonia do conservadorismo,instaurando o pluralismo político no interior

da profissão (NETTO 1999, p. 100).O Serviço Social só alcançou visibilidade

no interior da academia na década de 70, quando foram criados os cursos de

pós-graduação. No início da década seguinte, a profissão foi capaz de dar

início a sua acumulação teórica, o que foi de extrema relevância para a

construção de um novo projeto profissional, o qual foi intitulado de Projeto

Ético-Político. Com esta produção teórica, a profissão passou a se constituir

em uma área de produção de conhecimentos e, na maioria das vezes,

tal produção se baseava no referencial marxista, o que serviu de base

para a recusa ao conservadorismo. Nos anos 80, o Serviço Social passou por

um processo de reformulação das Diretrizes Curriculares (concluído em 1995),

o qual buscou reorientar a formação profissional, privilegiando “a “questão

social” como base de fundação sócio-histórica do Serviço Social e [...]

[apreendendo - FLBVM] a prática profissional como trabalho e o exercício

profissional inscrito em um processo de trabalho” (IAMAMOTO, 2005, p. 57) 8.

Em 1986, foi reformulado o Código de Ética Profissional, e pela primeira vez

enfatizou-se o debate da Ética no Serviço Social. Mas, de fato, o novo

projeto profissional, chamado Projeto Ético-Político,conquistou sua hegemonia

no interior da profissão somente na década de 90. Braz

Page 15: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

(2004, p. 58) considera que há três dimensões distintas neste projeto:

uma8 É importante destacar que hoje a autora já se refere a "processos de trabalho", conforme

afirma no livro "O Serviço Social na Contemporaneidade": não se tem um único e idêntico

processo de trabalhodo assistente social na esfera estatal, em empresas, nas Organizações

Não-Governamentais (ONGs)

etc – e internamente em cada um desses campos. Portanto, não se trata de um mesmo

processo de trabalho do assistente social e sim de processos de trabalho nos quais se inserem

os assistentes sociais. (IAMAMOTO, 2005, p. 106 – grifos da autora).

dimensão teórica, relacionada à produção de conhecimentos; uma

dimensão jurídico-política, envolvendo leis e documentos, como o Código de

Ética de 1993, a Lei de Regulamentação Profissional de 1993 e as Diretrizes

Curriculares de 1996,bem como legislações tais como o ECA, a LOAS, e a

LOS; e uma dimensão políticoorganizativa, relacionada às entidades

representativas como o conjuntoCFESS/CRESS, a ABEPSS e a ENESSO.

O projeto profissional hegemônico considera a liberdade como o valor

ético central, concebendo-a como possibilidade de escolher entre alternativas

concretas.Além disso, o Projeto Ético-Político vai de encontro ao projeto

societário das classes dominantes, posicionando-se em defesa das classes

subalternas e em favor da eqüidade e da justiça social. Compromete-se com a

garantia de direitos e com a defesa intransigente dos direitos humanos. O

projeto aponta também para a necessidade do constante aprimoramento

intelectual como condição para garantir a competência na atuação profissional

Netto (1999, p. 104) destaca que esta estrutura do projeto profissional do

Serviço Social é flexível, podendo incorporar novas questões que possam

emergir na cena contemporânea. Além disso, trata-se de um “projeto que

também é um processo, em contínuos desdobramentos” (NETTO 1999, p.

104).Todavia, a atual conjuntura em que vivemos coloca algumas ameaças ao

Projeto Ético-Político. Isto se deve à implementação de políticas de

orientação neoliberal pelo governo brasileiro, as quais se intensificaram9 na

década de 90.Sendo assim, os avanços na área social, inscritos na

Constituição Federal de 1988 e corroborados em legislações posteriores (como

a Lei Orgânica da Assistência Social e Lei orgânica da Saúde), se contrapõem

ao novo padrão de política social, de 9 É importante destacar que a implementação das

políticas neoliberais no Brasil ocorreram tardiamente, se comparadas aos países

desenvolvidos, onde, na década de 90, tais políticas já estavam consolidadas. orientação

Page 16: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

neoliberal. A direção dada pelos organismos multilaterais como o FMI e o

Banco Mundial volta-se para o enxugamento dos investimentos públicos na

área social, reorientando tais verbas para incentivo ao grande capital

internacional e ao crescimento do capital financeiro. Ao neoliberalismo

associa-se a reestruturação produtiva10, cujas conseqüências relacionam-se

diretamente ao mundo do trabalho, havendo aprecarização deste, por meio de

flexibilizações das relações contratuais,terceirizações, sub-contratações,

contratos temporários, crescimento do mercado informal e do desemprego.

Vincula-se a isto o não-cumprimento da legislação que sustenta as políticas

sociais, oriundas de lutas e conquistas da classe trabalhadora,o que ocorre

num contexto de “crise do Estado”, em que “todos devem se solidarizar com a

necessidade de ajuste do Estado, este entendido como obsoleto,burocratizado,

grande demais e ineficiente para gerir os recursos públicos” (ORTIZ,2002, p.

96). Com isso, cria-se uma cultura voltada para a necessidade de que oEstado

empreenda reformas para melhor administrar seus recursos.Este quadro traz

algumas implicações para o Serviço Social que devem ser ressaltadas. A

primeira delas diz respeito ao fato de o Estado ser historicamente o maior

empregador de assistentes sociais e, devido à reforma deste, o mercado de

trabalho11 para a categoria tende a se contrair no âmbito federal12. O fato de as

políticas sociais serem cada vez mais focalizadas e seletivas,

obedecendo aos preceitos neoliberais, faz com que as condições de trabalho

dos assistentes sociais 10 Essa reestruturação da produção foi tida como necessária pelo

capital devido à crise gestada durante os anos 70, a qual ocasionou uma queda brusca nas

taxas de lucro, e um esgotamento do padrão de acumulação (fordista). (ORTIZ, 2002, pp. 77-

78).11 12 “Contudo, vale ressaltar que tal fato tem gerado uma tendência à contratação de

profissionais nos pequenos municípios do interior, o que, se por um lado, significa uma

alternativa para as novas gerações recém-formadas; por outro, o número de vagas por

município geralmente é pequeno e os cargos oferecidos com baixos salários, obrigando os

jovens profissionais a buscarem um número sem fim de concursos e seleções” (ORTIZ, 2004,

pp. 20- 21).sejam aviltadas, dificultando a defesa de princípios inscritos no

Código de Ética Profissional.Segundo Ortiz (2004, p. 21), o crescimento do

número de vagas públicas para assistentes sociais ocorre principalmente nos

pequenos municípios, os quais oferecem poucas vagas e baixos salários,

obrigando os profissionais a se dividirem entre vários empregos, numa

constante luta por melhores postos. Isto inscreve na sociedade – e tem fortes

Page 17: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

rebatimentos sobre o Serviço Social – um individualismo, com um clima de

competição entre os profissionais pelas poucas vagas com melhores

remuneração e condições contratuais. A inserção de assistentes sociais no

âmbito dos Conselhos e na esfera de gestão de programas sociais tem

crescido muito, mas, muitas vezes, os cargos são de caráter temporário, não

transmitindo segurança ao profissional.Os assistentes sociais, enquanto

trabalhadores assalariados, experimentam estas mudanças no mundo do

trabalho, estando eles sujeitos à sub-contratações,relações trabalhistas

flexíveis, terceirizações e desemprego. Isto torna mais difícil a prática

profissional qualificada e comprometida com a defesa dos direitos sociais. O

chamado “terceiro setor” tem aberto vários postos para o Serviço Social,

numa forma de compensar a minimização do Estado. No entanto, as relações

de trabalho são precárias e não há garantias de prorrogação do contrato ao fim

do projeto desenvolvido. Outra área que tem absorvido muitos assistentes

sociais é a chamada “filantropia empresarial” ou “responsabilidade social”,

engendradas pelas empresas com o intuito de melhorar sua imagem social.

Todavia, Ortiz (2004, p. 22) destaca que este campo também não traz

estabilidade ao profissional, pois depende da disposição da empresa e da

relação custo X benefício.Ademais, novas demandas são apresentadas aos

assistentes sociais, uma vez que a “questão social” passa a assumir novas

expressões, estas ligadas às mudanças no mundo do trabalho. Cabe ao

profissional desvendar a realidade atual para dar respostas qualificadas à nova

ordem de demandas que se lhe apresenta.Além do neoliberalismo, há outro

fator que influencia o Serviço Social na contemporaneidade. Trata-se da pós-

modernidade, a qual, de acordo com Simionato (1999, p. 81), questiona as

grandes narrativas (como o marxismo), afirmando que elas não contribuíram

para explicar os fenômenos sociais. Ao se contrapor à modernidade, defende

que os ideais modernos de igualdade, fraternidade e liberdade não se

concretizaram, e nem o capitalismo nem o socialismo foram capazes de

proporcionar condições de vida balizadas por estes ideais.O discurso pós-

moderno ganha forças a partir do final da década de 70, apóstrês crises

simultaneamente despontarem no cenário mundial, dando a falsa sensação de

que se tratava da derrota da modernidade. Foram elas: o fim do “terceiro-

Page 18: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

mundismo”, o esgotamento do Welfare State e o colapso do socialismo real.

Estes três eventos impulsionaram a idéia de que a modernidade não conseguiu

realizar seu projeto de construir um mundo justo e universal.Enquanto na

modernidade havia o primado da razão, a pós-modernidade a desqualifica,

valorizando formas fragmentárias de construção do conhecimento. As teorias

totalizantes são descartadas, dando-se ênfase à fragmentação do sujeito e

tomando-se a realidade como se ela não pudesse ser desvendada em

sua totalidade.A pós-modernidade representa, assim, um novo tipo de hegemonia ideológica

nesse estágio do capital globalizado, fundada nas teorias do fragmentário, do

efêmero, do descontínuo, que fortalecem a alienação e a reificação do

presente, fazendo-nos perder de vista os nexos ontológicos que compõem a

realidade social e distanciando-nos cada vez mais da compreensão

totalizante da vida social. (SIMIONATO, 2004, p. 86).

Dentro do Serviço Social, a precarização das condições de trabalho e a

dificuldade em relação ao entendimento da relação intrínseca entre

teoria e prática,são fatores que têm fomentado a busca por novos aportes

teóricos, estes calcadosno discurso pós-moderno. E as conseqüências,

segundo Ortiz (2004, p. 24) são de duas naturezas: “o fortalecimento do

conservadorismo e a possibilidade de esvaziamento dos princípios ético-

políticos”. O conservadorismo esteve presente na história do Serviço Social

desde o seu surgimento, tanto através da doutrina da Igreja, quanto por meio

do pensamento laico. Esta influência do pensamento conservador ocorreu

devido à vinculação da profissão com o atendimento de interesses burgueses,

uma vez que o maior empregador de assistentes sociais – o Estado – vem

sendo historicamente cooptado pela classe burguesa. O conservadorismo no

Serviço Social implica principalmente em intervenções profissionais que

tomassem as seqüelas da “questão social” como se fossem “problemas sociais

individuais”, de fundo moral, retirando seu caráter político. A esse tratamento

psicologizante e moralizante da “questão social” soma-se ainda a sua

naturalização; estes três fatores condensam a maneira como os assistentes

sociais atuaram de forma hegemônica até as décadas de 70 e 80.Quanto ao

Projeto Ético-Político, ele sofre as conseqüências da políticaneoliberal e do

pensamento pós-moderno em suas três dimensões aludidas anteriormente. Em

relação à dimensão teórica, Braz (2004, p. 60) destaca que, possivelmente, as

Page 19: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

restrições aos financiamentos públicos de pesquisa, e a mercantilização das

universidades públicas – fato que acarretará uma degradação das condições

de trabalho dos docentes –, serão dois fatores que implicarão na fragilização

da base teórico-acadêmica do projeto profissional. Ortiz (2004, p. 26),por sua

vez, destaca que têm se fortalecido em nosso país tendências que afirmam a

defesa do Projeto Ético-Político, mas abrangem princípios de abordagens

psicossociais e terapêuticas, como se todos representassem a mesma corrente

teórica, numa clara demonstração do ecletismo que vem transitando na

profissão.Já no que diz respeito a sua dimensão jurídico-política, há a

tendência de,além da flexibilização das relações trabalhistas, ocorrer a

desregulamentação das profissões, passando estas a correrem o risco de

perder a especialização que distingue as profissões da divisão social e técnica

do trabalho, generalizando a formação dos profissionais. Ademais, a

degradação e a privatização da esfera estatal põem em risco os direitos sociais

advindos da Constituição Federal de 1988, significando uma desestruturação

das bases jurídico-políticas do projeto profissional.A dimensão político-

organizativa vem sendo afetada com as ofensivas do capital quanto à

desestruturação das organizações dos trabalhadores e dos conselhos

profissionais, numa tentativa de deslegitimação das entidades representativas

da categoria profissional.Sendo assim, o Serviço Social tem encontrado

algumas dificuldades para garantir a defesa dos princípios de seu Projeto Ético-

Político e isto tem implicações claras tanto na prática dos assistentes sociais,

quando em sua produção teórica.Com isso, a imagem socialmente construída

em relação à profissão – que vinha sofrendo alterações, principalmente, a partir

da década de 80 – passa por novas mudanças, para as quais voltamos nossa

atenção neste trabalho.CAPÍTULO II 2 As Políticas Sociais e a Política de

Saúde na configuração da imagem do assistente socialÉ de fundamental

importância considerar que a imagem social da profissão,construída pela

sociedade e pelos usuários, é fortemente influenciada pela forma como as

políticas sociais se configuram, as quais se constituem como espaço

sócioocupacional do assistente social. De acordo com Pastorini (1997, p. 87),

ao contrário da perspectiva liberal, a qual entende as políticas sociais como

concessões do Estado a fim de reduzir as desigualdades sociais, isto é, com

uma finalidade redistributiva, a perspectiva que ora adotamos entende que as

Page 20: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

políticas sociais no capitalismo monopolista articulam processos políticos e

econômicos, atuando sobre as manifestações da “questão social”:

A perspectiva marxista entenderá as políticas sociais como mecanismos de

articulação, tanto de processos políticos, que visam o consenso social, a

aceitação e a legitimação da ordem, a mobilização/desmobilização da

população, a manutenção das relações sociais, a redução de conflitos, etc.

quanto econômicos, procurando a redução dos custos de manutenção e

reprodução da força de trabalho, favorecendo a acumulação e valorização do

capital etc. (PASTORINI, 1997, p. 87).Visto que o capital necessita da

exploração da força de trabalho para se valorizar, torna-se necessário que haja

uma intervenção estatal no sentido de garantir a reprodução da classe

trabalhadora. O Estado implementa, então, “políticascategoriais” (FALEIROS,

1986, p. 28), visando atender a um mínimo de condições de reprodução da

força de trabalho, sem que isto afete a relação de exploração capitalista, e de

modo a manter uma “pacificação das relações entre as classes” (FALEIROS,

1986, p. 37).As políticas sociais buscam a minimização dos efeitos da

exploração capitalista sobre a classe trabalhadora. Gestam-se no interior das

lutas de classes eenvolvem interesses antagônicos. Todavia, “devem aparecer

aos trabalhadores apartadas de interesses de classe” (GUERRA, 2002, p. 135).

Por esse motivo, o Estado apresenta-se como um “árbitro neutro, acima das

classes e dos grupos sociais” (FALEIROS, 1995, p. 43), devendo atuar no

restabelecimento do equilíbrio social e econômico do mercado, a fim de que

todos possam tirar vantagens, através da livre concorrência. Segundo Pastorini

(1997), as políticas sociais cumprem três funções principais: econômica,

política e social. A função econômica se refere ao fato de que o Estado, ao

intervir nas manifestações da “questão social”, contribui com os custos da

reprodução da força de trabalho e assim, diminui o ônus para o capital. No

entanto, cabe lembrar que o custeio das políticas e programas sociais é

proveniente dos impostos e, por isso, trata-se, na verdade, de uma devolução à

sociedade de parte do valor criado pela classe trabalhadora em seu processo

de trabalho, e apropriado pelo capital. Ademais, as políticas sociais agem

favorecendo a subordinação do trabalho ao capital, adequando e controlando a

futura mão-de-obra e revertendo a tendência ao subconsumo (PASTORINI,

1997, p. 89). Como exemplo, as políticas de educação servem para capacitar a

futura mão-de-obra; as de saúde servem para manter o trabalhador saudável

Page 21: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

para empreender um processo de produção; e as de assistência, para acionar

o consumo. Como função política, destaca-se a instauração de um sentimento

de pertença dos indivíduos em relação ao sistema, uma vez que se criam

instâncias de participação popular, definindo padrões de participação. Estes

são limitados pelas instituições, instaurando-se um mecanismo de

enquadramento. E, com isso, o Estado tenta controlar a chamada “paz social”

(FALEIROS, 1995, p. 49).

Em relação à sua função social, as políticas sociais propiciam um

complemento de renda às camadas mais desfavorecidas da população e

promovem uma certa redistribuição de recursos sociais via prestação de

serviços sociais (PASTORINI,1997, p. 88). O Estado garante um mínimo para a

sobrevivência dos cidadãos; no entanto, quando se trata de benefícios pagos

em dinheiro, estes nunca ultrapassam determinado teto, sendo sempre

inferiores ao salário mínimo, como forma de não retirar dos indivíduos

pauperizados o “estímulo ao trabalho”.Esta função social das políticas sociais

acaba subsumindo as outras duas,mostrando:

aos beneficiários uma imagem “redistributiva”, reparadora, enquanto

paralelamente, desempenham para as classes dominantes, um papel de

diminuição dos custos de manutenção e reprodução da força de trabalho,

socializando o que antes era um custo exclusivo do empregador, assim como

também cumprem uma outra função, não menos importante, que é a de

legitimação da ordem estabelecida e de inibição de eventuais crises sociais.

(PASTORINI, 1997, pp. 88-89).Isto claramente influencia a imagem que os

usuários formam a respeito da profissão, pois uma vez que as políticas sociais

são “redistributivas e reparadoras”, o assistente social é o profissional chamado

a solucionar as desigualdades existentes na distribuição de renda no país e a

reparar a condição de vida dos pauperizados.Os serviços sociais

implementados pelo Estado – e pagos por toda a população – são recebidos

como “favores” e muitas vezes são administrados para favorecer certos grupos

do bloco dominante. (FALEIROS, 1986, p. 12). Assim, “aparecem como sendo

doados ou fornecidos ao trabalhador pelo poder político diretamente ou pelo

capital, como expressão da face humanitária do Estado ou da

empresa privada” (IAMAMOTO, in: IAMAMOTO e CARVALHO, 1983, p.

92). As políticas sociais aparecem também como “boas em si mesmas” e

“como bons aqueles que as fazem”, refletindo a “bondade do sistema” e o

Page 22: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

“fracasso individual” (FALEIROS, 1986, p. 17). As políticas sociais dependem

claramente da capacidade de organização e de mobilização dos trabalhadores,

lutando por seus interesses. Muitas vezes, ocorre que o Estado se antecipa

estrategicamente nas respostas às demandas das classes subalternas. No

entanto, não se trata apenas de uma “tensão bipolar – segmentos da

sociedade demandantes/ Estado burguês no capitalismo monopolista” (NETTO,

2005a, p. 33) Há diversos interesses em disputa no interior da sociedade

e não se tratam sempre de demandas populares versus concessões estatais.

Embora os setores subalternos “conquistem” os serviços oferecidos pelo

Estado, embora os trabalhadores “conquistem” a legislação trabalhista, a

regulamentação da jornada de trabalho etc., o Estado “conquista” legitimação

e as classes, por sua vez, dominantes, “conquistam” a ampliação da suas

possibilidades de acumulação e valorização do capital, assim como também a

perpetuação das relações econômicas, evitando maiores conflitos. Mas, ao

mesmo tempo, deve-se pensar que, enquanto o Estado “concede” serviços e

atendimento às populações carentes, estas “concedem” ao primeiro a

possibilidade de legitimação do sistema e de socialização dos custos da

reprodução da força de trabalho etc. As classes dominantes, por sua vez,

“concedem” recursos e os setores subalternos “concedem”, em troca,

aceitação da ordem sociopolítica e econômica, ao mesmo tempo em que

contribuem para a perpetuação das relações de produção, exploração etc.

(PASTORINI, 1997, pp. 96-97).

Todavia, deve-se destacar que a intervenção fragmentada e parcializada

que o Estado opera sobre a “questão social” faz com que a política social se

desdobre em “políticas sociais”. Com isso, as manifestações da “questão

social” são tomadas como se fossem problemas particulares e isolados, sem

relação direta. Segundo Netto (2005a, p. 32),

Não pode ser de outro modo: tomar a “questão social” como problemática

configuradora de uma totalidade processual específica é remetê-la

concretamente à relação capital/trabalho – o que significa, liminarmente,

colocar em xeque a ordem burguesa.

Vemos, portanto, que a aparência encobre a essência das políticas

sociais, as quais contribuem não somente para promover uma redistribuição de

recursos sociais, mas, principalmente, para ampliar a acumulação capitalista,

através da redução dos custos com a reprodução da força de trabalho, e para

promover a legitimação do Estado, institucionalizando-se os conflitos sociais e

escamoteando-se os interesses antagônicos presentes na sociedade.

Page 23: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

Através destas reflexões, pretende-se desvendar como a atual forma de

configuração das políticas sociais, as quais constituem o espaço sócio-

ocupacional dos assistentes sociais, influencia a imagem socialmente

construída acerca da profissão. 2.1 A Política Social no Brasil

No Brasil, a “questão social” passou efetivamente a ser vista como algo

de responsabilidade estatal apenas a partir da década de 30, quando o

governo de Vargas começou a intervir através de políticas sociais. Esta

intervenção governamental, que acabava com o “laissez-faire brasileiro”13, foi

considerada necessária após o início da organização dos trabalhadores em

associações e do aumento do número de greves operárias. A principal

preocupação do então presidente era a de estabelecer um sistema de seguro

social, privilegiando os trabalhadores e, para isso, preconizava a substituição

da luta de classes pela “colaboração de classes”. O modelo de sistema social,

no entanto, visava a atender primeiramente aos trabalhadores dos setores mais

importantes para a economia, como ferroviários, marítimos e estivadores.

13 Segundo Santos (1994, p. 65), “pode-se considerar que a hegemonia ideológica do

laissez-faire teve vida curta no Brasil, restrita à área urbana, entre 1888 e 1931, no que

concerne à economia, e vulnerada a partir de 1923, no que diz respeito às relações sociais”.

Neste último ponto, o autor refere-se à Ley Eloy Chaves, a qual, em 1923, concedeu alguns

direitos ao trabalhadores do setor ferroviário. O modelo getulista de proteção social se definia,

em comparação com o que se passava no mundo, como fragmentado em categorias, limitado e

desigual na implementação dos benefícios, em troca de um controle social das classes

trabalhadoras. (FALEIROS, 2000, p. 46). Os assistentes sociais eram os

profissionais chamados a exercer este controle. Esta “vigilância” e

“fiscalização” sobre a população – principalmente sobre o comportamento da

classe operária – fizeram com que se formasse uma imagem do profissional

como sendo um fiscalizador14, responsável por controlar possíveis

manifestações do operariado. Em 1923, foi idealizada a primeira Caixa de

Aposentadoria e Pensão (CAP), a qual era destinada aos ferroviários. Por meio

da contribuição de empregadores, empregados e do Estado, visava a criação

de um fundo, o qual seria utilizado quando o trabalhador se desligasse do

processo produtivo. Além disso, a CAP oferecia assistência médica. No

decorrer das décadas de 20 e 30, várias CAPs foram criadas – todas

atendendo a setores estratégicos da economia – e, a partir da

Page 24: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

década de 30, começaram a ser criados os Institutos de Aposentadorias

e Pensões (IAPs). Todavia, àqueles que não possuíam nenhum vínculo

empregatício, o governo destinava ações assistencialistas, em que obras de

caridade se misturavam

às ações das primeiras-damas. Por este motivo, Santos (1994) define a

cidadania neste período como “cidadania regulada”, uma vez que:

São cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram

localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei.

(...) A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão

restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal

como reconhecido por lei. (SANTOS, 1994, p. 68).

Do governo de Getúlio até a década de 60, o populismo15 foi

predominante, havendo sempre apelos governistas à adesão das massas a

suas ideologias (nacionalismo, desenvolvimentismo ou reformismo). E todas as

medidas de proteção social sempre ocorreram de cima para baixo. A

instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964, foi acompanhada de uma

grande abertura ao capital estrangeiro em parceria com o Estado. Houve

uma expansão da cobertura da previdência social, a qual passou a abranger

também trabalhadores rurais (a partir de 1971)16, empregados domésticos (a

partir de 1972), jogadores de futebol (a partir de 1973) e ambulantes (a partir

de 1978). Na maioria das vezes, isso ocorria para que o governo ditatorial e

repressivo obtivesse apoio de um número maior de trabalhadores. (FALEIROS,

2000, p. 47).Por outro lado, nesta mesma década, foi regulamentada a

previdência privadae foram fortemente incentivados os planos de saúde

privados:

Ao mesmo tempo, 40 milhões de brasileiros não tinham nenhum acesso a

serviços médicos, consolidando-se a desigualdade: o setor privado para os

ricos, os planos de saúde para um grupo seleto de assalariados e classes

médias, os serviços públicos para pagantes da previdência e, para os pobres,

a caridade, feita, em geral, por entidades municipais ou filantrópicas com

apoio estatal. (FALEIROS, 2000, p. 48).

O modelo de proteção social instituído durante a ditadura pode ser

definido como “repressivo, centralizado, autoritário e desigual” (FALEIROS,

2000, p. 48). 15 O que não significa que, após a década de 60, as medidas populistas tenham

se extinguido.16 “Os trabalhadores rurais apenas tiveram acesso a uma previdência de meio

tamanho, combenefício de meio salário mínimo e sem contribuição direta”. (FALEIROS, 2000,

Page 25: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

p. 47). No entanto,segundo Santos, o FUNRURAL, criado em 1971, tinha algumas

características importantes: “Em primeiro lugar rompe-se com aa concepção contratual da

previdência, sendo o programa financiado, em parte por imposto sobre a comercialização dos

produtos rurais, e, em parte, por tributação incidente sobre as empresas urbanas. Os

trabalhadores rurais não desembolsam nenhuma contribuição direta para o fundo. Ademais,

inexiste uma partilha profissional, ou ocupacional, do trabalho agrícola, à qual, eventualmente,

estivessem associadas pautas de direitos diferenciados A criação do FUNRURAL se faz já em

uma época posterior à uniformização dos serviços de previdência urbana, que iniciara o

processo de rompimento com a concepção anterior, mas vai além, pois, não estando vinculado

o esquema de benefícios a contribuições pretéritas (que não existem), impôs-se a

busca de outros critérios para a definição da pauta de direitos que seria

equitativamente justo distribuir a todos os membros da coletividade agrária. Seria difícil, na

década de 70, retornar-se, na área rural, a uma forma de reconhecimento da cidadania que se

inaugurara no Brasil na década de 30” (SANTOS, 1994, p. 84).

Segundo Faleiros, de certa forma, perpetuava-se o modelo fragmentado

e desigual implementado na época do populismo, buscando sempre o

favorecimento de certos grupos influentes na vida econômica do país. Além

disso, permaneceu a idéia de cidadania destituída de um caráter público e

universal, tendo continuidade a “cidadania regulada, incluindo-se agora, entre

as dimensões reguladas, não apenas a profissão, mas o próprio salário a ser

auferido pela profissão, independentemente das forças do mercado”.

(SANTOS, 1994, p. 79).O fim da década de 80 assistiu à derrocada da

ditadura, instaurando-se novamente um governo democrático. A Constituição

Federal de 1988 representou uma mudança no modelo de proteção social

historicamente implementado no Brasil – ao menos, no plano formal –, ao

instituir Saúde, Previdência Social e Assistência Social como o tripé da

Seguridade Social e ao garantir direitos às mulheres, às crianças, aos índios.

O conceito de Seguridade Social adotado definia saúde e assistência como

direito dos cidadãos e dever do Estado. No entanto, Embora a arquitetura da

seguridade social brasileira pós-1988 tenha a orientação e o conteúdo daquelas que

conformam o estado de bem-estar nos países desenvolvidos, as características excludentes do

mercado de trabalho,o grau de pauperização da população, o nível de concentração de renda e

as fragilidades do processo de publicização do Estado permitem afirmar que no Brasil a adoção

da concepção de seguridade social não se traduziu objetivamente numa universalização do

acesso aos benefícios sociais.mOTA, 2007, p. 42).

Os anos 90, contraditoriamente à expansão dos direitos sociais,

formalizada pela Constituição de 88, são marcados pelo avanço do ideário

Page 26: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

neoliberal no Brasil. E assim, os governos tendem a “incorporar o processo de

precarização como inevitável, a mercantilização como fato inexorável e a

subordinação do público ao privado como iniciativas complementares e parte

constitutiva das novas experiências de gestão” (MOTA, 2007, p. 43). Quanto às

medidas de política social, o neoliberalismo traz como conseqüências

principais: a instituição de políticas de caráter seletivo e temporário, em

detrimento das políticas redistributivas de caráter público; privatização e

mercantilização dos serviços sociais, havendo a consolidação da idéia do

“cidadão-consumidor”; assunção de novos atores sociais como a “empresa

socialmente responsável” e o voluntariado, os quais contribuem para predefinir

a intervenção social do Estado, estando agora ligada à participação da

sociedade civil; despolitização das desigualdades sociais, ao inserir a

idéia da “exclusão”, a qual poderia ser resolvida com a simples inclusão do

indivíduo ao acesso aos bens e serviços, e ao dividir a sociedade não em

classes, mas em famílias e comunidades que vivem situações singulares e

localizadas. (MOTA, 2007, p. 46). Na mesma década em que são aprovadas

legislações importantes na garantia dos direitos sociais, como a Lei Orgânica

da Assistência Social (LOAS) e a Lei Orgânica da Saúde (LOS), o país vive um

aprofundamento da política neoliberal,principalmente no governo de Fernando

Henrique Cardoso (1995-2001). O modelo por ele instaurado buscava

favorecer o mercado e reduzir o Estado, promovendo, para isso, “a maior

abertura possível da economia aos capitais internacionais, inclusive eliminados

os monopólios estatais, privatização do patrimônio público e redução dos

direitos sociais com a desregulamentação das leis trabalhistas” (FALEIROS,

2000, p. 52). Sendo assim, Iamamoto (2007, p. 186) defende a existência,

atualmente, de dois projetos sociais em relação à formulação das políticas

sociais que vivem em disputa17. O primeiro deles possui um caráter

universalista e democrático,defendendo a universalidade dos direitos sociais e

a eqüidade no acesso. Para isso, acredita serem fundamentais: a primazia do

Estado na implementação das políticas 17 sociais, a descentralização e a

democratização destas, implicando plena participação e controle populares.

Por outro lado, há um segundo projeto, neoliberal, o qual orienta a

subordinação dos direitos sociais à lógica orçamentária, e, por

conseqüência, a política social à política econômica. E, para sua concretização,

Page 27: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

a Constituição Federal é desrespeitada, ficando os direitos sociais sujeitos à

disponibilidade de verbas, numa clara inversão do direito constitucional.

Segundo Iamamoto, “são as definições orçamentárias – vistas como um dado

não passível de questionamento – que se tornam parâmetros para a

implementação dos direitos sociais, justificando as prioridades

governamentais”. (IAMAMOTO, 2007, p. 188). O Estado transfere suas

responsabilidades para a sociedade civil, seja através do voluntariado, da

filantropia empresarial, ou através das “organizações da sociedade civil de

interesse público”. As privatizações são fortemente incentivadas, uma vez que

o suposto é o de que a administração pública é centralizada, burocratizada e

ineficaz. Assim, a satisfação de necessidades é cada vez mais transferida ao

setor privado e os direitos sociais são desmontados, numa nítida regressão da

cidadania. A inserção dos serviços sociais no processo de compra e venda se

intensifica, passando a ser predominante na sociedade, e inserindo os

indivíduos em uma relação em que só é cidadão aquele que pode exercer sua

função de consumidor. Vive-se, então uma época de desmonte das políticas

sociais, havendo sucateamento destas, com destaque para as políticas de

saúde e de educação.

INÍCIO DO SÉCULO XX

A sociedade capitalista consolidou-se a partir da Revolução Industrial, acontecida na

Inglaterra entre os anos 1760 e 1860. Foi a partir do surgimento das máquinas que houve a

alteração do modo de produção artesanal para o modo de produção industrial. Deveu-se a

esse processo de transformação da sociedade da época o surgimento de duas classes sociais:

os proprietários e os operários. Em seguimento a isto surgiram as lutas de classes o que levou

cada classe a defender seus próprios interesses. De um lado o capitalista, buscando poder e

acúmulo de capital, e, do outro lado, o operário, reagindo contra a exploração e reivindicando

melhores condições de vida e mais oportunidades de ascensão social.

Os conflitos aparecem na forma de violação da dignidade do ser humano por parte dos

donos dos meios de produção o que se manifesta principalmente através dos degradantes

salários pagos ao proletariado. Assim sendo, o modo de produção capitalista mostrou-se

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dominador da classe operária que passou por um processo de coisificação. MARTINELLI

(2006) define:

A posse privada dos meios de produção por uma classe e a exploração da força de

trabalho daqueles que não os detêm. Esta separação entre meios de produção e produtor e a

conseqüente subordinação direta deste ao dono do capital permitem que se instaure o ciclo de

vida do capital, o seu processo de acumulação primitiva.

Nestes termos, a cultura de base está no valor material das coisas, inclusive do ser

humano. A importância do ser humano na sociedade capitalista resume-se à sua força de

trabalho. A existência do operário está diretamente ligada ao que produz e ao que irá consumir

e não por seus valores e qualidades individuais. Delimita-se uma "escravização de situação",

pois há uma grande oferta de mão-de-obra para restritos postos no mercado de trabalho. Neste

cenário a classe trabalhadora sente-se obrigada, mesmo diante do conhecimento da condição

de explorada, a trabalhar para a classe burguesa, pois não lhe resta alternativa.

A sociedade capitalista é assinalada pela divisão em classes que se distinguem pela

posição que ocupam os indivíduos na produção social. As relações sociais entre as classes

caracterizam-se pela relação de poder e pelo desenvolvimento político e econômico da

sociedade. Cada classe social tem seus interesses próprios: o capital explora a força de

trabalho em busca de mais lucro e o trabalhador busca melhores salários e menos exploração.

Portanto as relações de exploração da sociedade capitalista serão reproduzidas no

decorrer da história, e, com o passar do tempo, serão acrescentadas outras formas de

opressão nas relações sociais. Nesse visível antagonismo houve o surgimento do que se

chama Questão Social, resultado da desigualdade e exploração social imposta na luta de

classes. Conforme CARVALHO e IAMAMOTO (1993):

A Questão Social não é senão as expressões do processo de formação e

desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade,

exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a

Page 29: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

manifestação, no cotidiano, da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a

qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão.

São expressões da Questão Social: a fome, a miséria, o desemprego, a falta de auto-

estima, a indiferença entre outras. Os processos sociais de desigualdade repercutem na

subjetividade do sujeito, na formação de sua personalidade. Na contradição entre a lógica do

capital e a lógica do trabalho a Questão Social não apenas será representada pelas

desigualdades, mas também pelo processo de resistência dos trabalhadores, da população

excluída em seus direitos econômicos, sociais, políticos e culturais.

No capitalismo as políticas sociais ostentam caráter ideológico de controle e

manipulação e, com o agravamento da questão social, a burguesia aliou-se à Igreja e ao

Estado, através da prática de ações filantrópicas devido à tomada de consciência política das

classes trabalhadoras, que reivindicavam por direitos e melhores condições de vida. Através de

movimentos populares organizados o proletariado levou o Estado a propor programas, projetos

e serviços para satisfazer às suas necessidades básicas. Em BULLA (2003) citação de VILAS

(1978):

É importante assinalar, portanto, que as políticas sociais implantadas nos países de

capitalismo avançado, não foram produtos de uma ação autônoma e beneficente do Estado,

mas "o resultado de concretas, prolongadas e muitas vezes violentas demandas das classes

populares".

 Dentre as precursoras e responsáveis pela sistematização do trabalho social podemos

citar: Florence Nightingale (Inglaterra,1851), Octavia Hill (Inglaterra,1865), Mary Richimond

(EUA, 1897). Mais tarde o Serviço Social Norte Americano introduziu o caráter científico à

abordagem profissional das questões sociais. Foi em 1916, na I Conferência Nacional de

Trabalhadores Sociais, em Nova Iorque, EUA, que Richmond apresentou a proposta de

denominar a nova profissão como Social Work e seus agentes como trabalhadores sociais.

Apresentou-se uma diferença entre as abordagens européia e norte americana do

Serviço Social. O trabalho dos assistentes sociais tinha como base uma abordagem sociológica

Page 30: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

dos problemas reproduzindo a doutrina da classe dominante burguesa através do Estado e da

Igreja Católica. Já a abordagem norte americana foi psicologizante, utilizando a psicologia e a

psicanálise como instrumentos para controlar conflitos e desajustes do sujeito. Em um dado

momento histórico, é a abordagem norte americana do Serviço Social que introduz o caráter

científico na prática dessa profissão.

No Brasil, assim como na Europa, a base para o surgimento do Serviço Social foi o

assistencialismo e os interesses da burguesia, aliada às doutrinas da Igreja Católica, que

tinham por objetivo ampliar sua legitimidade e poder político. Segundo BULLA (2003), no Brasil:

A Igreja oferecia suporte às políticas do Estado, e Vargas cooperava com muitos dos

propósitos da Igreja Católica, preocupada com a restauração cristã da sociedade brasileira.

Após a Primeira Guerra Mundial devido a um crescente desenvolvimento das relações

sociais capitalistas brasileiras houve a intensificação dos conflitos de classes. O Estado

brasileiro, na pessoa do presidente Vargas, promoveu, após a Revolução de 1930, uma série

de mudanças na Constituição do país, culminando com a publicação da Consolidação das Leis

do Trabalho (CLT) em 1943. Em 1938, foi criado o Conselho Nacional de Serviço Social

(CNSS), entre outras entidades, para levar a termo a política de proteção ao

trabalhador, visando incentivar o trabalho para aumento da produção.

Concomitantemente, a Igreja Católica fundava as primeiras escolas de Serviço

Social para suprir as demandas de profissionais habilitados para suporte e

incremento das políticas governamentais.

A institucionalização da profissão do Assistente Social ocorreu devido ao

conseqüente crescimento das instituições de prestação de serviços sociais e

assistenciais, geridas ou subsidiadas pelo Estado. Em 1942, foi criada por a Legião

Brasileira de Assistência (LBA), foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem

Industrial (SENAI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).

Novamente citando BULLA (2003):

Page 31: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

No Brasil, as políticas sociais e o Serviço Social foram implantados na terceira década

do século XX, em condições muito diversas, assumindo características peculiares, que vão

marcar seu desenvolvimento posterior e que ajudam a compreender suas limitações atuais.

As primeiras escolas de Serviço Social no Brasil primavam pela formação moral dos

assistentes sociais, além da formação técnica, sem o enfrentamento da questão social, do

estudo e do aprofundamento da origem das desigualdades ou qualquer questionamento sobre

o sistema capitalista. Dentre os predicados que a Igreja Católica exigia aos profissionais,

podemos destacar: responsabilidade, vocação, sacrifício, disposição para servir, perseverança,

amor ao próximo, entre outros. Assim, os assistentes sociais da época entendiam que a

formação profissional deveria ser orientada pela doutrina da Igreja Católica, não sendo

suficiente o preparo técnico, mas que deveriam possuir formação moral como requisito

necessário e indispensável para o exercício da profissão. Assim acabavam defendendo os

valores e premissas básicas da doutrina católica que reproduzia um sistema de dominação

capitalista e perpetuação da desigualdade. Mais uma vez BULLA (2003):

As posições da Igreja relativas à questão social, contidas na Encíclica Quadragésimo

Ano (Pio IX, 1931), confirmavam as da Rerum Novarum (LEÃO XIII, 1891) quanto à

necessidade de o Estado intervir nas relações entre o capital e o trabalho e à obrigação de

realizar políticas sociais. Reafirmavam, por outro lado, a importância de uma sociedade

consensual e harmônica, sem conflitos de classe.

A primeira escola de Serviço Social no Brasil foi fundada em 1936, em São Paulo, mais

tarde foi ligado à PUC-SP. Em 1937 foi criado o Instituto Social no Rio de Janeiro vinculado à

PUC-RJ. Em 1945 foi criada a Escola de Serviço Social de Porto Alegre da PUC-RS. Nas

décadas seguintes outras escolas de Serviço Social foram fundadas. É o que confirma

MARTINELLI (2006):

a alienação presente na sociedade capitalista, tendo encontrado a base social

necessária, penetrou na consciência dos agentes profissionais, constituindo sério obstáculo

para que pudessem estruturar sua consciência política, sua consciência social.

Page 32: CAPÍTULO I 1 A trajetória histórica do Serviço Social no Brasil

Como a concepção de homem preconizada pela Igreja Católica era a doutrina baseada

na caridade cristã as primeiras alunas dos cursos de Serviço Social eram senhoras

consideradas "damas" da sociedade burguesa sendo formadas por um currículo ratificador das

relações de exclusão tipicamente capitalista e não contestador das causas dos problemas

sociais da época.

Tendo em vista o que foi discutido até o momento percebemos que a identidade

profissional do Assistente Social foi construída a partir da necessidade da classe dominante

(que no sistema capitalista é a burguesia, proprietária do capital e do modo de produção)

exercer controle social sobre o proletariado.

Devido às reivindicações dos trabalhadores descontentes com a desigualdade social, o

Estado alia-se à Igreja Católica e toma medidas no sentido de atender as necessidades

básicas deles.

Assim, o campo de atuação do Assistente Social primordialmente desenvolve-se em

instituições criadas para dar apoio e assistência aos mais necessitados.