capital intermediários edeisolamento · diatria, saúde mental, odontologia, traumatologia,...

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apital 10% 0 TOS CLÍNICOS LEITOS COMPLEMENTARES NO RIO GRANDE DO SUL | SUS NO RIO GRANDE DO SUL | NÃO SUS 2017 1.477 1.832 2010 2017 2.155 855 2010 2017 1.009 EM PORTO ALEGRE | SUS EM PORTO ALEGRE | NÃO SUS 724 2010 2017 809 353 2010 2017 400 de 160 vagas de leitos nos últimos sete anos enta uma redução de Unidades de cuidados intermediários e de isolamento +17,6% +18% +11,7% +13,3% FONTE: NÚCLEO DE PESQUISAS DO SIMERS / MINISTÉRIO DA SAÚDE SAMUEL MACIEL Da mesma forma, a chefe da emergên- cia do Hospital São Lucas, da Pucrs, Cami- la Toscan, identifica que a busca da popu- lação é muitas vezes desnecessária. “Tem atendimentos que poderiam ser em unida- des menores, mas os pacientes acabam procurando as emergências.” O fechamen- to de leitos no Interior e na Capital é ou- tro fator apontado por Camila que sobre- carrega as emergências. Segundo ela, a média diária de atendimentos no São Lu- cas é de 24 pacientes para 18 leitos. O discurso do chefe da emergência da Santa Casa de Misericórdia, Leonardo Fer- nandez, é ainda mais enfático. “Temos um sistema de saúde que não tem como funcio- nar, é subfinanciado. Nosso sistema de saú- de público, que engloba tudo, é semelhante ao espanhol, ao britânico e ao canadense. Mas lá o pessoal investe 3 mil dólares per capita, enquanto estamos investindo 900 dólares. Então não precisa ser matemático para entender que tu tem um sistema que demanda 3 mil dólares, em média, que é o que os países gastam, para um sistema igual em um país que gasta 900 dólares per capita em saúde”, argumenta. Fernan- dez também destaca a desorganização dos investimentos e a falta de regulação. “Te- mos um problema estrutural, sem falar no aspecto demográfico, com o aumento da po- pulação mais velha, demandando mais re- cursos de saúde”, afirma. A emergência da Santa Casa é mais uma que atende pelo SUS. Assim como as outras, as macas es- tão espalhadas por onde couberem. Com 24 leitos, os profissionais do setor se dedi- cavam a 28 pacientes enquanto o chefe da emergência relatava os desafios diários. Do lado de fora, a professora Lilian Servino, 47, acompanhada do pai que es- tá com câncer, aguardava havia mais de quatro horas pelo atendimento do idoso. Além disso, esperava que o laudo de um exame feito pelo pai fosse encontrado. “Ninguém sabe onde está.” Segundo ela, quando percebe que terá de ir a emergên- cia, sabe que será um dia perdido. “Fo- ram mais de dez vezes”, relata. Os profissionais da saúde que atuam nas emergências também acabam sendo vítimas do sistema. A exposição ao estres- se constante e a carga de trabalho eleva- da resulta em prejuízos para os trabalha- dores. “Tu trabalha num esquema de es- tresse constante, só vai trocando as tur- mas. Causa um burnout (esgotamento físi- co e mental) alto e sintomas nas pessoas. Isso repercute nos próprios pacientes. É impossível trabalhar nesse nível de es- tresse todos os dias e não ter repercus- são nos pacientes”, diz Fernandez. POSTOS DE SAÚDE . O choro de Davi, de 2 anos e 4 meses, entoava mais uma noite de espera prolon- gada por atendimento no Pronto Atendi- mento Lomba do Pinheiro, na Estrada João de Oliveira Remião, no bairro Lomba do Pinheiro, na última semana. Acolhido no colo da mãe, a técnica em nutrição Fa- biana da Silva, de 37 anos, ele era apenas um dos usuários, entre jovens, adultos e idosos, que aguardavam no local. A sua impaciência e insatisfação de estar naque- le espaço denunciavam com franqueza o desejo da maioria dos que dividiam ali um momento de fragilidade na saúde. Apesar do cobertor e as pantufas tenta- rem oferecer um pouco mais de conforto a Davi, o menino queria ir embora o mais rápi- do possível. Em meio ao choro, uma frase era repetida com insistência: “Mãe, já aca- bou?”. A mãe tentava amenizar a insatisfa- ção do filho, mas nem Fabiana sabia quanto tempo demoraria para que a noite no Pron- to Atendimento chegasse ao fim. No local, há serviços de Pediatria e Clínica Médica de situações de urgência e emergência, curati- vos, medicações injetáveis e nebulizações. Davi começou a vomitar por volta das 17h30min, logo depois de deixar a escola, e foi levado para a unidade. Às 21h50min, já recebendo medicação in- travenosa, ainda não havia pista que justificasse seus sintomas. Ele aguar- dava na área laranja, conforme classifi- cação de risco da Escala de Manches- ter, enquanto tinha o rosto acariciado pela mãe. Em alguns momentos Fabia- na permanecia em pé, depois sentava na cadeira, na tentativa de reduzir, sem sucesso, a angústia do filho. Para ela, a realidade do local não é nova. Ela já enfrentou longas horas de espe- ra. “Teve um dia que eu cheguei às 9h e saí às 19h. Nesse dia, houve um pro- blema com um médico e ele teve que sair, daí ficou só um para atender to- dos, por isso demorou tanto”, explica. “Nas outras vezes é um pouco menos demorado, mas sempre tem fila.” Enquanto isso, na sala ao lado, to- das as cadeiras estavam ocupadas. An- siosos, com a pulseira no braço, cada um esperava a sua vez pela consulta. Davi, no entanto, era o único que transbordava a insatisfação. As irmãs Camila Antunes, de 28 anos, e Aline Antunes, de 34, ambas donas de casa, contam com a sorte. E quando se tra- ta de saúde, elas garantem que não são perseguidas pelo azar. Nascidas no bairro Bom Jesus, na zona Leste da Capital, não lembram de terem bus- cado cuidados médicos em outro espa- ço para urgências que não fosse o Pronto Atendimento Bom Jesus, que oferece consultas de urgência e emer- gência com Clínico Geral e Pediatra. O estabelecimento funciona todos os dias da semana, incluindo feriados e pontos facultativos. Unidade de referência para a família, na última semana, mais uma vez, as ir- mãs, ambas mães, procuravam atendi- mento para as filhas durante a noite, pouco depois das 20h. Alice, de 1 ano e 8 meses, filha de Camila, apresentava sintomas de gripe. O diagnóstico, no en- tanto, ainda não estava esclarecido. É necessário, segundo a mãe, cerca de quatro horas de espera. “Depende de vá- rias coisas. Se estiver muito cheio, a gen- te espera mais do que isso. Se estiver va- zio, menos. Se for para fazer algum exa- me, aí é muito mais tempo”, conta. A pequena Isabely, de 7 anos, filha de Aline, pediu para a mãe para ser le- vada ao estabelecimento de saúde. Com diarreia há mais de uma semana, não houve alternativa caseira que afastasse os sintomas da menina, apesar dos cui- dados da mãe, que apostou em receitas de chás na busca pela cura. “Ela está com a pulseira azul. Essa e a verde são as que mais demoram”, afirma Aline. O atendimento no local é priorizado de acordo com a classificação de risco do Protocolo de Manchester, método que classifica os doentes por cores, após triagem baseada em sintomas, de forma a representar a gravidade do quadro. A espera pelo atendimento das fi- lhas, no entanto, não perturbava as mães. “A gente quase sempre tem sor- te”, confidencia Camila, que já chegou a permanecer no local por mais de seis horas. “Essa é a alternativa mais próxi- ma que temos e a que a gente conhe- ce”, diz. “Pelo menos conseguimos aten- dimento”, completa. “Quando está mui- to cheio mesmo, desistimos. Não dá pa- ra ficar por muito tempo com criança, porque pode ser pior. É um lugar que tem muitas pessoas doentes, todas no mesmo espaço”, explica Aline. Nessas ocasiões, a receita das mães é voltar para a casa e esperar. O Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul é movimentado. O estabelecimento A agricultora Maria Baumgratz, de Riozinho, chegou em Porto Alegre às 6h para levar filha Brenda, de 7 anos, para consul- tar no Hospital Presi- dente Vargas CONTINUA >> 9/7/2017 | CORREIO DO POVO +DOMINGO | 9

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Page 1: Capital intermediários edeisolamento · diatria, saúde mental, odontologia, traumatologia, pequenos procedimen-tos cirúrgicos eradiologia. Funciona 24 horas por dia, assim como

Capital

10%

2010

LEITOS CLÍNICOS

LEITOS COMPLEMENTARES

NO RIO GRANDE DO SUL | SUS

NO RIO GRANDE DO SUL | NÃO SUS

2017

1.477

1.832

2010 2017

2.155

855

2010 2017

1.009

EM PORTO ALEGRE | SUS

EM PORTO ALEGRE | NÃO SUS

724

2010 2017

809

353

2010 2017

400

de 160 vagas de leitosnos últimos sete anos

representa uma redução de

Unidades de cuidadosintermediários e de isolamento

+17,6%

+18%

+11,7%

+13,3%

FONTE: NÚCLEO DE PESQUISAS DO SIMERS / MINISTÉRIO DA SAÚDE

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Da mesma forma, a chefe da emergên-cia do Hospital São Lucas, da Pucrs, Cami-la Toscan, identifica que a busca da popu-lação é muitas vezes desnecessária. “Tematendimentos que poderiam ser em unida-des menores, mas os pacientes acabamprocurando as emergências.” O fechamen-to de leitos no Interior e na Capital é ou-tro fator apontado por Camila que sobre-carrega as emergências. Segundo ela, amédia diária de atendimentos no São Lu-cas é de 24 pacientes para 18 leitos.

O discurso do chefe da emergência daSanta Casa de Misericórdia, Leonardo Fer-nandez, é ainda mais enfático. “Temos umsistema de saúde que não tem como funcio-nar, é subfinanciado. Nosso sistema de saú-de público, que engloba tudo, é semelhanteao espanhol, ao britânico e ao canadense.Mas lá o pessoal investe 3 mil dólares percapita, enquanto estamos investindo 900dólares. Então não precisa ser matemáticopara entender que tu tem um sistema quedemanda 3 mil dólares, em média, que é oque os países gastam, para um sistemaigual em um país que gasta 900 dólaresper capita em saúde”, argumenta. Fernan-dez também destaca a desorganização dosinvestimentos e a falta de regulação. “Te-mos um problema estrutural, sem falar noaspecto demográfico, com o aumento da po-pulação mais velha, demandando mais re-cursos de saúde”, afirma. A emergência daSanta Casa é mais uma que atende peloSUS. Assim como as outras, as macas es-tão espalhadas por onde couberem. Com24 leitos, os profissionais do setor se dedi-cavam a 28 pacientes enquanto o chefe daemergência relatava os desafios diários.

Do lado de fora, a professora LilianServino, 47, acompanhada do pai que es-tá com câncer, aguardava havia mais dequatro horas pelo atendimento do idoso.Além disso, esperava que o laudo de umexame feito pelo pai fosse encontrado.“Ninguém sabe onde está.” Segundo ela,quando percebe que terá de ir a emergên-cia, sabe que será um dia perdido. “Fo-ram mais de dez vezes”, relata.

Os profissionais da saúde que atuamnas emergências também acabam sendovítimas do sistema. A exposição ao estres-se constante e a carga de trabalho eleva-da resulta em prejuízos para os trabalha-dores. “Tu trabalha num esquema de es-tresse constante, só vai trocando as tur-mas. Causa um burnout (esgotamento físi-co e mental) alto e sintomas nas pessoas.Isso repercute nos próprios pacientes. Éimpossível trabalhar nesse nível de es-tresse todos os dias e não ter repercus-são nos pacientes”, diz Fernandez.

POSTOS DE SAÚDE.O choro de Davi, de 2 anos e 4 meses,

entoava mais uma noite de espera prolon-gada por atendimento no Pronto Atendi-mento Lomba do Pinheiro, na EstradaJoão de Oliveira Remião, no bairro Lombado Pinheiro, na última semana. Acolhidono colo da mãe, a técnica em nutrição Fa-biana da Silva, de 37 anos, ele era apenasum dos usuários, entre jovens, adultos eidosos, que aguardavam no local. A suaimpaciência e insatisfação de estar naque-le espaço denunciavam com franqueza odesejo da maioria dos que dividiam ali ummomento de fragilidade na saúde.

Apesar do cobertor e as pantufas tenta-rem oferecer um pouco mais de conforto aDavi, o menino queria ir embora o mais rápi-do possível. Em meio ao choro, uma fraseera repetida com insistência: “Mãe, já aca-bou?”. A mãe tentava amenizar a insatisfa-ção do filho, mas nem Fabiana sabia quantotempo demoraria para que a noite no Pron-to Atendimento chegasse ao fim. No local,há serviços de Pediatria e Clínica Médica desituações de urgência e emergência, curati-vos, medicações injetáveis e nebulizações.

Davi começou a vomitar por voltadas 17h30min, logo depois de deixar aescola, e foi levado para a unidade. Às21h50min, já recebendo medicação in-travenosa, ainda não havia pista quejustificasse seus sintomas. Ele aguar-dava na área laranja, conforme classifi-cação de risco da Escala de Manches-ter, enquanto tinha o rosto acariciadopela mãe. Em alguns momentos Fabia-na permanecia em pé, depois sentavana cadeira, na tentativa de reduzir,sem sucesso, a angústia do filho. Paraela, a realidade do local não é nova.Ela já enfrentou longas horas de espe-ra. “Teve um dia que eu cheguei às 9he saí às 19h. Nesse dia, houve um pro-blema com um médico e ele teve quesair, daí ficou só um para atender to-dos, por isso demorou tanto”, explica.“Nas outras vezes é um pouco menosdemorado, mas sempre tem fila.”

Enquanto isso, na sala ao lado, to-das as cadeiras estavam ocupadas. An-siosos, com a pulseira no braço, cadaum esperava a sua vez pela consulta.Davi, no entanto, era o único quetransbordava a insatisfação. As irmãsCamila Antunes, de 28 anos, e AlineAntunes, de 34, ambas donas de casa,contam com a sorte. E quando se tra-ta de saúde, elas garantem que nãosão perseguidas pelo azar. Nascidasno bairro Bom Jesus, na zona Lesteda Capital, não lembram de terem bus-cado cuidados médicos em outro espa-ço para urgências que não fosse oPronto Atendimento Bom Jesus, queoferece consultas de urgência e emer-gência com Clínico Geral e Pediatra. Oestabelecimento funciona todos osdias da semana, incluindo feriados epontos facultativos.

Unidade de referência para a família,na última semana, mais uma vez, as ir-mãs, ambas mães, procuravam atendi-mento para as filhas durante a noite,pouco depois das 20h. Alice, de 1 ano e8 meses, filha de Camila, apresentavasintomas de gripe. O diagnóstico, no en-tanto, ainda não estava esclarecido. Énecessário, segundo a mãe, cerca dequatro horas de espera. “Depende de vá-rias coisas. Se estiver muito cheio, a gen-te espera mais do que isso. Se estiver va-zio, menos. Se for para fazer algum exa-me, aí é muito mais tempo”, conta.

A pequena Isabely, de 7 anos, filhade Aline, pediu para a mãe para ser le-vada ao estabelecimento de saúde. Comdiarreia há mais de uma semana, nãohouve alternativa caseira que afastasseos sintomas da menina, apesar dos cui-dados da mãe, que apostou em receitasde chás na busca pela cura. “Ela estácom a pulseira azul. Essa e a verde sãoas que mais demoram”, afirma Aline. Oatendimento no local é priorizado deacordo com a classificação de risco doProtocolo de Manchester, método queclassifica os doentes por cores, apóstriagem baseada em sintomas, de formaa representar a gravidade do quadro.

A espera pelo atendimento das fi-lhas, no entanto, não perturbava asmães. “A gente quase sempre tem sor-te”, confidencia Camila, que já chegoua permanecer no local por mais de seishoras. “Essa é a alternativa mais próxi-ma que temos e a que a gente conhe-ce”, diz. “Pelo menos conseguimos aten-dimento”, completa. “Quando está mui-to cheio mesmo, desistimos. Não dá pa-ra ficar por muito tempo com criança,porque pode ser pior. É um lugar quetem muitas pessoas doentes, todas nomesmo espaço”, explica Aline. Nessasocasiões, a receita das mães é voltarpara a casa e esperar.

O Pronto Atendimento Cruzeiro doSul é movimentado. O estabelecimento

A agricultora MariaBaumgratz, de

Riozinho, chegou emPorto Alegre às 6h

para levar filha Brenda,de 7 anos, para consul-

tar no Hospital Presi-dente Vargas

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9/7/2017 | CORREIO DO POVO +DOMINGO | 9

Page 2: Capital intermediários edeisolamento · diatria, saúde mental, odontologia, traumatologia, pequenos procedimen-tos cirúrgicos eradiologia. Funciona 24 horas por dia, assim como

oferece serviços de clínica médica, pe-diatria, saúde mental, odontologia,traumatologia, pequenos procedimen-tos cirúrgicos e radiologia. Funciona24 horas por dia, assim como a maio-ria dos serviços disponibilizados.

No “Postão”, como é conhecido, de-zenas de pessoas aguardam atendi-mento, algumas sentadas nas cadeirase muitas em pé. O cenário pode ser di-ferente conforme o horário, mas a pro-cura por atendimento, na maioria dasvezes, rende filas – e impaciência.

Na entrada da unidade, na rua Pro-fessor Manoel Lobato, no bairro SantaTereza, zona Sul de Porto Alegre, umaviatura da Guarda Municipal recepcio-na os pacientes. O serviço foi retoma-do depois de casos de assaltos e atéhomicídios serem registrados em fren-te ao estabelecimento. No local, seis vi-gias terceirizados são responsáveis pe-la segurança e o controle dos que en-tram e saem da unidade à noite.

Nos últimos dois meses, pelo menosdois assaltos marcaram a memória dequem trabalha no local. Em maio des-te ano, houve uma tentativa de assaltoa um dos vigias com uma faca. Em ju-nho, uma das armas utilizadas pelosvigilantes foi levada em novo assalto.O que eles não sabiam é que essa mes-ma arma retornaria como ferramentapara um novo ataque. Nesse último,no entanto, os vigias conseguiram re-cuperar a própria arma de trabalho.

Todo o cuidado é pouco para evitaruma nova ocorrência. Uma porta deferro, com pequenas aberturas decora-das por grades, que simulam peque-nas janelas, por onde é possível identi-ficar o rosto de quem está no outro la-do, separa a sala de espera do iníciodo atendimento médico. Foi atraves-sando essa porta que a aposentadaNoemia Pereira Ramos, de 76 anos,moradora do bairro Coronel AparícioBorges, conseguiu atendimento apóster um mal-estar em casa, protagoniza-do por tontura, dor na região da nucae no estômago. Os sintomas de pres-são alta e histórico de derrame aumen-taram o risco.

A idosa foi recebida sem grande es-pera, como conta o filho que a levouaté a unidade, o promotor de vendasAntônio Pereira Ramos, de 50 anos,por volta das 17h. Após aproximada-mente 20 minutos de deslocamento daresidência da mãe até o Pronto Atendi-mento, os primeiros procedimentos fo-ram realizados na chegada e Noemiapassou para uma outra sala para fa-zer um eletrocardiograma. Era neces-sário avaliar o coração. “Fiquei preo-cupado em deixar ela sozinha na ma-ca lá dentro, enquanto fazia o boletimaqui fora. Ela poderia cair e não tinhaninguém cuidando.”

Mãe de 12 filhos, a idosa sempre utili-zou o SUS e teve que cruzar caminhossinuosos. A expressão de dor em seurosto, acentuada pelos olhos escurosque eram apertados com força, pareciasuperar a apreensão dos que estavamdo outro lado, em uma longa esperapor atendimento. Dessa vez, a dor deestar do lado de dentro parecia pior doque a angústia dos que esperavam nolado de fora.

AMBULÂNCIAS.Quem passa pela praça Argentina,

próximo do complexo hospitalar daSanta Casa de Misericórdia, ou da pra-ça Major Joaquim de Queiroz, no bair-ro Santana, em Porto Alegre, encontramotoristas de ambulâncias, vans e ôni-bus de praticamente todo o Rio Grandedo Sul. No estacionamento dos veículosque fazem a chamada “ambulanciotera-

pia” ou “vanterapia” são contadas histó-rias sobre as viagens pelas rodovias gaú-chas e o drama vivido pelas pessoas quevem em busca de atendimento na Capital.

O termo “ambulancioterapia” — enca-minhamento de pacientes de ambulânciapara atendimento em hospitais de PortoAlegre — foi criado há pelo menos duasdécadas. No entorno da praça Major Joa-quim de Queiroz é possível encontrar veí-culos de Osório, Capão do Leão, MorroReuter, São Sebastião do Caí, São Ga-briel, Farroupilha, Rolante, Maquiné, Ta-vares, Riozinho, Bagé, Uruguaiana e Fon-toura Xavier. A cena se repete todos osdias nos hospitais do complexo da SantaCasa, São Lucas da PUCRS, Hospital deClínicas, Vila Nova, Instituto de Cardiolo-gia, Materno-Infantil Presidente Vargas edos hospitais Conceição, Criança Concei-ção, Cristo Redentor e Fêmina, do GrupoHospitalar Conceição.

Motorista há 28 anos da Prefeitura deCapão do Leão, Rubem Roberto Vitóriadisse que perdeu a conta de quantas pes-soas já trouxe para serem atendidas emPorto Alegre. “Não tem como não se en-volver porque vivenciamos o drama da po-pulação dentro de veículo. Acabo conhe-cendo o problema de cada um.”

Motorista de ambulância há cinco anosem Capão do Leão, Marco Antônio Carva-lho Pacheco, o Juca, afirmou que realizade duas a três viagens por semana. Elepercorre 261 quilômetros de Capão doLeão até Porto Alegre. “Lidamos com osofrimento das pessoas todos os dias. Asfamílias, muitas vezes, não tem dinheiropara realizar uma refeição. Pagamos o al-moço de uma mãe ou de uma criançacom a nossa diária.” Na companhia do en-fermeiro Rudimar Fagundes, Juca defen-de a criação de hospitais regionais paraterminar com a “ambulancioterapia”.“Com hospitais equipados no Interior, apopulação não precisaria realizar essesdeslocamentos até a Capital, que acabamsendo onerosos”, acrescentou. Irineu An-geli, motorista há 12 anos da prefeiturade Riozinho, diz que todos os dias trans-porta pacientes para consultar na Capi-tal. A cidade de 4,5 mil habitantes fica a120 quilômetros de Porto Alegre. “Saímosda cidade por volta das 4h30min e passa-mos por todos os hospitais de Porto Ale-gre”, destacou. O retorno para cidadesempre ocorre por volta das 13h.

No dia 3, a agricultora Maria Baum-gratz, de Riozinho, que estava na compa-nhia da filha Brenda, de 7 anos, chegouem Porto Alegre às 6h. Viajou 106 quilôme-tros até a Capital para que a filha pudesseconsultar com um pediatra no HospitalMaterno-Infantil Presidente Vargas. “Acor-dei às 3h30min e viajei com mais 17 pes-soas. Na minha cidade, não tem especiali-dades como otorrinolaringologia, neurolo-gia e pediatria que a minha filha precisa.”

Maria explicou que a outra filha, Rafae-la, 19 anos, tem epilepsia e também reali-za tratamento na Capital. “Tenho que dei-xar o meu trabalho na roça para trazeras meninas. Sem o sistema de ambulan-cioterapia não teria como custear os des-locamentos até Porto Alegre”, explicou.Maria e Brenda se alimentavam ontempela manhã com pão, mortadela, queijo eiogurte comprado em supermercado daregião. O marido não acompanhava a fa-mília porque também trabalha na agricul-tura, com o plantio de feijão, arroz, aipime batata. A família desembolsou R$ 10,00para comprar os alimentos. Maria e a fi-lha Brenda aguardavam numa van deRiozinho o término das consultas dos de-mais passageiros para retornar ao muni-cípio por volta das 13h.

Na frente do hospital Santa Clara, nocomplexo da Santa Casa, a dona de casaJanete Sabagnini, de Arvorezinha, cidadedistante 201 quilômetros da Capital, con-sultou com um dermatologista.

Ela disse que vem à cidade uma vezpor mês porque também faz tratamentocom um reumatologista. “Em Arvorezi-nha não temos atendimentos de casosmais complexos e os médicos nos encami-nham para Porto Alegre.” Janete deixouo Santa Clara por volta das 9h e aguarda-va o embarque na van da prefeitura às10h30min. Enfrentaria uma viagem dequatro horas. Ela tem uma filha que tam-bém se trata na Capital e deve voltar aPorto Alegre nos próximos dias.

Moradores de Sapiranga, distante 51quilômetros de Porto Alegre, o casal Jura-ci e Valdoir Carvalho, que estavam nacompanhia da filha Poliana, de 6 anos, pre-cisam do serviço da prefeitura. “Sem avan não teríamos como trazer nossa filhapara consultar no setor de dermatologiado Hospital da Criança Santo Antônio”, ex-plicou Juraci. Na consulta anterior da fi-lha, o casal não quis esperar até o meio-dia para retornar para casa e acabou de-sembolsando R$ 60,00 para chegar em Sa-piranga. Ele foram de táxi até a estaçãodo Trensurb. De trem seguiram até NovoHamburgo onde desembarcaram e pega-ram um táxi até Sapiranga. “Não temoscondições de a cada consulta desembolsaruma quantia dessas”, comentou Valdoir.

Já Wilma de Souza, de Sapiranga,acompanhou o neto Gustavo, 17 anos,que realiza tratamento da coluna no Hos-pital de Clínicas. “Estamos no circuito Sa-piranga/Porto Alegre há mais de cincoanos. Não temos condições de gastarcom transporte de ida e volta. O serviçoda ambulacioterapia é fundamental”, co-

1. Na frente do Hospitalde Clínicas, na tarde de

segunda-feira, aemergência atendia

115 pacientes mesmocom apenas 41 leitos.

“Convivemoscronicamente com a

superlotação”, afirma ogerente operacional da

emergência do HCPA,José Pedro Prates

2. No ProntoAtendimento Cruzeiro

do Sul, a aposentadaNoemia Pereira Ramos,

de 76 anos,moradora

do bairro CoronelAparício Borges,

conseguiu atendimentoapós ter tido um

mal-estar em casa

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mentou Wilma. Gustavo vem a cada trêsmeses a Porto Alegre para consultar comum especialista. Os dois gastam em mé-dia R$ 30,00 com alimentação. Já Terezi-nha Smaniotto, de Araricá, distante 65quilômetros da Capital, teve a consultacom um traumatologista cancelada nohospital Beneficência Portuguesa. “Pode-riam ter tido mais consideração e ter avi-sado sobre o cancelamento. Acordei4h30min pra vir para Porto Alegre.”

A RESPOSTA DOS GOVERNOS.

O secretário estadual da Saúde, JoãoGabbardo dos Reis, afirma que o cresci-mento das despesas é muito desproporcio-nal ao aumento das receitas na área daSaúde. “Nessa última década, o envelheci-mento da população foi um fator decisivo.Ao terem expectativa maior de vida, aspessoas envelhecem e precisam de maisatendimento, mais leitos de UTI, etc.” Se-gundo ele, o desenvolvimento tecnológicotambém influencia no maior uso dos servi-ços de saúde. “Pessoas que antes não so-breviviam, agora sobrevivem, mas aca-bam ficando dois meses na UTI, por exem-plo. Então a procura pelos leitos aumen-tou e os pacientes ficam bastante tempo.”

Conforme Gabbardo, o desemprego tam-bém teve reflexos no SUS. “Quem antes ti-nha convênio, acabou cancelando e indopara o SUS. Até podem fazer consultasparticulares, mas procedimentos maiscomplexos, que são mais caros, acabamsendo feitos no SUS e há sobrecarga.”Além disso, o secretário enfatiza que o

Rio Grande do Sul não cresceu como deve-ria nos serviços de emergência. “Não hou-ve aumento na oferta do serviço na pro-porção que a população passou a utilizare a nossa rede de atenção básica não con-segue dar conta. Temos que procurar au-mentar.” Desta forma, o secretário garan-te que a população poderia consultar semprecisar ir às emergências dos hospitais.

Em relação ao Hospital Parque Belém,Gabbardo garantiu que a secretaria está“bem encaminhada” para fazer um acor-do com o atual mantenedor. “Já temos in-teressados em assumir, mas agora preci-samos fazer o acordo, definir como ficamas dívidas, porque daqui pra frente seráum novo contrato,” Conforme o secretá-rio, se for possível definir isto em até 60dias, mais de 200 leitos serão disponibili-zados para a população de Porto Alegre.

O secretário diz ainda que não há su-perlotação por causa dos pacientes do In-terior. “O grande problema de Porto Ale-gre é a Região Metropolitana”, declarou.

O inverno, de acordo com Gabbardo,acaba registrando picos de atendimentopor conta, principalmente, das doençasrespiratórias. “O município tem condi-ções de contratar mais gente no inverno?Também gostariam de ter postos aber-tos, mas a contratação emergencial não éusual na Saúde, é difícil contratar médi-cos temporários”, afirmou. O secretárioainda relatou que a pasta realizou con-curso para 40 médicos reguladores quetrabalhariam no Samu. “Desses 40, ape-nas sete concursados tiverem interesse.Os outros 33 não quiseram ser contrata-

dos porque os salários não são atraen-tes”, lamentou Gabbardo, lembrando quehá uma dificuldade para aumentar a ofer-ta do serviço.

Para ele, há uma necessidade real deaumento no número de hospitais e tam-bém de postos de saúde que ofereçamatendimento até às 22h. “Se nós tivésse-mos condições, recursos para isso, seriaextremamente importante.” Gabbardoafirma que a prioridade para o Estado,neste momento, é a Segurança Pública.“A população entendeu que essa era aemergência do Estado e o Estado está res-pondendo na área da segurança”, decla-rou. Em relação à área da Saúde, Gabbar-do afirmou que é preciso ter “um poucode paciência”. “Quando a situação da se-gurança for solucionada, aí vamos preci-sar ter mais recursos para a Saúde, poiso Estado precisa colocar mais recursos.”

Outro ponto que preocupa os porto-ale-grenses é a espera para realização deexames. Pelo menos oito exames, comoultrassonografias variadas, registram filae demanda maior que a oferta em PortoAlegre. Em 16 tipos de exames, o pacien-te precisa esperar mais de 30 dias parafazer o procedimento. Conforme o secre-tário municipal da Saúde, Erno Har-zheim, a Pasta não deixa de mostrar arealidade. A lista de espera pelos exa-mes está no site da secretaria, paraquem quiser acompanhar. “Devemos colo-car no ar, em breve, o monitoramentodas portas das emergências, diariamen-te, inclusive com tempo médio de espera.Para que as pessoas possam escolher o

lugar que querem ir.”Segundo ele, com o objetivo de desa-

fogar as emergências dos hospitais,duas unidades de saúde têm atendi-mento até às 22h e a intenção da se-cretaria é ampliar o horário em, pelomenos, mais seis postos. “Já tivemos225 contratações autorizadas e conse-guimos efetivar cerca de 90 até o mo-mento. As outras, simplesmente peloprocesso burocrático, podem demorarmais uns dois meses”, explicou.

O presidente da Comissão de Saúdee Meio Ambiente da Assembleia Legis-lativa (CSMA), deputado Altemir Tor-telli, informou que o grupo formouuma frente com diversas entidades daárea para fazer um diagnóstico da cri-se da saúde no Rio Grande do Sul. “Es-tamos vendo que, ao mesmo tempoque os hospitais vão fechando e traba-lhadores da Saúde vão perdendo seusempregos, a população continua adoe-cendo e buscando os serviços. Os da-dos são assustadores, muitas pessoasnem são atendidas.”

De acordo com o deputado, a CSMAainda não teve informação sobre os in-vestimentos do governo na área da Saú-de no 1º quadrimestre deste ano. “Nãosabemos se os 12% garantidos pelaConstituição foram aplicados realmen-te.” Ele diz ainda que o Tribunal deContas do Estado já apontou irregulari-dades em relação aos repasses. “Os gas-tos com o IPE não devem ser computa-dos do orçamento da saúde. É um des-vio do uso dos recursos para a saúde.”

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9/7/2017 | CORREIO DO POVO +DOMINGO | 11