cap. iv. do livro a herança colonial da américa latina

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FACEPE STANLEY J. STEIN BARBARA H. STEIN A HERANÇA COLONIAL DA AMÉRICA LATINA Ensaios de Dependência Econômica Tradução de José Fernandes Dias ADQUIRIDO COM RECURSOS 1 PROJETO APQ-0081-7 C5/07 Prof. George F Cabral de Souza i Departamento de Histeria UFPE PAZ E TERRA Coleção ESTUDOS LATINO-AMERICANOS Vol. 4 Ficha catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ) Stein, Stanley J. A Herança Colonial da América Latina: ensaios de dependência econômica por I Stanley J. Stein é Barba- ra 1-1. Stein; tradução de José Fernandes Dias.3.aEd.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 158 p. 21 cm (Estudos Latino-Americanos, v. 4) Do original em inglês: The colonial heritage of Latin America: essays on economic dependence in perspective. Bibliografia 1. América Latina - Condições econômicas. 2. Amé- rica Latina - Condições sociais. 3. América Latina - História - Período colonial. I. Stein, Barbara 1-1. II. Título 111. Série. CDD - 330.9801 309.11801 908.01 CDU - 338(8=6)"15/18" 308(8=6)"15/18" 9(8=6)"15/18" S833h c 77-0478 E E EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial Antonio Candido Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

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Page 1: Cap. IV. do livro a herança colonial da América Latina

FACEPE

STANLEY J. STEIN BARBARA H. STEIN

A HERANÇA COLONIAL DA AMÉRICA LATINA

Ensaios de Dependência Econômica

Tradução de José Fernandes Dias

ADQUIRIDO COM RECURSOS 1

PROJETO APQ-0081-7 C5/07 Prof. George F Cabral de Souza i

Departamento de Histeria UFPE

PAZ E TERRA

Coleção ESTUDOS LATINO-AMERICANOS Vol. 4

Ficha catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Stein, Stanley J. A Herança Colonial da América Latina: ensaios de

dependência econômica por I Stanley J. Stein é Barba-ra 1-1. Stein; tradução de José Fernandes Dias.3.aEd.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 158 p. 21 cm (Estudos Latino-Americanos, v. 4)

Do original em inglês: The colonial heritage of Latin America: essays on economic dependence in perspective.

Bibliografia

1. América Latina - Condições econômicas. 2. Amé-rica Latina - Condições sociais. 3. América Latina -História - Período colonial. I. Stein, Barbara 1-1. II. Título 111. Série.

CDD - 330.9801 309.11801 908.01

CDU - 338(8=6)"15/18" 308(8=6)"15/18" 9(8=6)"15/18"

S833h

c 77-0478

E E

EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial Antonio Candido Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

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capítulo IV

O século XVIII

A Espanha, embora se ache tão bem situada que possa abrir uni comércio opulento para seus cidadãos, encontra - se, contudo, em tal estado de deterioração que, se possui o título de propriedade, não se beneficia do que é produzido.''

"Ordenanzas nuevas... para el comercio y trafico de Ias Indias...", 1708

"O comércio mundial floresce às custas dos povos da América e de seu imenso trabalho; as riquezas que ex-traem do seio da terra, entretanto, não permanecem em seu poder. -

Memória encaminhada ao vice-rei do México, 1723

Ao iniciar-se o século XVIII, as colônias americanas e suas me-trópoles ibéricas achavam-se intimamente vinculadas através de uma relação que servia muito mais aos interesses metropolitanos do que às dependências coloniais. Essa vinculação, não obstante, encontrava-se enfraquecida pela quebra sofrida pelos controles administrativos e pela economia imperial. A resolução portuguesa (da crise) consistiu no reconhecimento de seu papel de dependência face à Inglaterra, obten-do, em troca, a segurança do império. A Espanha, contudo, recusou-se a aceitar esse tipo de solução; os cidadãos espanhóis de maior influên-cia acreditavam que o império americano ainda apresentava possibili-dades que permitissem a recuperação, via restauração, do controle e crescimento econômico nas colônias.

A crise generalizada enfrentada pela Espanha à época da morte de Carlos II e os 13 anos de guerra interna e externa que se seguiram a

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esse fato levaram a uma aparência de estabilidade - poder-se-ia afir-mar, à estabilidade da exaustão -, através da assinatura do tratado de Utrecht. De acordo com as disposições desse tratado, à Espanha - des-

pojada de suas dependências européias vestigiais e da posse de Gibral-tar - assegurava-se a posse do império americano. O reconhecimento, em termos práticos, do controle colonial foi o estabelecimento de pri-vilégios econômicos a favor da Inglaterra, isto é, o fornecimento de es-cravos (asiento) e a venda direta de um determinado volume de merca-dorias. À França foi concedido direito de acesso à economia colonial pela tolerância tácita à presença de comerciantes franceses em solo es-panhol e à possibilidade de cooperação econômica e política contra a Inglaterra.

Lançaram-se assim as bases da política colonial espanhola no sé-culo XVIII, freqüentemente obscurecida pela procrastinação, recuos e transigência. Em seu conjunto, essa politica caracterizava-se por uma "nacionalização" da economia interna e colonial. A sua implementa-ção exigia, em primeiro lugar, a recuperação das concessões comer-ciais feitas às nações européias ao longo da segunda metade do século XVII, confirmadas (e, no caso inglês, ampliadas) pelo tratado de Utrecht, isto é, término do asiento, introdução direta de mercadorias e a eliminação dos canais de contrabando em Gibraltar, Cadiz e as colô-nias. Ademais, de forma a satisfazer as pressões européias em termos de demanda da prata, gêneros alimentícios e matérias-primas extraí-das das colônias e utilizadas na indústria, o governo espanhol passou a dar mais atenção à economia colonial, até então negligenciada (por exemplo, as atividades concentradas em torno de Buenos Aires, Cara-cas e Havana). Visando, além disso, enfrentar as exigências de impor-tação (internas e coloniais), essa política levava em consideração o fomento à agricultura e à manufatura metropolitanas, desenvolvendo a autonomia econômica via maximização do pacto colonial. Por fim, a "retomada" de controle, por parte dos entrepostos da Andaluzia, sobre todos os fluxos comerciais coloniais, "nacionalizando-se" os empresários através da remoção dos obstáculos-interpostos à transfor-mação dos espanhóis de Cadiz de fatores e agentes de empresas estran-geiras (fornecedores de capital, mercadorias e seguro) em comercian-tes independentes. Esse processo implicaria o afastamento completo das influentes firmas comerciais francesas e inglesas estabelecidas em Cadiz.

A implementação desse nacionalismo proto-econômico visa-va gradualmente a revigorar as estruturas então existentes do Estado, economia e sociedade. A interação dos interesses internos e externos não permitiria, em realidade, outros objetivos, considerando-se uma nação subdesenvolvida cuja elite não questionava a sanidade e a viabi-lidade da tradição monárquica, da aristocracia, do privilégio. Essa política, tomada em conjunto com seus métodos de implementação,

ajusta-se à designação geral de "restauração" (então atribuída) ou, como expressaríamos em terminologia de nossos dias, de "moderniza-ção defensiva" ou "revisão defensiva". Qualquer que seja a denomina-ção escolhida, é necessário tornar claro que,não se trata de uma "revo-lução burguesa" na Espanha.

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"A guerra torna-se, por vezes, necessária à atividade co-mercial e, assim sendo, a sabedoria de uma nação não con-siste tanto na preservação da paz mas, sim, na escolha da ocasião oportuna para desfrutar a guerra...''

A Supplement to Britain's Mistakes in the Commencement and Conduct of the Pre-

sent War...,1740

Toda a energia da junta tem sido dirigida para a remoção de obstáculos, de molde a permitir que os espanhóis pos-sam novamente tornar-se verdadeiros comerciantes, de forma semelhante ao que fizeram seus ancestrais, esco-lhendo os canais pelos quais os estrangeiros adquiriram o despótico controle do comércio e navegação que oprime e nos arruinará por fim se não for bloqueado.-

E. Larruga, "História de la real y general junta de comercio, moneda y minas...",

1780 (apr.)

A política francesa dos Bourbon objetivava tornar a Espanha e suas colônias aliadas no processo de desenvolvimento da economia do pais e em seu conflito com a Inglaterra, correndo, contudo, sério risco de entrar em conflito com a complexa teia de interesses criados sob o domínio dos I-I absburgo. Devemos destacar, de início, um dos grupos econômicos mais influentes a partir de 1700, os oligopolistas comer-ciais de Cadiz, agentes de interesses estrangeiros na maioria dos casos. Esses comerciantes achavam-se vinculados, por interesses ou laços fa-miliares, pela posição social ou pela ideologia, aos centros comerciais coloniais de Veracruz e cidade do México, de Lima e Manila e, por in-teresses comuns, à ação política dos senhores da Andaluzia. Levando-se em consideração a compartimentalização da Espanha, sua econo-mia agrária, suas exportações de matérias-primas e, acima de tudo, sua dependência à exploração colonial, os comerciantes de Cadiz co-mandavam, de seu consulado ou guilda, o comércio colonial, o princi-pal setor de atividades do país. A manipulação dos interesses colo-niais, mercantis, burocráticos, fiscais e eclesiásticos, todos centraliza-dos em Cadiz após o eclipse de Sevilha, constituía o bastião do status

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quo que o serviço público francês (e sua contrapartida espanhola, sob Felipe V) desejava alterar.

No período anterior à guerra de sucessão espanhola, os lideres políticos madrilenhos, voltados para a política exterior ou para a po-litica econômica, preocupavam-se com o destino das colônias na América. Decidiu-se que os Bourbon e seus administradores (treinados sob Colbert) poderiam levar a cabo reformas na econo-

mia interna da Espanha e no comércio colonial - questões acerca das quais a elite espanhola permaneceu dividida ao longo do século XVIII.

Poder-se-ia estabelecer a hipótese de que a essência da política espa-nhola sob os Bourbon constituía-se no abandono do comércio "passi-vo", substituindo-o pelo que hoje denominamos nacionalismo econô-

mico via substituição de importações, isto é, via protecionismo. Tal política seria reformista e renovadora. Em ordem de prioridade, o pri-meiro passo dizia respeito à criação de um novo corpo de administra-dores, melhor treinados e doutrinados segundo a concepção de servir ao Estado e nào à localidade ou à região e cuja atuação (na metrópole e nas colônias) poderia melhorar a qualidade da liderança utilizada. Em segundo lugar, aparecia a eliminação dos privilégios comerciais concedidos pela Espanha à Inglaterra, à luz do tratado de Utrecht e que permitiram à segunda acesso ao império, ou seja, o direito de in-troduzir, em Veracruz, Havana, Cartagena e Buenos Aires, um núme-ro anual de escravos africanos e uma determinada quantidade de ma-nufaturas, medidas que privilegiavam a fonte do contrabando em es-cala incontrolável. Em terceiro lugar, os novos encarregados das deci-

sões políticas reconheceram que dever-se-ia ampliar o fluxo de merca-dorias de Cadiz para as colônias até então mantidas em condições arti-ficiais de suboferta de bens de consumo.

Esse conjunto de medidas políticas afetando o mundo colonial es-

panhol consumia, em realidade, apenas parte do espectro de mudança visualizado pelos administradores empregados pelo governo de Felipe V. A posição tradicional da Espanha dos Bourbon seria dar ênfase à vaga de "reformas" na metrópole. Sabemos que os impulsos voltados para a mudança ou o ajustamento interligavam-se; contudo, se tiver-mos que assinalar a prioridade no processo, diremos que os estímulos ligados ao comércio eram mais fortes. O crescimento econômico da Espanha do século XVIII dependia das possibilidades, a curto e longo prazos, da economia colonial, conforme insistiam os economistas polí-ticos (proyectistas) de Ustariz e Campillo, de Viloa a Ward.

A sombria literatura relacionada ao atraso económico espanhol produziu um espírito de indagação e experimentação, ao aproximar-se o fim do século XVII, especialmente na formação da Junta de Comér-cio. Fora de dúvida, a divisão interna das elites regionais espanholas à época da morte de Carlos II refletia dois grandes grupos ou facções (hesitaríamos em chamá-los partidos): um deles buscava preservar as

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estruturas que vinculavam a metrópole às colônias em uma teia de atraso; o outro acreditava no fortalecimento desses laços e na transfe-

rência, para a Espanha, da maior parte dos benefícios decorrenteS da exploração das colônias americanas. Este segundo grupo voltava-se

para a iniciativa francesa e dos seus representantes na Espanha sob Felipe, em busca de análise e de implementação da mudança direcionada

para os estratos superiores da sociedade. Para a elite espanhola, que questionava a viabilidade e utilidade de algumas práticas tradicionais, os novos burocratas simbolizavam a mudança dentro das estruturas do passado. A aristocracia passaria a desempenhar um papel secundá-rio, mas - e isto era o fundamental - seria preservada. Tanto os membros das elites conservadoras como das realistas concordavam em um ponto: as distinções aristocráticas deveriam ser mantidas.

As modificações visualizadas ou levadas a cabo para a Espanha metropolitana sugerem um objetivo de unificação - política e econô-

mica. As áreas periféricas deveriam ser vinculadas à Espanha central. A Catalunha, despojada de diversos direitos regionais, e Aragão fo-ram assim incorporados, sendo que à primeira foi concedido o direito de comerciar com a América através do porto de Cadiz. Essa tentativa de incorporar as províncias bascas não se concretizou, porque os privi-légios bascos abrigavam uma intricada teia de instituições e práticas que incluíam não apenas as principais casas comerciais de Bilbao (dis postas a aceitar a incorporação somente se, em troca, recebessem o direito ao acesso direto ao império, nos termos concedidos a Cadiz) mas, igualmente, toda uma rede capilar de contrabando levando às fronteiras de Castela e Aragão. Para a remoção dos enclaves regionais, os novos administradores (armados de amplos poderes fiscais e milita-res) introduziram a racionalização na arrecadação de impostos e na re-dução das barreiras impostas ao comércio inter-regional, isto é, pedá-gios e impostos locais que isolavam Cadiz e não permitiam a entrada de mercadorias produzidas na Espanha e exportadas para as colônias.

A eliminação dessas barreiras poderia facilitar o fluxo, para os portos periféricos espanhóis, de manufaturas produzidas em fábricas subsi-diadas pelo governo (segundo a inspiração francesa) e direcionadas para a produção de lãs e sedas de boa qualidade, porcelana e tapeça-ria. Por fim, a criação de companhias privilegiadas por cartas patentes completava esse programa, estimulando a produção para a exporta-ção, via Cadiz, para as colônias americanas. Essas companhias - cor-porações regionais como as de Barcelona, Zaragoza e G uipuzcoa - re-ceberam concessões voltadas para setores especiais do mercado colo-nial, assegurando-se destarte o seu sucesso empresarial, já que somen-te nesses mercados coloniais "protegidos" as manufaturas espanholas poderiam lograr a distribuição com lucros.

Das considerações acima percebemos claramente que os adminis-tradores e economistas políticos da Espanha dos Bourbon estavam

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longe de desempenhar um rapei inovador. Ao contrário, enfatizavam a tradição, a cautela, a circunspecção. Podemos citar, come exemplo ilustrativo, o fato de que o trabalho de Campillo, Nuevo Sistema, de feição levemente critica, teve sua publicação retardada por diversas décadas. Não desejamos, por certo, depreciar o interesse de uma mino-ria que huscava integrar um território em uma nação, reduzindo privi-légios regionais, de classe e de empresa, facilitando o movimento de manufaturas, ampliando a produtividade agrícola via incentivos (con-cedidos aos proprietários fundiários ou ao campesinato semifeudal), estabelecendo unidades têxteis, criando uma rede de estradas e canais nacionais e, finalmente, estendendo o fluxo de produtos espanhóis até o território colonial. O que nos chama em verdade a atenção é a pre-servação do pensamento mágico invariavelmente interligado ao medo a qualquer inovação. Os conflitos de interesses eram convenientemente disfarçados sob a pragmática retórica dos pronunciamentos reais.

Qual a razão — poder-se-ia argüir — do hiato existente entre o pen-samento mágico e o medo a qualquer inovação? O que originou a im-pressão de efêmeros propósitos (e não sólidas realizações), marca ca-racterística da atuação espanhola até 1763? A esquizofrenia política resultou do confronto entre a necessidade de reajustes e o receio de ir contra interesses poderosos, o estabelecimento eclesiástico, a nobreza fundiária, as corporações privilegiadas (por exemplo, as Cinco Gran-des Guildas de Madri) ou a aliança entre os dois grupos de pressão mais influentes — os proprietários fundiários da Andaluzia e os comer-ciantes de Cadiz — que, tenazmente, discutiam, pressionavam, subor-navam e, se necessário, ameaçavam, sempre objetivando preservar seus sagrados privilégios. "Sagrados privilégios" na medida em que es-ses comerciantes, em seu consulado, voltavam-se para o passado longínquo em busca de marcos indicadores para o presente, a legisla-ção de Carlos V e Felipe II, as "sagradas leis das índias" e sua Recopi-lación, sempre mencionadas em seus memoriais.

A partir da segunda década do século XVIII, quando a adminis-tração de Felipe V sancionou a transferência final do monopólio co-mercial de Sevilha para Cadiz, os comerciantes desta última — quase sempre secundados por seus colegas da cidade do México e de Lima —intentaram manter inalterada uma espécie de morgadio (mayorazgo) comercial, herança de quase dois séculos de conquista e exploração das colônias americanas. De início, os comerciantes de Cadiz conspi-raram contra a administração (renovadora, embora altamente insegu-ra) dos Bourbon, forçando os administradores reais, na segunda déca-da do século XVIII, a retrocederem em sua tentativa de fazer retornar o Consulado e a Casa de Contratación para Sevilha, dificultando assim as operações de contrabando.

Os interesses dessa guilda transatlântica, os interesses na maximi-zação do lucro por parte de algumas dezenas de importadores, expor-

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tadores e magnatas da indústria naval de Cadiz e de um número ligei-ramente menor (embora provavelmente de maior influência, os comer-ciantes das guildas de Lima e cidade do México) nunca foram deixa-dos de lado e se consubstanciaram no controle de todas as mercado-rias veiculadas pelo comércio transatlântico. Esses comerciantes eram, em verdade, internacionalistas, na medida em que manipulavam as mercadorias de toda a Europa, da França, Inglaterra, Holanda, os portos hanseáticos, e mesmo os espanhóis, sempre que os preços e as demais condições oferecessem atrativos suficientes.

Se o governo de Madri ocasionalmente criasse obstáculos às prá-ticas comerciais geradoras de lucros para os comerciantes e fornecedo-res de Cadiz e, em contrapartida, não fornecesse estímulos para a península, como um todo, e sim criticasse a sua mentalidade de lojistas (economia de hodegón), os agentes de Madri, representantes dos inte-resses comerciais de Cadiz e México, prontamente ofereciam emprésti-mos a um governo sempre carente de fundos (de forma semelhante ao procedimento adotado pelos monopolistas de Sevilha ao longo dos dois séculos anteriores); ofereciam, igualmente, suborno a burocratas empobrecidos. Se, por outro lado, alguns funcionários bem-inten-cionados preparassem estudos críticos quanto aos efeitos nacio-nais dos privilégios concedidos a Cadiz, existiriam sempre fórmulas de evitar a publicação dos textos, senão para sempre, ao menos por mui-tas décadas. Servindo com fidelidade a seus próprios interesses, os co-merciantes de Cadiz e seus associados asseguravam estar servindo com fidelidade aos interesses da coroa.

Os grupos de interesses da Andaluzia eram certamente os mais significativos em termos de extensão e profundidade de envolvimento, quer na metrópole quer nas áreas coloniais. A complexa estrutura con-trolada no século XVIII por Cadiz estendia-se de Madri aos núcleos comerciais e administrativos na América, até o nível da atuação do corregimiento e da alcaldia mayor. Essa estrutura, contudo, não era mo-nopólio exclusivo de tais grupos. A teia de interesses nas colônias, composta pela administração civil, Igreja e comerciantes, em todas as regiões e em todos os níveis, tendia a absorver quaisquer pressões vol-tadas para a mudança, quer sob a forma de criação de padrões mais elevados para os corregidores, de insistência em torno de visitas mais constantes dos curas às paróquias, de exigência de viagens mais fre-qüentes de navios de abastecimento para as colônias, ou da abertura de todos os portos espanhóis ao comércio direto com as Américas. Sabia-se, igualmente bem, que o suborno oferecido aos altos funcioná-rios governamentais poderia evitar a discussão de reajustes necessários em assuntos administrativos e econômicos e bloquear a execução de medidas tendentes a gerar mudanças, se as autoridades de Madri deci-dissem aplicá-las às colônias. Em resumo: até a ascensão de Carlos III (1759) quase nada havia ocorrido na Espanha em termos de efetiva

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transformação das estruturas e práticas vigentes. Inexistem razões que

possam levar à pressuposição de que as condições da Espanha, uma á-rea atrasada, periférica e dependente da Europa ocidental, houvessem

exercido qualquer tipo de pressão sobre o governo de Madri, de molde a transformar os sistemas administrativo e comercial coloniais. A ação espanhola na América decorria do estímulo externo: a ameaça de ces-sação do comércio transatlântico, a presença de comerciantes ingleses operando a partir da Jamaica e inundando os mercados coloniais, ofe-recendo (abaixo de seus preços reais) as manufaturas espanholas, de-

sorganizando os sistemas de frotas e mercados e ameaçando (após 1740) ignorar por completo o entreposto de Cadiz. Cerca de 1750, as autoridades de Madri começaram a reconhecer as evidências de agra-vamento do problema colonial: se necessitaram de quase 50 anos (após Utrecht), inquietando-se com as mudanças a serem efetuadas em um sistema comercial e administrativo obviamente defasado das necessi-dades reais, levaram somente três anos - após a conquista inglesa de Havana e Maniliu (simultaneamente em 1762) e a ameaça sobre Vera-cruz - para deslanchar uma série de mudanças há muito tempo visuali-zadas e retardadas peta tenaz ação de grupos entrincheirados nas elites espanholas, na metrópole e nas colônias.

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[ Referindo-se à possível inovação, que o governo espanhol poderia excluir os demais países de seu comércio e navega-ção, desenvolver a indústria e os recursos de capital As nações européias que preservam um certo equilíbrio entre si e se interessam em que nenhum país se expanda além de seus próprios limites ou tente conquistar qualquer das pos-sessões espanholas, satisfeitas com o desenvolvimento de seu comércio e a remessa de mercadorias para esses rei-nos; face a essa inovação, essas nações alterariam seus sis-temas e passariam a buscar o comércio ilegal com as pos-sessões espanholas na América, de armas na mão, talvez intentando conquistar algumas ou incitar as outras à rebe-lião, o que forçaria a Espanha a sustentar uma pesada guerra sem aliados; por essas razões é preferível que a Es-panha... fomente seu comércio, navegação e agricultura, permanecendo satisfeita, ao menos por ora, com a prote-ção às indústrias de linho e lã. -

"Observaciones... al Marques de Sono-

ra...", 1778

Virtualmente toda a teoria desta modesta ciência ( a economia política I concentra-se, em nosso caso, na elimi-nação de obstáculos, abertura de comunicações e facili-

tação às exportações. E, contudo, tão grande foi a ênfase depositada por nosso sistema ( a política comercial espa-nhola .1, em termos de desenvolvimento isolado e de portas

fechadas, que somente uma vez por ano e, posteriormente, em determinadas ocasiões permitidas, esse sistema foi aberto para as demais nações, a estreita porta controlada pelos comerciantes e por estes mensurada em suas opera-ções. Nessa escuridão passamos quase três séculos, o que nós impediu de perceber o atraso da metrópole, a ausência da indústria e a imensa transformação produzida pelo tempo na situação mundial, política e científica."

Francisco Arango Y Parrefio, Expedien- te... sobre los medios... para sacar la agri- cultura y comércio de esta ysla del apuro en

que se hailan, 1808

A perda de Manila e Havana para os ingleses (agosto de 1762) e o controle inglês sobre esta última até julho de 1763 chocaram os espa-nhóis da metrópole e os súditos coloniais. Considerada fortaleza inex-pugnável na preservação da rota das frotas encarregadas do transporte de prata, Havana - há muito considerada essencial à manutenção do controle espanhol sobre a América - passou a constituir unia área a partir de onde poderiam ser desfechados ataques sobre Veracruz e, a

partir desta, sobre o México. A perda temporária chamou os espa-nhóis à razão, constatando-se então que até 1762 apenas 15 navios to-cavam anualmente o porto de Havana, ao passo que, durante os II meses de controle inglês, mais de 700 navios mercantes despejaram manufaturas metropolitanas, gêneros alimentícios, madeira, animais e utensílios de ferro das colônias norte-americanas, e escravos.

A rapidez com que algumas mudanças foram implementadas (e outras visualizadas) na metrópole e nas colônias leva-nos à conclusão de que a queda de Havana, após débil resistência, gerou pressões bas-tante fortes. Assinale-se que a ascensão de Carlos 111 deu origem a profundas alterações no quadro vigente na Espanha. Ao contrário de seus predecessores, o novo rei amadurecera fora da corte madrilenha, longe das pressões que aparentemente tornaram monarcas como Feli-

pe II incapazes de tomadas independentes de decisões. Como rei de Nápoles, Carlos reunira um corpo de administradores capazes, dispos-tos a interferir nos privilégios e tradições e amargurados pela interven-ção direta inglesa que buscava manter Nápoles subserviente aos seus in-teresses mercantis. Ao chegar a Madri, Carlos trazia a intenção de proceder a uma revisão das instituições espanholas, de sua liderança e atuação; achava-se, por outro lado, imbuído de propósitos de um na-cionalismo proto-econômico. Trouxe consigo administradores napoli-tanos de comprovada competência e dedicação, entre eles Esquilache

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Na Espanha, Carlos encontrou, igualmente, um corpo de colaborado-res entre a baixa nobreza, que havia ascendido dos postos inferiores no exército ou que havia freqüentado as pequenas universidades em bus-ca de carreira dentro do direito. Distinguia-se, pois, pelo talento, não pelos nomes de família. Sendo impossível à época, na Espanha ou em qualquer outro país europeu, a ascensão fora do sistema de patronato, os homens de talento que cercavam Carlos possuíam excelentes víncu-los. Constituíam, de certa forma, a primeira geração de administrado-res espanhóis que, uma vez ocupando posições de poder, predis-puseram-se a assimilar e adaptar, em termos das necessidades espanholas, os ajustamentos propostos nas sociedades tradicionais e então em voga na Rússia, Prússia e, especialmente, França.

Não devemos tomá-los por imitadores acríticos; sua posição era intensamente nacionalista e estavam longe de adotar uma perspectiva irreal no tocante às pressões a serem exercidas sobre os estratos da so-ciedade espanhola que detinham o poder e a riqueza, de molde a levá-los à promoção das transformações administrativas desejadas. O notó-rio caráter "popular" do levante de Madri e de outras cidades espa-nholas de 1766, ostensivamente causado pelos novos regulamentos que prescreviam o corte das capas e baniam os chapéus de abas largas (su-postamente preferidos pelos espanhóis), constituiu - como Carlos e Esquilache logo perceberam - um aviso para que não se procedesse a reajustes radicais. Carlos, monarca absoluto, abandonou Madri. E os homens de talento, não pertencentes à nobreza e por esta chamados ao poder, lado a lado com os poderosos, sabiam que poderiam persuadir os grupos de interesses a aceitar apenas os reajustes necessários; em verdade, esses indivíduos não foram alçados ao poder com o fito de demolir os privilégios. Destarte, tais ajustes foram levados a efeito na metrópole, mas de forma lenta e hesitante. As transformações no qua-dro colonial poderiam ser levadas a cabo com maior intensidade, mas sem quaisquer exageros. As tentativas de reduzir, sob Carlos, o papel dos interesses ingleses na metrópole e no império colonial não foram isoladas. No início de 1755, Pombal (em Portugal) dera início ao esta-belecimento de companhias comerciais e reformas administrativas para o Brasil, apoiara a empresa industrial na metrópole dire-cionando-a para o mercado colonial - todo esse elenco de medidas objetivando um nacionalismo proto-econômico que permitisse a exe-cução de políticas consideradas hostis pelos interesses ingleses na Península Ibérica e no império colonial. As nações ibéricas, satélites das economias européias ocidentais mais avançadas, pareciam dispos-tas a reerguer-se através de suas possessões americanas.

Pode-se encarar o reinado de Carlos III como o apogeu dos três séculos de colonialismo espanhol na América. O crescimento demo-gráfico, o desenvolvimento de áreas há muito negligenciadas, agora voltadas para a produção de açúcar, cacau, tabaco e couro cru, a ex-

traordinária expansão da produção anual das minas de prata do Méxi-co - todos estes fatores atraíram as atenções da Inglaterra e da França e obrigaram os espanhóis à revisão das políticas coloniais caso desejas-sem evitar a perda do comércio colonial (e, posteriormente, das pró-prias colônias) para seus competidores da Europa ocidental. Cautelo samente, passou-se à reforma da estrutura do comércio colonial, ini-cialmente na área do Caribe (1765), com a abertura de diversos portos espanhóis ao contato direto com os portos caribeanos sem parada obrigatória em Cadiz; a seguir, permitiu-se que 13 portos espanhóis comerciassem diretamente com os maiores portos coloniais (1778), exceção de Veracruz e La Guayra (Venezuela), por fim incluí-dos em 1789. Esses reduzidos ajustes, aos quais se denominou política do "livre comércio", representavam em verdade apenas uma liberalização do comércio dentro dos quadros imperiais! Permitia-se um limitado comércio intercolonial e, mesmo assim, res-trito unicamente a produtos coloniais, não se admitindo a reexpor-tação de importações européias. O sistema de frotas escoltadas por comboios foi gradualmente posto de lado e finalmente eliminado (1798). O objetivo dessas mudanças era a melhoria de contato entre a metrópole e as colônias, visando reduzir o contrabando pela amplia-ção da oferta, e elevando a percentagem de manufaturas espanholas no comércio com as colônias. Ao primeiro banco nacional espanhol, o Banco de San Carlos, foi concedido o monopólio das transferências de prata e ouro para a Europa ocidental, para a Holanda, França e Ingla-terra após a chegada, aos portos espanhóis, dos metais em espécie e lingotes.Por volta de 1789,os administradores espanhóis constataram um aumento significativo no valor e volume do comércio colonial, nas remessas feitas pelas colônias em termos de lucros e excedentes e no que muitos consideravam um importante crescimento percentual no volume de produtos espanhóis saídos das lojas, fábricas e destilarias do país - lãs, papel, utensílios de ferro, vinhos e conhaques. Essa am-pliação no fluxo de mercadorias e metais gerou, em contrapartida, a ampliação das receitas governamentais, obtidas a partir de Impostos al-fandegários e sobre vendas, e monopólios de tabaco e mercúrio. Mais importante ainda: o volume da prata produzida na América e extraída principalmente do centro mineiro mexicano de Guanajuato elevou-se auspiciosamente. Ao iniciar-se o século XIX, o México produzia 66% de toda a oferta de prata mundial; o conjunto das colônias espanholas na América contribuía com 90% da produção mundial.

O testemunho (espontâneo) de cidadãos e os relatórios de oficiais enviados à metrópole para a revisão das condições coloniais, os buro-cratas madrilenhos sob Carlos III, reconheciam os mecanismos ilegais (mas tolerados na prática) através dos quais apreciável volume de ren-da colonial "escoava" -para os contrabandistas ingleses, franceses e ho-landeses. Afirmava-se que as estruturas da administração colonial ne-cessitavam de descentralização e, naturalniente, administradores com-

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petentes, eficientes e honestos. Imaginaram-se, assim, novas e mais flexíveis divisões territoriais, indicando-se, ao mesmo tempo ; adminis-tradores (geralmente retirados dos corpos do funcionalismo público) para os postos-chave nos vice-reinos. O receio da agressão inglesa contra os portos coloniais constituiu motivo relevante na indicação de militares competentes. Mais importante que tudo isso, entretanto, era a crença de que a dedicação ao serviço do Estado, o rigor no treina-mento e na disciplina, os padrões de honra e a presença militar assegu-rariam a execução dos planos coloniais da metrópole e a redução da cumplicidade administrativa no contrabando. No reinado de Carlos III os membros da nobreza designavam-se tarefas e responsabilidades condizentes com as possibilidades de efetivo desempenho. Não obs-tante, no momento mesmo em que os grupos de elite colonial cres-ciam, Madri não apresentava indícios, em sua política colonial, de qualificar aqueles nascidos na América para a execução dessa mesma política colonial.

Concluímos, a partir do nacionalismo proto-económico posto em prática pelos países ibéricos na segunda metade do século XVIII, que os encarregados do processo decisório pretendiam obter o controle in-tegral sobre a economia colonial de molde a efetuar uma política de neutralidade entre ingleses e franceses. Reconheciam, por seu turno, que séculos de colonialismo haviam carreado imensas rendas para as elites metropolitanas mas não haviam gerado recursos internos produ-tivos. Em pleno século XVIII a Espanha continuava tão dependente como antes das economias dominantes da Europa ocidental. Reconhe-ciam, igualmente, que a utilização integral dos recursos humanos e na-turais existentes nas colônias ensejaria a perpetuação das estruturas tradicionais de privilégio e poder. Voltaram-se, destarte, para a Fran-ça, nela buscando assistência, já que a monarquia, aristocracia e bur-guesia francesas compartilhavam a mesma perspectiva em termos de sociedade e Estado, de privilégio herdado e porque a cooperação franco-espanhola poderia sustar a tomada, pelos ingleses, de outras áreas no império americano. Para os franceses essa cooperação era va-liosa, pois permitiria o acesso de seus fabricantes, comerciantes e fi-nanciadores ao império espanhol. Os espanhóis aspiravam a uma coo-peração que gerasse o florescimento de uma Espanha independente e respeitada; os franceses, por seu lado, acreditavam que a assistência porventura prestada à Espanha afastaria a Inglaterra e permitiria a obtenção, das colônias e da metrópole, de prata e matérias-primas para a indústria e de consumidores para seus produtos. Esperavam, além disso, manter a Espanha subdesenvolvida mas satisfeita. Para os ingleses, a cooperação franco-espanhola constituía unicamente um estímulo à atuação ao contrabando agressivo, via possessões no Cari-be, e, na América do Sul, via Rio de Janeiro e sul do Brasil até o Rio da Prata

A independência, não obstante, dependia te ainda depende) de uma economia nacional capaz . de produzir, em quantidade suficiente, bens de capital e - no caso dos poderes coloniais do século XVIII -sustentar as comunicações marítimas em todas as ocasiões. À época em que se inicia a Revolução Francesa, as políticas anteriormente des-lanchadas por Pombal haviam mudado de rumo através da atuação de seus sucessores; os interesses vinculados á mineração (e outros, asso-ciados a estes) no Brasil central haviam quase originado a rebelião. Na Espanha, apesar da euforia oficial, os realistas alimentavam poucas ilusões acerca das potencialidades de ajustes. Uma política gradual para o mundo colonial não enfraquecera o papel dominante desempe-nhado por Cadiz e seus aliados face aos oligopólios da cidade do Mé-xico, Lima e Manila. Cifra superior a 85% do intercâmbio colonial era canalizada através do porto de Cadiz, onde as facilidades relativas a embarque, seguro, armazenagem e comunicações continuavam supe-riores às oferecidas por qualquer outro porto espanhol. Os oligopolis-tas de Cadiz e seus associados ultramarinos opuseram-se ao intercâm-bio internacional, bloquearam a expansão da construção náutica colo-nial, optaram por lidar com seus fornecedores tradicionais na Inglater-ra e na França, ou ainda na Silésia, em lugar de produtores espa-nhóis não competitivos. Em resumo, preferiram monopolizar o fluxo de mercadorias européias ocidentais através de Cadiz, resistindo às tentativas dos funcionários madrilenhos voltadas para o fomento da economia das áreas periféricas do país, abrindo-lhes o acesso aos mer-cados coloniais americanos. A própria estrutura do oligopólio em Ca-diz e nas colônias, e a política de restrições à oferta e aos preços, servi-ram de estimulo ao contrabando. Em Portugal e Espanha, por volta de 1780, raros administradores acreditavam ser possível igualar a atuação econômica inglesa, caracterizada por uma indústria náutica mais efi-ciente, taxas de seguro mais baratas, e artigos de algodão de preços mais reduzidos e que estimulavam uma demanda insaciável junto aos mercados espanhol e português e, especialmente, em suas colônias tro-picais e subtropicais. As duas metrópoles e suas colônias afiguravam-se aos olhos dos realistas como fechadas em um esquema de dependên-cia econômica já bastante antigo e alguns analistas sentiam-se atraídos pelas teorias da fisiocracia, tendendo assim a racionalizar o papel da península e dos impérios ultramarinos americanos como produtores -para os mercados europeus - de prata e ouro, açúcar, cacau, tabaco, café, peles, madeira tintorial e algodão. Os reduzidos frutos desse tipo de política de ajustamento eram talvez inevitáveis. Respondendo uni-camente quando e onde as circunstâncias obrigassem a formulação de transformações, adotando como novas instituições já obsoletas em ou-tras nações (por exemplo, companhias comerciais privilegiadas, fábri-cas reais), ou estendendo o raio de ação das antigas instituições já em funcionamento na metrópole (as guildas mercantis na Espanha e nas colônias), tentando renovar através da multiplicação de concessões e privilégios para um diminuto grupo (em lugar de ampliar e oferecer

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oportunidades àqueles de talento), os governantes ibéricos simples-mente permitiram a proliferação de estruturas tradicionais na socieda-de e na economia. Sustentaram, com o auxílio de precárias escoras, o "edifício gótico" que não se constituía, em realidade, na melhor forma de prepará-lo para enfrentar as grandes crises.

O colapso dessa política de ajustamento, o enfraquecimento do interesse pek, mudança orientada, a evaporação de um espírito de ino-vação (embora restrita) foram acelerados pela Revolução Francesa. Ao longo do século XVIII a França representara uma monarquia ca-tólica capacitada a crescer sem os levantes e motins que a Inglaterra protestante conhecera durante o século anterior. A anarquia na Fran-ça era interpretada pelos cautelosos gradualistas espanhóis como sinal inequívoco de que mesmo as mudanças orientadas eram perigosas. E, embora o movimento voltado para a mudança continuasse até cerca de 1790, o final do século assistiu a um renascimento na defesa das tra-dições espanholas. A defesa dessas estruturas tradicionais à luz do re-gicídio, a anarquia e movimentação das massas na França levaram a Es-panha a romper, em 1793, a aliança estabelecida com aquele país e unir-se, por um breve lapso de tempo, às forças conservadoras e anti-republicanas inglesas, objetivando esmagar a revolução na França. Aos ingleses não interessava a renovação espanhola, mas sim negar as-sistência à França; preferiram, assim, enfraquecer a Espanha, abrindo o caminho à penetração nas colônias espanholas. Não lhes interessava de fato qualquer revitalização da marinha espanhola e foi exatamente a compreensão dessas atitudes que levou a Espanha a renovar, três anos mais tarde, a aliança com a França, permanecendo comprimida entre as duas forças em luta até a chegada do colapso, em 1808, com a invasão das forças francesas. Nesse ano, sob a proteção inglesa, a rea-leza portuguesa abandonara o continente e buscara a segurança junto à colônia brasileira.

Era inevitável que a Espanha e Portugal pusessem de lado a polí-tica de ajustamentos cautelosos após a Revolução Francesa. Uma política de concessões graduais às pressões coloniais e ao contrabando inglês não poderia, contudo, ser revertida tão prontamente. As colô-nias de mineração - como o México e o Peru - poderiam sobreviver à guerra e à eliminação da marinha espanhola das águas atlânticas, já que os metais preciosos obviamente não deteriorariam armazenados. O mesmo não ocorreria, entretanto, para os produtos fornecidos pelas regiões cujas plantações e estâncias haviam-se expandido ao longo do século XVIII em resposta aos estímulos da demanda da Europa oci-dental. Para estes produtos a questão da armazenagem para embar-que, cessada a guerra, era extremamente difícil: o açúcar, tabaco, ca-cau e peles deterioravam-se rapidamente e os escravos que os produ-ziam necessitavam ser alimentados com artigos importados dos Esta-dos Unidos (peixe e carne salgada, farinha) e substituídos por novos

escravos trazidos por navios ingleses e norte-americanos. Em áreas como Havana, Caracas e Buenos Aires, as guildas comerciais (ao con-trário das de Veracruz, Lima e cidade do México) encontravam-se fre-qüentemente divididas entre os interesses agropecuários e os represen-tantes da aliança com Cadiz. Tornava-se difícil à administração colo-nial espanhola forçá-los a aceitar uma política de autocontenção co-mercial a partir do momento em que os ingleses cortaram as comuni-cações com a Europa, e especialmente sabendo-se que muitos empre-sários coloniais participavam avidamente do comércio ilegal com a In-glaterra. As concessões gradualmente feitas em resposta às pressões econômicas coloniais serviram, em realidade, para aumentar os pa-drões de dependência face à Europa ocidental e, após 1800, face à In-glaterra. Os espanhóis haviam encorajado (mas com relutância) ape-nas uma quantidade mínima de intercâmbio comercial inter-regional. Em síntese, a política de compartimentalização das colônias, do reco-nhecimento tardio das possibilidades da atividade agropecuária ex-portadora, da excessiva atenção concedida à mineração acabaram por exacerbar as pressões das colônias entre 1802 e 1808, entre Amiens e a invasão francesa.

Por último não se deve subestimar o sentimento de independência existente entre a elite criolla após a bem-sucedida rebelião contra a do-minação inglesa na América do Norte e as possibilidades de controle político criollo inerente à ideologia da Revolução Francesa. Sob Na-poleão, a França parecia conseguir reconciliar a soberania popular, a monarquia, a escravidão e o tráfico negreiro. A elite colonial espanho-la aprendera rapidamente a partir da fuga da família real portuguesa para o Brasil e da imediata abertura dos portos brasileiros aos navios das nações amigas e aliadas. Entrando em colapso a autoridade da monarquia espanhola - a partir da abdicação dos Bourbon -, a elite colonial mostrou sinais de impaciência em torno do controle político efetivo, dentro ou fora de uma estrutura imperial. Essa elite percebia, por fim, que uma política de tardios ajustamentos constituía um pro-cesso irreversível. Poderia ser condenado ou mesmo posto de lado por algum tempo mas, inevitavelmente, acabaria por romper todas as bar-reiras. Pelo menos assim se pensava entre 1808 e 1810.

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Mas existe um ponto que exige toda a nossa atenção, e esse ponto diz respeito à conservação de nossas Améri-cas.... A que autoridade devem obedecer? Que província deve enviar as ordens necessárias ao seu governo, para a nomeação e direção de seus administradores e outros pon-tos indispensáveis à manutenção de sua dependência?... cada colônia estabelecerá seu governo independente... sua

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inclinação natural para a independência pode muito bem resultar nisso... . Essa consideração basta para demonstrar que o estabelecimento de uma autoridade suprema e de uma representação nacional não são somente indispensá-veis mas, igualmente, urgentes.

Junta de Valência, 16 de julho de 1808

A junta central _I declarou considerar os domínios ameri-canos como partes integrais e essenciais da monarquia es-panhola; por seu turno, a América não percebeu, nem po-deria perceber, a partir de tal declaração, a fonte dos di-reitos que deveria ter sempre desfrutado e que não lhe po-deriam ter sido negados sem injustiça; em vez disso, hl: os americanos ,j consideraram-na como uma solene confissão do depotismo pelo qual haviam sido até então tiranizados.

Junta de Caracas à Regência, 3 de maio de 1810

A igualdade de direitos concedida aos americanos não si-ginifica que passarão a desfrutar todos aqueles desfruta-dos pelos espanhóis da península...

Não é verdade que dentro da própria metrópole algumas províncias gozem de liberdade e muitas outras não?... a igualdade estabelecida não é absoluta... Uma proposta desse género_ acabaria com o que sobrou do comércio da Espanha metropolitana.

Consulado de Cadiz às Cortes, 7 de junho de 1811

O período de 22 meses que começa em novembro de 1807 e se estende até setembro de 1810 constituiu, talvez, a fase mais decisiva na história da América ibérica desde a conquista. Contemporâneos dos fatos ocorridos a essa época, muitos dos que viviam em Paris e Lon-dres, Lisboa e Madri, cidade do México e Havana, Caracas, Rio de Ja-neiro e Buenos Aires reconheceram esse fato imediatamente. Não era mais possível ocorrer qualquer mudança dinástica de maior enverga-dura (com todas as necessárias implicações em torno dos grupos de pressão) sem que a mesma desencadeasse repercussões no mundo co-lonial. A população e os recursos da América ibérica que, igualmente, respondiam aos estímulos (e, por seu próprio turno, estimulavam) do crescimento econômico europeu ao longo do século XVIII não eram mais essenciais apenas às economias metropolitanas (subdesenvolvi-das) de Portugal e Espanha; passavam a ser também essenciais aos dois grandes blocos econômicos em competição pela hegemonia da Europa ocidental, isto é, o liderado pela Inglaterra e o capitaneado pela França. A Inglaterra necessitava desesperadamente do acesso à

prata mexicana; necessitava, igualmente, de peles e algodão para sua produção industrial e desejava o acesso direto às centenas de milha-res de consumidores no império ibérico na América. A esfera de co-prosperidade francesa, imposta à Europa como o sistema colonial, so-mente servia para aumentar a impaciência inglesa com a política colo-nial luso-espanhola de exclusão dos estrangeiros de qualquer modali-dade de participação direta. Os comerciantes, fabricantes e financia-dores franceses,conjuntamente com os encarregados do processo deci-sório, esperavam que Napoleão assegurasse esse acesso ao império ibero-americano.

O efetivo bloqueio inglês sobre a península e o avanço das tropas francesas em direção a Portugal e Andaluzia ameaçavam cortar irre-paravelmente os vínculos que uniam a península à América. Essas pressões acabaram por reduzir a frangalhos o modus vivendi anterior-mente estabelecido com a França e forçaram a aliança com a Inglater-ra. Lembremos, contudo, que as dúvidas acerca da resposta das elites coloniais às decisões políticas oriundas de Lisboa e Madri constituíam um pesadelo para aqueles, na metrópole, encarregados de lidar com a crise. O equilíbrio, nas metrópoles, entre aqueles dispostos e não dis-postos a fazer concessões aos interesses americanos e às colônias. Pior que tudo isso, porém, as elites coloniais - ricas, poderosas, afetadas pelo fluxo de informações entre a França, Inglaterra e Estados Unidos - mostravam-se cada vez mais dispostas a considerar possíveis alterna-tivas.

Passados 100 anos da assinatura do tratado de Utrecht, os pontos focais da América ibérica não se achavam mais limitados às áreas de exportação de prata (México e Peru). Os líderes políticos lisboetas e madrilenhos passaram a levar em consideração os interesses dos ex-portadores de produtos coloniais agropecuários. Por volta de no-vembro de 1807, os portugueses estavam conscientes do fato de que a aceitação da ocupação francesa originaria a intervenção inglesa no Brasil. Os ingleses já haviam proporcionado aos espanhóis um ante-gosto do que poderia ser sua política agressiva se a Espanha insistisse em permanecer aliada da França. Em 1797, as tropas inglesas ocupa-ram Trinidad; em 1806-7, tentaram por duas vezes ocupar Buenos Ai-res; e, por fim, em 1807 espalharam rumores de que uma força anfíbia aprestava-se na Irlanda para desencadear operações contra o México.

É destino dos territórios ou estados coloniais, com suas econo-mias dependentes ou orientadas para o exterior, que enquanto as pres-sões internas freqüentemente aproximam-se de um ponto de ruptura, o estímulo decisivo provém do exterior. As tensões que caracterizavam os repetidos confrontos entre ingleses e franceses haviam, em 1807, in-duzido Napolêao a ordenar a ocupação de Portugal, o confisco das

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propriedades inglesas e, acima de tudo, a prisão de um vasto número de comerciantes portugueses no espaçoso porto de Lisboa. A realeza portuguesa e sua corte correram para os navios ancorados no porto e, escoltados pelos navios de guerra ingleses, fugiram para o Rio de Ja-neiro. Em janeiro de 1808, a realeza portuguesa rompeu com o sistema colonial, abrindo todos os portos brasileiros ao acesso direto às nações amigas ou neutras. Essa providência permitiria, de fato, a exploração inglesa direta sobre o comércio do Brasil.

Para as autoridades coloniais espanholas, as notícias relativas ao exílio da realeza portuguesa e a primazia econômica concedida aos in-gleses eram assustadoras. O acesso direto dos ingleses ao comércio do Brasil levaria, inescapavelmente, à infiltração da Inglaterra na bacia do Rio da Prata, núcleo florescente da atividade de contrabando. Ampliou-se, em grande escala, em todos os pontos da América espa-nhola, a pressão para que se eliminasse um sistema de intercâmbio co-lonial irracional, baseado no monopólio peninsular e no contrabando. Qual seria o impacto decorrente da abertura do Brasil ao comércio di-reto? A remoção da sede da dinastia para a América era de fundamen-tal importância para as lideranças políticas e para os interesses comer-ciais, não apenas porque pressagiaria a superação do entreposto co-mercial peninsular mas, igualmente, porque significava a remoção de to-dos os poderes legislativos, executivos, judiciários e de nomeação para a América, contingência há muito encarada como catastrófica para a Espanha.

Então, entre março e maio de 1808 os Bourbon desapareceram do vértice do governo, concretizando-se o que os burocratas espanhóis sempre haviam temido: o colapso da autoridade central, a rebelião, a dispersão das Espanhas em regiões competitivas entre si e, finalmente, a possibilidade de que as áreas coloniais americanas seguissem o mes-mo caminho das Espanhas em direção à administração local. Mais as-sustadora ainda era a possibilidade de que o estabelecimento de juntas autoconstituídas nas colônias poderia levar, em face à ausência de qualquer administração central, ao estabelecimento e tomada de deci-sões econômicas desastrosas para a economia metropolitana.

Para as elites criollas situadas nos diversos pontos de pressão che-gara finalmente o momento da verdade. Conforme nos sugere a recen-te história do colonialismo, os múltiplos vínculos, materiais e psicoló-gicos, de dependência entre colônia e poder imperial não são destruí-dos com facilidade, embora já se possam encontrar bastante atenua-dos. A presença dos tradicionalistas na vida colonial — militares, ecle-siásticos, burocratas e comerciantes espanhóis — fiava-se nos traços tão freqüentemente enfatizados de parentesco, linguagem e religião (que vinculavam os espanhóis metropolitanos e os da colônia) para conseguir deter o movimento de separação das colônias da metrópole européia.

Esses indivíduos acreditavam, de fato, que o vínculo fundamental era o direito de conquista e o direito de dispor dos recursos coloniais. Preocupavam-se com o fato de que a mais suave forma de liberdade comercial ampliaria a divisão de interesses comerciais divergentes. Para muitos criollos, o sistema imperial significava mais do que simples exploração: permitia-lhes compartilhar com os espanhóis nas colônias o controle sobre a força de trabalho, a riqueza, a renda, o prestígio e o poder. Prefeririam, destarte, aguardar que a me-trópole se dispusesse a efetuar os necessários reajustes no sistema, para gratificar os grupos de pressão criollos e para tentar consertar al-gumas partes sem alterar os elementos estruturais fundamentais que permitiam a manutenção do privilégio e da exploração.

A decisão de separar as colônias da metrópole, sugerida por tais inibições, não se concretizou imediatamente; constituiu-se, em realida-de, em um processo de lento desdobramento, o produto dos sucessivos fatos ocorridos na Espanha e na América. Os criollos foram lentamente percebendo que as desejadas mudanças na vida colonial lhes seriam negadas pelas novas autoridades espanholas. O primeiro grupo políti-co a reivindicar a liderança na metrópole, a Junta de - Sevilha (maio-setembro de 1808), logo revelou sua compreensão da realidade colo-nial apossando-se, unilateralmente, do controle sobre as colônias e mantendo inalterado o sistema de intercâmbio comercial com aquelas. Visando dissuadir os criollos de qualquer modalidade de ação direta, via formação de juntas locais ou congressos, Sevilha enviou para Ha-vana, cidade do México e Caracas (verão de 1808) diversos agentes com instruções de efetuar a prisão dos líderes coloniais que tenciona-vam oferecer às elites criollas a formação pacífica de juntas. Somerue-los, capitão-geral de Cuba, ficou a um triz da deposição. Iturrigaray, no México, acabou deposto por um grupo de conspiradores recruta-dos a partir da comunidade comercial espanhola na cidade do México, sendo enviado para a prisão em Cadiz sob acusação de traição. Em Caracas os principais criollos que advogavam a formação de uma jun-ta foram presos em novembro de 1808; um juiz honorário da audiência foi embarcado para a Espanha para julgamento. Para muitos criollos, essa demonstração de autoridade, sob a forma de força bruta, foi ins-trutiva e disciplinadora.

Sevilha representava os interesses agrícolas e comerciais da Anda-luzia interessados na preservação do império colonial na América. Sé-culos de contatos com as colônias, deinvestimento e participação no comércio, minas e propriedades agrícolas, de emprego no serviço go-vernamental e da Igreja, de dependência às pensões pagas pelo tesouro colonial — tudo isto agora estava ameaçado de ruir. Os tradiciona-listas espanhóis — na metrópole e nas colônias — voltavam-se para a Junta de Sevilha e seus vínculos com Cadiz em busca da manu-tenção do status quo. Não obstante, grupos mais perceptivos e áreas

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menos privilegiadas da península voltaram-se para a Junta Central (que tomou o lugar da Junta de Sevilha em setembro de 1808), que re-presentava uma forma de interesse nacional sobre o regional e (para os criollos/ parecia mais disposta a se curvar à lei da necessidade colonial, especificamente, a modificar o sistema de comércio colonial. Por volta da metade de 1809, após um período de vacilação inicial, a Junta Cen-trai parecia pronta a considerar uma política geral de abertura dos portos coloniais com limitado contato direto com nações amigas e neutras em embarcações espanholas.

Essa disposição da Junta Central em aceitar a possibilidade de re-visão do sistema de intercâmbio, em seguida à sua recusa em manter as prerrogativas coloniais da Junta de Sevilha, e o crescente antagonis-mo com a Junta de Cadiz a respeito de questões financeiras e comer-ciais constituíram fatores de importância e que levaram, por fim, à sua dissolução. Os ansiosos criollos americanos ficaram chocados por esse colapso final e pela substituição da junta por uma regência, que, fugin-do para Cadiz (a última área não ocupada da Espanha), logo passou a ser dominada pela junta da cidade, representante dos interesses dos membros das guildas comerciais. Na América colonial, a paciência e 'as expectativas dos criollos chegaram ao fim e se constituíram juntas revolucionárias em nome do processo de autonomia (Caracas, abril de 1809; Buenos Aires, maio), ao mesmo tempo em que uma insurreição de massas irrompia no interior do México, junto ao centro minerador de Guanajuato (setembro).

Começava a se desenvolver a longa e sangrenta luta que perdura-ria por mais de uma década, freqüentemente com conotações de guer-ra civil. Muitos americanos haviam percebido que um sistema injusto somente poderia ser transformado com o recurso à derrubada violenta das estruturas existentes e que, por outro lado, a modernização defen-siva apenas contribuía para a preservação de uma sociedade e econo-mia tradicionais, agora intoleráveis.

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... As perversas e ambiciosas idéias de homens obscuros e desprezíveis f na América J que, incapazes de obter, por sua posição, as virtudes de que carecem, esperavam melho-rar sua condição as expensas do solo infeliz que mancha-ram com seus crimes. -

Comerciantes de Cadiz, Memoria sobre las operaciones de la Comisión de Reempla-zos, 1832

"Ninguém ousa distingui-las 1 castas J. Essa informa-

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ção seria odiosa e, se a executássemos com rigor, des-cobriríamos nas boas famílias manchas negras apagadas pelo tempo, resultando daí a ocorrência de infindáveis ca-sos escandalosos em nossas cortes..."

Padrón de Texcoco, 1753

"Os criollos e os mestiços formam, por. sua união, número e propriedades, a força principal e a parte mais respeitável dos colonos espanhóis. Por necessitarem manter alguns in-tere.vses e aliviarem algumas injustiças, é provável que, ocorrendo dissensões civis, optem por uma forma de ação conjunta, quer contra os indígenas, quer contra os euro-peus. -

Edinburgh Review, 1810

A revolução na América ocorreu em 1810 porque a elite criolla fi-nalmente proporcionou a liderança que as castas e os estratos ainda mais inferiores e mais oprimidos da sociedade colonial há muito es-peravam. Aqueles que analisam o processo de desenvolvimento econô-mico e mudança social em um contexto histórico percebem com clare-za que os sistemas sociais aparentam possuir extraordinários poderes de coesão, flexibilidade e adaptação. A manutenção da coesão nas es-truturas sociais coloniais da América Latina, ao longo de três séculos, decorreu do não-aparecimento de qualquer sistema alternativo viável. A fidelidade à Espanha, santificada pela injunção religiosa, serviu de argamassa à estrutura da sociedade, economia e Estado coloniais. O princípio da hierarquia - os grupos sociais (ocupando posições supe-riores e inferiores) vinculados às metrópoles - foi aceito, já que satisfa-zia aos interesses e aspirações de uma elite que, efetivamente, possuía o monopólio da força para assegurar a sua preservação.

No momento em que parte para o rompimento dos controles metropolitanos, a elite colonial encontra aliados naturais nos mesti-ços, mulatos e castas em geral. As massas indígenas foram cautelosa-mente manobradas; embora reconhecessem a exploração sofrida den-tro dos quadros do sistema colonial, nunca haviam podido encontrar expressão efetiva para sua amargura e revolta. Os líderes criollos te-miam, agora, as massas, que freqüentemente irrompiam com violência (quer no meio urbano, quer no rural) e que racionalizavam a repressão e exploração de que eram vitimas através do mito de sua inferioridade. É fora de dúvida que alguns setores da elite colonial acreditavam que as massas indígenas poderiam permanecer inertes em caso de rebelião ou, se inteligentemente mobilizadas, ser controladas e utilizadas como fator adicional na eliminação dos punhados de burocratas e comercian-tes espanhóis. O apoio das castas fortaleceu a posição da elite e assegu-rou auxílio no controle sobre as massas indígenas. Com o apoio dessas

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possivelmente mais bloqueadas pelas imposições estabelecidas pela hierarquia social espanhola em suas restrições à "ascensão" e à atividade econômica -, alguns setores da elite provavelmente visuali-zaram a possibilidade de uma transição pacífica para a independência. Nesse processo de aliança com as castas, cooptaram um grupo social re-duzido mas influente, cujo papel fora ampliado pela expansão e di- versificação da economia colonial do século XVIII e pelo crescimento demográfico

Podemos encontrar na América Latina desse século a transforma- ção das bases mais antigas da hierarquia, propriedade fundiária e cor- porações coloniais em algo que se aproximava das estruturas de classes econômicas baseadas na riqueza e na renda. As castas pareciam haver crescido proporcionalmente mais depressa que os demais grupos so-ciais, e os indivíduos de pele mais clara, membros dessas castas, ascen-diam ao grupo que agora denominamos espanhóis americanos. Em síntese, a "ascensão" tornou-se mais fácil e mais ampliada. Aceitava-se a presença das castas naquelas milícias coloniais onde predominas-sem oficiais criollos. Por seu turno, o amplo e crescente grupo interme-diário de mestiços e mulatos espalhava-se sobre as fazendas e as comu-nidades indígenas, ocupando as funções (em processo de expansão) exigidas por uma economia diversificada. Esses indivíduos ressentiam o estigma social imposto por um regime colonial à base de suas origens sociais "inferiores", adotando com freqüência a prática do suborno aos padres - para que registrassem seus filhos como espanhóis, e não como mulatos ou mestiços (ainda que de pele clara). (Uma prática al-ternativa consistia na alteração, posterior, dos registros paroquiais.) Os funcionários europeus, ao findar-se o século XVIII, reclamavam da dificuldade do registro de indivíduos na categoria de castas para fins de arrecadação de tributos. A essas mesmas castas não podia ser nega-do o acesso às guildas de artesãos ou, sequer, a prática da atividade ar-tesanal fora das corporações. Tornaram-se, destarte, tapeceiros, dis-pondo de lojas próprias para a venda de seus produtos; tornaram-se, ademais, lojistas e comerciantes nômades; passaram a fazer parte, em grande número, da Igreja e não deixaram, sequer, de buscar os esca-lões inferiores da burocracia. Nas áreas coloniais caracterizadas pela intensa importação de escravos, o número de negros e mulatos livres crescia proporcionalmente. Não se pode concluir daí que o preconcei-to racial declinara: simplesmente, tornara-se muito difícil a manuten-ção do status tomando-se por base unicamente a cor da pele e a ascen-dência. Em certa medida, podemos afirmar que o número e diversida-de das castas tendia a criar uma nova base para a hierarquia, a rique-za, ao findar-se o período colonial. Aqueles que rompessem o estatuto da escravidão ou que abandonassem as comunidades ou enclaves indí-genas (ou de ameríndios) passavam a constituir um setor médio habili-tado a sobreviver unicamente na busca impiedosa dos próprios inte-

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resses. O ladino *, o mestiço, o negro livre tornaram-se, em muitos ca-sos, exploradores mais impiedosos de seus inferiores do que a própria elite branca. Se esse processo adquiria contornos evidentes antes das guerras da independência. tornou-se ainda mais claro após esse período.

Se a principal herança da sociedade colonial foi a degradação e o conflito social, que pressupostos fundamentam a afirmação (freqüen-temente expressa) de que espanhóis e portugueses dispunham de uma política para os negros e indígenas mais humana e mais tolerante do que a posta em prática pelos europeus ocidentais não-católicos no continente americano ? É claro que encontramos eclesiásticos sensí-veis, inteligentes e obstinados na vida colonial, capazes de perceber os aspectos destruidores da cultura, brutalizantes e de exploração do con-tato cultural e do imperialismo ao longo do século XVI: um desses ho-mens foi Las Casas. Deve-se, contudo, recordar que outros clérigos, que legaram à posteridade relatos etnográficos detalhados concernen-tes à história social, política e religiosa dos povos americanos conquis-tados, estudaram as principais instituições e valores dos povos amerín-dios, de molde a tornar a ordem colonial duradoura, objetivos, aliás, de dois contemporâneos de Las Casas - Landa e Sahagun.

O colonialismo ibérico não logrou exterminar os povos domina-dos; teve, pois, que aceitar os povos resultantes da miscigenação, tole-rando um certo grau de alforria. Ainda assim, o governo colonial não se movia em direção à mudança, à integração mas, sim, à separação (bastando examinar-se os sistemas tributários, o acesso aos postos mi-litares e políticos, a Igreja). A limitada integração social e tolerância racial constituíam subprodutos gerados por fatores especiais, e, em particular, a carência de mão-de-obra livre para as ocupações intersti-ciais. Havendo poucos europeus para o preenchimento dessas posi-ções, a sociedade colonial foi compelida a fornecer os braços necessá-rios, o que ajuda a esclarecer a razão do número de mestiços e mulatos aceitos em determinados níveis sociais, em determinadas funções. Em realidade, o rígido controle sobre o acesso às posições sociais e ocupa-cionais elevadas permitia a absorção de alguns recém-chegados.

O legado social preeminente foi, destarte, a degradação da força de trabalho, indígena ou negra, em todos os pontos da América Lati-na, significado duradouro da escravidão por dívidas e de escravos ne-gros considerados como bens móveis. O fato de que, ocasionalmente, alguns membros dos grupos mistos fossem incorporados à elite diri-gente ao longo do período colonial ou, por outro lado, se distinguis-sem durante as lutas pela independência não constitui argumento de realce em termos de integração racial, quer na sociedade colonial, quer

" Indígena (ou escravo) que já falava o espanhol (ou português), tinha noções da reli gião cristã e sabia desempenhar funções domésticas e trabalhos no campo. (N.T.)

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na pós-colonial. Expressar esse tipo de convicção equivale a colocar a atividade sexual fortuita ao nível da paternidade planejada e conside-rar o crescimento da população mestiça ou mulata como índice digno de confiança na análise da integração e igualdade raciais. Podemos ar-güir, ao contrário, que o rigor das barreiras impostas à mobilidade social - barreiras de nascimento, cor e privação econômica, na Améri-ca Latina colonial e pós-colonial - permitiu à elite absorver uma per-centagem bastante reduzida de grupos mistos agressivos, preservando dessa forma a essência da estratificação social. Essa modalidade de ab-sorção significava que os novos membros aceitavam os valores e aspi-rações sociais do grupo: em sua luta por atingir posições mais eleva-das, acabaram por' perder contato com seus grupos de origem, afastando-se, concomitantemente, das posições de liderança na bata-lha pela melhoria das condições de vida de vastas camadas de indiví-duos empobrecidos e analfabetos.

Em verdade, é importante frisar que os aspectos sociais do colo-nialismo não podem ser separados de sua matriz econômica, e o cerne dessa matriz era constituído pelo privilégio em termos de acesso à pro-priedade e ocupação, da propriedade das minas, das grandes fazendas, das estâncias de criação de gado, do comércio e da burocracia. Uma sociedade estratificada e hierarquizada significava que apenas um re-duzido grupo, interligado pelos laços de casamento e parentesco, con. trolava a riqueza e a renda. O fracasso - na diversificação da economia colonial, por seu turno, indicava as limitações impostas às oportunida-des econômicas. Às massas restava, como única possibilidade, o traba-lho no campo ou o papel de proletariado urbano. Aqueles que ocupavam-se dos serviços mais degradados - os negros escravos e os escravizados por dívidas - eram estigmatizados como seres inferiores. A racionalização servia de esteio à inferioridade. Se os indígenas eram ignorantes, supersticiosos, dóceis, carentes de inteligência e iniciativa, isso se devia ao fato de serem indígenas e não se tratava de qualquer decorrência ou produto social - assim raciocinava a elite. Racionaliza-ção semelhante era empregada na manutenção da escravidão negra: a cristandade salvara-os do barbarismo e das guerras tribais, sendo inú-teis quaisquer esforços de educar indivíduos congenitamente atrasados. A herança colonial de degradacão social e preconceito racial veio à tona no século XIX sob a forma de agudo pessimismo racial, sob a crença de que apenas a imigração de brancos e europeus via coloniza-ção poderia fornecer a mão-de-obra capaz de transformar efetivamen-te a América Latina.

A realidade social costuma, não obstante, provar que as raciona-lizações formuladas pelo status quo são inteiramente inadequadas. Co-meçamos agora a perceber que grande parte da intranqüilidade social latino-americana ao longo do século passado nada mais foi que a con-tinuação dos conflitos em torno do acesso à propriedade e ocupação

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que, esboçados no século XVIII, explodiram nas lutas pela indepen-dência e acabaram sendo suprimidos pela elite após 1824. Assistimos hoje ao retorno das longas lutas em torno de reivindicações sociais, lu-tas e reivindicações enraizadas profundamente no passado colonial.

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