cap 11 linguÍstica cognitiva duque e costa

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DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012. -133- 11. CONSTRUÇÕES: CAPTURANDO A ESTABILIDADE Construções – pares de forma e significado – têm sido a base do maior avanço no estudo da gramática desde os antigos Estoicos. (GOLDBERG, 2006, p. 4) Neste capítulo, pretendemos demonstrar que, para cada integração conceptual, há uma integração de formas linguísticas. Em capítulos anteriores, postulamos que padrões de compressão recorrentes tendem a se tornarem convencionais. Esses padrões de compressão estruturam redes de integração organizadas em pareamentos “forma/conceito” específicos. De acordo com Torrent (2005, p. 96), “a forma linguística não oferece todas as informações sobre o evento ao qual se relaciona; ela apenas marca os caminhos que devem ser descobertos pelos seres humanos envolvidos no processo comunicativo” durante a descompressão da forma e a realização das integrações conceptuais necessárias ao entendimento. A seguir apresentaremos as principais concepções formais de gramática, identificaremos os fatores que tornam essas abordagens incoerentes com a perspectiva que aqui assumimos. 11.1 Concepções de gramática Duas acepções de gramática são assumidas com frequência pelos estudiosos da linguagem: uma perspectiva estrutural, segundo a qual “gramática” é um conjunto de sistemas relacionados (cf. BLOOMFIELD, 1957; SAPIR, 1954; BORBA, 1970), ou uma perspectiva gerativa, que concebe a gramática como um mecanismo finito que permite gerar o conjunto infinito de sentenças “aceitáveis” de uma determinada língua (cf.: CHOMSKY, 1965; RAPOSO, 1992; MIOTO et al., 2000). Para sermos coerentes com as expectativas desenvolvidas ao longo deste livro, apresentamos uma terceira acepção, a construcionista, que concebe a gramática como um conjunto de construções, ou seja, o mapeamento entre formas fonológicas e representações conceptuais (cf. FILLMORE, 1988; GOLDBERG, 1995, 2006). No modelo aqui descrito, no entanto, essas representações conceptuais são fundamentadas nos sistemas perceptivo e motor do corpo humano, no intuito de parametrizar simulações mentais usando esses sistemas (cf. BERGEN; CHANG 2003).

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DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.

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11. CONSTRUÇÕES: CAPTURANDO A ESTABILIDADE

Construções – pares de forma e significado – têm sido a base do

maior avanço no estudo da gramática desde os antigos Estoicos.

(GOLDBERG, 2006, p. 4)

Neste capítulo, pretendemos demonstrar que, para cada integração conceptual, há

uma integração de formas linguísticas. Em capítulos anteriores, postulamos que padrões

de compressão recorrentes tendem a se tornarem convencionais. Esses padrões de

compressão estruturam redes de integração organizadas em pareamentos

“forma/conceito” específicos. De acordo com Torrent (2005, p. 96), “a forma linguística

não oferece todas as informações sobre o evento ao qual se relaciona; ela apenas marca

os caminhos que devem ser descobertos pelos seres humanos envolvidos no processo

comunicativo” durante a descompressão da forma e a realização das integrações

conceptuais necessárias ao entendimento.

A seguir apresentaremos as principais concepções formais de gramática,

identificaremos os fatores que tornam essas abordagens incoerentes com a perspectiva

que aqui assumimos.

11.1 Concepções de gramática

Duas acepções de gramática são assumidas com frequência pelos estudiosos da

linguagem: uma perspectiva estrutural, segundo a qual “gramática” é um conjunto de

sistemas relacionados (cf. BLOOMFIELD, 1957; SAPIR, 1954; BORBA, 1970), ou

uma perspectiva gerativa, que concebe a gramática como um mecanismo finito que

permite gerar o conjunto infinito de sentenças “aceitáveis” de uma determinada língua

(cf.: CHOMSKY, 1965; RAPOSO, 1992; MIOTO et al., 2000). Para sermos coerentes

com as expectativas desenvolvidas ao longo deste livro, apresentamos uma terceira

acepção, a construcionista, que concebe a gramática como um conjunto de construções,

ou seja, o mapeamento entre formas fonológicas e representações conceptuais (cf.

FILLMORE, 1988; GOLDBERG, 1995, 2006). No modelo aqui descrito, no entanto,

essas representações conceptuais são fundamentadas nos sistemas perceptivo e motor do

corpo humano, no intuito de parametrizar simulações mentais usando esses sistemas (cf.

BERGEN; CHANG 2003).

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11.1.1 Perspectiva estrutural

De acordo com Lopes (1976), numa abordagem estruturalista, compreender uma

gramática pressupõe o estudo de enunciados efetivamente realizados, sem que se

considerem as circunstâncias de contato entre o destinatário e o remetente da

mensagem. O trabalho do gramático, nesse caso, limita-se a efetuar a descrição, e não a

explicação, da gramática de uma língua.

O procedimento de descrição, adotado pelos estruturalistas, requer a adoção de

uma teoria de níveis, de acordo com a qual, a gramática se organiza em três níveis: o

nível mínimo (fonológico), o nível médio (morfológico) e o nível máximo (o

fraseológico). Esses níveis são organizados de forma hierárquica, uma vez que as

unidades do nível máximo são constituídas por unidades do nível médio e estas, por sua

vez, se constituem de unidades do nível mínimo. Para identificar unidades no interior de

cada nível, o gramático recorre à noção estruturalista de contraste (na cadeia

sintagmática) e, simultaneamente, à noção de oposição (na classe paradigmática),

utilizando, como recurso operacional, a comutação.

Segundo Lopes (1976), deve-se ao processo de comutação a existência de uma

classificação de formas e unidades linguísticas sincrônicas. Graças a essa taxionomia

paradigmática, é fácil identificar os itens de classes equivalentes procedendo à

substituição mútua em contextos específicos. Por outro lado, no que concerne à

taxionomia sintagmática, os itens são definidos pelos seus arranjos, ou seja, por aquilo

que os segue ou precede. Nesse caso, procede-se ao estabelecimento de contrastes, no

interior de um mesmo segmento do enunciado.

Em suma, o objeto de estudo do estruturalismo é postulado como sendo a Língua-

E, externa e extensional, o produto do desempenho, concebido como comportamento ou

hábito, altamente sensível à estimulação externa. No que concerne à aquisição, no

estruturalismo, essa é vista como a fase em que a criança é tida como extremamente

dependente de dados externos.

11.1.2 Perspectiva gerativa

Uma abordagem gerativa ocupa-se da sintaxe das línguas, como meio para

descrever uma entidade teórica, denominada Gramática Universal, subjacente a todas as

línguas. De acordo com Vitral (1995), isso não quer dizer que as gramáticas particulares

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sejam idênticas, mas sim, permeadas por aspectos sintáticos comuns a todas as línguas

do mundo. Nesse sentido, a Gramática Universal conteria apenas princípios aos quais se

associariam parâmetros de determinação das possibilidades de variação gramatical das

línguas. Na perspectiva em tela, os dados linguísticos representam um conjunto infinito

de sentenças gramaticais contrastando com sentenças agramaticais e a gramática é um

dispositivo que produz todos (e apenas) enunciados gramaticais.

Essa definição de gramática apresenta um caráter muito amplo, uma vez que pode

ser interpretada:

a) como um feixe de regras ordenadas (proposições lógicas);

b) como um conjunto de restrições ordenadas entre si e;

c) como qualquer outro tipo de sistema produtivo.

Vale salientar que, apesar do caráter cognitivo dessa concepção, seja qual for a

interpretação do que seja Gramática, trata-se de uma perspectiva gramatical que

concebe a mente isolada do corpo.

Nessa abordagem, dimensões tais como significado, influência do contexto na

interpretação e diferenças linguísticas individuais não devem ser contempladas pela

Gramática.

Numa perspectiva de cunho gerativista, o interesse da pesquisa se volta para o

conhecimento inconsciente da língua. Esse conhecimento teria um caráter intensional e

não extensional, o que inviabiliza um tratamento centrado no léxico, no morfema ou no

fonema. O uso inconsciente da língua não se dá por causa da internalização inconsciente

de hábitos, mas sim porque, ao se proferir sentenças, utiliza-se o conhecimento

automático do “sistema computacional” da língua. Em relação à aquisição, no

gerativismo, a criança é vista como aprendiz eficiente a despeito da pobreza de

estímulos. Em busca das hipóteses que melhor sustentassem uma abordagem dedutiva

de gramática, os estudos gerativistas passaram por algumas reformulações, dentre as

quais destacamos a Teoria dos Princípios e Parâmetros e o Programa Minimalista.

A Teoria dos Princípios e Parâmetros, ou versão padrão da Gramática Gerativa, é

um modelo que busca investigar os princípios que configuram o estado inicial da

faculdade da linguagem, bem como seus mecanismos de interação na constituição da

gramática particular. De acordo com essa abordagem, todos os seres humanos estão

preparados para desenvolver a faculdade da linguagem, bastando, para isso, estar

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expostos a determinada língua, uma vez que a linguagem lhes é inerente. Dessa forma,

assume-se que nenhuma língua é ensinada ao ser humano, pois sua aquisição não se

restringe a adquirir estruturas linguísticas externas.

Figura 19: Gramática segundo a Teoria dos Princípios e Parâmetros

A Figura 19 demonstra que, ao ser exposto à primeira língua, o falante nativo,

orientado pela Gramática Universal, vai ampliando seus conhecimentos linguísticos.

Nesse sentindo, é da competência da Linguística Gerativa descrever ou explicitar essa

gramática “implícita”, que o falante manipula tão bem. De acordo com Chomsky (1986,

1988), a Língua-I (língua internalizada) seria o estágio inicial, relacionado à noção de

competência linguística, esse estágio constitui um fenômeno individual e envolve o

sistema representado na mente de um indivíduo particular. Em outro sentido, a Língua-

E (língua externa) pode ser entendida como um conjunto de estruturas compartilhadas

numa comunidade de fala, isto é, envolve o conhecimento linguístico compreendido

independentemente das propriedades da mente do falante nativo de uma determinada

língua. Nesse sentido, a Língua-E se define em termos da totalidade de enunciados que

um indivíduo é capaz de aprender numa comunidade de fala.

Um dos aspectos mais relevantes dessa perspectiva é o desenvolvimento de uma

explicação do que se passa na mente dos falantes diante da criatividade linguística, ou

seja, da capacidade de generalização e acionamento de regularidades subjacentes, antes

ignoradas. Ao buscar explicações, a Gramática Gerativa desenvolveu noções como

gramaticalidade e agramaticalidade. Nesse sentido, uma teoria científica da

organização sintática das sentenças deve, antes de tudo, verificar todas as sentenças que

efetivamente são próprias da língua, sem ignorar nenhuma delas.

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Uma dos postulados da perspectiva gerativa considera que o falante nativo, com

um número finito de elementos, pode formar um número infinito de sentenças na sua

língua. No entanto, para que isso aconteça, há um conjunto de regras e princípios que

determinam a ordenação dos elementos. Vale ressaltar que o conhecimento do falante

ideal revela, além do conjunto de regras e princípios, um dicionário mental com

informações sobre as categorias gramaticais, o que lhe permite reconhecer que algumas

formas pertencem, por exemplo, à categoria verbo, e outras, à categoria nome.

Graças ao princípio da recursividade da linguagem, com elementos finitos é

possível gerar frases infinitas. Essas frases podem ser bem ou mal-formadas. Portanto,

torna-se essencial a existência de filtros (princípios) que revelam o tipo de formação de

uma frase.

Ao defender a concepção modular da mente humana e postular que ela seja

formada por módulos autônomos, cada um deles caracterizado por princípios e

representações específicas, Chomsky (1981) argumenta que, pelo fato de o falante

possuir um conhecimento gramatical interno, as regras não são formadas a partir do

exterior, ou seja, não são originadas das propriedades absolutas das expressões

linguísticas, mas da mente humana (com suas capacidades linguísticas altamente

específicas).

Com relação ao Modelo Minimalista, Chomsky e seus seguidores avançam mais

um pouco em direção à abstração teórica. Os princípios passam a ser vistos como

decorrentes de uma lei mais geral, o Princípio da Interpretação Plena, e passam a servir

como condições de interface e não mais como condições sintáticas stricto sensu. Para

isso, são eliminadas as estruturas profundas e as superficiais, o que torna a derivação

uniforme, partindo de um conjunto de palavras em direção ao nível de Forma

Semântica1 (FS), por meio de regras de combinação (merge) e de movimento, com uma

saída para a Forma Fonética (FF) em algum ponto da derivação. Nesse contexto, as

diversas línguas podem ter pontos diferentes de spell-out2.

1 A Forma Semântica, ou Forma Lógica, é composta minimamente de termos não ordenados S, O e V.

Esses termos são organizados pela Forma Sintática. 2 Momento em que a derivação separa os objetos distintos de cada nível de representação, ou seja, Forma

Fonética e Forma Semântica.

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Figura 20: Modelo Minimalista de gramática

A Figura 20 apresenta uma arquitetura de língua que fornece as informações aos

sistemas cognitivos com os quais faz interface, isto é, o sistema articulatório-perceptual

e o sistema conceptual-interacional, através de níveis de representação linguística:

forma fonética e forma semântica. É fácil vislumbrar que, nesse modelo, a língua é o

conjunto de expressões que contêm dois componentes: o semântico e o fonético.

Enquanto as formas fonéticas representam instruções para o sistema sensório-motor, as

formas semânticas representam as instruções para o sistema conceptual-interacional.

Dessa forma, na perspectiva gerativa, o conhecimento gramatical do falante é

estruturado em componentes, que descrevem as dimensões das propriedades de uma

sentença. O componente fonológico, por exemplo, é constituído por regras e restrições

que regem a estrutura de som de uma sentença da linguagem. O componente sintático é

formado por regras e restrições que regem as combinações de palavras de uma sentença.

O componente semântico apresenta regras e limitações que regem o significado de uma

frase. Em outras palavras, cada componente separa o tipo específico de informação

linguística que está contida em uma frase: aspectos fonológicos, sintáticos e semânticos.

11.1.3 Perspectiva construcional

Diferentemente da Gramática Estrutural e da Gramática Gerativa, uma gramática

de construções é um modelo que não se detém exclusivamente aos enunciados nem ao

fato de esses enunciados serem gramaticais ou agramaticais. Em vez disso, o foco de

uma gramática de construções recai sobre o conhecimento e os dispositivos que falantes

reais evocam durante o uso da língua.Assim como a abordagem gerativa, o modelo

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construcional é uma perspectiva cognitivamente orientada, uma vez que visa capturar o

que acontece na mente das pessoas quando produzem e processam a linguagem. No

entanto, trata-se de uma abordagem maximalizada, isto é, uma gramática é a totalidade

do conhecimento que um usuário de uma língua individual possui sobre como produzir

e compreender uma língua, incluindo significado, interpretação, contexto, detalhes

específicos do falante etc.

A abordagem construcional postula que o conhecimento linguístico está

comprimido em pares forma/significado, na forma de palavras, morfemas, expressões

idiomáticas e em sequências de palavras ou classes de palavras. Uma gramática

construcional (ou de construções), no nosso entendimento, que corresponde ao

referencial cognitivista aqui proposto é a Gramática de Construções Corporificada

(doravante GCC), desenvolvida por Benjamin Bergen e Nancy Chang, em 2005. Na

perspectiva defendida por esses dois linguistas, a ênfase é dada ao processamento

linguístico, em especial à compreensão da linguagem. Diferentemente de outras

abordagens, o modelo GCC postula que “construções” formam a base do conhecimento

linguístico e volta seu foco para o modo como “construções” são processadas online.

Antes de apresentarmos os pressupostos da GCC, discutiremos os conceitos subjacentes

às noções de “construção” e de “corporalidade”.

11.2 O que é uma construção?

O rótulo “construção” (estrutura simbólica, para Langacker, ou esquema

genérico, como apresentado em 9.1.3.) diz respeito a qualquer par que envolva uma

forma e um significado3. Dessa forma, palavras, morfemas e expressões idiomáticas,

obviamente, são construções porque apresentam um significado e uma forma

fonológica/gráfica.

Figura 21: Construção: forma/significado

3 Diferentemente da acepção adotada pela Gramática Gerativa, os significados, aqui, são derivados das

experiências vivenciadas pelo nosso corpo. Por exemplo, o significado de ‘ir’ é o movimento corpóreo

que realizamos ao nos deslocar de um ponto no espaço ao outro.

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A seguir são apresentados alguns exemplos de construções, em que são indicados

os pares forma e significado.

(01) [Piloto] cruza [linha de chegada] a pé após acidente. (www.lancenet.com.br,

em 27/04/2009).

(02) O último gol aconteceu aos 42 minutos, josian cobrou escanteio curto para

Thiers, [o artilheiro da partida] cruzou [a bola][pelo alto], a defesa do Valério

ficou olhando, Rhuan que substituiu Fidel subiu e cabeceou pra baixo e fechou a

goleada, Cruzeiro 7 x 0 (www.futebolitabirano.com.br, em 28/08/2009).

(03) [Madson] avançou bem e cruzou [a bola] para [Kleber Pereira]

(www.coxanautas.com.br, em 05/08/2009).

A construção (44) apresenta o significado de movimento ao longo de uma

trajetória, a (45), de movimento forçado ao longo da trajetória e a (46), de

transferência de posse.

No caso específico das expressões idiomáticas, expressões cujo significado

convencional não pode ser interamente previsto com base nos seus componentes, seu

comportamento é, em parte explicável pelas regras sintáticas, e em parte não explicável.

Se uma teoria, como a gerativa, defende que todos os elementos da língua ou pertencem

ao léxico ou à sintaxe, o que fazer com as expressões idiomáticas, que guardam

características do léxico e da gramática?

(04) A ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), declarou que tudo no Brasil é

eleitoreiro, e condenou a “demonização” do presidente do Senado, José Sarney

(PMDB/AP). Segundo ela, atribuir todos os problemas a uma só pessoa é o

primeiro passo para que tudo acabe em “pizza” e que a crise seja jogada “debaixo

do tapete” (www.cidadeverde.com, em 09/07/2009).

Em (47), a semântica e a sintaxe das expressões “acabar em pizza” e “jogar x para

debaixo do tapete” são complexas e não previsíveis a partir de regras gerais. O que se

defende aqui é que construções são basicamente expressões com slots que podem ser

preenchidos com a liberdade um pouco maior do que expressões idiomáticas. Padrões

sintáticos genéricos, como ditransitividade, datividade e movimento causado são

“construções” porque configuram um pareamento de forma (puramente sintática) e

significado (um evento de transferência ou movimento de transferência, por exemplo).

Em (48) apresentamos um exemplo de construção ditransitiva e, em (49), de construção

dativa.

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(05) Pela manhã, o presidente entregou apartamentos para moradores que

viviam em palafitas no Rio Anil, em São Luís (Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão, no clipping de notícias, em 11/12/2009).

(06) Na Câmara Federal (dia 18/8), Emiliano José (PT-BA)

criticou a gestão do ex-governador Paulo Souto (DEM) e afirmou

que ele deixou uma “herança maldita” para o povo da Bahia na

área de saúde, que “está sendo diagnosticada pelo Governo Jaques Wagner” (Jornal Feira Hoje online, em 22/08/2009.

Vale observar que, apesar de os verbos das sentenças destacadas em (48) e (49)

apresentarem diferenças de significado, ambas revelam a intenção do agente (o

presidente/o ex-governador Paulo Souto) de transferir a posse (entregou/deixou) de um

paciente (apartamentos/uma “herança maldita”) a um recipiente (para os moradores que

viviam em palafitas no Rio Anil/para o povo da Bahia), sendo que “o recipiente” deve

ser capaz de tomar a posse.

De acordo com Bergen (2008), alguns teóricos não admitem que construções

façam parte da língua. Chomsky (1989, p. 43), por exemplo, afirma categoricamente

que na sintaxe não há regras (nem princípios) para línguas particulares (ou construções

específicas). Segundo ele “construções gramaticais tradicionais devem ser consideradas

como [...] coleções de estruturas com propriedades decorrentes da inter-relação entre

princípios fixados e um conjunto de parâmetros”. Se a gramática não é nada mais que

um “dispositivo para produzir sentenças gramaticais”, ela é relativamente irrestrita. Os

gerativistas desejam que suas gramáticas sejam mínimas e, nesse sentido, nenhum

padrão sintático que possa ser ancorado em outra coisa é reconhecido. Apesar de

compartilharmos um referencial cognitivista básico, a noção de gramática adotada pelos

gerativistas é muito diferente da que estamos defendendo, tendo em vista que buscamos

documentar não apenas os comportamentos sintáticos, mas uma base bem mais ampla

de comportamento linguístico. O fato de construções unirem interpretações sintáticas e

semânticas torna a abordagem aqui defendida incompatível com qualquer modelo

modular e/ou componencial de gramática. Cumpre ressaltar que não consideramos a

existência de uma divisão entre expressões idiomáticas e demais construções.

Acreditamos que as construções apresentam algumas variações, com poucos ou apenas

um componente fixo, como é o caso das expressões idiomáticas (“jogar <alguma coisa>

para debaixo do tapete”), alguns permitem muita variação, e outros não têm nenhum

componente fixo (como é o caso da construção passiva). Uma análise das construções

passivas, portanto, deve levar em conta a estrutura como um todo, por se tratar de uma

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unidade gramatical. A expressão particular de agente da passiva através de um sintagma

preposicional, é simplesmente uma propriedade idiossincrática da construção passiva,

que não deve ser reduzida a um caso de derivação do significado da preposição “por” e

algumas regras gramaticais gerais. Cumpre ressaltar que, para darmos conta do

“comportamento construcional”, ou seja, elementos sintáticos se correlacionando

verdadeiramente a elementos semânticos, temos que nos basear no uso linguístico, o

que nos impele a lançar mão de um modelo de gramática Baseado-no-Uso.

11.2.1 Um modelo de gramática baseado-no-uso

Um modelo Baseado-no-Uso4 (MBU) é uma perspectiva que nos fornece

subsídios para compreender como o conhecimento linguístico é representado e

armazenado na mente dos falantes. Para isso, o MBU leva em consideração os efeitos da

frequência na linguagem, tendo em vista que os esquemas genéricos são adquiridos,

moldados e permanentemente influenciados pelo uso. Desse modo, acreditamos que a

frequência (maior ou menor) de determinados padrões de uso não pode ser indiferente

ao conhecimento linguístico do falante.

De acordo com Langacker (1999), através da repetição, mesmo um evento

altamente complexo pode “converter-se numa rotina bem ensaiada”, que é facilmente

elucidada e executada com confiança. Quando uma estrutura complexa passa a ser

manipulada como um agrupamento “pré-embalado” (pre-packaged), sem requerer mais

atenção às suas partes (ou o arranjo dessas partes), essa estrutura tem status de unidade.

Essa estrutura unitária (ou construção gramatical) apresenta uma forte frequência

de tipo (type frequency) quando é instanciada por muitos itens lexicais diversos e

apresenta uma fraca frequência de type quando é instanciada por poucos itens lexicais.

Por outro lado, se instanciada muitas vezes pelos mesmos itens lexicais, apresenta uma

alta frequência de ocorrência (token frequency) e uma baixa frequência de token se a

construção, junto com o item lexical, apresenta um uso infrequente.

Quadro 9: Construção gramatical e frequência

4 De acordo com Langacker (2000, p. 9), um Modelo Baseado-no-Uso (Usage-Based Model) é aquele que

considera o sistema linguístico fundamentado em eventos de uso (evento de uso: “pareamento de uma

vocalização, em toda a sua especificidade, com a conceitualização que representa sua completa

compreensão contextual”).

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Frequência de type Frequência de token

Construções

instanciadas muitas vezes por muitos itens

lexicais diferentes

ALTA BAIXA

Construções

instanciadas muitas

vezes pelos mesmos

itens lexicais

BAIXA ALTA

No Quadro 9, é possível verificar que tanto as construções quanto as instâncias de

construções podem ser muito frequentes. Em ambos os casos, a alta frequência de type

leva à rotinização5 das construções e a alta frequência de token leva a rotinização das

instâncias de construções nas mentes dos falantes/ouvintes. Dessa forma, a rotinização é

uma consequência da alta frequência, de types ou de tokens. As diferenças no tipo de

frequência (e suas rotinizações) de dois esquemas genéricos, por exemplo, as

construções transitivas e ditransitivas, são ilustradas pela Figura 22.

Figura 22: Diferença na frequência de type de duas construções (BARDDAL, 2001, p. 31)

Na Figura 22, as linhas indicam as frequências com que as construções podem

ocorrer. O gráfico relativo à construção transitiva apresenta mais linhas e, portanto, esse

tipo de esquema genérico é mais enraizado que o ditransitivo.

A diferença entre uma construção rotinizada (frequência de type) e uma instância

rotinizada de uma construção (frequência de token) é ilustrada pela Figura 23.

Figura 23: Construção rotinizada e token rotinizado (BARDDAL, 2001, p. 32)

O diagrama da esquerda mostra uma construção que exibe um alto grau de

rotinização porque há muitos types que a instanciam, como o destaque em (50). O

5 Força lexical (lexical strength), na terminologia de Bybee (2000, p. 68) e “entricheiramento”

(entrenchment), na terminologia de Langacker (2000, p. 3).

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diagrama da direita mostra uma instância de uma construção, isto é, um token da

construção que é muito frequente e, portanto, é mais rotinizado que a construção

superordenada, como o destaque em (51).

(07) Aos 14, Danilo cobrou falta com perigo, à direita de Velloso, que ficou só

olhando a bola sair pela linha de fundo. Quatro minutos depois, Alan fez boa

jogada, mas diante do goleiro do Atlético, chutou a bola no travessão. Aos 19,

Alex Alves penetrou na área do Vasco mas chutou por cima

(http://www.netvasco.com.br/news/noticias10/14080.shtml, acessado em

11/01/2010).

(08) Chutou o balde – O ex-jogador do Grêmio Iúra, que jogou no clube nos anos

1970, em entrevista à Rádio Gaúcha deu uma declaração polêmica. Para ele, o

atacante Maxi López atrapalha o ataque do time: – Estou feliz porque o Maxi

López não vai jogar – disse. Iúra explicou: segundo ele, o argentino comete muitas

faltas e não permite que os meias se desenvolvam. O mau momento de Tcheco e

Souza também é creditado ao atacante. Sobre o presidente Duda Kroeff, Iúra disse

que se arrependeu de fazer campanha pela sua eleição (Zero Hora online, em

25/10/2009).

A Construção transitiva (SVO), exemplificada em (50) “Alan (...) chutou a bola”,

é recorrente em Língua Portuguesa: daí sua frequência de type, evidenciada no quadro

10.

Quadro 10: Construções SVO

S V O

Alan Chutou a bola

Danilo Cobrou Falta

Alan Fez (boa) jogada

O argentino Comete muitas faltas

A combinação entre os itens lexicais “chutar” e “balde” (exemplo 51) é recorrente

em língua Portuguesa. A frequência de ocorrência (token) dessa mesma combinação nos

leva a interpretá-la como um único item lexical complexo, da mesma forma que “dar a

volta por cima”, “encher linguiça”, “entrar pelo cano” etc.

Pelo exposto até aqui, podemos concluir que a produtividade é concebida como

uma consequência da alta frequência de type da construção. Quanto mais “aberta6” for

uma construção, ela será mais produtiva. O mais provável é que a construção acabe

atraindo novos itens e se espraiando para outros já existentes que, de algum modo,

cumpram os critérios relevantes para ocorrer numa construção particular, acabem se

rotinizando e se tornando produtivas.

6 No sentido de poder instanciar mais itens lexicais.

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Quanto às altas frequências de token, essas não contribuem para a produtividade

global de uma construção. Normalmente, apenas o token em si é rotinizado, como

unidade independente.

Podemos evidenciar a noção de frequência (de type e de token), adotando

exemplos extraídos da dimensão morfológica da linguagem, como no caso da formação

de palavras por meio do prefixo in- e do sufixo -vel da língua portuguesa. São afixos

que representam um esquema altamente produtivo, formador de palavras tais como

incrível, amável, imperdoável, impossível, invisível e intocável. Por se tratar de

esquemas muito recorrentes, vão se tornando cada vez mais fortes; por isso, sempre que

os falantes precisam criar novas palavras, acabam lançando mão de afixos como esses:

imexível7, por exemplo, apesar da polêmica que se criou em torno da sua criação, é uma

palavra possível graças ao esquema altamente produtivo dos afixos in- e -vel.

Quanto à frequência de token, considerando-se a dimensão morfológica da

linguagem, podemos citar dinheirama, arvoredo, mundaréu, imensidão, negritude e

medonho8, termos recorrentes no português do Brasil, mas que não são produtivos.

Essas palavras são pouco analisadas e praticamente não participam de esquemas.

Em síntese, o comportamento regular dos itens linguísticos é capturado pelas

construções (type) e pelas suas instâncias (token). Defendemos que esse conhecimento é

armazenado na mente dos falantes, com algumas construções sendo mais rotinizadas

que outras, ou seja, tanto as construções quanto as instâncias subjacentes a elas são

armazenadas no léxico, diferentemente da abordagem gerativa, de acordo com a qual, os

itens irregulares são armazenados no léxico enquanto os padrões de comportamento

linguístico são gerados, durante o processamento, por meio de regras.

11.2.2 Rotinização e graus de estabilidade das construções

Na seção anterior, mostramos que o fato de as construções serem tomadas como

unidades básicas do conhecimento linguístico se choca com a dicotomia clássica entre

itens lexicais e regras. De acordo com Salomão (2009, p. 38-39), na perspectiva das

construções, “o todo não é a soma das partes”, o que pode ser evidenciado com as

palavras carcereiro e prisioneiro, cujas raízes nominais são sinônimas (prisão =

7 Termo criado em 1990, pelo então Ministro do Trabalho, Antônio Rogério Magri, para se referir ao

Plano Collor. Disse o ministro em entrevista: “O plano é imexível”. 8 Exemplos extraídos de: ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O Português da Gente: a língua que

estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2007, p. 106.

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cárcere). Ao acrescentar o sufixo -eiro, no entanto, o resultado são duas palavras de

sentidos antagônicos (carcereiro é o indivíduo responsável pela guarda dos

prisioneiros). Isso revela que a construção não é uma simples combinação de

elementos, mas um pareamento de forma e sentido.

Salomão (2009, p. 41-42) apresenta, de forma detalhada, a composição dos polos

(forma/sentido) que compõem cada construção. Segundo a autora, o polo do sentido

contempla duas dimensões: uma conceptual e uma discursiva. A dimensão conceptual

inclui os esquemas imagéticos (9.1.1.1), esquemas sensórios-motores (cf. o umwelt –

Cap. 8), frames (9.1.1.2), projeções metafóricas e metonímicas (9.1.1.3) e mesclagens

(cap. 10). A dimensão discursiva do polo do sentido engloba a ativação de espaços

mentais (cf. Domínios Locais – 9.2), estruturados a partir dos Modelos Cognitivos

Idealizados, Molduras Comunicativas e Esquemas Genéricos (cf. Domínios Estáveis –

9.1), ponto de vista, postura epistêmica adotada, status informacional, registro

sociolinguístico e informações relativas ao gênero textual no qual determinada

construção normalmente ocorre.

Quanto ao polo da forma, a autora revela duas dimensões: uma dimensão física do

significante (fonemas, letras e gestos – LIBRAS) e uma dimensão morfossintática

(classe sintática dos constituintes e suas relações estruturais hierárquicas ou de

dependência).

De acordo com Goldberg (2006, p. 5), todos os níveis de análise gramatical

envolvem construções: Pares de forma/sentido, incluindo morfemas ou palavras,

expressões idiomáticas e padrões frasais completos.

Quadro 11: Exemplos de construções variando em tamanho e complexidade

(adaptado de GOLDBERG, 2006, p. 5)

Construções Exemplos

Morfema in-

-vel

Palavra Homem

cigarro

ou

Palavra complexa ventilador de teto

janela de correr

Palava complexa (parcialmente preenchida) N-s (plurais regulares)

N-a (gênero feminino)

Expressão Idiomática (preenchida) “ir de vento em popa”

“dar a mão à palmatória”

Expressão Idiomática (parcialmente

preenchida)

“X pediu a mão de Y em casamento”

“X mandou Y para o inferno”

Covariacional não só (não apenas).... mas também (como) – O

programa de Direitos Humanos pode trazer

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DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.

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problemas para o governo não só com o

agronegócio, mas também com outros setores.

A imprensa é um deles (globo.com, em

07/01/2010).

Ditranstiva (duplo objeto) Suj V O1 O2 – A cantora doou R$ 150 mil para

os necessitados.

Passiva Suj Aux Vpp (por x) – O livro foi comprado

pelo seu amigo.

De acordo com Bergen (2008), as construções gramaticais fornecem sentido de

três formas diferentes:

a) fornecendo significado simplesmente como os itens lexicais o fazem: os casos

mais comuns são as expressões idiomáticas (“chutar o balde”) e os esquemas

genéricos (de movimento causado, resultativos etc.);

b) especificando propriedades de significado de ordem mais abstrata, como

noções de:

a. Aspecto:

(09) “O governo da Malásia comprou os caças MiG-29 por um valor

relativamente baixo em 1993”, em http://cavok.com.br/blog/?p=1792, acesso em

07/12/2009.

(10) “Afinal.. O caça francês que o Lula está comprando poderia abater o caça

russo que o Hugo Chavez comprou?”, em .

http://br.answers.yahoo.com/question, acessado em 21/11/2010.

Nos exemplos acima, verificamos uma diferença de tempo gasto na duração do

processo verbal. Em (52), o processo é apresentado em sua totalidade, de forma

encapsulada. Porém, em (53), o processo verbal é incompleto, prolongando-se por tem

indeterminado.

b. Pessoa: a perspectiva de representação mental do evento a ser adotada:

imagine-se andando em linha reta na direção de uma parede

determinada. Agora imagine um policial andando em linha reta na

direção de uma árvore.

c) junção das contribuições semânticas das palavras aos esquemas genéricos que

determinam quem fez? o que fez? a quem fez? como fez? etc.

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(11) O policial colocou sua pistola em cima da mesa.

(12) A pistola colocou seu policial em cima da mesa.

Em suma, a noção de construções, adotada aqui, deve dar conta das

representações biologicamente plausíveis da experiência e compreensão do mundo por

parte do ouvinte/leitor. Esse conhecimento é codificado por meio de esquemas que

descrevem os papéis envolvidos e suas relações no cumprimento da experiência

esquemática a ser interpretada por um compreendedor9. Esses papéis e relações podem

fornecer uma rica fonte de inferências para a compreensão da linguagem. Esses

esquemas são originados nas experiências sensório-motoras empíricas disponíveis a um

compreendedor da linguagem corporificada.

11.3 O que é corporificação?

Os adeptos da abordagem que se volta para a natureza social e contextual do

conhecimento defendem que os fatores linguísticos, sociais e interacionais devem ser

incluídos na análise dos domínios cognitivos. A principal característica de uma

abordagem situacional é que ela considera os processos interativos como cruciais e

explica a cognição individual, dando conta apenas das suas contribuições para a

interação.

Apesar de abordagens como essa produzirem muitos resultados importantes e

ajudarem a deslocar a análise da aprendizagem, para além dos processos cognitivos

individuais e internos, cabe questionar se a natureza situada da cognição pode ser

compreendida integralmente levando-se em conta apenas fatores sociais e processos

interindividuais.

Assim como Bergen (2008, p. 2), acreditamos que o pensamento e a

aprendizagem são situados em contextos biológicos e experienciais, que moldam, de

modo não arbitrário, as estratégias de compreensão do mundo pelos seres humanos.

Nesse sentido, “a cognição humana é baseada na corporalidade, o que ajuda a

determinar a natureza da compreensão e do pensamento”.

9 Adotaremos aqui o termo compreendedor para nos referirmos ao papel do ouvinte/leitor, durante o

processo de decodificação e interpretação dos enunciados.

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Bergen admite que o conhecimento (e a cognição em geral) esteja inserido em

contextos sociais específicos, mas questiona o que torna possível “a inteligibilidade

mútua subjacente às compreensões sociais partilhadas”. Ao buscar respostas para esse

questionamento, o autor defende que as bases do conhecimento situado derivam da

experiência corporal e da ação humana, realizadas por meio de “processos básicos de

uma cognição corporalizada e de esquemas conceptuais”.

As concepções que consideram a corporalidade em suas investigações defendem

que as particularidades do organismo, produzindo, aprendendo e compreendendo a

linguagem pode ter um efeito sobre o caráter da linguagem. De acordo com Lakoff e

Johnson (1999, p. 37-38), a hipótese de uma mente corporificada abalou

consideravelmente a distinção entre percepção e conceptualização. Na concepção dos

autores, e de acordo com o que foi apresentado nos capítulos anteriores, em uma mente

corporificada, o mesmo sistema neural, engajado na percepção ou no movimento

corporal, desempenha um papel central na concepção, ou seja, as mesmas estruturas

neurais responsáveis pela percepção, pelo movimento e pela manipulação de objetos são

também responsáveis pela conceptualização e pelo raciocínio.

Nesse contexto, segundo Bergen (2008, p. 3), uma abordagem corporificada deve

conceber o significado envolvendo a ativação do conhecimento perceptual, motor,

social e afetivo na caracterização do conteúdo dos enunciados. De acordo com o autor,

exposto à língua num determinado contexto, o indivíduo a apreende (e aprende)

recorrendo ao emparelhamento de “pedaços” da língua com experiências perceptuais,

motoras, sociais e afetivas reais. Em casos posteriores de uso da língua, quando os

estímulos motores perceptivos, sociais, afetivos originais não estão presentes no

contexto, as experiências são recriadas e revividas por meio da ativação de estruturas

neurais. Nesse sentido, o significado é “corporificado”, uma vez que depende de o

indivíduo ter vivenciado experiências em seu corpo no mundo real, onde são recriadas

experiências em resposta à entrada linguística. Por outro lado, essas experiências são

revividas para produzir saída linguística.

Segundo Bergen (2008), essa perspectiva de que a compreensão da linguagem se

baseia na recriação interna de experiências corporificadas anteriores é corroborada por

recentes pesquisas sobre o cérebro, as quais mostram que as áreas do córtex motor e

pré-motor, associadas a partes específicas do corpo (mão, pé e boca, por exemplo),

tornam-se ativas na resposta ao se fazer referência linguística às partes do corpo.

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Com a intenção de apresentar evidências de uma mente corporificada, Bergen

relata outra experiência, que testa o grau em que as representações motoras são ativadas

para a compreensão da linguagem. A constatação básica dessa pesquisa é que quando os

indivíduos são convocados para realizar uma ação física, como mover sua mão para

longe ou em direção ao seu corpo, em resposta a uma frase, eles demoram mais tempo

para executar ações incompatíveis com as descritas na sentença. Por exemplo, se a

sentença for Andy deu-lhe a pizza, os indivíduos levam mais tempo para apertar um

botão, o que os obriga a mover as mãos para longe do corpo e o inverso é verdadeiro

para frases indicando movimentos em direção oposta ao corpo, como você deu a pizza

de Andy. Essa interferência da compreensão da linguagem sobre a ação e execução de

uma ação real com os nossos corpos sugere que, enquanto processamos a linguagem,

ativamos imagens motoras, utilizando as estruturas neurais dedicadas ao controle motor.

Uma terceira evidência é apresentada por Stanfield e Zwaan (2001) e Zwaan,

Stanfield e Yaxley (2002), ao investigarem a natureza das representações de objetos

visuais durante a compreensão da linguagem. Os pesquisadores mostraram que as

orientações implícitas de objetos em sentenças (como o homem martelou o prego no

chão versus O homem martelou o prego na parede) afetam o tempo que leva para os

indivíduos decidirem, a partir das imagens dos objetos (como a do prego, por exemplo),

se os respectivos objetos foram mencionadas na sentença. Quando a imagem de um

objeto é vista na mesma orientação que implicitamente estaria no cenário descrito pela

frase (por exemplo, quando o prego foi descrito como tendo sido martelado para dentro

do chão e foi retratado como apontando para baixo), os indivíduos levaram menos

tempo para executar a tarefa do que quando foi apresentada uma orientação diferente

(por exemplo, horizontal). O mesmo resultado foi encontrado quando os indivíduos

foram convidados a nomear o objeto representado. Os autores também descobriram que

quando as sentenças implicam que um objeto deve ter diferentes formas (por exemplo,

uma águia em voo versus em repouso), os sujeitos mais uma vez responderam de forma

mais rápida diante de imagens do objeto que eram coerentes com a frase (com a mesma

forma que os objetos tinham na frase).

Esses resultados convergentes de várias pesquisas sugerem um papel concreto

para as experiências motoras e perceptivas corporificadas na compreensão da

linguagem. No processo de compreensão da linguagem, os indivíduos automaticamente

ativam a imaginação ou simulam cenários descritos pela linguagem. As simulações

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mentais realizadas podem incluir detalhes motores, pelo menos no nível de um efetor10

especial, que seria usado para executar as ações descritas, e as informações de

percepção sobre a trajetória do movimento (longe ou perto, para cima ou para baixo),

como a forma e a orientação dos objetos descritos. Os estudos de imagiologia neural

sugerem que essas simulações são executadas pelos mecanismos do cérebro

responsáveis por focalizar as mesmas percepções ou realizar as mesmas ações.

Experimentos envolvendo modelagem computacional de redes neurais, que têm

em Jerome Feldman um de seus expoentes, também oferecem evidências indiretas da

conexão entre conceptualização e percepção. Ao simularem estruturas neurais, esses

modelos demonstram que o nosso cérebro, em princípio, pode realizar tarefas sensório-

motoras e conceptuais, simultaneamente.

Os modelos computacionais testados foram construídos para lidar com três tipos

de conceitos:

I. conceitos de relações espaciais – as relações espaciais e sua lógica são

conceptualizadas com base nas estruturas neurais que compõem o sistema visual

no cérebro;

II. conceitos de movimento corporal – nossos esquemas motores e nossos

parâmetros do movimento corporal são usados para estruturar esses conceitos e

sua lógica;

III. conceitos indicando a estrutura dos eventos (conceitos aspectuais) – que

podem ser adequadamente representados em termos de esquemas genéricos de

execução de ações: o raciocínio abstrato usado nesses esquemas é processado

através de simulações neurais do movimento (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 39-

42).

Baseados em Bergen (2008) apresentamos, no Quadro 12, os quatro tipos de

corporificação associando-os aos modos como a gramática de construções é

corporificada.

10

Efetores são órgãos que sediam as reações do indivíduo aos estímulos recebidos.

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Quadro 12: Tipos de corporificação e GCC

Tipos de corporificação Postulados Gramática de Construções Corporificada

Corporificação neural

O modo como o cérebro é

estruturado pode ter efeito sobre

a linguagem.

Seu formalismo pode ser mapeado por

arquiteturas neurais.

Corporificação experiencial

As experiências particulares de

um indivíduo têm algum efeito sobre a linguagem.

A apreensão das construções se dá por meio

da exposição à linguagem em um dado contexto social e físico.

Corporificação social

Os objetivos dos grupos sociais (dentro dos quais a linguagem

se apresenta) e os contextos

sociais (nos quais a linguagem é

usada) têm algum efeito sobre a linguagem.

Deve-se considerar a interface entre representações de falantes diferentes,

crenças, desejos e enunciados prévios de

outros interlocutores.

Corporificação corpórea

As características do corpo humano têm algum efeito sobre

a linguagem.

É construída para ser realizada em um sistema computacional que realize tarefas

da linguagem real, como compreender,

produzir e traduzir, usando mecanismos

internos similares aos do corpo humano.

11.4 A Gramática de Construções Corporificada

A Gramática de Construções Corporificada (GCC) é uma teoria recente da

gramática de construções desenvolvida por Benjamin Bergen e Nancy Chang, juntos

com vários colaboradores. Nesta seção, apresentaremos uma visão muito breve deste

modelo baseado em Bergen & Chang (2005). Essa investigação assume que todas as

unidades linguísticas são construções, incluindo morfemas, palavras, sintagmas e

sentenças.

A GCC difere dos outros modelos de Gramáticas de Construções, por três motivos

básicos:

1. seu formalismo foi construído ao lado de um mapeamento detalhado do

formalismo de estruturas neurais computacionais. A incorporação é realizada

através da fundamentação neural;

2. a GCC foi concebida para formar um núcleo de compreensão da linguagem

computacional e sistemas de produção, e como tal deve ser explícita o suficiente

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para servir a fins de processamento da linguagem, em vez de conhecimentos

linguísticos simples;

3. a GCC cognitiva incorpora mecanismos linguísticos como esquemas

imagéticos, frames, projeções metáforas e metonímicas, espaços mentais, e

mescla em suas estruturas gramaticais, permitindo os diferentes mecanismos de

interface naturalmente.

Dessa forma, a GCC apresenta um formalismo concebido para apoiar os modelos

consagrados de uso e de aprendizagem da linguagem. Nesse contexto, ela é:

a. corporificada - as estruturas de GCC parametrizam simulações de

atividades com base nos esquemas motores e de percepção (Lakoff,

Langacker, Talmy, Narayanan);

b. baseada em construções - a unidade linguística básica é uma construção,

ou par forma-significado (Fillmore e Kay, Goldberg, Langacker, Croft);

c. baseada em restrições - as restrições sintáticas de todos os tipos

(fonológicas, semânticas, etc.) são expressas usando uma gramática base

unificada;

d. formal (estilizada) - pode ser formalmente definida e implementada

computacionalmente.

Bergen (2008) ressalta que a GCC se destina a servir a múltiplas funções e

abrange vários domínios:

GCC é uma ferramenta para a análise linguística: fornece notações formais com

as quais as análises específicas dos fenômenos linguísticos podem ser

precisamente expressas (e comparadas);

GCC suporta modelos de compreensão da linguagem: é a representação de um

modelo baseado em simulação de compreensão da linguagem;

GCC é o alvo dos modelos de aprendizagem de línguas. É aprendida com base

nas frequências e é cognitivamente motivada por modelos de aquisição inicial da

linguagem.

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A GCC pode ser compreendida, tomando por base a figura 24, proposta por

Bergen e Chang (2005) acerca do processo de compreensão da linguagem.

Figura 24: Arquitetura da Gramática de Construções Corporificada

As principais estruturas e processos do modelo de compreensão da linguagem

(como descritas por Bergen e Chang, 2005) apresentados na Figura 24 demonstram que:

conhecimentos linguísticos são representados por construções (mapeamentos

forma-significado), que se expressam por meio de gramáticas de construções

corporificadas formais;

o processo de análise considera um enunciado e desenha sobre o conhecimento

linguístico, conhecimento de mundo e o contexto comunicativo imediato para

produzir uma especificação semântica (semantic specification ou semspec). A

semspec também pode sofrer um processo de resolução para especificar melhor as

referências relevantes;

a semspec fornece parâmetros para uma simulação dinâmica utilizando

estruturas de ações incorporadas, o sentido do enunciado consiste na simulação e

as consequências que ele produz.

Os usuários da língua têm conhecimento das construções (forma/significado).

Esse conhecimento é utilizado para motivar uma análise a partir de um enunciado de

input, comparado com as (combinações de) construções no pareamento forma e

significado. O contexto comunicativo também é acessado durante o desenvolvimento de

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uma análise. O produto da análise é uma especificação semântica do enunciado, que é

um input para um mecanismo de simulação. A simulação é “rodada” e o resultado serve

para agregar mais conhecimento ao usuário da língua, sobre o contexto e sobre o

mundo (e possivelmente também sobre a própria construção – a seta não mostra). Essas

construções são formalmente registradas, em uma notação utilizada pela linguagem de

programação Java.

11.4.1 Simulação baseada-em-compreensão da linguagem

Junto com colegas do grupo NTL11

, Chang e Bergen investigam a hipótese de que

a linguagem explora muitas das mesmas estruturas utilizadas durante a ação, percepção,

imaginação, memória e outros processos fundamentados neuralmente. Essa ideia reúne

trabalhos anteriores do grupo sobre os esquemas de representações corporificadas e os

pressupostos das abordagens cognitivas de gramática de construções.

O escopo do modelo de compreensão da linguagem vem sendo sedimentado, ao

mesmo tempo em que ganha várias direções, incluindo:

11.4.1.1 A simulação semântica

De acordo com Bergen, Narayan e Feldman (2003), o processo de compreensão

de qualquer aspecto da língua tem uma relação direta com a realização de simulações

mentais (de percepção e movimento). O estudo de como esses aspectos da linguagem

participam da construção de um imaginário mental é conhecido como simulação

semântica. Essa abordagem envolve três componentes principais:

a) ativação e combinação de representações parametrizadas do conteúdo simulado

que a construção linguística evoca, usando os parâmetros acerca do significado das

palavras, bem como restrições fornecidas pela gramática da enunciação. Essa etapa é

conhecida como fase da construção de uma semspec (um conjunto parametrizado de

instruções para a simulação subsequente).

b) desempenho subsequente de uma simulação mental dinâmica, sobre a base da

semspec. As construções apenas precisam especificar os parâmetros da simulação, 11

Neural Theory of Language.

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permitindo que os recursos da linguagem dependam do contexto imediato, da

corporalidade e do conhecimento de mundo para influenciar o resultado de uma

simulação em particular.

Dentro desse enquadre, Srini Narayanan desenvolve três projetos: o primeiro visa

a construir uma teoria computacional neuralmente plausível e cognitivamente válida

sobre a linguagem. Os subprojetos incluem a construção de modelos conexionistas de

estruturação de eventos, interpretação da metáfora e modelos de processamento da

inferência bayesiana12

. O segundo projeto visa dotar as teorias semânticas e as

linguagens marcadas por artefatos e dispositivos na web. Um aspecto dessa teoria do

artefato envolve o desenvolvimento de marcação de documentos da web com a estrutura

lógica do documento e com a funcionalidade corporificada fornecida pelo documento.

Esses projetos voltados para a modelagem serviram como ponto de partida para a

inferência baseada em simulação.

A simulação semântica tem sido aplicada a questões de representação do modelo

baseado em frames. Em colaboração com os membros do projeto FrameNet13

,

apresenta-se como a GCC pode ser usada para unir as lacunas entre os corpora

semanticamente estruturados do FrameNet e os mais ricos mecanismos inferenciais

fornecidos pela simulação.

Os aspectos se referem ao modo como a forma interna de um evento afeta a

aceitabilidade e interpretação dos dispositivos linguísticos utilizados para descrevê-lo.

Inferências aspectuais parecem depender não apenas da semântica inerente ao verbo,

mas também das contribuições semânticas dos seus argumentos. O aspecto tem um

efeito profundo na interpretação das construções. Mesmo os mais simples fenômenos

semânticos que interagem com o aspecto na interpretação da sentença incluem a

presença de trajetores, marcos, caminhos e metas; a persistência e a reversibilidade dos

estados; a utilização de esforço e vontade; a dinâmica de força e/ou homogeneidade de

ações; a escala do tempo de raciocínio; e as características nominais como animacidade,

limitação (massa/contagem) e quantificação.

A abordagem baseada em simulação tem desenvolvido um modelo dinâmico de

composição aspectual, em que os eventos são modelados através de uma representação

ativa computacional chamada x-esquemas, assim chamada para distingui-los de outras

12

Diz respeito à probabilidade relacionada ao grau de crença atribuído por um indivíduo em um dado

evento. 13

Visite a página do FrameNet em http://framenet.icsi.berkeley.edu/.

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noções de esquema e para nos lembrar que só são executados quando acionados. Uma

motivação para o x-esquema vem do controle motor. Comportamentos simples como

“segurar” envolvem movimentos coordenados de um conjunto de músculos de forma

estereotipada chamado de sinergia (cf. BERNSTEIN, 1967).

Em um nível mais elevado, o controle motor envolve a coordenação dessas

sinergias e da percepção de acompanhamento e controle. O esquema controlador

aspectual geral é ligado a esquemas de ação específica para simular um evento em um

contexto de forma sensível. Marcadores linguísticos que afetam os aspectos (como

restrições de tempo, modificadores temporais, nominais e contexto pragmático) podem

elaborar e simular eventos restritos.

c) fornecendo os resultados da simulação em um conjunto de experiências mentais

do entendedor da linguagem, que tem agora os aspectos do conteúdo do enunciado

internamente percebidos e encenados.

A avaliação da maneira como partes da linguagem evocam a simulação depende

de, antes, identificarmos que partes são essas. Segundo Bergen, Chang e Narayan

(2004), palavras de certos tipos, particularmente palavras de conteúdo, tais como nomes

e verbos, contribuem diretamente para o conteúdo da simulação. Menos obviamente, no

entanto, outros elementos linguísticos, como as palavras funcionais têm repercussões

diretas na simulação. Preposições, por exemplo, podem indicar trajetórias de

movimentos a serem incluídas na simulação, como em (56):

(13) A carreta estava em alta velocidade e bateu atrás de um caminhão-baú,

projetando os veículos contra a mureta de proteção. O caminhão de Renato ficou

preso na mureta por estar mais leve. Já o de Élio, rolou ribanceira abaixo

(globo.com, em 16/02/2009).

Ou relações espaciais como em (57):

(14) Moradores de dois bairros de Angra, próximos ao trecho interditado da BR-

101, abandonam suas casas (Correio Braziense, em 02/10/2009).

Padrões frasais também podem contribuir para a simulação. Um exemplo são as

construções ditransitivas, que contêm sujeito, verbo e dois objetos, exemplificado em

(58):

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(15) Aos 44 minutos, Cafu passou a bola para Kaká, que chutou de fora da área,

acertando um chute no ângulo, sem chances para o goleiro, em

http://www.jornaljovem.com.br/edicao3/copa06.php, acesso em 18/12/2010.

O padrão oracional, apresentado em (58), pode carregar um conteúdo simulativo,

em particular codifica a transferência do primeiro objeto (a bola) prevista pelo sujeito

(Cafu) para o segundo objeto (Kaká). Há evidências de que a significação de padrões

frasais, como o ditransitivo, vem da possibilidade de usá-los para descrever cenários de

transferência, usando verbos que não designam transferência, como em (59):

(16) No lance em que tocou a bola para Kaká, Ramires sofreu falta dura de

Kljestan e ficou caído no campo, em http://www.thronos.net , acesso em

27/09/2009.

Cada parte da linguagem que emparelha alguma forma com um significado

(morfemas, palavras, padrões frasais e expressões idiomáticas) – construção – pode

evocar simulações. A evidência de que o processamento de enunciados resulta na

ativação de imagens perceptuais e motoras não implica que isso aconteça diretamente

sem mediação. Bergen (2004) apresenta dois tipos de evidências da existência de um

estágio intermediário de representação entre a forma, de construções linguísticas, e a

simulação que elas evocam:

a) juntar palavras dentro de uma configuração aceitável durante a produção

linguística, ou determinar qual seria o conjunto de palavras em um enunciado e suas

relações durante a compreensão linguística, não requer o acesso ao significado

enciclopédico detalhado da construção envolvida. De preferência, as palavras são

combinadas em parte sobre a base de generalizações sobre seus significados. Assim, a

fim de participar com um verbo numa construção ditransitiva, um verbo deve ser

interpretado como codificador de apenas um entre vários tipos de transferência bem-

sucedida (metafórica ou não) de um objeto a um recipiente, mas, para uma sentença

ditransitiva ser interpretada como tal, não são colocadas restrições semânticas

específicas sobre o constituinte verbal no nível do detalhe motor ou perceptual – nós

não temos como saber qual efetor está sendo usado, de que jeito está sendo usado ou

qual a direção na qual o movimento será codificado. Nessas condições, tanto um verbo

de transferência causada pelos pés (como “chutar”) quanto um verbo de transferência

causada pelas mãos (como “tocar”) pode ocorrer em construções ditransitivas.

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Essa ambivalência que as construções, para ser combinadas, demonstram em

relação ao detalhe simulativo é motivada. Poderia ser bastante oneroso para o usuário da

linguagem se, ao processar qualquer enunciado, lhe fosse requerido acessar o conteúdo

motor e perceptual detalhado de cada uma das possíveis interpretações do enunciado.

De preferência, unidades linguísticas parecem codificar só generalizações sobre

aspectos da ação, para o ditransitivo, é saber se eles podem ou não ser interpretados

como efetuando uma transferência de posse de um ou vários tipos. Tais generalizações,

também conhecidas como esquematizações ou parametrizações, constituem

representação de significado puramente linguística, por ser bastante geral para permitir

operações de combinação de elementos linguísticos. No entanto, eles facilitam a

simulação por serem fortemente ligados aos detalhes simulativos sobre os quais eles são

esquematizados.

b) a segunda evidência de que representações de significados linguísticos são

diferentes de conteúdo perceptual e motor a que se conectam deriva da possibilidade de

compreender sentenças que envolvam novos conteúdos de simulação. Se a compreensão

da linguagem fosse fortemente restrita pelas possibilidades motoras e perceptuais reais

proporcionadas pela nossa experiência real de mundo, então não deveríamos ser hábeis

para compreender a linguagem que conflita significativamente com essa experiência.

Mas nós sabemos que as pessoas podem fazer isso. Sentenças como as destacadas em

(60) são inteiramente interpretáveis e simuláveis.

(17) Em Saramandaia tudo era possível. Quando o Coronel Zico se aborrecia e

levava uma toalha ao nariz, começavam a sair formigas. Isso aconteceu durante

toda a novela, até que no último capítulo, acredite, a casa dele afundou num

imenso formigueiro. Outra cena clássica foi a explosão da Dona Redonda. Num

belo dia ela vinha caminhando pela praça aí começou a inchar, inchar e boom!

Explodiu!. Lembro-me que a mão dela caiu na mesa do Professor Aristóbulo. Por

falar nele, nas noites de lua cheia ouvia-se o uivado aterrorizante. Sim, ele virava

lobisomem. Já a fogosa Marcina, quando se excitava, a fumaça subia. Seu colchão

era trocado quase todo dia. Sempre amanhecia queimado pelo fogo da morena.

Mas nada se comparou a clássica cena que encerrou a novela. O personagem João

Gibão, brilhantemente interpretado por Juca de Oliveira, estava encurralado numa

encosta. Quando tudo parecia perdido, ele abriu as asas e alçou voo.

(portaldasseries.blogspot.com/2009/06/clássicos-da-teve-brasileira.html, em

09/01/2010).

11.4.1.2 Ênfase no processamento linguístico de quem compreende

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Nesse modelo, a ênfase recai sobre o processamento linguístico, da perspectiva de

quem compreende. Enquanto as outras abordagens enfatizam a modelagem do

conhecimento linguístico ao invés do processamento online, o modelo de GCC toma

como certo que as construções formam a base da Linguística Cognitiva e se concentra

na exploração de como as construções são processadas na compreensão linguística

online (ou dinâmica). Além disso, a GCC está centralmente preocupada em descrever

como as construções de uma determinada linguagem se relacionam com o

conhecimento corporificado no processo de compreensão da linguagem. Sendo assim,

grande parte da investigação até hoje, em GCC, tem sido focada no desenvolvimento de

uma linguagem formal que possa descrever as construções de uma língua como o

português. Essa língua "formal" também precisa ser capaz de descrever os conceitos

corporificados que as construções acionam no processo de compreensão da linguagem

dinâmica.

Como vimos, a GCC adota os princípios básicos da gramática de construções

padrão (GOLDERG, 1995; KAY; FILLMORE, 1999), e da gramática cognitiva

(LANGACKER, 2008), assumindo que todos os conhecimentos linguísticos, em todos

os níveis, podem ser caracterizados como pares de forma e significado chamados

construções. Compreender enunciados, de maneira bem ampla, envolve a ativação

interna de “esquemas corporificados”, juntamente com a simulação mental dessas

representações no contexto de geração de um rico conjunto de inferências. Construções

são importantes na abordagem em tela, porque fornecem a interface entre

conhecimentos fonológicos e conceituais, evocando, para isso, estruturas semânticas

corporificadas.

Consideremos o exemplo (61):

(18) Roberto Carlos jogou flores para a multidão (Folha Online, em 19/04/2009).

Em (61), uma análise construcional presume que a estrutura argumental da

atividade ditransitiva impõe uma interpretação em que uma entidade (Roberto Carlos)

executa uma ação (jogar) que causa outra entidade a receber uma coisa (flores). Apesar

de o verbo “jogar” ser recorrente em muitas estruturas argumentais, sua aparência em

“Roberto Carlos jogou flores para a multidão” é permitida apenas se o significado for

reconhecido como contribuindo para um evento de transferência. A palavra “jogou”

evoca uma ação física específica que também denota informação de tempo e aspecto

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relacionada ao evento maior em que está envolvido. Prototipicamente o esquema

JOGAR ativa a ideia de que foi empregada alguma energia no esforço de provocar que

uma entidade (no caso, “as flores”) mova-se através do ar. Mais especificamente, o

esquema JOGAR ajuda a arquivar o esquema força/movimento dentro de uma

construção ditransitiva ativa. Então, “jogar” se relaciona a uma forte ação sobre uma

entidade causando seu movimento, incluindo um atirador (agente) e o objeto atirado.

Construções não são determinísticas, mas buscam o ajuste entre um enunciado e o

contexto específico. No fim, o resultado do processamento acaba sendo o melhor

conjunto de ajustes de construções.

Uma breve visão da análise cosntrucional fornece o primeiro passo na

determinação do significado do enunciado “Roberto Carlos jogou flores para a

multidão”. O significado emerge da simulação de estruturas semânticas fundamentais

caracterizadas pela análise construcional. Primeiramente, esquemas de ação, ou x-

esquemas, que são usados para executar ou perceber uma ação exercida na compreensão

da ação. Por exemplo, o esquema JOGAR evocado por “jogou”, que é explícito,

fundamentado na representação do padrão semântico usado por um agente (ou aquele

que joga) para realizar uma ação de jogar. Esse esquema captura especificamente uma

sequência de ações que são relacionadas ao se jogar um objeto, incluindo possivelmente

ações preparatórias (p. ex. pegar o objeto e movê-lo em uma posição de partida

adequada) e o movimento de adequação do braço para lançar o objeto. Ações

subsidiárias que movem objetos ao longo de caminhos adequados com baixa força são

também consideradas. Esse esquema de execução de jogar deve também especificar

outras condições que possivelmente sejam mantidas em diferentes fases do evento, tais

como o fato de que o objeto jogado partiu da mão de um agente e que o objeto vai

voando até uma meta.

Em geral, construções tais como a ditransitiva habilitam os ouvintes a acessar

conhecimentos dinâmicos detalhados que caracterizam estruturas corporificadas ricas.

Um resultado importante dessa análise é que os x-esquemas podem fornecer o

significante inferencial para evocar significados detalhados para qualquer enunciado.

Por exemplo, parte das inferências relacionadas ao enunciado Roberto Carlos jogou

flores para a multidão se deve aos aspectos de estágios cronológicos inerentes ao

esquema de transferência (no nível do evento) e o esquema (no nível da ação de jogar),

como o seguinte:

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Quadro 13: Esquemas de Roberto Carlos jogou flores para a multidão

Essa análise de esquemas de ações corporificadas pode também especificar um

rico conjunto de significado inferencial evocado por enunciados metafóricos como

Roberto Carlos jogou flores aos internautas. Esse enunciado enfatiza os mesmos

eventos representados em Roberto Carlos jogou flores para a multidão, por meio da

construção ditransitiva. Mas a expressão “os internautas” não pode ser um recepiente

literal dentro do esquema TRANSFERÊNCIA, tendo em vista que, no contexto da

Internet, só poderiam receber informações digitalizadas. A solução para esse problema é

construir uma projeção metafórica que admita um domínio meta que permita à

construção a ser estruturada em termos do domínio fonte (do objeto transferido),

habilitando, assim, “os internautas” a serem compreendidos como possíveis recipientes.

Além disso, tanto os eventos como os significados apresentados podem ser entendidos

como atos verbais de transferir.

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Bergen e Chang demonstram como o processo descrito acima produz a

simulação adequada, resultante de inferências, para a sentença destacada em (62).

(19) Mulher corta marido e espalha pedaços pela cidade

(http://www.brejo.com/b8/ler.noticia.php?ArtID=6177, acessado em 14/01/2010).

O compreendedor primeiro tenta reconhecer a sequência de sons em termos de

esquemas formais. Na fala ou em sentenças com palavras novas ou ambíguas, isso pode

exigir uma categorização mais sofisticada. Em (62), as formas são reconhecidas como

três esquemas formais (‘mulher’, ‘corta’ e ‘marido’) com as adequadas relações de

ordem temporal entre eles, apresentadas como setas verticais no lado esquerdo da

Figura 25.

Figura 25: Análise simplificada de Mulher corta Marido (Adaptada de BERGEN; CHANG, 2003, p.

148)

Em seguida, o processo de análise pressupõe que os constructos (instanciados

como construções) podem dar conta do enunciado; essas são construções cujos

elementos da forma estão presentes no enunciado. As quatro construções relevantes

desse enunciado são mostradas na coluna central da Figura 25. As construções

MULHER e MARIDO ligam-se a alguma forma fonológica (à esquerda) com um

esquema especial para cada respectivo referente (à direita). A construção CORTA liga

sua forma fonológica com uma predicação que apresenta um esquema chamado

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CORTAR, que é a esquematização motora e de percepção sobre cortar. Além disso, a

predicação é especificada como sendo sobre o presente, que passará a ser relevante

quando inferências forem propagadas, após a simulação.

A construção oracional TRANSITIVA une as formas e os significados das três

construções lexicais, que servem como seus componentes. Do lado da forma, ela

especifica uma relação de ordenação (o agente precede o verbo que precede o paciente),

enquanto que do lado do sentido, a sentença está ligada a uma predicação que codifica a

aplicação da força por parte de alguns meios. Sempre que o significado estiver ligado ao

esquema cortar, o agente é ‘mulher’, e o paciente é ‘marido’. A construção oracional

contribui, assim, com sua própria estrutura e significados esquemáticos, efeitos e

ligações entre esses e os dos seus constituintes. Em (61), o processo de análise

conseguiu encontrar um conjunto de construções que correspondessem ao enunciado.

As diferentes restrições se encaixaram, ou se unificaram, nos três domínios: forma,

significado e construção.