cap 11 linguÍstica cognitiva duque e costa
TRANSCRIPT
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-133-
11. CONSTRUÇÕES: CAPTURANDO A ESTABILIDADE
Construções – pares de forma e significado – têm sido a base do
maior avanço no estudo da gramática desde os antigos Estoicos.
(GOLDBERG, 2006, p. 4)
Neste capítulo, pretendemos demonstrar que, para cada integração conceptual, há
uma integração de formas linguísticas. Em capítulos anteriores, postulamos que padrões
de compressão recorrentes tendem a se tornarem convencionais. Esses padrões de
compressão estruturam redes de integração organizadas em pareamentos
“forma/conceito” específicos. De acordo com Torrent (2005, p. 96), “a forma linguística
não oferece todas as informações sobre o evento ao qual se relaciona; ela apenas marca
os caminhos que devem ser descobertos pelos seres humanos envolvidos no processo
comunicativo” durante a descompressão da forma e a realização das integrações
conceptuais necessárias ao entendimento.
A seguir apresentaremos as principais concepções formais de gramática,
identificaremos os fatores que tornam essas abordagens incoerentes com a perspectiva
que aqui assumimos.
11.1 Concepções de gramática
Duas acepções de gramática são assumidas com frequência pelos estudiosos da
linguagem: uma perspectiva estrutural, segundo a qual “gramática” é um conjunto de
sistemas relacionados (cf. BLOOMFIELD, 1957; SAPIR, 1954; BORBA, 1970), ou
uma perspectiva gerativa, que concebe a gramática como um mecanismo finito que
permite gerar o conjunto infinito de sentenças “aceitáveis” de uma determinada língua
(cf.: CHOMSKY, 1965; RAPOSO, 1992; MIOTO et al., 2000). Para sermos coerentes
com as expectativas desenvolvidas ao longo deste livro, apresentamos uma terceira
acepção, a construcionista, que concebe a gramática como um conjunto de construções,
ou seja, o mapeamento entre formas fonológicas e representações conceptuais (cf.
FILLMORE, 1988; GOLDBERG, 1995, 2006). No modelo aqui descrito, no entanto,
essas representações conceptuais são fundamentadas nos sistemas perceptivo e motor do
corpo humano, no intuito de parametrizar simulações mentais usando esses sistemas (cf.
BERGEN; CHANG 2003).
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-134-
11.1.1 Perspectiva estrutural
De acordo com Lopes (1976), numa abordagem estruturalista, compreender uma
gramática pressupõe o estudo de enunciados efetivamente realizados, sem que se
considerem as circunstâncias de contato entre o destinatário e o remetente da
mensagem. O trabalho do gramático, nesse caso, limita-se a efetuar a descrição, e não a
explicação, da gramática de uma língua.
O procedimento de descrição, adotado pelos estruturalistas, requer a adoção de
uma teoria de níveis, de acordo com a qual, a gramática se organiza em três níveis: o
nível mínimo (fonológico), o nível médio (morfológico) e o nível máximo (o
fraseológico). Esses níveis são organizados de forma hierárquica, uma vez que as
unidades do nível máximo são constituídas por unidades do nível médio e estas, por sua
vez, se constituem de unidades do nível mínimo. Para identificar unidades no interior de
cada nível, o gramático recorre à noção estruturalista de contraste (na cadeia
sintagmática) e, simultaneamente, à noção de oposição (na classe paradigmática),
utilizando, como recurso operacional, a comutação.
Segundo Lopes (1976), deve-se ao processo de comutação a existência de uma
classificação de formas e unidades linguísticas sincrônicas. Graças a essa taxionomia
paradigmática, é fácil identificar os itens de classes equivalentes procedendo à
substituição mútua em contextos específicos. Por outro lado, no que concerne à
taxionomia sintagmática, os itens são definidos pelos seus arranjos, ou seja, por aquilo
que os segue ou precede. Nesse caso, procede-se ao estabelecimento de contrastes, no
interior de um mesmo segmento do enunciado.
Em suma, o objeto de estudo do estruturalismo é postulado como sendo a Língua-
E, externa e extensional, o produto do desempenho, concebido como comportamento ou
hábito, altamente sensível à estimulação externa. No que concerne à aquisição, no
estruturalismo, essa é vista como a fase em que a criança é tida como extremamente
dependente de dados externos.
11.1.2 Perspectiva gerativa
Uma abordagem gerativa ocupa-se da sintaxe das línguas, como meio para
descrever uma entidade teórica, denominada Gramática Universal, subjacente a todas as
línguas. De acordo com Vitral (1995), isso não quer dizer que as gramáticas particulares
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-135-
sejam idênticas, mas sim, permeadas por aspectos sintáticos comuns a todas as línguas
do mundo. Nesse sentido, a Gramática Universal conteria apenas princípios aos quais se
associariam parâmetros de determinação das possibilidades de variação gramatical das
línguas. Na perspectiva em tela, os dados linguísticos representam um conjunto infinito
de sentenças gramaticais contrastando com sentenças agramaticais e a gramática é um
dispositivo que produz todos (e apenas) enunciados gramaticais.
Essa definição de gramática apresenta um caráter muito amplo, uma vez que pode
ser interpretada:
a) como um feixe de regras ordenadas (proposições lógicas);
b) como um conjunto de restrições ordenadas entre si e;
c) como qualquer outro tipo de sistema produtivo.
Vale salientar que, apesar do caráter cognitivo dessa concepção, seja qual for a
interpretação do que seja Gramática, trata-se de uma perspectiva gramatical que
concebe a mente isolada do corpo.
Nessa abordagem, dimensões tais como significado, influência do contexto na
interpretação e diferenças linguísticas individuais não devem ser contempladas pela
Gramática.
Numa perspectiva de cunho gerativista, o interesse da pesquisa se volta para o
conhecimento inconsciente da língua. Esse conhecimento teria um caráter intensional e
não extensional, o que inviabiliza um tratamento centrado no léxico, no morfema ou no
fonema. O uso inconsciente da língua não se dá por causa da internalização inconsciente
de hábitos, mas sim porque, ao se proferir sentenças, utiliza-se o conhecimento
automático do “sistema computacional” da língua. Em relação à aquisição, no
gerativismo, a criança é vista como aprendiz eficiente a despeito da pobreza de
estímulos. Em busca das hipóteses que melhor sustentassem uma abordagem dedutiva
de gramática, os estudos gerativistas passaram por algumas reformulações, dentre as
quais destacamos a Teoria dos Princípios e Parâmetros e o Programa Minimalista.
A Teoria dos Princípios e Parâmetros, ou versão padrão da Gramática Gerativa, é
um modelo que busca investigar os princípios que configuram o estado inicial da
faculdade da linguagem, bem como seus mecanismos de interação na constituição da
gramática particular. De acordo com essa abordagem, todos os seres humanos estão
preparados para desenvolver a faculdade da linguagem, bastando, para isso, estar
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-136-
expostos a determinada língua, uma vez que a linguagem lhes é inerente. Dessa forma,
assume-se que nenhuma língua é ensinada ao ser humano, pois sua aquisição não se
restringe a adquirir estruturas linguísticas externas.
Figura 19: Gramática segundo a Teoria dos Princípios e Parâmetros
A Figura 19 demonstra que, ao ser exposto à primeira língua, o falante nativo,
orientado pela Gramática Universal, vai ampliando seus conhecimentos linguísticos.
Nesse sentindo, é da competência da Linguística Gerativa descrever ou explicitar essa
gramática “implícita”, que o falante manipula tão bem. De acordo com Chomsky (1986,
1988), a Língua-I (língua internalizada) seria o estágio inicial, relacionado à noção de
competência linguística, esse estágio constitui um fenômeno individual e envolve o
sistema representado na mente de um indivíduo particular. Em outro sentido, a Língua-
E (língua externa) pode ser entendida como um conjunto de estruturas compartilhadas
numa comunidade de fala, isto é, envolve o conhecimento linguístico compreendido
independentemente das propriedades da mente do falante nativo de uma determinada
língua. Nesse sentido, a Língua-E se define em termos da totalidade de enunciados que
um indivíduo é capaz de aprender numa comunidade de fala.
Um dos aspectos mais relevantes dessa perspectiva é o desenvolvimento de uma
explicação do que se passa na mente dos falantes diante da criatividade linguística, ou
seja, da capacidade de generalização e acionamento de regularidades subjacentes, antes
ignoradas. Ao buscar explicações, a Gramática Gerativa desenvolveu noções como
gramaticalidade e agramaticalidade. Nesse sentido, uma teoria científica da
organização sintática das sentenças deve, antes de tudo, verificar todas as sentenças que
efetivamente são próprias da língua, sem ignorar nenhuma delas.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-137-
Uma dos postulados da perspectiva gerativa considera que o falante nativo, com
um número finito de elementos, pode formar um número infinito de sentenças na sua
língua. No entanto, para que isso aconteça, há um conjunto de regras e princípios que
determinam a ordenação dos elementos. Vale ressaltar que o conhecimento do falante
ideal revela, além do conjunto de regras e princípios, um dicionário mental com
informações sobre as categorias gramaticais, o que lhe permite reconhecer que algumas
formas pertencem, por exemplo, à categoria verbo, e outras, à categoria nome.
Graças ao princípio da recursividade da linguagem, com elementos finitos é
possível gerar frases infinitas. Essas frases podem ser bem ou mal-formadas. Portanto,
torna-se essencial a existência de filtros (princípios) que revelam o tipo de formação de
uma frase.
Ao defender a concepção modular da mente humana e postular que ela seja
formada por módulos autônomos, cada um deles caracterizado por princípios e
representações específicas, Chomsky (1981) argumenta que, pelo fato de o falante
possuir um conhecimento gramatical interno, as regras não são formadas a partir do
exterior, ou seja, não são originadas das propriedades absolutas das expressões
linguísticas, mas da mente humana (com suas capacidades linguísticas altamente
específicas).
Com relação ao Modelo Minimalista, Chomsky e seus seguidores avançam mais
um pouco em direção à abstração teórica. Os princípios passam a ser vistos como
decorrentes de uma lei mais geral, o Princípio da Interpretação Plena, e passam a servir
como condições de interface e não mais como condições sintáticas stricto sensu. Para
isso, são eliminadas as estruturas profundas e as superficiais, o que torna a derivação
uniforme, partindo de um conjunto de palavras em direção ao nível de Forma
Semântica1 (FS), por meio de regras de combinação (merge) e de movimento, com uma
saída para a Forma Fonética (FF) em algum ponto da derivação. Nesse contexto, as
diversas línguas podem ter pontos diferentes de spell-out2.
1 A Forma Semântica, ou Forma Lógica, é composta minimamente de termos não ordenados S, O e V.
Esses termos são organizados pela Forma Sintática. 2 Momento em que a derivação separa os objetos distintos de cada nível de representação, ou seja, Forma
Fonética e Forma Semântica.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-138-
Figura 20: Modelo Minimalista de gramática
A Figura 20 apresenta uma arquitetura de língua que fornece as informações aos
sistemas cognitivos com os quais faz interface, isto é, o sistema articulatório-perceptual
e o sistema conceptual-interacional, através de níveis de representação linguística:
forma fonética e forma semântica. É fácil vislumbrar que, nesse modelo, a língua é o
conjunto de expressões que contêm dois componentes: o semântico e o fonético.
Enquanto as formas fonéticas representam instruções para o sistema sensório-motor, as
formas semânticas representam as instruções para o sistema conceptual-interacional.
Dessa forma, na perspectiva gerativa, o conhecimento gramatical do falante é
estruturado em componentes, que descrevem as dimensões das propriedades de uma
sentença. O componente fonológico, por exemplo, é constituído por regras e restrições
que regem a estrutura de som de uma sentença da linguagem. O componente sintático é
formado por regras e restrições que regem as combinações de palavras de uma sentença.
O componente semântico apresenta regras e limitações que regem o significado de uma
frase. Em outras palavras, cada componente separa o tipo específico de informação
linguística que está contida em uma frase: aspectos fonológicos, sintáticos e semânticos.
11.1.3 Perspectiva construcional
Diferentemente da Gramática Estrutural e da Gramática Gerativa, uma gramática
de construções é um modelo que não se detém exclusivamente aos enunciados nem ao
fato de esses enunciados serem gramaticais ou agramaticais. Em vez disso, o foco de
uma gramática de construções recai sobre o conhecimento e os dispositivos que falantes
reais evocam durante o uso da língua.Assim como a abordagem gerativa, o modelo
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-139-
construcional é uma perspectiva cognitivamente orientada, uma vez que visa capturar o
que acontece na mente das pessoas quando produzem e processam a linguagem. No
entanto, trata-se de uma abordagem maximalizada, isto é, uma gramática é a totalidade
do conhecimento que um usuário de uma língua individual possui sobre como produzir
e compreender uma língua, incluindo significado, interpretação, contexto, detalhes
específicos do falante etc.
A abordagem construcional postula que o conhecimento linguístico está
comprimido em pares forma/significado, na forma de palavras, morfemas, expressões
idiomáticas e em sequências de palavras ou classes de palavras. Uma gramática
construcional (ou de construções), no nosso entendimento, que corresponde ao
referencial cognitivista aqui proposto é a Gramática de Construções Corporificada
(doravante GCC), desenvolvida por Benjamin Bergen e Nancy Chang, em 2005. Na
perspectiva defendida por esses dois linguistas, a ênfase é dada ao processamento
linguístico, em especial à compreensão da linguagem. Diferentemente de outras
abordagens, o modelo GCC postula que “construções” formam a base do conhecimento
linguístico e volta seu foco para o modo como “construções” são processadas online.
Antes de apresentarmos os pressupostos da GCC, discutiremos os conceitos subjacentes
às noções de “construção” e de “corporalidade”.
11.2 O que é uma construção?
O rótulo “construção” (estrutura simbólica, para Langacker, ou esquema
genérico, como apresentado em 9.1.3.) diz respeito a qualquer par que envolva uma
forma e um significado3. Dessa forma, palavras, morfemas e expressões idiomáticas,
obviamente, são construções porque apresentam um significado e uma forma
fonológica/gráfica.
Figura 21: Construção: forma/significado
3 Diferentemente da acepção adotada pela Gramática Gerativa, os significados, aqui, são derivados das
experiências vivenciadas pelo nosso corpo. Por exemplo, o significado de ‘ir’ é o movimento corpóreo
que realizamos ao nos deslocar de um ponto no espaço ao outro.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-140-
A seguir são apresentados alguns exemplos de construções, em que são indicados
os pares forma e significado.
(01) [Piloto] cruza [linha de chegada] a pé após acidente. (www.lancenet.com.br,
em 27/04/2009).
(02) O último gol aconteceu aos 42 minutos, josian cobrou escanteio curto para
Thiers, [o artilheiro da partida] cruzou [a bola][pelo alto], a defesa do Valério
ficou olhando, Rhuan que substituiu Fidel subiu e cabeceou pra baixo e fechou a
goleada, Cruzeiro 7 x 0 (www.futebolitabirano.com.br, em 28/08/2009).
(03) [Madson] avançou bem e cruzou [a bola] para [Kleber Pereira]
(www.coxanautas.com.br, em 05/08/2009).
A construção (44) apresenta o significado de movimento ao longo de uma
trajetória, a (45), de movimento forçado ao longo da trajetória e a (46), de
transferência de posse.
No caso específico das expressões idiomáticas, expressões cujo significado
convencional não pode ser interamente previsto com base nos seus componentes, seu
comportamento é, em parte explicável pelas regras sintáticas, e em parte não explicável.
Se uma teoria, como a gerativa, defende que todos os elementos da língua ou pertencem
ao léxico ou à sintaxe, o que fazer com as expressões idiomáticas, que guardam
características do léxico e da gramática?
(04) A ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), declarou que tudo no Brasil é
eleitoreiro, e condenou a “demonização” do presidente do Senado, José Sarney
(PMDB/AP). Segundo ela, atribuir todos os problemas a uma só pessoa é o
primeiro passo para que tudo acabe em “pizza” e que a crise seja jogada “debaixo
do tapete” (www.cidadeverde.com, em 09/07/2009).
Em (47), a semântica e a sintaxe das expressões “acabar em pizza” e “jogar x para
debaixo do tapete” são complexas e não previsíveis a partir de regras gerais. O que se
defende aqui é que construções são basicamente expressões com slots que podem ser
preenchidos com a liberdade um pouco maior do que expressões idiomáticas. Padrões
sintáticos genéricos, como ditransitividade, datividade e movimento causado são
“construções” porque configuram um pareamento de forma (puramente sintática) e
significado (um evento de transferência ou movimento de transferência, por exemplo).
Em (48) apresentamos um exemplo de construção ditransitiva e, em (49), de construção
dativa.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-141-
(05) Pela manhã, o presidente entregou apartamentos para moradores que
viviam em palafitas no Rio Anil, em São Luís (Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, no clipping de notícias, em 11/12/2009).
(06) Na Câmara Federal (dia 18/8), Emiliano José (PT-BA)
criticou a gestão do ex-governador Paulo Souto (DEM) e afirmou
que ele deixou uma “herança maldita” para o povo da Bahia na
área de saúde, que “está sendo diagnosticada pelo Governo Jaques Wagner” (Jornal Feira Hoje online, em 22/08/2009.
Vale observar que, apesar de os verbos das sentenças destacadas em (48) e (49)
apresentarem diferenças de significado, ambas revelam a intenção do agente (o
presidente/o ex-governador Paulo Souto) de transferir a posse (entregou/deixou) de um
paciente (apartamentos/uma “herança maldita”) a um recipiente (para os moradores que
viviam em palafitas no Rio Anil/para o povo da Bahia), sendo que “o recipiente” deve
ser capaz de tomar a posse.
De acordo com Bergen (2008), alguns teóricos não admitem que construções
façam parte da língua. Chomsky (1989, p. 43), por exemplo, afirma categoricamente
que na sintaxe não há regras (nem princípios) para línguas particulares (ou construções
específicas). Segundo ele “construções gramaticais tradicionais devem ser consideradas
como [...] coleções de estruturas com propriedades decorrentes da inter-relação entre
princípios fixados e um conjunto de parâmetros”. Se a gramática não é nada mais que
um “dispositivo para produzir sentenças gramaticais”, ela é relativamente irrestrita. Os
gerativistas desejam que suas gramáticas sejam mínimas e, nesse sentido, nenhum
padrão sintático que possa ser ancorado em outra coisa é reconhecido. Apesar de
compartilharmos um referencial cognitivista básico, a noção de gramática adotada pelos
gerativistas é muito diferente da que estamos defendendo, tendo em vista que buscamos
documentar não apenas os comportamentos sintáticos, mas uma base bem mais ampla
de comportamento linguístico. O fato de construções unirem interpretações sintáticas e
semânticas torna a abordagem aqui defendida incompatível com qualquer modelo
modular e/ou componencial de gramática. Cumpre ressaltar que não consideramos a
existência de uma divisão entre expressões idiomáticas e demais construções.
Acreditamos que as construções apresentam algumas variações, com poucos ou apenas
um componente fixo, como é o caso das expressões idiomáticas (“jogar <alguma coisa>
para debaixo do tapete”), alguns permitem muita variação, e outros não têm nenhum
componente fixo (como é o caso da construção passiva). Uma análise das construções
passivas, portanto, deve levar em conta a estrutura como um todo, por se tratar de uma
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-142-
unidade gramatical. A expressão particular de agente da passiva através de um sintagma
preposicional, é simplesmente uma propriedade idiossincrática da construção passiva,
que não deve ser reduzida a um caso de derivação do significado da preposição “por” e
algumas regras gramaticais gerais. Cumpre ressaltar que, para darmos conta do
“comportamento construcional”, ou seja, elementos sintáticos se correlacionando
verdadeiramente a elementos semânticos, temos que nos basear no uso linguístico, o
que nos impele a lançar mão de um modelo de gramática Baseado-no-Uso.
11.2.1 Um modelo de gramática baseado-no-uso
Um modelo Baseado-no-Uso4 (MBU) é uma perspectiva que nos fornece
subsídios para compreender como o conhecimento linguístico é representado e
armazenado na mente dos falantes. Para isso, o MBU leva em consideração os efeitos da
frequência na linguagem, tendo em vista que os esquemas genéricos são adquiridos,
moldados e permanentemente influenciados pelo uso. Desse modo, acreditamos que a
frequência (maior ou menor) de determinados padrões de uso não pode ser indiferente
ao conhecimento linguístico do falante.
De acordo com Langacker (1999), através da repetição, mesmo um evento
altamente complexo pode “converter-se numa rotina bem ensaiada”, que é facilmente
elucidada e executada com confiança. Quando uma estrutura complexa passa a ser
manipulada como um agrupamento “pré-embalado” (pre-packaged), sem requerer mais
atenção às suas partes (ou o arranjo dessas partes), essa estrutura tem status de unidade.
Essa estrutura unitária (ou construção gramatical) apresenta uma forte frequência
de tipo (type frequency) quando é instanciada por muitos itens lexicais diversos e
apresenta uma fraca frequência de type quando é instanciada por poucos itens lexicais.
Por outro lado, se instanciada muitas vezes pelos mesmos itens lexicais, apresenta uma
alta frequência de ocorrência (token frequency) e uma baixa frequência de token se a
construção, junto com o item lexical, apresenta um uso infrequente.
Quadro 9: Construção gramatical e frequência
4 De acordo com Langacker (2000, p. 9), um Modelo Baseado-no-Uso (Usage-Based Model) é aquele que
considera o sistema linguístico fundamentado em eventos de uso (evento de uso: “pareamento de uma
vocalização, em toda a sua especificidade, com a conceitualização que representa sua completa
compreensão contextual”).
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-143-
Frequência de type Frequência de token
Construções
instanciadas muitas vezes por muitos itens
lexicais diferentes
ALTA BAIXA
Construções
instanciadas muitas
vezes pelos mesmos
itens lexicais
BAIXA ALTA
No Quadro 9, é possível verificar que tanto as construções quanto as instâncias de
construções podem ser muito frequentes. Em ambos os casos, a alta frequência de type
leva à rotinização5 das construções e a alta frequência de token leva a rotinização das
instâncias de construções nas mentes dos falantes/ouvintes. Dessa forma, a rotinização é
uma consequência da alta frequência, de types ou de tokens. As diferenças no tipo de
frequência (e suas rotinizações) de dois esquemas genéricos, por exemplo, as
construções transitivas e ditransitivas, são ilustradas pela Figura 22.
Figura 22: Diferença na frequência de type de duas construções (BARDDAL, 2001, p. 31)
Na Figura 22, as linhas indicam as frequências com que as construções podem
ocorrer. O gráfico relativo à construção transitiva apresenta mais linhas e, portanto, esse
tipo de esquema genérico é mais enraizado que o ditransitivo.
A diferença entre uma construção rotinizada (frequência de type) e uma instância
rotinizada de uma construção (frequência de token) é ilustrada pela Figura 23.
Figura 23: Construção rotinizada e token rotinizado (BARDDAL, 2001, p. 32)
O diagrama da esquerda mostra uma construção que exibe um alto grau de
rotinização porque há muitos types que a instanciam, como o destaque em (50). O
5 Força lexical (lexical strength), na terminologia de Bybee (2000, p. 68) e “entricheiramento”
(entrenchment), na terminologia de Langacker (2000, p. 3).
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-144-
diagrama da direita mostra uma instância de uma construção, isto é, um token da
construção que é muito frequente e, portanto, é mais rotinizado que a construção
superordenada, como o destaque em (51).
(07) Aos 14, Danilo cobrou falta com perigo, à direita de Velloso, que ficou só
olhando a bola sair pela linha de fundo. Quatro minutos depois, Alan fez boa
jogada, mas diante do goleiro do Atlético, chutou a bola no travessão. Aos 19,
Alex Alves penetrou na área do Vasco mas chutou por cima
(http://www.netvasco.com.br/news/noticias10/14080.shtml, acessado em
11/01/2010).
(08) Chutou o balde – O ex-jogador do Grêmio Iúra, que jogou no clube nos anos
1970, em entrevista à Rádio Gaúcha deu uma declaração polêmica. Para ele, o
atacante Maxi López atrapalha o ataque do time: – Estou feliz porque o Maxi
López não vai jogar – disse. Iúra explicou: segundo ele, o argentino comete muitas
faltas e não permite que os meias se desenvolvam. O mau momento de Tcheco e
Souza também é creditado ao atacante. Sobre o presidente Duda Kroeff, Iúra disse
que se arrependeu de fazer campanha pela sua eleição (Zero Hora online, em
25/10/2009).
A Construção transitiva (SVO), exemplificada em (50) “Alan (...) chutou a bola”,
é recorrente em Língua Portuguesa: daí sua frequência de type, evidenciada no quadro
10.
Quadro 10: Construções SVO
S V O
Alan Chutou a bola
Danilo Cobrou Falta
Alan Fez (boa) jogada
O argentino Comete muitas faltas
A combinação entre os itens lexicais “chutar” e “balde” (exemplo 51) é recorrente
em língua Portuguesa. A frequência de ocorrência (token) dessa mesma combinação nos
leva a interpretá-la como um único item lexical complexo, da mesma forma que “dar a
volta por cima”, “encher linguiça”, “entrar pelo cano” etc.
Pelo exposto até aqui, podemos concluir que a produtividade é concebida como
uma consequência da alta frequência de type da construção. Quanto mais “aberta6” for
uma construção, ela será mais produtiva. O mais provável é que a construção acabe
atraindo novos itens e se espraiando para outros já existentes que, de algum modo,
cumpram os critérios relevantes para ocorrer numa construção particular, acabem se
rotinizando e se tornando produtivas.
6 No sentido de poder instanciar mais itens lexicais.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-145-
Quanto às altas frequências de token, essas não contribuem para a produtividade
global de uma construção. Normalmente, apenas o token em si é rotinizado, como
unidade independente.
Podemos evidenciar a noção de frequência (de type e de token), adotando
exemplos extraídos da dimensão morfológica da linguagem, como no caso da formação
de palavras por meio do prefixo in- e do sufixo -vel da língua portuguesa. São afixos
que representam um esquema altamente produtivo, formador de palavras tais como
incrível, amável, imperdoável, impossível, invisível e intocável. Por se tratar de
esquemas muito recorrentes, vão se tornando cada vez mais fortes; por isso, sempre que
os falantes precisam criar novas palavras, acabam lançando mão de afixos como esses:
imexível7, por exemplo, apesar da polêmica que se criou em torno da sua criação, é uma
palavra possível graças ao esquema altamente produtivo dos afixos in- e -vel.
Quanto à frequência de token, considerando-se a dimensão morfológica da
linguagem, podemos citar dinheirama, arvoredo, mundaréu, imensidão, negritude e
medonho8, termos recorrentes no português do Brasil, mas que não são produtivos.
Essas palavras são pouco analisadas e praticamente não participam de esquemas.
Em síntese, o comportamento regular dos itens linguísticos é capturado pelas
construções (type) e pelas suas instâncias (token). Defendemos que esse conhecimento é
armazenado na mente dos falantes, com algumas construções sendo mais rotinizadas
que outras, ou seja, tanto as construções quanto as instâncias subjacentes a elas são
armazenadas no léxico, diferentemente da abordagem gerativa, de acordo com a qual, os
itens irregulares são armazenados no léxico enquanto os padrões de comportamento
linguístico são gerados, durante o processamento, por meio de regras.
11.2.2 Rotinização e graus de estabilidade das construções
Na seção anterior, mostramos que o fato de as construções serem tomadas como
unidades básicas do conhecimento linguístico se choca com a dicotomia clássica entre
itens lexicais e regras. De acordo com Salomão (2009, p. 38-39), na perspectiva das
construções, “o todo não é a soma das partes”, o que pode ser evidenciado com as
palavras carcereiro e prisioneiro, cujas raízes nominais são sinônimas (prisão =
7 Termo criado em 1990, pelo então Ministro do Trabalho, Antônio Rogério Magri, para se referir ao
Plano Collor. Disse o ministro em entrevista: “O plano é imexível”. 8 Exemplos extraídos de: ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O Português da Gente: a língua que
estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2007, p. 106.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-146-
cárcere). Ao acrescentar o sufixo -eiro, no entanto, o resultado são duas palavras de
sentidos antagônicos (carcereiro é o indivíduo responsável pela guarda dos
prisioneiros). Isso revela que a construção não é uma simples combinação de
elementos, mas um pareamento de forma e sentido.
Salomão (2009, p. 41-42) apresenta, de forma detalhada, a composição dos polos
(forma/sentido) que compõem cada construção. Segundo a autora, o polo do sentido
contempla duas dimensões: uma conceptual e uma discursiva. A dimensão conceptual
inclui os esquemas imagéticos (9.1.1.1), esquemas sensórios-motores (cf. o umwelt –
Cap. 8), frames (9.1.1.2), projeções metafóricas e metonímicas (9.1.1.3) e mesclagens
(cap. 10). A dimensão discursiva do polo do sentido engloba a ativação de espaços
mentais (cf. Domínios Locais – 9.2), estruturados a partir dos Modelos Cognitivos
Idealizados, Molduras Comunicativas e Esquemas Genéricos (cf. Domínios Estáveis –
9.1), ponto de vista, postura epistêmica adotada, status informacional, registro
sociolinguístico e informações relativas ao gênero textual no qual determinada
construção normalmente ocorre.
Quanto ao polo da forma, a autora revela duas dimensões: uma dimensão física do
significante (fonemas, letras e gestos – LIBRAS) e uma dimensão morfossintática
(classe sintática dos constituintes e suas relações estruturais hierárquicas ou de
dependência).
De acordo com Goldberg (2006, p. 5), todos os níveis de análise gramatical
envolvem construções: Pares de forma/sentido, incluindo morfemas ou palavras,
expressões idiomáticas e padrões frasais completos.
Quadro 11: Exemplos de construções variando em tamanho e complexidade
(adaptado de GOLDBERG, 2006, p. 5)
Construções Exemplos
Morfema in-
-vel
Palavra Homem
cigarro
ou
Palavra complexa ventilador de teto
janela de correr
Palava complexa (parcialmente preenchida) N-s (plurais regulares)
N-a (gênero feminino)
Expressão Idiomática (preenchida) “ir de vento em popa”
“dar a mão à palmatória”
Expressão Idiomática (parcialmente
preenchida)
“X pediu a mão de Y em casamento”
“X mandou Y para o inferno”
Covariacional não só (não apenas).... mas também (como) – O
programa de Direitos Humanos pode trazer
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-147-
problemas para o governo não só com o
agronegócio, mas também com outros setores.
A imprensa é um deles (globo.com, em
07/01/2010).
Ditranstiva (duplo objeto) Suj V O1 O2 – A cantora doou R$ 150 mil para
os necessitados.
Passiva Suj Aux Vpp (por x) – O livro foi comprado
pelo seu amigo.
De acordo com Bergen (2008), as construções gramaticais fornecem sentido de
três formas diferentes:
a) fornecendo significado simplesmente como os itens lexicais o fazem: os casos
mais comuns são as expressões idiomáticas (“chutar o balde”) e os esquemas
genéricos (de movimento causado, resultativos etc.);
b) especificando propriedades de significado de ordem mais abstrata, como
noções de:
a. Aspecto:
(09) “O governo da Malásia comprou os caças MiG-29 por um valor
relativamente baixo em 1993”, em http://cavok.com.br/blog/?p=1792, acesso em
07/12/2009.
(10) “Afinal.. O caça francês que o Lula está comprando poderia abater o caça
russo que o Hugo Chavez comprou?”, em .
http://br.answers.yahoo.com/question, acessado em 21/11/2010.
Nos exemplos acima, verificamos uma diferença de tempo gasto na duração do
processo verbal. Em (52), o processo é apresentado em sua totalidade, de forma
encapsulada. Porém, em (53), o processo verbal é incompleto, prolongando-se por tem
indeterminado.
b. Pessoa: a perspectiva de representação mental do evento a ser adotada:
imagine-se andando em linha reta na direção de uma parede
determinada. Agora imagine um policial andando em linha reta na
direção de uma árvore.
c) junção das contribuições semânticas das palavras aos esquemas genéricos que
determinam quem fez? o que fez? a quem fez? como fez? etc.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-148-
(11) O policial colocou sua pistola em cima da mesa.
(12) A pistola colocou seu policial em cima da mesa.
Em suma, a noção de construções, adotada aqui, deve dar conta das
representações biologicamente plausíveis da experiência e compreensão do mundo por
parte do ouvinte/leitor. Esse conhecimento é codificado por meio de esquemas que
descrevem os papéis envolvidos e suas relações no cumprimento da experiência
esquemática a ser interpretada por um compreendedor9. Esses papéis e relações podem
fornecer uma rica fonte de inferências para a compreensão da linguagem. Esses
esquemas são originados nas experiências sensório-motoras empíricas disponíveis a um
compreendedor da linguagem corporificada.
11.3 O que é corporificação?
Os adeptos da abordagem que se volta para a natureza social e contextual do
conhecimento defendem que os fatores linguísticos, sociais e interacionais devem ser
incluídos na análise dos domínios cognitivos. A principal característica de uma
abordagem situacional é que ela considera os processos interativos como cruciais e
explica a cognição individual, dando conta apenas das suas contribuições para a
interação.
Apesar de abordagens como essa produzirem muitos resultados importantes e
ajudarem a deslocar a análise da aprendizagem, para além dos processos cognitivos
individuais e internos, cabe questionar se a natureza situada da cognição pode ser
compreendida integralmente levando-se em conta apenas fatores sociais e processos
interindividuais.
Assim como Bergen (2008, p. 2), acreditamos que o pensamento e a
aprendizagem são situados em contextos biológicos e experienciais, que moldam, de
modo não arbitrário, as estratégias de compreensão do mundo pelos seres humanos.
Nesse sentido, “a cognição humana é baseada na corporalidade, o que ajuda a
determinar a natureza da compreensão e do pensamento”.
9 Adotaremos aqui o termo compreendedor para nos referirmos ao papel do ouvinte/leitor, durante o
processo de decodificação e interpretação dos enunciados.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-149-
Bergen admite que o conhecimento (e a cognição em geral) esteja inserido em
contextos sociais específicos, mas questiona o que torna possível “a inteligibilidade
mútua subjacente às compreensões sociais partilhadas”. Ao buscar respostas para esse
questionamento, o autor defende que as bases do conhecimento situado derivam da
experiência corporal e da ação humana, realizadas por meio de “processos básicos de
uma cognição corporalizada e de esquemas conceptuais”.
As concepções que consideram a corporalidade em suas investigações defendem
que as particularidades do organismo, produzindo, aprendendo e compreendendo a
linguagem pode ter um efeito sobre o caráter da linguagem. De acordo com Lakoff e
Johnson (1999, p. 37-38), a hipótese de uma mente corporificada abalou
consideravelmente a distinção entre percepção e conceptualização. Na concepção dos
autores, e de acordo com o que foi apresentado nos capítulos anteriores, em uma mente
corporificada, o mesmo sistema neural, engajado na percepção ou no movimento
corporal, desempenha um papel central na concepção, ou seja, as mesmas estruturas
neurais responsáveis pela percepção, pelo movimento e pela manipulação de objetos são
também responsáveis pela conceptualização e pelo raciocínio.
Nesse contexto, segundo Bergen (2008, p. 3), uma abordagem corporificada deve
conceber o significado envolvendo a ativação do conhecimento perceptual, motor,
social e afetivo na caracterização do conteúdo dos enunciados. De acordo com o autor,
exposto à língua num determinado contexto, o indivíduo a apreende (e aprende)
recorrendo ao emparelhamento de “pedaços” da língua com experiências perceptuais,
motoras, sociais e afetivas reais. Em casos posteriores de uso da língua, quando os
estímulos motores perceptivos, sociais, afetivos originais não estão presentes no
contexto, as experiências são recriadas e revividas por meio da ativação de estruturas
neurais. Nesse sentido, o significado é “corporificado”, uma vez que depende de o
indivíduo ter vivenciado experiências em seu corpo no mundo real, onde são recriadas
experiências em resposta à entrada linguística. Por outro lado, essas experiências são
revividas para produzir saída linguística.
Segundo Bergen (2008), essa perspectiva de que a compreensão da linguagem se
baseia na recriação interna de experiências corporificadas anteriores é corroborada por
recentes pesquisas sobre o cérebro, as quais mostram que as áreas do córtex motor e
pré-motor, associadas a partes específicas do corpo (mão, pé e boca, por exemplo),
tornam-se ativas na resposta ao se fazer referência linguística às partes do corpo.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-150-
Com a intenção de apresentar evidências de uma mente corporificada, Bergen
relata outra experiência, que testa o grau em que as representações motoras são ativadas
para a compreensão da linguagem. A constatação básica dessa pesquisa é que quando os
indivíduos são convocados para realizar uma ação física, como mover sua mão para
longe ou em direção ao seu corpo, em resposta a uma frase, eles demoram mais tempo
para executar ações incompatíveis com as descritas na sentença. Por exemplo, se a
sentença for Andy deu-lhe a pizza, os indivíduos levam mais tempo para apertar um
botão, o que os obriga a mover as mãos para longe do corpo e o inverso é verdadeiro
para frases indicando movimentos em direção oposta ao corpo, como você deu a pizza
de Andy. Essa interferência da compreensão da linguagem sobre a ação e execução de
uma ação real com os nossos corpos sugere que, enquanto processamos a linguagem,
ativamos imagens motoras, utilizando as estruturas neurais dedicadas ao controle motor.
Uma terceira evidência é apresentada por Stanfield e Zwaan (2001) e Zwaan,
Stanfield e Yaxley (2002), ao investigarem a natureza das representações de objetos
visuais durante a compreensão da linguagem. Os pesquisadores mostraram que as
orientações implícitas de objetos em sentenças (como o homem martelou o prego no
chão versus O homem martelou o prego na parede) afetam o tempo que leva para os
indivíduos decidirem, a partir das imagens dos objetos (como a do prego, por exemplo),
se os respectivos objetos foram mencionadas na sentença. Quando a imagem de um
objeto é vista na mesma orientação que implicitamente estaria no cenário descrito pela
frase (por exemplo, quando o prego foi descrito como tendo sido martelado para dentro
do chão e foi retratado como apontando para baixo), os indivíduos levaram menos
tempo para executar a tarefa do que quando foi apresentada uma orientação diferente
(por exemplo, horizontal). O mesmo resultado foi encontrado quando os indivíduos
foram convidados a nomear o objeto representado. Os autores também descobriram que
quando as sentenças implicam que um objeto deve ter diferentes formas (por exemplo,
uma águia em voo versus em repouso), os sujeitos mais uma vez responderam de forma
mais rápida diante de imagens do objeto que eram coerentes com a frase (com a mesma
forma que os objetos tinham na frase).
Esses resultados convergentes de várias pesquisas sugerem um papel concreto
para as experiências motoras e perceptivas corporificadas na compreensão da
linguagem. No processo de compreensão da linguagem, os indivíduos automaticamente
ativam a imaginação ou simulam cenários descritos pela linguagem. As simulações
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-151-
mentais realizadas podem incluir detalhes motores, pelo menos no nível de um efetor10
especial, que seria usado para executar as ações descritas, e as informações de
percepção sobre a trajetória do movimento (longe ou perto, para cima ou para baixo),
como a forma e a orientação dos objetos descritos. Os estudos de imagiologia neural
sugerem que essas simulações são executadas pelos mecanismos do cérebro
responsáveis por focalizar as mesmas percepções ou realizar as mesmas ações.
Experimentos envolvendo modelagem computacional de redes neurais, que têm
em Jerome Feldman um de seus expoentes, também oferecem evidências indiretas da
conexão entre conceptualização e percepção. Ao simularem estruturas neurais, esses
modelos demonstram que o nosso cérebro, em princípio, pode realizar tarefas sensório-
motoras e conceptuais, simultaneamente.
Os modelos computacionais testados foram construídos para lidar com três tipos
de conceitos:
I. conceitos de relações espaciais – as relações espaciais e sua lógica são
conceptualizadas com base nas estruturas neurais que compõem o sistema visual
no cérebro;
II. conceitos de movimento corporal – nossos esquemas motores e nossos
parâmetros do movimento corporal são usados para estruturar esses conceitos e
sua lógica;
III. conceitos indicando a estrutura dos eventos (conceitos aspectuais) – que
podem ser adequadamente representados em termos de esquemas genéricos de
execução de ações: o raciocínio abstrato usado nesses esquemas é processado
através de simulações neurais do movimento (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 39-
42).
Baseados em Bergen (2008) apresentamos, no Quadro 12, os quatro tipos de
corporificação associando-os aos modos como a gramática de construções é
corporificada.
10
Efetores são órgãos que sediam as reações do indivíduo aos estímulos recebidos.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-152-
Quadro 12: Tipos de corporificação e GCC
Tipos de corporificação Postulados Gramática de Construções Corporificada
Corporificação neural
O modo como o cérebro é
estruturado pode ter efeito sobre
a linguagem.
Seu formalismo pode ser mapeado por
arquiteturas neurais.
Corporificação experiencial
As experiências particulares de
um indivíduo têm algum efeito sobre a linguagem.
A apreensão das construções se dá por meio
da exposição à linguagem em um dado contexto social e físico.
Corporificação social
Os objetivos dos grupos sociais (dentro dos quais a linguagem
se apresenta) e os contextos
sociais (nos quais a linguagem é
usada) têm algum efeito sobre a linguagem.
Deve-se considerar a interface entre representações de falantes diferentes,
crenças, desejos e enunciados prévios de
outros interlocutores.
Corporificação corpórea
As características do corpo humano têm algum efeito sobre
a linguagem.
É construída para ser realizada em um sistema computacional que realize tarefas
da linguagem real, como compreender,
produzir e traduzir, usando mecanismos
internos similares aos do corpo humano.
11.4 A Gramática de Construções Corporificada
A Gramática de Construções Corporificada (GCC) é uma teoria recente da
gramática de construções desenvolvida por Benjamin Bergen e Nancy Chang, juntos
com vários colaboradores. Nesta seção, apresentaremos uma visão muito breve deste
modelo baseado em Bergen & Chang (2005). Essa investigação assume que todas as
unidades linguísticas são construções, incluindo morfemas, palavras, sintagmas e
sentenças.
A GCC difere dos outros modelos de Gramáticas de Construções, por três motivos
básicos:
1. seu formalismo foi construído ao lado de um mapeamento detalhado do
formalismo de estruturas neurais computacionais. A incorporação é realizada
através da fundamentação neural;
2. a GCC foi concebida para formar um núcleo de compreensão da linguagem
computacional e sistemas de produção, e como tal deve ser explícita o suficiente
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-153-
para servir a fins de processamento da linguagem, em vez de conhecimentos
linguísticos simples;
3. a GCC cognitiva incorpora mecanismos linguísticos como esquemas
imagéticos, frames, projeções metáforas e metonímicas, espaços mentais, e
mescla em suas estruturas gramaticais, permitindo os diferentes mecanismos de
interface naturalmente.
Dessa forma, a GCC apresenta um formalismo concebido para apoiar os modelos
consagrados de uso e de aprendizagem da linguagem. Nesse contexto, ela é:
a. corporificada - as estruturas de GCC parametrizam simulações de
atividades com base nos esquemas motores e de percepção (Lakoff,
Langacker, Talmy, Narayanan);
b. baseada em construções - a unidade linguística básica é uma construção,
ou par forma-significado (Fillmore e Kay, Goldberg, Langacker, Croft);
c. baseada em restrições - as restrições sintáticas de todos os tipos
(fonológicas, semânticas, etc.) são expressas usando uma gramática base
unificada;
d. formal (estilizada) - pode ser formalmente definida e implementada
computacionalmente.
Bergen (2008) ressalta que a GCC se destina a servir a múltiplas funções e
abrange vários domínios:
GCC é uma ferramenta para a análise linguística: fornece notações formais com
as quais as análises específicas dos fenômenos linguísticos podem ser
precisamente expressas (e comparadas);
GCC suporta modelos de compreensão da linguagem: é a representação de um
modelo baseado em simulação de compreensão da linguagem;
GCC é o alvo dos modelos de aprendizagem de línguas. É aprendida com base
nas frequências e é cognitivamente motivada por modelos de aquisição inicial da
linguagem.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-154-
A GCC pode ser compreendida, tomando por base a figura 24, proposta por
Bergen e Chang (2005) acerca do processo de compreensão da linguagem.
Figura 24: Arquitetura da Gramática de Construções Corporificada
As principais estruturas e processos do modelo de compreensão da linguagem
(como descritas por Bergen e Chang, 2005) apresentados na Figura 24 demonstram que:
conhecimentos linguísticos são representados por construções (mapeamentos
forma-significado), que se expressam por meio de gramáticas de construções
corporificadas formais;
o processo de análise considera um enunciado e desenha sobre o conhecimento
linguístico, conhecimento de mundo e o contexto comunicativo imediato para
produzir uma especificação semântica (semantic specification ou semspec). A
semspec também pode sofrer um processo de resolução para especificar melhor as
referências relevantes;
a semspec fornece parâmetros para uma simulação dinâmica utilizando
estruturas de ações incorporadas, o sentido do enunciado consiste na simulação e
as consequências que ele produz.
Os usuários da língua têm conhecimento das construções (forma/significado).
Esse conhecimento é utilizado para motivar uma análise a partir de um enunciado de
input, comparado com as (combinações de) construções no pareamento forma e
significado. O contexto comunicativo também é acessado durante o desenvolvimento de
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-155-
uma análise. O produto da análise é uma especificação semântica do enunciado, que é
um input para um mecanismo de simulação. A simulação é “rodada” e o resultado serve
para agregar mais conhecimento ao usuário da língua, sobre o contexto e sobre o
mundo (e possivelmente também sobre a própria construção – a seta não mostra). Essas
construções são formalmente registradas, em uma notação utilizada pela linguagem de
programação Java.
11.4.1 Simulação baseada-em-compreensão da linguagem
Junto com colegas do grupo NTL11
, Chang e Bergen investigam a hipótese de que
a linguagem explora muitas das mesmas estruturas utilizadas durante a ação, percepção,
imaginação, memória e outros processos fundamentados neuralmente. Essa ideia reúne
trabalhos anteriores do grupo sobre os esquemas de representações corporificadas e os
pressupostos das abordagens cognitivas de gramática de construções.
O escopo do modelo de compreensão da linguagem vem sendo sedimentado, ao
mesmo tempo em que ganha várias direções, incluindo:
11.4.1.1 A simulação semântica
De acordo com Bergen, Narayan e Feldman (2003), o processo de compreensão
de qualquer aspecto da língua tem uma relação direta com a realização de simulações
mentais (de percepção e movimento). O estudo de como esses aspectos da linguagem
participam da construção de um imaginário mental é conhecido como simulação
semântica. Essa abordagem envolve três componentes principais:
a) ativação e combinação de representações parametrizadas do conteúdo simulado
que a construção linguística evoca, usando os parâmetros acerca do significado das
palavras, bem como restrições fornecidas pela gramática da enunciação. Essa etapa é
conhecida como fase da construção de uma semspec (um conjunto parametrizado de
instruções para a simulação subsequente).
b) desempenho subsequente de uma simulação mental dinâmica, sobre a base da
semspec. As construções apenas precisam especificar os parâmetros da simulação, 11
Neural Theory of Language.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-156-
permitindo que os recursos da linguagem dependam do contexto imediato, da
corporalidade e do conhecimento de mundo para influenciar o resultado de uma
simulação em particular.
Dentro desse enquadre, Srini Narayanan desenvolve três projetos: o primeiro visa
a construir uma teoria computacional neuralmente plausível e cognitivamente válida
sobre a linguagem. Os subprojetos incluem a construção de modelos conexionistas de
estruturação de eventos, interpretação da metáfora e modelos de processamento da
inferência bayesiana12
. O segundo projeto visa dotar as teorias semânticas e as
linguagens marcadas por artefatos e dispositivos na web. Um aspecto dessa teoria do
artefato envolve o desenvolvimento de marcação de documentos da web com a estrutura
lógica do documento e com a funcionalidade corporificada fornecida pelo documento.
Esses projetos voltados para a modelagem serviram como ponto de partida para a
inferência baseada em simulação.
A simulação semântica tem sido aplicada a questões de representação do modelo
baseado em frames. Em colaboração com os membros do projeto FrameNet13
,
apresenta-se como a GCC pode ser usada para unir as lacunas entre os corpora
semanticamente estruturados do FrameNet e os mais ricos mecanismos inferenciais
fornecidos pela simulação.
Os aspectos se referem ao modo como a forma interna de um evento afeta a
aceitabilidade e interpretação dos dispositivos linguísticos utilizados para descrevê-lo.
Inferências aspectuais parecem depender não apenas da semântica inerente ao verbo,
mas também das contribuições semânticas dos seus argumentos. O aspecto tem um
efeito profundo na interpretação das construções. Mesmo os mais simples fenômenos
semânticos que interagem com o aspecto na interpretação da sentença incluem a
presença de trajetores, marcos, caminhos e metas; a persistência e a reversibilidade dos
estados; a utilização de esforço e vontade; a dinâmica de força e/ou homogeneidade de
ações; a escala do tempo de raciocínio; e as características nominais como animacidade,
limitação (massa/contagem) e quantificação.
A abordagem baseada em simulação tem desenvolvido um modelo dinâmico de
composição aspectual, em que os eventos são modelados através de uma representação
ativa computacional chamada x-esquemas, assim chamada para distingui-los de outras
12
Diz respeito à probabilidade relacionada ao grau de crença atribuído por um indivíduo em um dado
evento. 13
Visite a página do FrameNet em http://framenet.icsi.berkeley.edu/.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-157-
noções de esquema e para nos lembrar que só são executados quando acionados. Uma
motivação para o x-esquema vem do controle motor. Comportamentos simples como
“segurar” envolvem movimentos coordenados de um conjunto de músculos de forma
estereotipada chamado de sinergia (cf. BERNSTEIN, 1967).
Em um nível mais elevado, o controle motor envolve a coordenação dessas
sinergias e da percepção de acompanhamento e controle. O esquema controlador
aspectual geral é ligado a esquemas de ação específica para simular um evento em um
contexto de forma sensível. Marcadores linguísticos que afetam os aspectos (como
restrições de tempo, modificadores temporais, nominais e contexto pragmático) podem
elaborar e simular eventos restritos.
c) fornecendo os resultados da simulação em um conjunto de experiências mentais
do entendedor da linguagem, que tem agora os aspectos do conteúdo do enunciado
internamente percebidos e encenados.
A avaliação da maneira como partes da linguagem evocam a simulação depende
de, antes, identificarmos que partes são essas. Segundo Bergen, Chang e Narayan
(2004), palavras de certos tipos, particularmente palavras de conteúdo, tais como nomes
e verbos, contribuem diretamente para o conteúdo da simulação. Menos obviamente, no
entanto, outros elementos linguísticos, como as palavras funcionais têm repercussões
diretas na simulação. Preposições, por exemplo, podem indicar trajetórias de
movimentos a serem incluídas na simulação, como em (56):
(13) A carreta estava em alta velocidade e bateu atrás de um caminhão-baú,
projetando os veículos contra a mureta de proteção. O caminhão de Renato ficou
preso na mureta por estar mais leve. Já o de Élio, rolou ribanceira abaixo
(globo.com, em 16/02/2009).
Ou relações espaciais como em (57):
(14) Moradores de dois bairros de Angra, próximos ao trecho interditado da BR-
101, abandonam suas casas (Correio Braziense, em 02/10/2009).
Padrões frasais também podem contribuir para a simulação. Um exemplo são as
construções ditransitivas, que contêm sujeito, verbo e dois objetos, exemplificado em
(58):
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-158-
(15) Aos 44 minutos, Cafu passou a bola para Kaká, que chutou de fora da área,
acertando um chute no ângulo, sem chances para o goleiro, em
http://www.jornaljovem.com.br/edicao3/copa06.php, acesso em 18/12/2010.
O padrão oracional, apresentado em (58), pode carregar um conteúdo simulativo,
em particular codifica a transferência do primeiro objeto (a bola) prevista pelo sujeito
(Cafu) para o segundo objeto (Kaká). Há evidências de que a significação de padrões
frasais, como o ditransitivo, vem da possibilidade de usá-los para descrever cenários de
transferência, usando verbos que não designam transferência, como em (59):
(16) No lance em que tocou a bola para Kaká, Ramires sofreu falta dura de
Kljestan e ficou caído no campo, em http://www.thronos.net , acesso em
27/09/2009.
Cada parte da linguagem que emparelha alguma forma com um significado
(morfemas, palavras, padrões frasais e expressões idiomáticas) – construção – pode
evocar simulações. A evidência de que o processamento de enunciados resulta na
ativação de imagens perceptuais e motoras não implica que isso aconteça diretamente
sem mediação. Bergen (2004) apresenta dois tipos de evidências da existência de um
estágio intermediário de representação entre a forma, de construções linguísticas, e a
simulação que elas evocam:
a) juntar palavras dentro de uma configuração aceitável durante a produção
linguística, ou determinar qual seria o conjunto de palavras em um enunciado e suas
relações durante a compreensão linguística, não requer o acesso ao significado
enciclopédico detalhado da construção envolvida. De preferência, as palavras são
combinadas em parte sobre a base de generalizações sobre seus significados. Assim, a
fim de participar com um verbo numa construção ditransitiva, um verbo deve ser
interpretado como codificador de apenas um entre vários tipos de transferência bem-
sucedida (metafórica ou não) de um objeto a um recipiente, mas, para uma sentença
ditransitiva ser interpretada como tal, não são colocadas restrições semânticas
específicas sobre o constituinte verbal no nível do detalhe motor ou perceptual – nós
não temos como saber qual efetor está sendo usado, de que jeito está sendo usado ou
qual a direção na qual o movimento será codificado. Nessas condições, tanto um verbo
de transferência causada pelos pés (como “chutar”) quanto um verbo de transferência
causada pelas mãos (como “tocar”) pode ocorrer em construções ditransitivas.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-159-
Essa ambivalência que as construções, para ser combinadas, demonstram em
relação ao detalhe simulativo é motivada. Poderia ser bastante oneroso para o usuário da
linguagem se, ao processar qualquer enunciado, lhe fosse requerido acessar o conteúdo
motor e perceptual detalhado de cada uma das possíveis interpretações do enunciado.
De preferência, unidades linguísticas parecem codificar só generalizações sobre
aspectos da ação, para o ditransitivo, é saber se eles podem ou não ser interpretados
como efetuando uma transferência de posse de um ou vários tipos. Tais generalizações,
também conhecidas como esquematizações ou parametrizações, constituem
representação de significado puramente linguística, por ser bastante geral para permitir
operações de combinação de elementos linguísticos. No entanto, eles facilitam a
simulação por serem fortemente ligados aos detalhes simulativos sobre os quais eles são
esquematizados.
b) a segunda evidência de que representações de significados linguísticos são
diferentes de conteúdo perceptual e motor a que se conectam deriva da possibilidade de
compreender sentenças que envolvam novos conteúdos de simulação. Se a compreensão
da linguagem fosse fortemente restrita pelas possibilidades motoras e perceptuais reais
proporcionadas pela nossa experiência real de mundo, então não deveríamos ser hábeis
para compreender a linguagem que conflita significativamente com essa experiência.
Mas nós sabemos que as pessoas podem fazer isso. Sentenças como as destacadas em
(60) são inteiramente interpretáveis e simuláveis.
(17) Em Saramandaia tudo era possível. Quando o Coronel Zico se aborrecia e
levava uma toalha ao nariz, começavam a sair formigas. Isso aconteceu durante
toda a novela, até que no último capítulo, acredite, a casa dele afundou num
imenso formigueiro. Outra cena clássica foi a explosão da Dona Redonda. Num
belo dia ela vinha caminhando pela praça aí começou a inchar, inchar e boom!
Explodiu!. Lembro-me que a mão dela caiu na mesa do Professor Aristóbulo. Por
falar nele, nas noites de lua cheia ouvia-se o uivado aterrorizante. Sim, ele virava
lobisomem. Já a fogosa Marcina, quando se excitava, a fumaça subia. Seu colchão
era trocado quase todo dia. Sempre amanhecia queimado pelo fogo da morena.
Mas nada se comparou a clássica cena que encerrou a novela. O personagem João
Gibão, brilhantemente interpretado por Juca de Oliveira, estava encurralado numa
encosta. Quando tudo parecia perdido, ele abriu as asas e alçou voo.
(portaldasseries.blogspot.com/2009/06/clássicos-da-teve-brasileira.html, em
09/01/2010).
11.4.1.2 Ênfase no processamento linguístico de quem compreende
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-160-
Nesse modelo, a ênfase recai sobre o processamento linguístico, da perspectiva de
quem compreende. Enquanto as outras abordagens enfatizam a modelagem do
conhecimento linguístico ao invés do processamento online, o modelo de GCC toma
como certo que as construções formam a base da Linguística Cognitiva e se concentra
na exploração de como as construções são processadas na compreensão linguística
online (ou dinâmica). Além disso, a GCC está centralmente preocupada em descrever
como as construções de uma determinada linguagem se relacionam com o
conhecimento corporificado no processo de compreensão da linguagem. Sendo assim,
grande parte da investigação até hoje, em GCC, tem sido focada no desenvolvimento de
uma linguagem formal que possa descrever as construções de uma língua como o
português. Essa língua "formal" também precisa ser capaz de descrever os conceitos
corporificados que as construções acionam no processo de compreensão da linguagem
dinâmica.
Como vimos, a GCC adota os princípios básicos da gramática de construções
padrão (GOLDERG, 1995; KAY; FILLMORE, 1999), e da gramática cognitiva
(LANGACKER, 2008), assumindo que todos os conhecimentos linguísticos, em todos
os níveis, podem ser caracterizados como pares de forma e significado chamados
construções. Compreender enunciados, de maneira bem ampla, envolve a ativação
interna de “esquemas corporificados”, juntamente com a simulação mental dessas
representações no contexto de geração de um rico conjunto de inferências. Construções
são importantes na abordagem em tela, porque fornecem a interface entre
conhecimentos fonológicos e conceituais, evocando, para isso, estruturas semânticas
corporificadas.
Consideremos o exemplo (61):
(18) Roberto Carlos jogou flores para a multidão (Folha Online, em 19/04/2009).
Em (61), uma análise construcional presume que a estrutura argumental da
atividade ditransitiva impõe uma interpretação em que uma entidade (Roberto Carlos)
executa uma ação (jogar) que causa outra entidade a receber uma coisa (flores). Apesar
de o verbo “jogar” ser recorrente em muitas estruturas argumentais, sua aparência em
“Roberto Carlos jogou flores para a multidão” é permitida apenas se o significado for
reconhecido como contribuindo para um evento de transferência. A palavra “jogou”
evoca uma ação física específica que também denota informação de tempo e aspecto
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-161-
relacionada ao evento maior em que está envolvido. Prototipicamente o esquema
JOGAR ativa a ideia de que foi empregada alguma energia no esforço de provocar que
uma entidade (no caso, “as flores”) mova-se através do ar. Mais especificamente, o
esquema JOGAR ajuda a arquivar o esquema força/movimento dentro de uma
construção ditransitiva ativa. Então, “jogar” se relaciona a uma forte ação sobre uma
entidade causando seu movimento, incluindo um atirador (agente) e o objeto atirado.
Construções não são determinísticas, mas buscam o ajuste entre um enunciado e o
contexto específico. No fim, o resultado do processamento acaba sendo o melhor
conjunto de ajustes de construções.
Uma breve visão da análise cosntrucional fornece o primeiro passo na
determinação do significado do enunciado “Roberto Carlos jogou flores para a
multidão”. O significado emerge da simulação de estruturas semânticas fundamentais
caracterizadas pela análise construcional. Primeiramente, esquemas de ação, ou x-
esquemas, que são usados para executar ou perceber uma ação exercida na compreensão
da ação. Por exemplo, o esquema JOGAR evocado por “jogou”, que é explícito,
fundamentado na representação do padrão semântico usado por um agente (ou aquele
que joga) para realizar uma ação de jogar. Esse esquema captura especificamente uma
sequência de ações que são relacionadas ao se jogar um objeto, incluindo possivelmente
ações preparatórias (p. ex. pegar o objeto e movê-lo em uma posição de partida
adequada) e o movimento de adequação do braço para lançar o objeto. Ações
subsidiárias que movem objetos ao longo de caminhos adequados com baixa força são
também consideradas. Esse esquema de execução de jogar deve também especificar
outras condições que possivelmente sejam mantidas em diferentes fases do evento, tais
como o fato de que o objeto jogado partiu da mão de um agente e que o objeto vai
voando até uma meta.
Em geral, construções tais como a ditransitiva habilitam os ouvintes a acessar
conhecimentos dinâmicos detalhados que caracterizam estruturas corporificadas ricas.
Um resultado importante dessa análise é que os x-esquemas podem fornecer o
significante inferencial para evocar significados detalhados para qualquer enunciado.
Por exemplo, parte das inferências relacionadas ao enunciado Roberto Carlos jogou
flores para a multidão se deve aos aspectos de estágios cronológicos inerentes ao
esquema de transferência (no nível do evento) e o esquema (no nível da ação de jogar),
como o seguinte:
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-162-
Quadro 13: Esquemas de Roberto Carlos jogou flores para a multidão
Essa análise de esquemas de ações corporificadas pode também especificar um
rico conjunto de significado inferencial evocado por enunciados metafóricos como
Roberto Carlos jogou flores aos internautas. Esse enunciado enfatiza os mesmos
eventos representados em Roberto Carlos jogou flores para a multidão, por meio da
construção ditransitiva. Mas a expressão “os internautas” não pode ser um recepiente
literal dentro do esquema TRANSFERÊNCIA, tendo em vista que, no contexto da
Internet, só poderiam receber informações digitalizadas. A solução para esse problema é
construir uma projeção metafórica que admita um domínio meta que permita à
construção a ser estruturada em termos do domínio fonte (do objeto transferido),
habilitando, assim, “os internautas” a serem compreendidos como possíveis recipientes.
Além disso, tanto os eventos como os significados apresentados podem ser entendidos
como atos verbais de transferir.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-163-
Bergen e Chang demonstram como o processo descrito acima produz a
simulação adequada, resultante de inferências, para a sentença destacada em (62).
(19) Mulher corta marido e espalha pedaços pela cidade
(http://www.brejo.com/b8/ler.noticia.php?ArtID=6177, acessado em 14/01/2010).
O compreendedor primeiro tenta reconhecer a sequência de sons em termos de
esquemas formais. Na fala ou em sentenças com palavras novas ou ambíguas, isso pode
exigir uma categorização mais sofisticada. Em (62), as formas são reconhecidas como
três esquemas formais (‘mulher’, ‘corta’ e ‘marido’) com as adequadas relações de
ordem temporal entre eles, apresentadas como setas verticais no lado esquerdo da
Figura 25.
Figura 25: Análise simplificada de Mulher corta Marido (Adaptada de BERGEN; CHANG, 2003, p.
148)
Em seguida, o processo de análise pressupõe que os constructos (instanciados
como construções) podem dar conta do enunciado; essas são construções cujos
elementos da forma estão presentes no enunciado. As quatro construções relevantes
desse enunciado são mostradas na coluna central da Figura 25. As construções
MULHER e MARIDO ligam-se a alguma forma fonológica (à esquerda) com um
esquema especial para cada respectivo referente (à direita). A construção CORTA liga
sua forma fonológica com uma predicação que apresenta um esquema chamado
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva. Natal: EdUFRN, 2012.
-164-
CORTAR, que é a esquematização motora e de percepção sobre cortar. Além disso, a
predicação é especificada como sendo sobre o presente, que passará a ser relevante
quando inferências forem propagadas, após a simulação.
A construção oracional TRANSITIVA une as formas e os significados das três
construções lexicais, que servem como seus componentes. Do lado da forma, ela
especifica uma relação de ordenação (o agente precede o verbo que precede o paciente),
enquanto que do lado do sentido, a sentença está ligada a uma predicação que codifica a
aplicação da força por parte de alguns meios. Sempre que o significado estiver ligado ao
esquema cortar, o agente é ‘mulher’, e o paciente é ‘marido’. A construção oracional
contribui, assim, com sua própria estrutura e significados esquemáticos, efeitos e
ligações entre esses e os dos seus constituintes. Em (61), o processo de análise
conseguiu encontrar um conjunto de construções que correspondessem ao enunciado.
As diferentes restrições se encaixaram, ou se unificaram, nos três domínios: forma,
significado e construção.